terça-feira, 17 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21553: Agenda cultural (764): Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Andara desleixado, até que alguém advertiu que a exposição sobre as moranças guineenses estava patente até ao final do ano. Fiquei assombrado com a seleção de imagens, a doação do Arquiteto Fernando Schiappa de Campos parece ter uma dimensão impressionante, foi incansável a registar mais do que as moranças, usos e costumes, museograficamente é um atrativo para os olhos, obriga a refletir e para nós que lá vivemos é uma tremenda sacudidela na nostalgia, percorremos estas atmosferas e até colhemos bonitos sorrisos deste povo que não se ensaia pela belicosidade e que, no entanto, é dos mais afáveis do mundo. Não percam a exposição, até porque com o mesmo bilhete têm acesso ao valiosíssimo património do museu e visita ao esplendoroso jardim botânico.
Quando disse à minha neta que havia lá uma sala de dinossauros, entusiasmada, lá fomos. Depois contarei como foi.

Um abraço do
Mário


Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau,
Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano


Mário Beja Santos

Depois da aula de ginástica, quatro reformados acordaram em ir visitar a exposição sobre as moranças guineenses, supostamente já fechada ao público, descobriu-se que é possível visitá-la no majestoso edifício que foi o Colégio dos Nobres, depois Escola Politécnica e agora Museu Nacional, toca a preparar uma visita-guiada, com antropólogo e tudo. Muito está estudado sobre o habitat guineense. Teixeira da Mota, quando trabalhou como Adjunto do Governador Sarmento Rodrigues, pôs de pé um conjunto de estruturas culturais que marcaram indelevelmente o conhecimento antropológico, etnólogo e etnológico das suas populações. O oficial de Marinha convocava os administradores para produzirem estudos monográficos que vieram a ser publicados no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, as investigações mais curtas e parcelares ficaram dispersas no valioso Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Sobretudo no final da década de 1940, por toda a década de 1950 e também com algum dinamismo ao longo da década seguinte, foram aparecendo trabalhos que deram conta da completa integração da morança do quadro da tabanca, o uso de materiais, a construção permitia espaços sombrios e frescos, as arrecadações, as construções de querentim permitiam a privacidade do agregado familiar, a posição estratégica da mesquita, a produção de adobe, o corte dos cibes, a lógica de pinturas, especialmente na cultura Bijagó. A Junta de Investigações do Ultramar enviou dois arquitetos e um sociólogo no fim da década de 1950 para aprofundar esse conhecimento. É do trabalho dessa missão que esta magnífica exposição revela que o investigador foi acicatado pela curiosidade e cedeu ao feitiço africano. Todas estas imagens falam de um encontro de alguém que seguramente tinha conhecimentos dos locais que visitava, mas foi tão intenso o encontro que o fotógrafo se perdeu de amores. Consta mesmo que o arquiteto Fernando Schiappa de Campos guardou esta revelação até morrer, fora deslumbramento inextinguível.
Para saber mais, quem vai visitar esta exposição pode consultar o seguinte site: https://museus.ulisboa.pt/sites/default/files/Folheto%20Moran%C3%A7as%20site.pdf
Enquanto o grupo espera a chegada do mestre de cerimónias, um tanto à sorrelfa vou até à zona do museu onde se situa o velho Laboratório de Química, que liga com o anfiteatro muitíssimo bem conservado. Nestas balaustradas, os alunos viam professores fazer as experiências que deviam ser comentadas em voz alta, os alunos nesta geral deviam ir pondo questões. Tudo obra do passado, ainda bem que estas relíquias estão primorosamente conservadas. E agora vamos começar a visita propriamente dita.
Aqui ficam as imagens de quem por lá andou e os dois aparelhos fotográficos que pertenceram a Schiappa de Campos. O nome deste arquiteto era muito conhecido, quando andei a pesquisar a história do BNU da Guiné, ele foi chamado a apresentar um projeto para a construção da nova delegação do banco em Bissau, não retive se também fora convidado para apresentar o projeto da delegação de Bafatá, prevista em 1974. Era portanto um conhecedor da Guiné, mas estas imagens não são as de um repórter seduzido, é alguém que entrou na intimidade de diferentes facetas culturais, dir-se-á hoje que procedeu inclusivo, despido de preconceitos, deixando as imagens exprimir formas de resposta àquilo que alguém designou por Babel negra.
Quem visitar a exposição registará que o fotógrafo colheu diferentes imagens deste dançarino Bijagó, ele aparece a remoinhar, aquela ráfia se sacode vertiginosamente, é uma dança que vai afrontar, pode ser um tubarão-martelo, pode ser os espíritos endemoninhados que precisam de ser aplacados pelo vigor do movimento e dos sons. E repare-se como a vida continua na proximidade, aquele toque de quotidiano que nos é dado pelo arco com que o menino brinca.
E temos a luta, um desporto com regras, não é para bater nem massacrar, é para coroar a agilidade, há lutadores com o corpo bem oleado, há quem faça das mãos e da postura o engenho que leva ao desequilíbrio do contendor, veja-se a simetria das posições, até parece que há ali um árbitro que confere as regras da equidade, para ver quem primeiro bate com os costados no chão.
Atenda-se ao pormenor, o que interessa ao fotógrafo é revelar os adornos dentro de uma certa elegância corporal e nada mais, o que prova que não são necessárias braceletes de ouro ou prata, o cordame é mais do que suficiente para decorar e chamar a atenção, em todas as culturas o corpo é vitrina, os adornos são chamariz, é o que dita a imagem.
Temos aqui o transporte de mel, há quem esteja esquecido que foi sempre uma riqueza e produto de troca, há milénios. Há diferenças nas etnias quanto à forma de afugentar as abelhas e retirar os favos preciosos. Como nunca vira este comércio, pensei que se tratasse de uma imagem deslocada, até me pareceu um transporte asiático, mas não, o que está ali é mel e da Guiné.
Temos agora a derradeira fotografia, Schiappa de Campos talvez tenha organizado encenação, uma pose quase de estúdio. Veja-se a seriedade da mulher, o olhar dos dois jovens vai ficar gelificado para a eternidade e aquele sorriso é de quem ama a vida, gostou de acolher o visitante e quer que saibam, para todo o sempre, que tirar uma fotografia é sempre um tiro para a posteridade, como aqui aconteceu, guarda-se a nobreza dos povos e acende-se o rastilho desse feitiço de ver tão belas imagens e ter uma infinita saudade de gente tão acolhedora, tão cruelmente fustigada pelos desatinos do destino.
Não percam esta exposição, é gente que conhecemos e que jamais esquecemos, pelo que a vida nos ensinou.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21550: Agenda cultural (763): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", de José Francisco Nico, 2ª edição, a sair no final de novembro de 2020 (António Mimoso e Carvalho)

