terça-feira, 4 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21224: Efemérides (333): Foi há 54 anos que parti para o CTIG, no T/T Uíge, para ir formar em Bolama o Pel Caç Nat 54 (Jose António Viegas)


Foto nº 5 > O Zé António Viegas. hoje, em Faro, bebendo a sua Sagres... [Será ainda do lote de cervejas que o Arnaldo Schulz levava no heli, em fevereiro de 1967 , quando aterrou em Portogole ? ]




Foto nº 2 >  30 de julho de 1966 > No T/T Uíge, a caminho da Guiné



Foto nº 3> Na messe do T/T Uíge, com outros camaradas, sou o terceiro, na mesa,do lado direito.


Foto nº 4 > Agosto de 1966 > Chegada a Bolama, para formar o Pel Caç Nat 54



Foto nº 6 > Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Cristal ou Sagres ? Parece que o Viegas já entrão preferia a Sagres... [O gen Arnalldo Schulz ao lado do piloto do helicóptero: fevereiro de 1967: a despedida: no banco de trás, duas caixas de cerveja, Sagres e Cristal; à direita, o fur mil Viegas, do Pel Caç Nat 54, com camuflado paraquedista trocado com um camarada numa operação no Morés em outubro de 1966; a aeronave parece ser um Alouette II ]

Fotos (e legendas): © José António Viegas (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso amigo e camarada José António Viegas [ fur mil do Pel Caç Nat 54, passou por vários "resorts" turisticos em 1966/68 (Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e, o mais exótico de todos, a Ilha das Galinhas, na altura, colónia penal); vive em Faro; é um dos régulos da Tabanca do Algarve; tem cerca de 40 referências no nosso blogue]:

Data - 4 de agosto de 2020, 14:55

Assunto - 54 aniversário da partida para a Guiné


Caro Luís:

No passado dia 30 de Julho fez 54 anos que embarquei para o CTI da Guiné, gostaria de expor uma pequena resenha do percurso até lá.

No dia 2 de Novembro de 1965  assentei praça no CICA 1, no Porto, era o único Algarvio naquele quartel e sem dicionário. 

Depois de ter acabado a recruta,  fui para a especialidade de estafeta mota. Fazíamos a instrução à base de tattoo e mecânica, o Furriel viu que eu sabia algo de mecânica, entregava-me a aula e pirava-se. 

Numa dessas aulas entra um 1º Sargento com pouco mais de um metro e sessenta  e de capote cinzento até aos pés perguntando pelo Viegas, apresentei-me e ela só me disse: "Ide à secretaria, estais f....!".

 Chegado à secretaria, não estava ninguém, vejo em cima da secretária uma guia de marcha e apenso uma carta com a sigla da DGS, nisto entra o Sargento aos berros,  que eu ia levar uma porrada,  e entrega-me a guia de marcha. E. sempre gritando, dizia: "Ides apanhar o comboio a S. Bento , mudas no Stil  [Setil] e vais para Vendas Novas, julgais que andais a enganar a tropa!...". 

Ainda lhe perguntei onde ficava a estação do Stil [Setil], mas nem me respondeu.

Cheguei a Vendas Novas a 11 de Janeiro de 66 para frequentar o 2º ciclo do CSM, era um luxo, na altura a recruta era dada por Aspirantes da Academia.

Findo o curso em Vendas Novas,  fui colocado no BC 8 de Elvas em 13 de Abril de 66 para dar uma recruta, após o que fui mobilizado para a Guiné.

Depois de gozar os dias da praxe, vou para os Adidos 2 dias a aguardar embarque.

No dia dia 30 de Julho pego na sacola, desço a Calçada da Ajuda e venho tomar o pequeno almoço num quiosque que já não existe em frente ao museu dos Coches, nisto chegam 2 amigas que estavam em França,  não sei como me descobriram e de rompante dizem-me que têm tudo pronto para ir para a França no outro dia estávamos lá, começamos a discutir, eu que não,  elas que sim,  que não tinha que ir pra guerra... Resultado: estivemos vários anos sem nos falar, quando reatamos a amizade levaram-me a Paris.

Voltei a pegar na sacola e dirigi me para o Cais, entreguei a guia e entrei no Uíge, olhei em volta não via caras conhecidas, vim para a amura ver aquele espetáculo horripilante das despedidas.

Depois de 5 dias de viagem,  chego à Guiné, saio para o Cais e encontro um amigo e conterrâneo o Furriel Jélio, já falecido, que pegou em mim e me levou para os Adidos, 2 dias depois fui para Bolama formar o Pel Caç Nat 54. 

Guiné 61/74 - P21223: Blogpoesia (689): Boas férias, cá dentro. Volto em Setembro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845)

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 30 de Julho de 2020:

Bom dia Carlos Vinhal.
Aqui envio meu último trabalho antes das férias, e que se chama mesmo "Férias".
Em Setembro voltarei à Tabanca para publicações, mas durante o mês de Agosto, passarei sempre uma vista de olhos pela Tabanca, pois como já o disse por diversas vezes, é dela que faço o meu jornal.
Para todos, boas férias
Albino Silva


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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21217: Blogpoesia (688): "O lavrista", "Escadas sombrias" e "Plangente e lacrimoso", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21222: Recortes de imprensa (112): entrevista ao antropólogo Vasco Gil Calado sobre droga e álcool na guerra colonial, "Público", 2 de agosto de 2020 (Carlos Pinheiro)


Recorte da edição do Público, 2 de agosto de 2020: Texto de Patrícia Carvalho e fotografia de Daniel Rocha. O artigo só está disponível para assinantes. (Excerto reproduzido com a devida vénia...)  


1. Mensagem do nosso camarada e amigo de Torres Novas, Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70)

Date: segunda, 3/08/2020 à(s) 18:23

Subject:  Artigo no jornal "Público" sobre álcool e droga na guerra colonail

Caros companheiros e amigos

Peço imensa desculpa de vos estar a incomodar, mas o trabalho que abaixo partilho, Cannabis e álcool: as companheiras esquecidas dos combatentes da Guerra Colonial, e que, possivelmente muitos de vós já tereis visto, feito por um fulano para a sua tese de doutoramento, depois de ter entrevistado 200 ex-combatentes, incomodou-me sobejamente porque – posso estar a ver mal – o senhor chegou aquelas conclusões depois de ter falado com uma inexpressiva percentagem daquelas muitas centenas de milhares de jovens que durante 14 anos deram o corpo ao manifesto.

Ele, segundo diz, nunca se tinha interessado pela Guerra Colonial, e só agora, não sei porquê, realizou o tal trabalho e chegou a estas "esplêndidas" conclusões.

Não me quero alongar mais, mas permito-me perguntar se este senhor não mereceria que lhe fosse dirigida uma reacção que desmontasse o que o senhor afirma doutoralmente.

Já me têm feito confusão algumas teses de doutoramento, mas esta suplantou todas as medidas.

Se algum ou alguns dos meus amigos se quiserem dar ao trabalho de alinhavar algumas palavras acerca do assunto, fico grato.

Cá fico à espera.

