sábado, 19 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21661: Os nossos seres, saberes e lazeres (429): Recordações da casa dos espetros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
Remexer no passado, é por todos sabido, suscita memórias, sentimentos ambivalentes entre ganhos e perdas. No fundo de uma gaveta apareceram quatro aerogramas, sabe-se lá se escaparam a muitos outros que foram para o lixo, fotografias inesperadas.
Foi um encontro benfazejo para mim, guardo uma recordação muito forte da minha sogra, por tudo o que ela fez pela família, a dedicação extrema pelas minhas filhas. Não me surpreendeu a franqueza com que eu descrevia o meu dia-a-dia, nunca escondi a ninguém o fragor da guerra, a extrema penúria, os perigos constantes. Deve ter havido gente que julgou que eu tinha ensandecido quando contava como Missirá saía das cinzas, entre abril e julho de 1969, foi um repto que me preparou para saber cuidar ou lidar com as intempéries. Gostei tanto de voltar a ler estes aerogramas que aqui vos dou notícia, e não escondo o júbilo, a despeito de muita desta gente querida ter desaparecido, guardo-os carinhosamente nas fotografias que me rodeiam, o seu papel é o de um farol que nos lembra os riscos de perder o dever de memória.

Um abraço do
Mário


Recordações da casa dos espetros

Mário Beja Santos

Vivi nesta casa em dois períodos distintos: de 8 de março de 1952 a 11 de abril de 1967, aqui fiz a escola primária, o liceu e entrei na faculdade, empreguei-me como ajudante de mecanógrafo, nesse 11 de abril de 1967 veio almoçar com a minha mãe e comigo um dileto amigo, Carlos de Sampaio, que me acompanhou ao Rossio; de 13 de maio de 1982 a 30 de dezembro de 1994, após o falecimento da minha mãe candidatei-me à casa, comprei-a mais tarde, aqui vivi com mulher e filhas até 30 de dezembro de 1994, parti então para o Bairro das Ilhas, relativamente perto do Saldanha. Nesta casa faleceram a minha avó materna, a minha mãe, a minha filha mais nova, se aqui regresso é para ajudar a minha filha a pôr uma certa ordem depois da saída inopinada para um lar, devido a graves problemas de saúde, da sua mãe. Conheço ao milímetro todo este espaço, numa primeira fase houve que ir libertando traquitana inútil, removendo lixos, identificando objetos. É numa dessas arrumações, no fundo de uma gaveta, entre dois cartões, que encontro quatro aerogramas que enviei à mãe da minha noiva e mais tarde minha sogra, Celeste Brito Camacho Robalo Revez, e duas inesperadas fotografias.

A minha sogra foi filha, mulher e mãe exemplar. Tratou-me sempre com a maior das dedicações e não tem preço o carinho e o desvelo com que tratou as minhas filhas. Daí a grande satisfação que tenho em partilhar convosco as notícias que lhe enviei, houve muitíssimo mais do que quatro aerogramas, estou absolutamente seguro, oxalá que em próxima “escavação” encontre mais, garanto que então darei notícia.

O primeiro aerograma de 13 de agosto de 1969. Peço desculpa à minha sogra por uma estranhíssima troca de correio. Enviei para Moçambique, para um querido amigo, José Braga Chaves, a quem dei instrução em Ponta Delgada, uma carta em que o trato por Sr. Dona Celeste, não sei se este meu antigo instruendo aceitou que eu já estava avariado do miolo. E a Sr. Dona Celeste recebeu uma carta dirigida ao José Braga Chaves… Toda a minha correspondência acaba por ser um relato fiel do meu quotidiano, falo calmamente em insignificâncias, em problemas de abastecimento, findara há pouco o período de reconstrução de Missirá, e com orgulho vou repertoriando as casas reconstruidas, os abrigos levantados, agradecido às muitas ajudas recebidas, e assim me despeço: “No meio de algumas agruras nada se compara com esta vida que vai crescendo e esta bênção em receber a misericórdia de Deus”.

O segundo aerograma data de 29 de agosto, justifico sempre o envio de aerogramas natalícios à falta de outro papel. “Missirá está há dois dias debaixo de chuva, nem uma nesga de sol, são rios de lama e largos charcos de água barrenta, soldados e civis adoecem. Entretanto os melhoramentos trouxeram-me muita alegria, onde havia um tosco barracão há agora uma sala de convívio, as paredes ainda frescas da tinta de água, há cadeiras confortáveis, o café é servido em chávenas decentes, os móveis faiscam de verniz e temos nas prateleiras uma loiça nova que veio substituir os embaciados pratos de alumínio. As aulas de instrução primária estão a dar os seus êxitos. Vou a caminho de 18 meses de Guiné e são estas obras de paz e esta dedicação à melhoria das condições de vida que me tonifica a alma”.