Guiné 61/74 - P21552: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte I: "A minha história"


Capa da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamgo e Guiné, 1966/68), documento mimeografado, de cerca de 4 dezenas de páginas, da autoria de João Borges, ex-fur nil comando. Exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória: "Quanto mais falamos na guerra, mais desejamso a paz. Do amigo João Borges"



Transcrição da mensagem manuscrita que o José Lino Oliveira nos mandou, pelo correio, com um exemplar mimeografado deste documento.  

[A 3ª Companhia de Comandos não tinha, até agora, qualquer referência no nosso blogue, com exceção da história da incrível história do  soldado Dionísio [Silva] Cunha, contada pelo nosso escritor José Ferreira da Silva, em "Outras memórias da minha guerra" (*).

Sobre esta unidade, a 3ª CCmds, ver também, no blogue de Alberto Helder, um poste de 1 de setembro de 2020.]

 

Paramos [, Espinho], 06-10.2020

Companheiro Luís Graça,

Conforme prometido envido a história da 3ª Companhia de Comandos, 1966/68, que actuou na Guiné.

Foi escrita pelo ex-furriel mil comando José João Marques Borges, 1943-2005.

Espero que lhe dê o melhor seguimento,

[assinatura ilegível]



1. Mensagem do José Lino Oliveira, com data de 2 de outubro passado:


José Lino [Padrão de] Oliveira, ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974, a mesma unidade a que pertenceu o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; membro da nossa Tabanca Grande desde 31/12/2012; tem dezena e meia de referências no nosso blogue: vive em Paramos, Espinho]


Bom dia, Companheiro

Já tinha dado por perdida mas finalmente encontrei a História completa da 3ª Companhia de Comandos, escrita por um ex-fur. mil Comando,  João Borges.

Suponho que foi a primeira a entrar em acção na Guiné.

Quero enviar ao Blog,mas como não tenho scaner para digitalizar, agradecia uma morada para enviar esta importante documentação para fazer parte do arquivo do blog.

Um abraço

José Lino
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Ficha de Unidade > 3.a Companhia de Comandos
Identificação 3.a CCrnds
Unidade Mob: RAL 1 - Lisboa
Cmdt: Cap Mil Inf Cmd Álvaro Manuel Alves Cardoso
Partida: Embarque em 24Jun66; desembarque em 30Jun66
Regresso: Embarque em 29Abr68

Síntese da Actividade Operacional

Após o desembarque, instalou-se em Brá (Bissau), onde inicialmente se edicou à construção dos alojamentos próprios e, simultaneamente, a realizar uma instrução de aperfeiçoamento e adaptação nas regiões de Prábis e Nhacra.

Em princípios de Ag066, iniciou a fase de treino operacional, que incluiu a realização de operações nas regiões de Nova Sintra- Tite-Jabadá e Jugudul-Ponta Bará e que culminou com a entrega das insígnias de "comando" em 02Nov66.

Em virtude dos efectivos da subunidade se terem sucessivamente reduzido devido ao desgaste sofrido, foi formado novo pessoal de recompletamento, com entrega das insígnias em 28Mar67.

Com a sua sede em Bissau, como subunidade de intervenção e reserva do Comando-Chefe, actuou em diversas áreas com efectivos de I a 4 pelotões, algumas vezes por helitransporte e em coordenação com a Força Aérea, ou em situação de reforço a diversos batalhões. 

Efectuou diversas operações nas regiões de Susana, Flaque Cibe (Jabadá), Bissilão (Tite), Insumeté (Bula), Choquemone (Bula) Catió-Cufar, Tiligi (Bula), Cabedú, Jol (Teixeira Pinto), Oio (Mansabá), S. Domingos, Locher (Mansoa), Poidom (Xime), Canjambari, Bambadinca, Binar-Bula, Salancaur (Guileje) e outras. 

Pelos resultados obtidos e efectivos envolvidos, destacam-se as operações "Vodka", "Nortada", "Xerez",
"Bom Sucesso", "Yungfrau" e "Rolls-Royce", entre outras, tendo capturado 4 metralhadoras pesadas, 2 metralhadoras ligeiras, 15 pistolas-metralhadora, 57 espingardas, 2 lança-granadas foguete e cerca de 9.000 munições de armas ligeiras.

A partir de 08Abr68, cessou a sua actividade operacional, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações
Tem História da Unidade (Caixa n." 83 - 2.a Div/4." Sec, do AHM)

Fonte. CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), p.529.

3ª Companhia de Comandos 
(Guiné, 1966/68) / João Borges

Parte I (pp. 1-5)








(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11273: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (16): É guerra é guerra... (será?)