Um grande abraço, virtual

Carlos Pinheiro

 PS - Vd. artigo no jornal Público de 2 do corrente:

2.  Nota do editor LG:

Obrigado, Carlos pela tua oportuna chamada de atenção. Mas é preciso ir  às fontes, ler em primeira mão o autor, para depois se ter uma opinião fundamentada.  O tema é delicado mas não é tabu. Temos, no nosso blogue,  30 referências sobre alcool, mas apenas duas sobre drogas... 

Percebo, pelo título do artigo, que possa desencadear reações emotivas (, já me chegaram ecos de Trás-os-Montes...), porque mexe com a nossa autoestima e pode ferir a honra da generalidade dos combatentes. Mas não vamos provocar aqui uma "caça às bruxas"... Há 16 anos que falamos, aqui, no nosso blogue, de tudo ou quase tudo, com frontalidade e verdade. Mas o nosso blogue não tem por missão produzir "trabalho científico", apenas partilhar "memórias"... A ciência é com os cientistas,,,

Começo por dizer que não li a entrevista do "Público", nem o livro, mas vou consultar a tese de doutoramento, do Vasco Gil Calado,  em antropologia, pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, defendida em provas públicas em 17/9/2019.  Temos que separar o artigo de jornal (e os títulos de caixa alta dos jornais provocam muitas vezes leituras enviesadas) e o trabalho académico.

Este é um trabalho com arbitragem científica. E terá por certo méritos e desméritos. Não há trabalhos científicos perfeitos.  E é bom desde já chamar a atenção que não é um trabalho de  investigação (quantitativa) em epidemiologia mas um trabalho de investigação (qualitativa) em antropologia. Portanto, é preciso ter cuidado com as eventuais generalizações abusivas.

Este trabalho académico pode ser consultada no Repositório desta instituição ["O Repositório Institucional do Iscte tem como objetivo preservar, divulgar e dar acesso à produção intelectual do Iscte em formato digital. Na medida em que reúne o conjunto de publicações académicas e científicas do Iscte, contribui também para o aumento da visibilidade e impacto do trabalho de investigação a nível nacional e internacional."]

Referêmcia bibliográfica:

CALADO, Vasco Gil Ferreira - Drogas em combate: Usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa [Em linha]. Lisboa: ISCTE-IUL, 2018. Tese de doutoramento. [Consult. 3 de agosto de 2020 ] Disponível em www: http://hdl.handle.net/10071/18841. 

O acesso é restrito, por vontade expressa do autor (, por razões que desconheço, talvez relacionadas com a proteção das fontes e a confidencialidade da informação...),  podendo ser lhe pedida uma cópia em formato digital. Os trabalhos académicos, produzidos no âmbito das universidades públicas, devem estar ( e em geral estão)  em "open acesso", isto é, abertos à consulta pública.

Aqui fica o resumo da tese, o que é que está disponível "on line" no repositório, a par das palavras-chave: Antropologia cultural | Guerra colonial | Colonialismo português | Abuso de drogas | Memória coletiva | Usos e costumes | Portugal.

A Guerra Colonial Portuguesa foi um conflito de guerrilha marcado pelo desgaste físico e psicológico, tendo decorrido a milhares de quilómetros da «metrópole», em territórios inóspitos e em muito diferentes do que os jovens portugueses conheciam. 

Entre as novas experiências que tiveram lugar durante a comissão militar em África conta-se a descoberta da cannabis, uma planta de consumo tradicional em Angola e Moçambique, e a adoção de padrões de consumo intensivo de bebidas alcoólicas que a logística militar distribuía pelos quartéis. 

De acordo com as narrativas dos ex-combatentes, os usos de cannabis e álcool desenvolvidos pelos militares portugueses estão intrinsecamente relacionados com as circunstâncias do conflito, com as normas sociais e com as motivações de consumo. Na guerra, os militares portugueses recorriam às duas drogas como forma de ultrapassar as dificuldades, vencer o medo e lidar com uma realidade difícil de suportar, fosse pela omnipresença da violência, do tédio ou da tensão emocional. 

Embora a cannabis fosse uma planta que o olhar europeu historicamente associou à desordem e ao comportamento bárbaro, a partir do final da década de 60 do século XX os militares portugueses deram-lhe um uso diferente, consumindo-a de forma terapêutica, sem que isso desse aso a castigos disciplinares. No entanto, ao mesmo tempo, na «metrópole» o poder político iniciava uma «guerra às drogas», criminalizando o uso de cannabis e de outras substâncias psicoativas e fazendo da droga um problema social, associando-a à contestação social. 

Tudo isto permite perceber que a droga é um constructo social e um objeto eminentemente político, pelo que nada no uso de drogas é um facto adquirido ou algo que decorra exclusivamente das propriedades farmacológicas de cada uma, antes é condicionado histórica e socialmente, nomeadamente em função do contexto político. [Fonte: http://hdl.handle.net/10071/18841]

Há também um artigo do mesmo autor,  disponível em texto integral, "on line", na revista "Etnográfica" [Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia], e que já li em tempos (**).

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica [Online], vol. 20 (3) | 2016, Online desde 27 novembro 2016, consultado em 04 agosto 2020. URL : http://journals.openedition.org/etnografica/4628 ; DOI : https://doi.org/10.4000/etnografica.4628

Resumo: Apresentam-se as principais questões suscitadas pelo trabalho em curso acerca do uso de substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974). São identificados alguns aspetos-chave que emergem das narrativas dos ex-combatentes acerca da sua experiência de guerra e que contextualizam um conjunto de práticas, entre elas o uso de drogas. Confirma-se o abuso de álcool e o uso de canábis entre os militares das forças armadas portuguesas envolvidas no conflito, numa altura em que em Portugal surgiam as primeiras iniciativas de combate às drogas. Tanto o consumo de bebidas alcoólicas como de outras drogas pode ser entendido como uma forma de lidar com a ansiedade e a violência do quotidiano.

Em tempos, o Gil Vasco Calado pediu-nos ajuda para  este trabalho académico (**). Já não me lembro se me chegou a entrevistar, nem tenho a certeza de o conhecer pessoalmente,  O poste P16807 teve 12 comentários.
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(**) Vd. poste de 6 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16807: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (39): pedido de ajuda para tese de doutoramento em Antropologia, pelo ISCTE-IUL, sob o tema do uso de álcool e drogas na guerra colonial (Vasco Gil Calado)

(...) Chamo-me Vasco Gil Calado, antropólogo e técnico superior do SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências]. 

Estou a fazer o doutoramento em Antropologia, no ISCTE, sobre o tema do uso de álcool e drogas na guerra colonial. Foi o Renato Monteiro quem sugeriu que o contactasse, na condição de grande especialista e dinamizador de um blog essencial sobre a guerra colonial. No âmbito académico da tese, gostava de o entrevistar, de forma anónima e confidencial, naturalmente.

O meu orientador é o Prof. Francisco Oneto, do departamento de Antropologia do ISCTE.
Nós cruzamo-nos no ISC-Sul, numa pós-graduação de Sociologia da Saúde, em que deu um módulo sobre Educação para a Saúde, se bem me lembro, para aí em 1999 ou algo do género. (...)