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21551: Notas de leitura (1323): "A Armadilha da Guerra, Um exercício de ficção, em retrospetiva”, por António de Jesus Bispo; DG edições, 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
O Tenente-General Piloto Aviador António Bispo produziu um relato que intitula “Um exercício de ficção, em retrospetiva”. Nele existem longos diálogos, vão aparecer Salazar e Amílcar Cabral. Tudo colimará, como veremos mais tarde, num encontro de amigos onde se decide escrever a guerra de África, contadas pelos protagonistas. Lá no grupo haverá mesmo quem resmungue sobre a bibliografia em língua inglesa sobre esta guerra que dá vómitos, e outro acrescenta que tudo o que se tem publicado até agora tem sido lixo, inverdade e propaganda ideológica. Como os protagonistas estão na fase final da vida era preciso contar a verdade, sem sofismas.
No final da conversa dir-se-á que houve aquela guerra porque se constituíram partes em oposição que se deixaram cair na armadilha. Daí este exercício de ficção.

Um abraço do
Mário


Colonialismo e descolonização num espelho estilhaçado (1)

Beja Santos

O colonialismo, em termos históricos, foi condenado pelos vencedores da II Guerra Mundial e a descolonização entrou em marcha ainda na década de 1940, a independência da Índia foi o pontapé de saída. Todo este processo de análise tem merecido investigações de todas as proveniências, e do rigor histórico disseminou-se para a literatura. No caso português, tem dado azo a trabalhos de primeira água como a obra de consagração de Valentim Alexandre, “Contra o Vento”, Círculo de Leitores, 2017 e o romance de Pedro Rosa Mendes, “Baia dos Tigres”, Dom Quixote, 1999. Tema naturalmente polémico, que conjuga com atrição por força da ideologia. No caso português, o MFA afirma-se alegando que o poder político derrubado fora incapaz de encontrar soluções políticas após um prolongado conflito armado em três frentes, numa delas existia já um Estado reconhecido por mais de oitenta nações. Recrudesceram tomadas de posição, da extrema-esquerda à extrema-direita. Esta, alega que continua de pé, como narrativa dominante, a versão dos vencedores. E mantém um percurso incansável de acusações que vão desde a demissão das Forças Armadas perante valores inalienáveis até a um persistente discurso de que toda a nossa História recente é resultado de um processo manipulador, tanto na interpretação do colonialismo português como no que intitulam o desastre da descolonização.

Foi recentemente publicado o livro “A Armadilha da Guerra, um exercício de ficção, em retrospectiva”, por António de Jesus Bispo, DG edições, 2017. Não é romance histórico, não é ensaio histórico nem documento memorial, a obra não assume nenhuma destas facetas. É uma crónica que se inicia à volta de uma tertúlia que tivera lugar, nos anos 1960, na Pastelaria Mexicana, um capitão piloto-aviador, Victor Silveira, conversa com um estudante cabo-verdiano de nome Amílcar, afilhado de Amílcar Cabral. Tecem amizade, fala-se da luta armada que lavra na Guiné. Por decisão do autor, o diálogo é manifestamente desequilibrado, ao jovem cabe o papel de colar as frases da farta oratória que cabe ao protagonista, um convicto de que aquela guerra é justa e de que o adversário é dirigido por um narcisista marioneta de Moscovo. É um oficial convicto com uma capacidade discursiva entre Silva Cunha e Venâncio Deslandes, mas arroga-se à livre crítica, está inquieto com os problemas da comunicação da guerra na Metrópole, há muita mentira internacional, racismo há nos EUA, “Um verdadeiro racismo que discrimina pela cor da pele. Na minha estadia na Guiné não vi agressões das autoridades, abusos de poder, faltas de respeito, atentados à dignidade das pessoas e outros actos do mesmo género.” A luta pela independência, segundo o oficial narrador, teve uma consequência positiva, “porque nos estimou a criarmos condições para um maior desenvolvimento e a interiorizar uma ideia de multiculturalismo, de comunidade multirracial ligada por um conjunto de valores e pelo respeito pelas diferenças”. Fala-se aqui e acolá da Guiné, o colonialismo merece um discurso benevolente, fala-se do modo de ser português nas parcelas do Império, opressores a sério têm sido os norte-americanos e até os soviéticos, a causa portuguesa tem legitimidade à face do Direito, o discurso, aqui e acolá, também aparece pintalgado de aberturas ao diálogo, até se admite uma consulta popular, no caso da Guiné era importante alterar o paradigma das Forças Armadas, adotar uma espécie de estado de sítio, alargar as suas missões. Um outro caminho passa pela emigração, pois “muitos dos nossos emigrantes em África são autênticos missionários da solidariedade”.

É uma conversa longuíssima, o capitão não gosta dos sinais de indiferença que apresenta a sociedade civil, urge encontrar um dispositivo militar ágil que enfrente resolutamente os guerrilheiros, e discreteia sobre o significado da vitória política: “Podemos dizer: quando houver livre circulação das pessoas a guerra estará ganha; então vamos trabalhar nesse sentido, sabendo obviamente que isso envolverá muitos riscos em certas zonas. Saber assumi-los é uma condição primeira para se agir; às vezes, estando passivos também corremos riscos e é bom que se tenha consciência deste diferencial. Teremos de estar dentro do Oio, à vontade. O Oio é uma região entre Mansoa, Bula, Bissorã e Olossato, é um refúgio permanente da guerrilha. Teremos de fazer como eles fazem, com forças muito ágeis. Nós temos de lá estar, com prazos aleatórios, entramos, ficamos uns tempos, vamos à fala com a população. Não podemos fazer uma ocupação plena, como é óbvio, mas devemos criar uma grande insegurança ao inimigo e desconstruir o seu trabalho de doutrinação”.