Guiné 61/74 - P21221: Parabéns a você (1843): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira, ex-Al Mil Inf da CCAÇ 1420 (Guiné, 1965/67) e ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 (Guiné, 1970/72)


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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21212: Parabéns a você (1842): Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil Cav da CCAV 8350 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21220: Blogues da nossa blogosfera (135): PANHARD - Esquadrão de Bula (Guiné, 1963/1974) (2): Modelo à escala da Panhard AML 60, MX-03-19, do EREC 3432 (1972/74). Autor: João Tavares, da Associação de Modelismo do Montijo (José Ramos)


Guiné > Região de Cacheu > Bula > EREC 3432 (1972/74) >  Panhard AML MX-03-19. Guarnição: Daniel Salgueira, aspirante miliciano cmdt; Ferreira Rosa, apontador; e Júlio Araújo (condutor)








Notável reprodução, em miniatura, da Panhard AML 60, matríula MX-03.19, do EREC 3432 (Bula, 1972/74). Cortesia do blogue do José Ramos, Esquadrão de Bula.


José Ramos
1. Do blogue Esquadrão de Bula, que estamos a seguir, e que é editado pelo  nosso camarada José Ramos,  ex-1º cabo cav, condutor de Panhard, do EREC 3432, que esteve em Bula, de 1972 a 1974 [, membro da nossa Tabanca Grande desde 4 de outubro de 2018,  com o nº 778, vive na Lourinhã e  pertence à  Liga dos Combatentes-Núcleo de Torres Vedras]


28 de julho de 2020 > Modelismo militar

O  modelismo militar permite recriar em escala reduzida diferentes tipos de armamento, de que são exemplo os veículos militares.

João Tavares enviou-nos o seu modelo da Panhard AML 60, inspirada na que o seu amigo e nosso camarada Daniel Salgueira comandou na Guiné e onde,  para além dele, estão representados o Júlio Araújo (condutor) e o Ferreira Rosa (apontador).

Pelo magnífico trabalho e pela partilha um muito obrigado,  João.

2. Comentário do editor LG:

Descobri que o João Tavares pertence à AMM - Associação de Modelismo do Montijo, com página aqui no Facebook. E tem um porfólio notável no dominio do modelismo, civil e militar.

A AMM foi criada em 1998 e tem hoje como objetivo a partilha de saberes e experiências, mostrando que o modelismo é bem mais do que a “construção de miniaturas à escala”...

Para quem não sabe, é no Montijo que, anualmente, se realiza o maior evento nacional dedicado ao modelismo.

Tiro aqui o quico ao talento do João Tavares e fico grato pela generosa  partilha deste modelo da Panhard AML 60 nas redes sociais.
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Nota do editor

Guiné 61/74 - P21219: Notas de leitura (1296): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2017:

Queridos amigos,

Confirmo a importância deste trabalho de Álvaro Nóbrega, convido a todos à sua leitura. Trata-se de uma investigação rigorosa que viaja do passado ao presente, que cuida da história, da sociologia, da antropologia e da etnologia, toma-as como parcelas e objeto de análise e profere um grande olhar sobre um processo democrático que tem encontrado inúmeros escolhos, daí a identificação que ao autor pretendeu ao estudar a transição democrática, colocando-a no local certo, África, repertoriando os elementos do Estado, pinçando os dados sob as elites, o papel político dos militares, o presidencialismo, a fragmentação partidária, e muito mais.

Doravante, esta obra será incontornável para o estudo da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Os ziguezagues da democracia guineense:
Uma obra indispensável de Álvaro Nóbrega (3)

Beja Santos

Em “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, Álvaro Nóbrega, edição do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), 2015, dá-nos um estudo admirável sobre as sinuosidades do processo democrático guineense, a partir da luta de libertação, das tensões que esta mesma provocou, dos equívocos entre um sonho de modernização e as múltiplas dificuldades do Estado se encontrar com a nação e com as populações nela residentes.

No texto anterior aflorou-se o papel político dos militares, questão que se agudiza com o golpe de Estado de Nino Vieira, em 1980. De modo sub-reptício foram-se organizando fações, que exploraram questões étnicas, descontentamentos, questiúnculas internacionais como a dissidência do Casamansa e a venda de armas, um dos fatores que despoletou a crise político-militar de 1998-1999.

Os ajustes de contas passaram a ser cada vez mais ferozes, com assassinatos ao mais alto nível. As forças armadas guineenses são únicas no mundo: é um exército de 1869 oficiais (42%), 1218 sargentos (27%) e 1371 soldados (31%), uma autêntica pirâmide invertida. É óbvio que se procura a promoção para ganhar um pouco mais.

“A fim de os manter satisfeitos, de assegurar a sua lealdade e em cumprimentos das obrigações de parentesco, os chefes militares que não estão condicionados ao controlo civil, são facilmente tentados a dar promoções. Soma-se a este problema a situação não resolvida dos combatentes da Liberdade da Pátria”.

O número destes últimos supõem-se situar entre os 7 e os 10 mil. Outro aspeto que contribui para as dificuldades da construção da democracia na Guiné-Bissau é o papel político das forças armadas. O autor fala nos golpes de Estado mas refere igualmente que os militares estão conscientes das implicações políticas e financeiras negativas que a sua ação pode comportar perante a comunidade internacional. Nino Vieira terá sido o presidente da República mais temido e admirado pelo seu passado. Mas não compreendeu, no seu regresso em 2005, que tudo se alterara na Guiné-Bissau, o narcotráfico, o clientelismo e o sistema de influências retirara-lhe peso, quando chegou a hora do ajuste de contas, foi sujeito à humilhação de lhe entrarem portas adentro de casa e o retalharem.

Os poderes tradicionais retomaram a sua importância e os órgãos de soberania sabem que não podem prescindir de uma boa relação com eles. E nos órgãos de soberania assiste-se a uma difícil coexistência entre presidentes e primeiros-ministros, invadindo os respetivos campos, daí a permanente discussão em aberto se o regime deve ser presidencialista ou semipresidencialista.

Álvaro Nóbrega escalpeliza a fragmentação do sistema partidário. Com exceção do PAIGC e da FLING e da Resistência da Guiné-Bissau (RGB) nascido no exílio, os outros partidos guineenses são muito jovens, o seu número ultrapassava em 2008 o número de 30 partidos legalizados. Citando Francisco Fadul, grande parte dos partidos são encarados como propriedade privada:

“Todos os partidos da Guiné começam por ser partidos de um dono. Todos eles têm patrão que é aquele que coloca lá algum dinheiro para fazer funcionar a máquina e que se sente o dono. Se alguém não gosta da sua atuação, só tem é que abandonar o partido”.

Em consequência a luta é tanto mais dura quanto maior é a possibilidade do partido de vir a conquistar cargos governativos. São confrontos que podem levar ao descrédito do próprio partido, caso da batalha que opôs Hélder Vaz a Salvador Tchongo, foi uma picada mortal nos créditos eleitorais da RGB, que se mostrou aos eleitores desunida e fragmentada. Kumba Ialá aproveitou a brecha e liquidou o partido.

O autor dá inúmeros exemplos de conflitos em todos os quadrantes, as mensagens partidárias acabam por ser estandardizadas como o investigador sueco Lars Rudebeck já observara nos discursos partidários concorrentes às eleições de 1994:

“Os partidos políticos da Guiné-Bissau não podem ser distinguidos uns dos outros meramente pelo estudo dos seus programas e plataformas. As suas palavras de ordem e slogans são quase idênticas”.

A visão patrimonial do poder é cuidadosamente observada pelo autor. Há uma frase que pode resumir a situação:

“Na Guiné, quer pela vivência tradicional quer pela moderna, os indivíduos, habituaram-se a ver os carros de Estado como a solução para os seus problemas financeiros. Os régulos, por o serem, recebem as compensações de vida ao seu estatuto. Nas etnias que não têm régulos, os anciões têm direito pelo seu estatuto a exigir a prestação de trabalho e receber dádivas das classes de idades mais jovens”.

Quando abandona o poder, alguns titulares de cargos públicos e altos funcionários do Estado procuram a todo o transe manter as regalias que tiveram.

Em 2003, Álvaro Nóbrega publicara um importante livro "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau", é dossiê que conhece bem: a luta decorre em muitas instâncias, na presidência, no governo, no parlamento, nos quartéis, nos tribunais, na própria sociedade civil, pode envolver entidades sobrenaturais, convocar adivinhos, lançar feitiços…

E a Justiça? A Guiné dispõe de um sistema judicial sem meios humanos e materiais para cumprir a sua missão. A luta pelo poder também passa por aqui, quando o presidente não gosta das decisões dos tribunais exonera seja quem for. Basta ler os relatórios da Liga Guineense dos Direitos Humanos um número indiscritível de violações e desrespeitos.

Álvaro Nóbrega passa ao crivo a sociedade civil, as organizações não-governamentais, a liberdade de expressão, radiografa a comunicação social guineense que é materialmente pobre e como se processa a africanização do voto, realçando questões como o voto coletivo ou solidário, a compra dos votos, a intermediação etno-regional, a votação etno-religiosa e o fator relioso propriamente dito.

Nas conclusões, o investigador sumaria todas as problemáticas abordadas na sua análise:


  • baixo grau de comprometimento das elites políticas com a democracia; 
  • um Estado com falta de soberania; 
  • a etnicidade encarada como um dos maiores calcanhares de Aquiles da democratização guineense; 
  • a falta de autenticidade do poder e a sua personalização; 
  • a intervenção abusiva dos militares na política; 
  • a visão patrimonial do poder que não distingue os bens e capitais públicos dos privados e amplia consideravelmente o fenómeno da corrupção;
  • a luta pelo poder em todos os patamares institucionais e cívicos; 
  • a excessiva fragmentação partidária; 
  • os problemas das elites;
  • um sistema judicial enfermo e inerte; 
  • uma opinião pública que não é desinteressada da política nacional mas que espelha toda a heterogeneidade e a complexidade da sociedade guineense.


Tudo conjugado, o regime guineense é um misto de hegemonia e democracia e o autor atribui ao seu estudo o papel de contribuir para um melhor conhecimento do que emperra a democracia guineense e apela à necessidade de se continuar a estudar e a compreender as expressões políticas modernas que coexistem com as manifestações e estruturas das antigas instituições, é imprescindível compreender essa articulação e o seu impacto no Estado moderno. Para que a Guiné-Bissau progrida.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21202: Notas de leitura (1295): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21218: Efemérides (332): Foi há 51 anos a emboscada noturna de Sinchã Lali, no subsetor de Piche, a um grupo IN que fora roubar a população... Participação, entre outros, do 3º Gr Comb da CART 11, "Os Lacraus", com os fur mil Abílio Duarte e Cândido Cunha (mais a sua cadela 'Judy'), o Pel Caç Nat 65, e uma secção da CART 2440 (Valdemar Queiroz)


Guiné > Região de Gabu > Piche > CART 11 > Agosto de 1969 >  O regresso das NT...  O fur mil Cândido Cunha, do 3º Gr Comb, é o primeiro do lado esquerdo. Ao fundo, os "djubis", os putos, da povoação, aclamando as tropas vitoriosas...

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz  (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Mapa de Piche (1957) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Piche e das tabancas de Copiró e Sinchã Lali, bem como dos rios Perade e Caium, este delimitando a fronteira.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


1. Mensagem do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; tem mais de 110 referências no nosso blogue]

Date: domingo, 2/08/2020 à(s) 17:52
Subject: Emboscada feita pelas NT

Faz 51 anos este mês, que o 3º. Pelotão da CART 11, "Os Lacraus",  fez parte de uma emboscada ao IN, perto de Sinchã Lali,  na zona de Piche.(*)

Julgo serem muito raras as emboscadas feitas ao IN pelas NT e muito mais raras seriam as feitas de noite. Nunca se saía do Quartel para o mato durante a noite.

A nossa CART 11 estava em intervenção em toda a zona Leste e 3º. Pelotão dos ex-fur mil Cândido Cunha (**) e Abílio Duarte foi o escalado para esta acção de combate.

As NT, comandadas pelo Capitão Paquim, saiu do Quartel de Piche já de noite, tendo o grupo do IN entrado na zona de morte da emboscada  perto da meia-noite.

O Cunha contou um pormenor da nossa cadela Judy, que o acompanhou desde a viagem no Timor até ao fim da comissão, sem ninguém se aperceber também seguiu com eles e teria rosnado  quando a frente do grupo IN entrou na zona de morte precipitando/iniciando assim o nosso ataque.

O outro nosso ex-fur mil Abílio Duarte que também fez parte da emboscada,  foi atingido várias vezes na cara, sem gravidade, pelos cartuchos em brasa vindos das nossas armas. O Cunha e o Duarte poderão explicar tudo muito melhor, por terem tido parte activa nesta acção de combate.

Esta emboscada  ficou por nós baptizada com o pomposo 'A Batalha de Sinchã Lali'.

Anexo o texto, da nossa "História da Unidade", sobre a emboscada e uma fotografia do regresso da NT pela manhã a Piche em que aparece o Cunha (1º. no lado esq.).

A fotografia é uma das grandes fotografias do nosso blogue. O regresso dos nossos soldados e alegria habitual dos 'djubis'  a recebê-los, que merece ser comentado.

 Valdemar Queiroz
2. CART 11 > História da Unidade > Agosto de 1969 > A emboscada de Sinchã Lali

O 3º. Gr Comb [da CART 11], com o Pelotão de Caçadores Nativos 65 e uma secção da CART 2440, comandados pelo Snr Capitão Paquim da Costa, comandante da CART 2440, toma parte na montagem duma emboscada na região do Rio Perade (Piche), a fim de interceptar na retirada um grupo IN não estimado, que tinha sido referenciado por alguns elementos da população em Sinchã Lali, as quais informaram o Comando do Batalhão.

Aproximadamente às 24h00, parte do grupo IN entrou na zona de morte. Iniciado o fogo das nossas NT, o IN ripostou utilizando armas ligeiras, morteiros, lança-roquetes e metralhadora pesada, acabando por dispersar precipitadamente, deixando um morto no terreno e sinais de arrastamento de oito corpos com grande quantidade  de sangue. 

Abandonou o produto do roubo (vacas, galinhas, artigos de vestuário e domésticos, géneros alimentícios, etc.) efectuado em Sinchã Lali e Copiró.