Se todo este debate já excede a pura ficção e a verdade dos factos históricos, o que se segue aproxima-se do burlesco: Amílcar foi convidado para uma festa íntima dada por Salazar e leva o amigo, o protocolo é de que tudo o que ali se disser jamais em tempo algum poderá circular na via pública. E vamos ter, na magnitude, um frente-a-frente entre Salazar e o capitão piloto-aviador. Salazar é pedagógico, fala da Carta do Atlântico, da incapacidade do Ocidente em resistir à ofensiva soviética, de dedo em riste recorda que o domínio europeu em África constituiria um dique contra o comunismo, o que se passa na ONU é lamentável, o capitão, neste debate, tem o mesmo papel que Amílcar teve no debate anterior, cola as frases, a peroração arrasta-se, temos aqui o Salazar como ele foi, o nosso capitão insiste com o Chefe do Estado Novo de que é absolutamente necessário militarizar a Guiné e avança com a proposta de que se devia aceitar um processo de negociação com os terroristas, para os integrar num novo processo civilizacional, Salazar encrespa-se, o capitão clarifica o que queria dizer com negociação: “Era simplesmente mandar-lhe mensagens para ir enquadrando os termos de uma situação final e publicitar os factos que mostrassem, de forma inequívoca, que os objectivos da cidadania, do desenvolvimento, estavam a ser atingidos” e quando pergunta a Salazar se os terroristas decidissem cessar as hostilidades, o dirigente responde perentoriamente: “Seriam julgados por traição à Pátria, e por todos os crimes praticados sob sua direcção. Esses senhores são cidadãos portugueses, muitos deles com passaportes portugueses, ainda sem forma de os fazer caducar, que decidiram fugir do País, sublevar pessoas, incitar à violência, pegar em armas e lutar contra a autoridade legítima”.

Assim foi o encontro com Salazar, o ardoroso capitão saiu do almoço de convívio ciente de que seria muito difícil sair desta guerra, as posições estavam extremadas. E se o improvável deste encontro assim decorreu não menos improvável é um encontro que vai ter lugar em Paris entre Victor Silveira e Amílcar Cabral.

Como explica que o autor é tenente-general piloto aviador na reforma, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Geografia e com longo currículo na Guiné. Na contracapa escreve algo de enigmático face ao conteúdo do livro, tal qual: “A obra pretende transmitir a mensagem de que os decisores políticos, as sociedades, os estados, podem colocar-se em determinadas situações onde a guerra se apresenta como possibilidade, num quadro de valores e interesses, de risco e também de capacidades. Por outro lado, a paz ‘conquista-se’ em permanência, pela detecção, análise e neutralização das armadilhas que a interacção pode suscitar, com a utilização do poder de persuasão e de influência, no pressuposto de que a guerra pode ser evitável”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21528: Notas de leitura (1322): "Biambe e os Biambenses", por Manuel Costa Lobo; 5livros.pt, 2019 - Um levantamento ímpar: toda a história de Biambe (1966/1974), sítio de coragem e martírio (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21550: Agenda cultural (763): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", de José Francisco Nico, 2ª edição, a sair no final de novembro de 2020 (António Mimoso e Carvalho)



 






1. Mensagem de Antonio Carvalho:

Date: sábado, 14/11/2020 à(s) 13:07
Subject: BATALHA DO QUITAFINE

Exmo Senhor 

Professor Luís Graça

Em nome do Tenente-general José Fernandes Nico, por indisponibilidade de contacto deste, agradeço a seu apoio para a divulgação no Blogue da segunda edição da obra "A Batalha do Quitafine", que terá lugar na última semana do corrente mês,  pelo que junto um Flyer publicitário em que se incluíram alguns comentários recebidos. 

Apesar de alguns já terem sido apresentados anteriormente no Blogue pensamos que justificam a celeridade com que a primeira edição se esgotou e reforçam este novo esforço do autor em divulgar, o mais amplamente possível, as ações da Força Aérea no cumprimento da sua Missão durante a Guerra de África, concretamente na Guiné. 

Mais uma vez obrigado
António Mimoso e Carvalho 
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21549: Ser solidário (234): Associação Anghilau ("criança", na língua felupe), admissão de sócios, ficha de adesão... Somos já 28!... Poucos mas bons, mas ainda podemos ser mais (Manuel Rei Vilar)

 





1. Mensagem de Manuel Rei Vilar, líder do projeto Kasumai,  presidente da direção da Associação Anghilau, membro da nossa Tabanca Grande desde 13 de julho último [, na foto acima, tirada na  Guiné-Bissau,  Região de Cacheu, Susana,  em 18 de fevereiro de 2020, é o primeiro da esquerda, tendo a seu lado os seus manos Miguel e Duarte; o seu irmão, mais velho, Luis Rei Vilar, cap cav, comandante da CCAV 2538 / BCAV 2876 (Susana, 1969/71), foi morto em combate em 18/2/1970, no decurso da Op Selva Viva] (*)


Date: domingo, 15/11/2020 à(s) 11:31
Subject: Inscrições 

Caríssimos Padrinhos, Madrinhas e Amigos do Projeto Kassumai (**)

Somos já 28 sócios

Sei que somos poucos e bons! Mas podemos ainda ser mais ...para dar força à Associação Anghilau e ao nosso Projecto Kassumai. 

Peço desculpa de insistir mais uma vez!  Mas talvez se tenham esquecido...

Como sabem a inscrição não tem encargos para todos os bem-feitores da Associação.

Junto envio a "Proposta de Adesão" e vos peço que a preencham e ma reenviem o mais
rapidamente possível.