As NT permaneceram emboscadas até ao amanhecer, executando então uma batida à região e recolhendo material diverso e documentos, tendo  regressado ao Aquartelamento às 08h30 sem registar qualquer baixa. O material apreendido foi uma espingarda Simonov 10 granadas de RPG  e várias munições de Kalashnikov.

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Notas do editor:


Sobre o Cândido Cunha [, o nº 3, nesta foto de grupo, em Silvalde, Espinho, em fevereiro de 1969], que ainda não é membro (registado) da Tabanca Grande, escreveu o Valdemar Queiroz o seguinte (em comentários a um poste de de 1 de julho de 2019);

(...) Ainda estou à espera de um relato dele sobre a Judy, a cadela setter que foi connosco para a Guiné e que ele cuidava amorosamente, principalmente o relato do que se passou na viagem no Timor e numa emboscada feita numa noite da zona de Piche em que a cadela também foi com a nossa tropa.

Já tenho alinhavado a "A 'Judy' também foi prá guerra" mas faltam estes importantes relatos.

Quanto ao resto o Cunha é uma pessoa extraordinária. Eu costumo dizer que ele teve comportamentos surrealistas/naïfs que não lembrou aos verdadeiros autores desses movimentos artísticos. (...)


(...) O  Cunha é meu 'irmão siamês' na tropa. Entramos os dois na parte da tarde do mesmo dia em Santarém, na  EPC, depois fomos para Vendas Novas, EPA, tirar a especialidade, depois fomos colocados na Figueira da Foz (RAP3) mas ele ficou na EPA a dar instrução, depois fomos para Silvalde, Espinho, e por fim para a Guiné. Sempre Juntos.

O Cunha era músico e tocava nas boîtes noturnas, durante vários anos perdi o contacto ele, há anos que nos juntamos nos Convívios anuais e sei que é já há muitos anos afinador de pianos, profissão que ainda desempenha.

Por várias vezes tenho lhe pedido para ele escrever para o nosso Blogue, mas ele não gosta de exibições. Ainda estou à espera. (...)

(...) Coronel Miliciano Lukas Titio, assim é que era. Temos que concordar que era uma alcumha surrealista. 'Cor Mil' [, coronel miliciano,]nnão lembra ao diabo. 

Uma das máximas do Cunha e bem surrealista passou-se na EPA - Vendas Novas, quando ele lá ficou a dar Instrução depois de acabar a Especialidade.

Foi numa reunião da Bateria de Instrução com todos Aspirantes, Furriéis e Cabos Milicianos que tratavam sobre as tarefas do dia, que o Cunha mandou um VRRRRRRR!!!!,  assustando os presentes. 'Mas o que se passa,  Cunha?',  perguntou um dos Aspirantes. 'Como estou a desenhar este novo modelo Lukas Titio, experimentei os motores', respondeu o Cunha, apontando para os desenhos de carros que estava a fazer enquanto decorria a reunião. (...)

(...) Mas com todo o seu [ar] surrealista não deixou de ser um grande exigente nas várias acções de combate na Guiné, incluindo ter feito parte da célebre emboscada de Sinchã Lali feita ao IN na região de Piche. (...)

domingo, 2 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21217: Blogpoesia (688): "O lavrista", "Escadas sombrias" e "Plangente e lacrimoso", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


O lavrista

Tomou uma pedra. Rude.
Um seixo disforme.
Poisou-a no chão.
Afez-se a ela.
Maço e guilho afiado.
Definiu-lhe a cabeça do tronco.
Delineou-lhe um rosto oval.
Riscou-lhe o nariz.
Um nada adunco.
Traçou-lhe o sobrolho.
Desenhou-lhe a boca.
Adoçada nos lábios.
Abriu-lhe os olhos.
Como fez a Cleópatra.
Espalhou-lhe cabelos na nuca.
A correrem para a testa.
Indeciso, arriscou-lhe a barba. Hirsuta.
Lavrou-lhe as orelhas. Quase escondidas.
Alisou-lhe as faces. Macias. Sem cor.
Adornou-lhe o tronco.
Braços caídos, entre o peito e o ventre.
Vestiu-o dum manto escorrendo-lhe as pregas.
Inebriado. Fitou-o nos olhos.
Soprou-lhe a alma.
Regou-o de vida.
Exclamou a chorar:
- De ora em diante, serás meu irmão!…

Ouvindo Borodin
Berlim, 30 de Julho de 2020
19h28m
Jlmg

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Escadas sombrias

Sobem esconsas as ruelas, sombrias
Que vão do Mondego ao Penedo da Saudade.
Casas brancas, portas estreitas e ombreiras.
Capas pretas. Luarentas.
Desgarradas para as janelas.
Lá no cimo. As estudantes recatadas.
Expectantes.
Amorosas. Saudosas.
Seus amores, em segredo.
Garraiadas. Estrepitosas.
Bem regadas.
Pelas calçadas, sombrias, luarentas.
É Coimbra apaixonada do Mondego.
Do Choupal e da Lapa
A fervilhar. Hospitaleira e orgulhosa.
Pensamento. Sabedoria de primeira, em escola livre e arejada.
Alfobre perene, em combustão...

Berlim, 27 de Julho de 2020
9h49m
Jlmg

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Plangente e lacrimoso

Plangente e lacrimoso o piano chora.
Se desfaz em lágrimas.
Toca triste a melodia.
Veementes rangem suas teclas.
São de dor suas pancadas.
Rio largo, impetuoso, corre em fúria para o mar.
Clama por clemência e esperança.
A humanidade sofre atroz este sinal de ira.
Seus passos se extraviaram da rota da justiça e da fraternidade.
A terra se cobriu de sangue inocente.
Pela voragem insaciável dos poderosos.
Mas, foram, exemplarmente destronados e humilhados.
Jazem no chão incapazes de se eximirem à força desta vaga inclemente que os depôs.

Ouvindo Schubert
Berlim, 26 de Julho de 2020
7h34m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21200: Blogpoesia (687): "O sabor da sabedoria", "Quem haveria de dizer..." e "Desinfestar os males", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21216: Blogues da nossa blogosfera (134): Diogo Picão: "A guerra do meu tio"

O músico, saxofonista, compositor 
e letrista, o lourinhanense 
Diogo Picão 
 1. Do blogue do Diogo Picão,  tomamos a liberdade de reproduzir, mais abaixo,  o texto "A guerra do meu tio"... 


Muitos de nós gostariam de ver os nossos filhos e sobrinhos escreverem textos com a qualidade e sobretudo a sensibilidade, a ternura e a empatia deste texto.

Claro que não é um jovem qualquer. É um talentoso e promissor músico, saxofonista, compositor e letrista, o lourinhanse Diogo Picão, que lançou, em 2018, o seu álbum de estreia, "Cidade de Saloia"

Trocou há anos a Lourinhã pela cidade grande e pelo mundo, mas não esquece as suas raízes telúricas e afetivas. Um grande poeta, músico, cantor, saxofonista. É autor de bem humoradas letras, ora irónicas, ora divertidas, ora sarcásticas. Vivendo apenas da música, foi, entretanto, um dos milhares de artistas que foram apanhados, sem rede, pela crise provocada pela pandemia de Covid-19, com concertos e outros eventos desmarcados... 
Capa do primeior álbum 
do Diogo Picão, "Cidade saloia" 
(2018)

 Tem dois tios que foram à guerra do ultramar ou guerra colonial, há muito esquecida (, ou cuja memória é hoje recalcada pelos portugueses...): um, tio materno,  foi alferes paraquedista, em Angola (BCP 21, 1970/72),  o outro, tio paterno,  foi "infante", furriel miliciano de infantariam no leste da Guiné, numa altura em que o leste esteve a ferro e fogo, em especial a zona fronteiriça em 1973/74 (CCAÇ 3545 / BCC 3883, Canquelifá, 1972/74).