Muita saúde e protejam-se...todo o cuidado é pouco!  O vírus anda por ai!

Manuel Rei Vilar

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 13 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21164: Tabanca Grande (498): Manuel Rei Vilar, líder do projeto Kasumai, irmão do saudoso cap cav Luís Rei Vilar (Cascais, 1941 - Suzana, 1970)...Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 812

(**) Último poste da série > 4 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21138: Ser solidário (233): Viagem à Guiné-Bissau (de 15 a 28/2/2020), homenagem em Suzana ao cap cav Luis Filipe Rei Vilar (1941-1970), relatório e contas do projeto Kasumai, e a nova associação Anghilau (criança, em felupe) (Manuel Rei Vilar)

Guiné 61/74 - P21548: Parabéns a você (1894): José António Viegas, ex-Fur Mil Art do Pel Caç Nat 54 (Guiné, 1966/68) e TCor Art Ref José Francisco Robalo Borrego, ex-Fur Art QP do 9.º PelArt (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21544: Parabéns a você (1893): António Inverno, ex-Alf Mil Op Especiais do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 (Guiné, 1972/74); Orlando Pinela, ex-1.º Cabo Reab Mat da CART 1614 (Guiné, 1966/68) e Coronel Cav Ref Pacífico dos Reis, ex-Cap Cav, CMDT da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

domingo, 15 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21547: (D)o outro lado do combate (62): o primeiro contingente cubano em acção no Boé em 1966 (Jorge Araújo)



Foto 1 - Citação: (1963-1973); "Fernando de Andrade com um grupo de guerrilheiros do PAIGC e internacionalistas cubanos", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43457 (com a devida vénia).



Foto 2 – Madina do Boé: vista aérea, tirada de DO27, c.1967. Ao fundo as colinas do Boé – Poste P18873, com a devida vénia.



Foto 3 – Madina do Boé: Imagem do aquartelamento. Foto do álbum de Manuel Coelho, ex-fur mil trms, da CART 1589 (1966/68) – Poste P8548, com a devida vénia.



O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo; tem  270 referências no nosso blogue.

 

GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE: 
O PRIMEIRO CONTINGENTE CUBANO EM ACÇÃO NO BOÉ (1966) 


► ADENDA AO P21529 (09.11.20) (*)


1. INTRODUÇÃO



O local de martírio, pelo sofrimento continuado na sua defesa, denominado Madina do Boé, enquanto território circunscrito à intervenção das forças militares que nele combateram até 05/06 Fev 69, continua a suscitar superior interesse no aprofundamento da sua historiografia, onde cada contributo se transforma em mais uma peça do puzzle na reconstrução da memória colectiva da «Guerra dos Doze Anos» (CTIG; 1963-1974).

Pelas diferentes narrativas publicadas na última quinzena, no Blogue, acreditamos que está longe o dia em que se poderá dar por encerrado este dossiê, uma vez que muito ainda estará, provavelmente, por dizer, contar e/ou escrever.

Para além do acima exposto, o conteúdo da carta manuscrita por Amílcar Cabral (1924-1973), em 12 de Abril de 1966 [por sinal dia de aniversário de minha mãe (1928-2015)], e enviada de parte incerta ao seu camarada Aristides Pereira "Xido" (1923-2011), onde são dadas informações sobre diversos assuntos, mescladas com "orientações/ordens", nomeadamente as relacionadas com os planos a desenvolver pela guerrilha no Sector do Boé, que, a partir daquela data, iria receber "reforços operacionais" com a chegada dos primeiros elementos do contingente cubano, está na origem deste texto que identifiquei como "Adenda ao P21529" (*).

Porque, entre os diferentes temas tratados na carta, se aborda a chegada dos primeiros cinco "internacionalistas cubanos": três artilheiros (Antonio Lahera Fonseca, Heriberto Salabarria e Loreto Vásquez) e dois médicos (Rómulo Soler Vaillant e Raúl Currás Regalado), fomos em busca de algo mais consistente para nos ajudar a compreender o papel desempenhado por esses "reforços", oriundos do Mar das Caraíbas, nos tempos que se seguiram.

Para o efeito, começaremos por analisar, no ponto 2, o conteúdo das "memórias do médico-cirurgião militar Rómulo Soler Vaillant", a que tivemos acesso na nossa investigação, em particular aquelas que se enquadram neste contexto.


2. MEMÓRIAS DO MÉDICO-CIRURGIÃO MILITAR CUBANO RÓMULO SOLER VAILLANT (GUINÉ, 1966/67) DA SUA PASSAGEM PELO BOÉ 


O médico-cirurgião militar Rómulo Soler Vaillant nasceu em 1936, na cidade de Guantánamo, uma das dez províncias de Cuba, onde está situada a Base Naval dos Estados Unidos. Já graduado em medicina, e como maior experiência em cirurgia, realiza a pós-graduação no Hospital Militar de Matanzas «Mário Muñoz Monroy» (Setembro de 1965 a Fevereiro de 1966). Durante este período de tempo trabalhou como cirurgião, Chefe do Serviço de Cirurgia e Director do Hospital.


Em Março de 1966, é integrado na missão internacional com destino à Guiné-Bissau, como cirurgião e médico da guerrilha do PAIGC, com o nome de guerra  "Raúl Sotolongo Soler".


Fez a viagem de avião, com escalas,  até chegar a Conacri, na Guiné-Conacri, na companhia de sete outros companheiros, dois eram médicos (ele e o Raúl Currás Regalado) e os restantes artilheiros e morteiristas [como por exemplo: os tenentes: António Lahera Fonseca e Heriberto Salabarria e o soldado Loreto Vásquez].


Conheceu o Amílcar Cabral (1924-1973) com quem conversou por diversas ocasiões, para além de realizar tarefas de organização dos medicamentos e outros do seu perfil médico, às vezes em Conacri, outras em Boké ou já na "mata",  com os guerrilheiros.


Após a chegada do resto do seu grupo "mobilizado" em Cuba, cuja composição era de oito médicos e vinte militares, seguiram por estrada até Boké, uma localidade a mais de duzentos quilómetros, perto da fronteira com a Guiné-Bissau. 


Boké era a base de abastecimento e infiltração para a Guiné-Bissau, com um hospital de rectaguarda. Esta cidade ficava a cerca de 40 - 50 quilómetros de Simber, a linha de fronteira entre as duas Guinés.


Sobre a constituição deste "grupo", recupero as informações publicadas no Poste P16224, da autoria do,  também, médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado, onde se refere: 


"(...) Em 21 de Maio de 1966, depois de me incorporarem neste contingente, constituído por artilheiros, morteiristas e médicos, embarcámos para a Guiné no navio Lídia Doce. A viagem durou dezasseis dias, chegando ao porto de Conacri em 06 de Junho desse ano. "(...) 


Do primeiro grupo de nove médicos, três (?) viajaram de avião porque o PAIGC precisava deles com urgência.


Continua: 


(...) "De Boké partimos em transporte para Simber, linha fronteiriça com a Guiné-Bissau, a passagem decorreu sem dificuldades. (…)

O acampamento base onde nos encontrávamos chamava-se Kanchafra [Kandiafara ?] ou Cubucaré, não me lembro bem, só me explicariam (mais tarde) os Drs. Júlio García Olivera ("Bebo") e o Luís Peraza Cabrera, que juntos formávamos o grupo médico da Região Sul.

"No Leste e Oeste do país (Guiné-Bissau), existiam também grupos guerrilheiros do PAIGC, conselheiros e médicos cubanos, entre eles os Drs. Jesús Pérez, Teudy Ojeda Suárez (ortopedista) e Domingo Díaz Delgado (neurocirurgião), Raúl Currás Regalado (medicina geral) [12Set1941-15Mai1976]


"Faleceu em 15 de Maio de 1976, entre Nova Lisboa e Lobito, durante a sua missão humanitária em Angola] que, como nós, tiveram que realizar diversos procedimentos cirúrgicos. Devo esclarecer que, excepto o Dr. Pedro Labarrere que já era especialista (internista), quase todos nós tínhamos experiência como alunos, em internato e em pós-graduação do referido perfil, mas ainda não éramos especialistas.

Um acontecimento maravilhoso e marcante, para mim e também para todos nós que formamos o grupo de cubanos nas "matas" da Guiné, foi a chegada, como chefe da missão, do Víctor Dreke, um homem simples, valente e com condições mais do que comprovadas como chefe e líder.

O costume dos guerrilheiros era dançar e cantar por dois ou três dias antes de atacar um quartel e, principalmente, quartéis com tropas numerosas e bem armados. 

Sobre este ataque, foi feito um filme com a direcção do cineasta José Massip e pela câmera de Dervis Pastor Espinosa, onde entrei no baile e, sem camisa, passei como um nativo [ver o filme cubano 'Madina Boé' – Poste P21522]. 

Madina Boé era uma região muito importante para os portugueses e também para os guerrilheiros: em duas ocasiões foi atacada e o fogo inimigo [NT] praticamente não permitiu que os guerrilheiros avançassem. 

Desta vez, os Drs. Virgílio Camacho Duverger, Ibrahim Rodríguez, Santiago Milton Echevarria Ferrerá ("Xisto") e eu [Rómulo Vaillant], garantiríamos o ataque ao quartel de Madina do Boé do ponto de vista médico. Camacho e Ibrahim preparariam as melhores condições no Hospital de Boké e Milton e eu acompanharíamos a tropa.

Instalamos o posto médico nas nossas mochilas a menos de um quilómetro de onde aconteceria o combate. Sob o comando dos chefes guerrilheiros do PAIGC e de Víctor Dreke, este quartel foi atacado, houve surpresa por parte do inimigo [NT], causando baixas com um incêndio que duraria cerca de 30 minutos (creio). 

Depois da surpresa e quando saímos dos abrigos, foram incontáveis os reabastecimentos e os disparos de canhões [sem recuo] contra nós, bombardeamentos e lançamentos de morteiros, claro que recuávamos a uma velocidade superior à dos projécteis que nos atiraram. Se não me falha a memória, tivemos apenas cerca de seis ferimentos, todos leves. Nunca corri tanto na minha vida.

Numa ocasião acompanhei um pequeno grupo de guerrilheiros (bigrupo) durante um reconhecimento, fui na frente durante a viagem e ouvi um grito alto de quem era o meu segurança... Raúl... - Não se mexa, não ande, você está num campo minado - e ele começou a guiar os meus passos para que ambos saíssemos do perigo, eu recusei-me a fazê-lo e gritei para ele vir-me buscar, e ao meu lado, eu pulei e subi para cima dele, graças ao meu santo eu saí desse tormento são e salvo". (…)


 


3. - OUTROS FACTOS RELATADOS NO LIVRO "LA HISTORIA CUBANA EN ÁFRICA", DE RAMÓN PÉRES CABRERA, SOBRE AS ACÇÕES MILITARES DOS CUBANOS EM MADINA DO BOÉ,  EM 1966


► FRENTE LESTE



Os três artilheiros cubanos chegados em [29] de Abril: Antonio Lahera Fonseca, Heriberto Salabarria e Loreto Vásquez, seguiram para a Frente Leste que tinha como comandante Domingos Ramos, que havia acompanhado Amílcar Cabral na sua viagem a Cuba para participar na «Primeira Conferência Tricontinental», que decorreu em Havana de 9 a 12 de Janeiro de 1966.