 O primeiro, Jaime Bonifácio Marques da Silva,  fala da guerra, e é membro da nossa Tabanca Grande, o outro nunca fala da guerra, nem quer que lhe falem da guerra.

O Diogo merece a nossa atenção, apreço e aplauso... Vejam só este precioso pedaço de prosa: "Com ele [, o meu tio,] percebi desde criança que as guerras não são como nos filmes, mesmo que sejam realistas e bem-feitos, com fotografia impecável e correção de cor. Na guerra real ao que parece as pessoas vão morrendo devagar, repetidamente e durante muito tempo." 


2. Blogue do Diogo Picão > julho 30, 2020 > A guerra do meu tio (**)

O meu tio fala muito da guerra. Especialmente às refeições, mas qualquer hora é apropriada. 


Com ele percebi desde criança que as guerras não são como nos filmes, mesmo que sejam realistas e bem-feitos, com fotografia impecável e correção de cor. 

Na guerra real ao que parece as pessoas vão morrendo devagar, repetidamente e durante muito tempo. A mina que pisaram é a mesma mas morrem primeiro durante as entradas, às vezes ainda estão vivas durante o prato principal, para logo a seguir, na sobremesa, morrerem outra vez. Noutras alturas deixam de respirar nos pesadelos repetidos. 

Ao que parece a guerra não é uma coisa que acabe para quem lá esteve, a guerra é mais um estado de espírito, uma memória, quase um membro a mais no corpo, um terceiro braço cheio de cortes e nódoas negras no qual se vai trocando o penso todos os dias do resto da vida. 

Todos sabemos como são as ideias, elas vão trotando de um lado para o outro do cérebro e é como se estivessem todas ligadas e fossem muito íntimas umas das outras, quase amantes, mesmo quando nunca se conheceram. 

Qualquer assunto leva o meu tio a falar sobre a guerra: se alguém foi à casa de banho durante a refeição talvez se lembre daquele soldado que foi verter águas sem pedir autorização e acompanhamento armado, e acabou emboscado com um tiro certeiro; se alguém enche o copo de vinho recorda-se do quanto se bebia depois das operações no mato para que os tiros deixassem de soar na cabeça por umas horas; se alguém pisa num pedaço de queijo que caiu da mesa, ele lembra-se invariavelmente do Arsénio, o primo que pisou uma mina [, em Angola,] e se esvaiu em sangue antes do helicóptero chegar.

O primo Arsénio é a pessoa que mais demora a morrer. Morreu muito novo mas de alguma maneira estranha para mim ele continua vivo. Vai morrendo pouco a pouco e nunca deixa de estar presente nas ocasiões especiais da família. Sempre se sentou à mesa nos natais, nas sardinhadas de Verão, nas festas de aniversário, tanto dos adultos como da criançada que hoje já foi substituída pela nova geração. 

Eu nunca o vi presencialmente, a guerra foi antes de eu me lembrar da vida, mas o primo Arsénio para mim tem vinte e poucos anos, é magro e alto como o meu tio, não fala muito mas acena com a cabeça em concordância enquanto ouve as histórias de guerra, come de forma frugal, e falta-lhe alguma parte do corpo que nunca consigo ver qual é. Acredito que uma perna mas a imagem é um pouco baça e às vezes vejo-o a caminhar, então não sei bem. 

Também todos sabemos que as memórias são tramadas, se com os vivos de carne e osso já é difícil não os pintar de tantas cores que eles nunca vestiram, quanto mais com os mortos, ou com aqueles que estão sempre a morrer. 

Lourinhã  > Monumento aos Combatentes
do Ultramar. O Arséno Bonifácio Marques
da Silva foi um ds 20 jovens lourinhanenses
que morreunnesta  guerra, em 4/9/1972.
Em Angola,em combate. Era sold at,
CCS/BCAÇ 12.  A sua terra,
Seixal, Lourinhã, não  o esqueceu:
há um largo com o seu nome. 

Foto: Luís Graça (2012)
A mãe do primo Arsénio, a minha tia-avó Felicidade, nunca me falou dele. Não sei como ele era para ela mas deduzo que o mesmo que muitos filhos para muitas mães: um pedaço grande de tudo. E nesta morte continuada para mim há um facto: os helicópteros atrasam-se sempre. Seja nos incêndios ou a ir buscar o primo Arsénio, nunca estão onde são precisos na hora certa. A tecnologia ainda está obsoleta, os helicópteros chegam sempre quando as chamas já lavram desenfreadas e o primo Arsénio já se esvaiu em sangue.

Outra coisa que creio ter aprendido ao longo dos anos, a ouvir o meu tio sobre tiros, homens fardados e madrinhas de guerra, é que o bem e o mal são conceitos muito vagos. Devemos perdoar quem matou? Devemos respeitar quem morreu? E se quem matou também morreu? E se quem morreu também matou? 

Uma guerra parece ser sempre a derrota do diálogo e a vitória da força bruta aliada a interesses mais refinados. E mesmo que historicamente se acredite que uns estão do lado errado e outros do lado certo, se é que alguma vez isso existiu, os soldados de todos os lados estiveram lá a dar o peito às balas e alguns a encherem-se delas. 

Muitos contrariados, muitos obrigados, muitos encharcados em propaganda, muitos com fantasias nacionalistas, alguns com sede de sangue. É sempre mais fácil julgar de fora quando tudo já passou e estamos a assistir guerras no conforto do sofá em que os bons e os maus vestem fardas diferentes. 

Os combatentes que pisam o terreno são sempre carne para canhão, mesmo aqueles que concordam com a guerra em que foram alistados. As decisões são a maior parte delas assinadas em secretárias sem lama, em salas com retratos pomposos e imaculados e com palavras que os soldados não usam no quotidiano. E quando as altas patentes se reformam, e as ideias que defendiam ficam velhas, e às vezes vergonhosas, os soldados continuam a acordar à noite emboscados por um pesadelo sem pernas. 

E por mais que se fale, que se cale, que se beba, que se durma, aqueles que não conseguiram proteger ou que tiveram de matar continuam a morrer. E estão todos reunidos na memória. Inimigos e amigos vivem juntos depois de fecharem os olhos.

O meu tio fala muito da guerra. Ainda bem, fico mais tranquilo. Imaginem quem guardou aquelas explosões e aquele mato, aquelas entranhas todas dentro do peito. O meu outro tio nunca me falou da guerra mas sei que alguma coisa também morre dentro dele todas as noites.

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Setor de Piche > Canquelifá > CCAÇ 3545 (Canquelifá e Piche, 1972/74) > c. 18-31 de Março de 1974 > A paisagem desoladora da tabanca, depois do violento ataque do PAIGC com morteiros 120 e foguetões 122, durante 4 horas... Foto, de autor desconhecido, do álbum do Jacinto Cristina (Sold At Inf, CCAÇ 3546, 1972/74)

Foto: © Jacinto Cristina (2010).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


5 de setembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20124: Os nossos seres, saberes e lazeres (352): A festa da Atalaia, Lourinhã: oito dias pantagruélicos porque aqui o marisco é rei... Na festa da Atalaia, alarga-se o cinto e aperta-se a saia... (Luís Graça)

sábado, 1 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21215: Os nossos seres, saberes e lazeres (404): Alfredo Keil, um bom pretexto para ver a pré-primavera no agreste Cabril (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Foi graças a um livro de Aires Henriques sobre o Cabril e as suas belezas, que cheguei à obra poética de Alfredo Keil, "Tojos e Rosmaninhos". Depois consultei o magnífico catálogo que acompanhou a exposição de 2001, exposição magnífica que revelou que o criador da música do Hino Nacional, foi um grande pintor tardo-romântico, grande desenhador, amante da natureza, legou-nos paisagens sublimes, um bom fotógrafo e um espantoso colecionador. Percorreu a região do Cabril na companhia de Luigi Manini, um coreógrafo no Teatro Nacional de São Carlos que aproveitou alguns dos temas do Cabril para cenários de óperas de Alfredo Keil, ali mostradas ao público.
Anunciava-se a primavera, o céu estava descoberto, lancei-me por aqueles córregos para saborear a beleza ímpar daqueles pedregulhos que beijam o Zêzere, são águas que correm da Barragem do Cabril para a Barragem da Bouçã. E por ali andavam alguns sinais da primavera, e um verde intenso e as amendoeiras em flor, no fundo tínhamos chegado a fevereiro, a natureza desperta, o ciclo recomeça, tudo se transforma.

Um abraço do
Mário


Alfredo Keil, um bom pretexto para ver a pré-primavera no agreste Cabril

Mário Beja Santos

Alfredo Keil é mais conhecido por ser o autor da música do hino nacional, juntou-se a Henrique Lopes de Mendonça para compor um hino combativo a repudiar a humilhação do Ultimatum, período bem marcante da vida nacional. Keil não consta como nome cimeiro das artes plásticas portuguesas. No entanto, foi um grande artista polifacetado, mestre da paisagem, fotógrafo inovador, poeta, compositor de música de câmara, sinfónica, instrumental e operática. Quando se deslocou ao Zêzere, fez-se acompanhar de um famoso cenógrafo de óperas, Luigi Manini, está hoje comprovado que ele soube captar as penedias e o mundo rural daquela região. Numa importante exposição que veio a público em 2001, na Galeria de Pintura do Rei D. Luís, no Palácio da Ajuda, mostraram-se obras de Keil nas Lezírias ribatejanas, no Tejo em Abrantes, em Tomar, Meandros do Zêzere, incluindo até quadros a óleo com excursionistas a contemplar os desfiladeiros e as fragas a pique. Dessa grande viagem, Keil escreveu uma obra poética por ele ilustrada, Tojos e Rosmaninhos, a poesia não ficou para a história mas a arte do desenho é um deslumbramento.

O Cabril, visto por Luigi Manini, nas suas deambulações com Alfredo Keil no Zêzere


Num final de janeiro, numa tarde cheia de amenidade, e uma luz um tanto coada, com imagens das obras de Manini e Keil no Zêzere metidas no telemóvel, fui satisfazer a curiosidade de visitar esse local agreste, com águas domadas entre a barragem do Cabril e a barragem da Bouçã. Estavam a chegar alguns sinais da primavera, era oportuno saudá-los. Elas aqui ficam.


O Zêzere tem o condão de correr para o Tejo entre megatoneladas de calcário e xisto, torce-se e retorce-se em meandros, pois não tem a lisura de quilómetros a direito, encurva, tem por vezes vegetação à flor da água, mas a imponência deste curso líquido é a inclinação das margens, raramente amaneiradas com vegetação luxuriante, no essencial o que sobressai é a penedia que vem do alto, gretada, segmentada, brutal.



Enquanto se desfruta o Zêzere disciplinado pelas barragens, dá-se com o sinal pré-primaveril, é um dos primeiros, não são jacintos, são junquilhos selvagens. O português não faz turismo, como o inglês, para vir desfrutar estes avisos de que a primavera já está menos distante. Nem fazemos excursões para ver as acácias em flor, parece que a chegada da primavera está circunscrita às amendoeiras, não temos o uso nem o costume de andar a olhar o que a natureza rude exibe, bem discreta, para tocar a campainha de que a nova vida já está desperta. Mas há mais, a verdura está exuberante, aqui não virá um jardineiro roçar estes campos, verdes ficarão até fenecerem, é um verde quase mineral, o novo tapete de quem sai do sono do inverno.



Estas duas imagens de penedia agreste parecem ao viandante propícias para um bom cenário de ópera, ainda bem que o Luigi Manini por aqui andou e consagrou, são telas guardadas nos arquivos do Teatro Nacional de São Carlos. Mas a ponte filipina, da segunda fotografia, é de uma beleza estarrecedora, agora só suspiramos por aquela arte de bem construir, com dimensões harmoniosas, já ninguém se lembra, a memória apaga-se depressa, de que tempos houve em que aquela ponte era a única possibilidade de trânsito entre as gentes que saíam de Pedrógão Grande e que queriam ir até à Sertã, ou a Oleiros, ou a Proença-a-Nova, ou até mais longe. Havia uma empresa de viação em Cernache do Bonjardim, carreiras de e para Lisboa, em Cernache se enviesava para Castelo Branco e outros destinos, mas era a ponte filipina que dava mobilidade às gentes deste rincão já da Beira Interior.



Percebe-se um encantamento que provoca uma amendoeira em flor, tem algo de sinfonia pastoral, não possui a majestade da magnólia, nem a embriaguez daqueles campos de acácias que enchem de amarelo quilómetros à beira da estrada. Podem as amendoeiras formar conjuntos desta alvura de algodão rosado, mas podemos tomá-las uma a uma como odes à alegria da primavera, e daí perceber-se a atração que provocam ao fotógrafo e mesmo ao aguarelista ou pintor de telas de óleo, é um emaranhado de cor que ainda por cima se pode aprimorar quando o céu é plenamente azul, como no caso vertente. E é a saudar esta pré-primavera que o viandante se despede com promessas de regressar.