 


Foto 5 – Citação:
(1966), "Amílcar Cabral, Domingos Ramos, Pedro Pires e Vasco Cabral na Conferência Tricontinental em Havana", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44215 (com a devida vénia).

 

Os três cubanos, armados com AK, de fabrico chinês, para além de ensinarem o manejo de artilharia aos guerrilheiros, participavam nas acções destes em combate. Estes foram, com efeito, os primeiros cubanos a participarem nas actividades da guerrilha na Guiné (Bissau).


As acções tiveram início a partir do 1.º de Maio de 1966 contra o quartel de Madina do Boé. Por parte das forças das FARP participaram dois bigrupos, utilizando metralhadoras ligeiras e lança-roquetes, apoiados por dois morteiros 82 mm. Este quartel estava defendido por cerca de duzentos militares com potente armamento que incluía: dois morteiros de 81 mm, três metralhadoras calibre .50  [, 12.7 mm, talvez a Browning] e bazucas de grande potência [, 8.9 cm]. No ataque do dia 1.º de Maio, domingo, as FARP tiveram dois feridos.


No dia 12 de Maio, 5.ª feira, o mesmo quartel foi fustigado novamente, com fogo de artilharia, tendo atingido algumas "barracas". Nos dias 20, 6.ª feira, e 31, 3.ª feira, desse mês, realizaram-se novos ataques. 


Neste último ataque, a resposta dos portugueses causaram dois feridos aos guerrilheiros. No dia 23 de Julho, sábado, realizou-se o quinto ataque contra o quartel, onde participaram forças de infantaria e artilharia das FARP. 


Nessa ocasião foram atingidas quase a totalidade das instalações dentro do perímetro fortificado do quartel, apesar de não serem conhecidas as baixas inimigas [NT].


De facto as NT, neste ataque ao quartel, registaram três baixas, a saber (CECA; pp 202/203):


■ Soldado, Augusto Reis Ferreira, natural de Montargil (Ponte de Sôr);

■ Soldado, Carlos Manuel Santos Martins, natural da Cova da Piedade (Almada);

■ 1.º Cabo, Rogério Lopes, natural de Chão de Couce (Ansião).



Capa dp livro de Ramón Pérez Cabrera


Os guerrilheiros (FARP) tiveram três mortos e vários feridos. No dia 31 de Julho, domingo, foi realizado um novo ataque ao quartel com fogo de artilharia.

Neste mês de Julho de 1966, chegou à Guiné (Bissau) o 1.º comandante Raúl Menéndez Tomassevich a pedido de um grupo de oficiais das FAR  [, Forças Armadas Revolucionárias, cubanas], acompanhando, pelo país, Amílcar Cabral, João Bernardo Vieira "Nino" e Francisco Mendes. 

Na companhia de Tomassevich faziam parte os comandantes Lino Carreras, Flávio Bravo e outros comandantes das FAR. Tomassevich permaneceu vários meses assessorando os membros das FARP na organização das Bases guerrilheiras e participou na planificação da «Operação Madina do Boé», efectuada nos dias 10 e 11 de Novembro de 1966.

Esta seria a maior acção realizada até esta data pelas FARP.


No dia 10 de Novembro, 5.ª feira, às cinco da tarde, os guerrilheiros iniciaram os ataques com fogo de canhões e morteiros contra as instalações do quartel, onde estariam uns trezentos efectivos sob o comando de um capitão [o Cap Mil Inf Jorge Monteiro, autor do livro «Uma Campanha na Guiné; 1965/67»] que, entrincheirados nas suas fortificações defendiam-se com as suas armas de infantaria apoiados por potentes armas pesadas: dois morteiros de 81 mm, três metralhadoras de .50  [12,7 mm ] dez metralhadoras de .30 [7.62 mm].  Os atacantes estavam acompanhados por cerca de trezentos e cinquenta guerrilheiros que contavam com boas armas de infantaria e um poderoso armamento pesado: três canhões sem recuo de 75 mm, três morteiros de 82 mm, 15 lança-roquetes e seis metralhadoras antiaéreas de 12,7 mm, utilizadas em tiro rasante.

As acções planificadas pelo comandante Tomassevich, em coordenação com Amílcar Cabral, previam ainda a inclusão de emboscadas de contenção nas áreas de circulação terrestre e fluvial, assim como contra helicópteros. Na liderança das forças atacantes estava o comandante Domingos Ramos, membro do comité político do PAIGC e um dos líderes mais queridos e respeitados pelos guerrilheiros.

No combate participaram seis internacionalistas cubanos: os tenentes Aurélio Riscard Hernández, Heriberto Salabarria Soriano, Virgílio Camacho Duverger, médico, os soldados Loreto Vásquez Espinosa e Milán Suárez, anestesista. Também participou Ulises Estrada Lescaille [nome de Guerra, de Dámaso José Lescaille Tabares (11.12.1934-26.01.2014], membro da Inteligência cubana. (Op. Cit; pp 100-101).


Fonte: https://books.google.pt/books?id=4HT2AgAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false




4.  TESTEMUNHO DO MÉDICO CUBANO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER (1934-2003) O ATAQUE AO QUARTEL DE «ADINA DO BOÉ EM 10 DE NOVEMBRO DE 1966 – Poste P16613


Ao terceiro mês de estar na região Leste [novembro'66], é-lhe pedido que realize um reconhecimento ao quartel de Madina do Boé, considerada por si como a missão mais importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria, médico do seu grupo na Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para aquela acção, caminhada que, disse, demorou perto de cinco horas, uma vez que a base estava a cerca de três quilómetros dali.