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Nota do editor

Último poste da série de 25 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21197: Os nossos seres, saberes e lazeres (403): Nadir Afonso, as invisíveis cidades geométricas, ao alcance da Matemática (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21214: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (13): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
A aranha entretece a sua teia, trata-se de um destino a dois, o que começara por ser uma inusitada proposta para ajudar a fazer um livro de memórias sobre a guerra da Guiné deu para que duas almas se fossem conhecendo, acontece que elas estão disponíveis para amar, há a vantagem mútua de não haver conveniências financeiras, ambos trabalham que se farta, nenhum dos dois precisa da gosma do dinheiro do outro, e já não escondem a dependência afetiva. Mas as memórias da Guiné continuam, e prosseguirão, mal sabe a Annette Cantinaux que tem narrativas sobre mais que um ano e meio de alegrias e dramas, muito sangue e muita fraternidade aqui serão alvo de descrição, e de Lisboa, não poucas vezes, partirão memórias embebidas nas lágrimas, há sofrimentos que nunca se reparam.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (13): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère, très chère Annette, estou a enviar-lhe esta carta ao fim da noite, parto amanhã para Bruxelas no voo das 6h50 da manhã, conto estar em forma para que se cumpra esse extenso e maravilhoso programa que preparou para o nosso fim de semana de três dias, e sei perfeitamente que lhe votou o maior carinho. Receberá esta carta, pois, quando eu estiver a regressar, e ainda bem que assim é. Sei que está a coligir com uma enorme devoção estes primeiros meses da minha guerra da Guiné, percebeu perfeitamente que me procuro inserir no meio, aqui ninguém é tratado por números, só por nomes, já sei distinguir Gibrilo (que vem do Anjo Gabriel, referido no Corão) Embaló de Gibrilo Mané, o primeiro é um soldado milícia que começou por falar comigo com os olhos postos no chão, manifestação de respeito, peguei-lhe pelo queixo e olhei-o de frente, “Gibrilo, somos dois homens com os mesmos deveres, o de nos respeitarmos mutuamente, não sou régulo, aceita-me como irmão”; Gibrilo Mané é também milícia, tem divisas de 1.º Cabo, é maqueiro, pouco depois de eu chegar ao Cuor foi tirar um novo curso ao hospital de Bafatá, regressou muito contente com a aprendizagem. Começaram a aparecer as histórias mais imprevistas da minha vida, imagine que uma noite destas estava eu na chamada messe a jogar ao loto com os furriéis e todos os cabos, e apareceu à porta um militar branco todo esfarrapado a perguntar onde se encontrava, caiu redondo na soleira, prontamente foi transportado para o meu abrigo, pus o quartel em estado de sítio, vigilância redobrada, como fora possível aquele homem entrar em Missirá sem ter sido detetado pelas diferentes sentinelas?

Deixei-o descansar cerca de uma hora, vinha nitidamente prostrado, coisa estranha ou tinha sido açoitado ou rasgara-se na densa vegetação, a roupa esfarrapada, golpes na carne, o calçado desfeito. Nenhuma das sentinelas dera pela sua entrada, o que me deixou estarrecido. À cautela, mandei fazer comida, quem assim chegava podia vir esfaimado. Acordou, devorou o arroz e as salsichas, bebeu desalmadamente. E contou uma história que nos pôs os cabelos em pé. Pertencia ao Batalhão de Mansoa, qualquer coisa como uma distância de 100 quilómetros de Missirá, irresponsavelmente saiu sozinho do quartel e foi banhar-se numa bolanha, aqui apanhado à mão por uma patrulha do PAIGC. Foi parar a uma base, não sabia qual, também não sabia em que dia tudo aquilo acontecera, o que interessa é que dois dias depois, e já sujeito a interrogatórios, aproveitou a calada da noite e embrenhou-se pela mata densa, correu, desorientou os perseguidores, conseguira apanhar uma estrada de terra batida, viu luzes, passou pelo cavalo de frisa sem falar com ninguém, identificou-se. Foi então que eu e o Cabo Teixeira preparámos uma mensagem para Bambadinca, tudo aquilo me parecia irreal, uma fábula, deixei o dito militar (deu nome, posto e referiu a unidade de Mansoa) vigiado e a mensagem seguiu, fui descansar, mas sempre em sobressalto, aquilo não podia estar a acontecer. Bambadinca respondeu ao amanhecer, era tudo verdade, eu que trouxesse o dito soldado desconhecido para ser recambiado para Mansoa. Annette, isto é um simples episódio da minha nova vida, aparecem-me soldados a pedir adiantamentos, uma noite destas o cabo maqueiro entrou-me na morança com um soldado milícia que pretendia dentro de dias seguir para o regulado do Cossé, queixara-se ao Cabo Adão, ele mandou-lhe baixar as calças, fiquei petrificado, aquele homem tinha um testículo que ia até aos joelhos, houve na manhã seguinte que fazer coluna e levar o doente ao médico, o cerimonial do casamento ficava adiado.

Chegou o Ramadão, solidarizei-me, num dos costureiros de Bambadinca (eles espalham-se desde o porto até ao mercado) adquiri 14 metros de popelina, mandei fazer calção, camisote e camisa, tudo branco com bordado roxo. Venho mostrar ao régulo, abraçou-me, tinha ali mais um irmão muçulmano, emprestou-me a sua espada, o cofió, o amuleto que eu ponho ao peito com um versículo do Corão, amanheceu, estou radiante por me dar tão bem com pessoas que desconhecia completamente há três meses, volto à minha morança e fardo-me, ainda usarei este fato no Ramadão, quando a convite for à mesquita para uma oração comum. Será devorado pelo fogo na noite de 19 de março de 1969, como todos os meus bens.

Este afã de vida embriaga-me, é um viver galvanizante, não há horas mortas, a despeito das profundas saudades dos meus entes queridos e eu saber que tinha sonhos e que gostava muito de ir ao cinema, ao teatro, ao bailado, à ópera, aos concertos, às exposições. É uma vida que ficou entre parênteses, aqui, agora, é procurar melhorar a existência com quem convivo.


A segunda imagem que a Annette pode observar marca uma grande alegria na minha vida: juntaram-se duas canoas para poder transportar o novo balneário de Missirá, bidons com chuveiros acoplados. Não me pode ver, estou de costas, visto uns calções manhosos, o Geba está na vazante, levamos a bom porto esta preciosa mercadoria que será transportada pela bolanha de Finete, esta noite será o assunto principal nos serões de Missirá, melhores banhos se anunciam.

Não quero incomodá-la mais com estas recordações da Guiné, a ficção do nosso romance. Mas não lhe podia deixar de enviar uma outra surpresa, a imagem do local onde vou praticamente todos os dias, e que fica a sensivelmente doze quilómetros e meio de Missirá.


Local de Mato de Cão onde fazemos a vigilância das embarcações

Estou empolgado por esta viagem, tenho muito para conversar com a Annette, sinto que se abre uma janela que ilumina o meu futuro no horizonte. Cheguei aos 50 anos, tenho os filhos crescidos, obviamente que tenho que os ajudar, mas penso ter direito à felicidade. Tal como a Annette, amo Bruxelas, as imagens que se seguem, para si particularmente comuns, deslumbram-me a qualquer momento. É seguro que iremos os dois passar por um ou mais locais aqui mostrados. Mas se lhe envio estas imagens é para lhe dizer, por minha honra, que não me importaria de aí passar mais tempo, como se essa cidade fosse minha, porque ela é muito sua, e isso dá-me um infinito prazer. Receberá esta carta depois de eu regressar, terei tempo entretanto de lhe dar conta de todos os meus sonhos em aberto. Não sei se deva dizer bien à vous ou bien à toi, iremos os dois considerar este fim de semana, afetuosamente, Mário.

Palácio da Justiça, Bruxelas, edifício mais gigantesco não conheço

 Cite Hellemans, Marolles

Boulevard Lemonnier, Bruxelas

Mercados multiéticos, Bruxelas
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21195: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (12): A funda que arremessa para o fundo da memória