Em 10 de novembro de 1966, uma quinta-feira, a operação concretizava-se. Antes do ataque, na companhia de um enfermeiro cubano anestesista que havia chegado para reforçar o grupo de saúde, criou um posto sanitário avançado em território da Guiné-Bissau, perto da zona do combate, de modo a facilitar a assistência médica e a prestar os primeiros socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao Hospital de Boké.

Conta que a primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local onde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos. Os estilhaços da granada atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. 

Durante a evacuação, a caminho do hospital [não indica qual: se a enfermaria que ajudou a criar em território da Guiné-Conacri, se o Hospital de Boké], Domingos Ramos faleceu.


Nota final: 

Para mais detalhes sobre a morte de Domingos Ramos, consultar o poste P16662 > Domingos Ramos, desertor do exército português e herói nacional da Guiné-Bissau: entre o mito e a realidade: as últimas palavras que ele nunca poderia ter dito, nem muito menos escrito, antes de morrer, em 10/11/1966, no ataque a Madina do Boé (Jorge Araújo).


► Fontes consultadas:

Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).


Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).


Ø Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

13Nov2020

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 9 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21529: (D)o outro lado do combate (61): A chegada dos primeiros cubanos em abril de 1966, e o reforço da guerrilha no Boé, conforme carta de Amílcar Cabral para "Xido", o nome de guerra de Aristides Pereira

Guiné 61/74 - P21546: Blogues da nossa blogosfera (145): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (56): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


SER MÉDICO. OBSERVAR E TRATAR DOENTES

ADÃO CRUZ
O exercício da medicina é, sem dúvida, uma arte. Uma arte nobre e extremamente delicada. Assenta num pilar central e fundamental: a Competência. Mas a competência é multifactorial. Para além do inegável factor saber-conhecimento, outros há, sem os quais a competência poderá, simplesmente, não existir. Estes são muitos, mas podemos destacar como mais importantes uma sólida estrutura da consciência, a dignidade, a honestidade, o espírito de sacrifício, a humanidade e o BOM SENSO, indispensável em toda esta integração. Sabemos que o médico, como ser humano que é, está sujeito a erros, vicissitudes e até desvirtudes. Mas como todo o ser humano, tem direito a compreensão e perdão, quando as suas falhas são desvios meramente incidentais. O mesmo não acontece, como é óbvio, quando a sua conduta entra no campo lamacento da desonestidade, da irresponsabilidade e da perda dos valores éticos que integram esta incomparável profissão.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21462: Blogues da nossa blogosfera (144): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (55): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21545: Blogpoesia (705): "As vielas das casas", "Quando se avizinha a noite" e "Rostos frios, malévolos", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


As vielas das casas

Tecem lendas
São inversas as vielas das casas, na cidade.
Traçam ruas paralelas, oblíquas.
São avessas as travessas cruzadas.
Traçam praças, cruzamentos, inquinados.
Tecem lendas. Com enigmas.
Rezam fados.
Caçam vento. São moinhos.
Opacos. Helicoidais.
Têm fendas. Resquícios.
Cheias d'ervas.
Opíparas. Comem traças.
Desalmadas. São secretas.
Repelentes. Têm penas.
Eremitérios.
Almas penadas, esvoaçantes.
Têm postes. Guarda-fios.
Guardam espíritos.
Como morcegos.
Fogem delas.
Erram vadios.
Cumprem penas.
Têm estigmas.
De tão ermas.
Ficam desertas.


Berlim, 10 de Novembro de 2020
9h19m
Jlmg


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Quando se avizinha a noite

Quando se avizinha a noite e se acendem as estrelas.
Chegou a hora de fazer as contas.
Valeu a pena o dia?
O que há que corrigir?
Viver só por viver não vale a pena.
É preciso operar o bem e fugir do mal.
Deixar entrar o sol na nossa vida.
Acender o fogo do nosso amor.
Ir à luta em cada dia para frutificar.
A árvore que não presta só serve para queimar.
Aproveitar o que falta viver para ser o se deve ser.
Todos temos o nosso dom.
Ninguém possui o nosso jeito.
Temos a obrigação de o exercer.


Berlim, 12 de Novembro de 2020
9h10m
Jlmg


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Rostos frios, malévolos

Rostos frios, malévolos.
A vida para eles não tem valor.
A morte é um instrumento.
Usá-lo quando for preciso.
A todos que têm poder ou lutam contra a opressão.
Onde quer que seja e seja lá onde for.
Se infiltram pelas escadas.
Se espalham pelos corredores.
Cátedras e catedrais são seu pelouro.
Só descansam quando as derrubarem.
Instrumentos do mal.
Não desarmam enquanto não derrubarem tudo.
Sementes do mal que crescem por toda a parte.
Mal dos tempos.
Sinal de que o mundo inteiro se tresmalhou.
Só a nova ordem será o remédio santo.
Aquela que só o Criador poderá arquitectar.


Berlim, 12 de Novembro de 2020
14h33m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21525: Blogpoesia (704): "O comboio que chega", "Rotação da Terra" e "A paz do silêncio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21544: Parabéns a você (1893): António Inverno, ex-Alf Mil Op Especiais do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 (Guiné, 1972/74); Orlando Pinela, ex-1.º Cabo Reab Mat da CART 1614 (Guiné, 1966/68) e Coronel Cav Ref Pacífico dos Reis, ex-Cap Cav, CMDT da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série: 14 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21541: Parabéns a você (1892): César Dias, ex-Fur Mil Sapador Inf do BCAÇ 2885 (Guiné, 1968/70); Jacinto Cristina, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3546 (Guiné, 1972/74) e Maria Arminda Santos, ex-Tenente Enfermeira Paraquedista (1961/1970)