O terceiro aerograma data de 28 de setembro, é um dia de calma em Missirá, houvera um período contínuo de dez dias de patrulhamentos a Mato de Cão, dificílimas colunas de abastecimento, nas condições mais precárias, sem poder utilizar viaturas em picadas transformadas em lago, para que não subsistisse qualquer dúvida de que a vida era difícil para todos, eu punha uma rodilha na cabeça e segurava com a mão esquerda uma caixa de esparguete. Registo em tom muito confessional que os meus soldados protestam pela vida violenta que levam no Cuor, sonham em ser transferidos para Bambadinca, mal sabem a vida agitada que nos espera a partir de novembro de 1969. Desejo vivamente as melhoras da minha sogra, soubera que estava a viver alguns problemas de saúde, procuro amenizar o ambiente, falo-lhe das minhas leituras, novamente das aulas dos miúdos e dos graúdos e que o mau tempo vai passar em breve, e com esta alegoria me despeço.

O quarto e último aerograma, datado de 17 de outubro, relata um dos episódios mais dramáticos da minha vida, a mina anticarro que explodiu em Canturé, na véspera, não escondo que tenho o coração enlutado, resumo a tragédia à explosão, aos tiros da emboscada, aos destroços fumegantes, ao ferido muito grave e aos sete feridos ligeiros, entreguei o comando a Mamadu Djau e retirei com as crianças para Finete, parecia-me que tinha perdido o olho esquerdo, não via rigorosamente nada, em Finete lavei o rosto e descobri que havia somente queimaduras e poeiras. Omito que coxeio penosamente, o joelho direito inchou, os óculos desapareceram, termino dizendo que a vida vai continuar e logo que acabar este aerograma vou escrever uma carta arrancada a ferros para um lugar do concelho de Ourique, informando um pai que perdeu um filho em combate.

Em resumo, a grata surpresa de rever a minha escrita para a minha sogra, de encontrar uma fotografia em que andei mascarado de guarda-redes num jogo entre oficiais e sargentos em Bambadinca e a fotografia que tirei com a minha noiva em julho de 1968, dias antes de embarcar no Uíge.

São fragmentos que valem por si, não adianta estar a expor mais razões diante de um achado que só pode ser precioso para mim.

Junto igualmente uma fotografia tirada no Bairro das Ilhas, com a minha sogra e as minhas filhas. A minha sogra insistiu que queria trazer para o jantar um lombo de porco e um bolo de gila e amêndoa, natural de Aljustrel era uma cozinheira emérita, graças a ela aprendi a cozinhar quase tudo com coentros, a gostar de gaspacho, pezinhos de coentrada e sopa de toucinho.

Deixo perguntas a mim próprio: a letra, por exemplo, como é que ela se vai manter tão certinha em tempos tão atribulados, quando o tempo escasseava, escrevia estes aerogramas de jato, havia a noiva, toda a família, os queridos amigos, uma hora de escrita era tempo a mais, logo a seguir ao jantar, com o furriel Pires a bater à porta para tratarmos do expediente, e podia muito bem acontecer que aí pela meia-noite se partia para Mato de Cão, bastava que a tabela das marés previsse maré cheia ao alvorecer. Foi assim a minha vida e dou-me muito bem com estes sinais do destino, estes aerogramas imprevistos que me recordam que foi ali, no Cuor, que se forjou o homem que hoje partilha convosco a alegria de viver.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21638: Os nossos seres, saberes e lazeres (428): Em Belmonte, na companhia de Vitorino Nemésio, e não esquecendo Pedro Álvares Cabral (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21660: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (14): Ernestino Caniço, ex-comandante do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa, 1970/71; hoje médico, que teima em continuar ao serviço dos outros



1. Mensagem,  de 13 do corrente: Ernestino Caniço [, ex-comandante do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa, 1970/71; hoje médico, que teima em continuar ao serviço dos outrosm de acordo com o seu juramento hipocrático):
 

Caro amigo Luís:

Votos de ótima saúde.

Não posso deixar de responder pessoalmente aos teus (e dos demais camaradas) votos de aniversário, embora com algum atraso. Alguma "preguicite" em causa.

"Expulsaram-me" do hospital de Entroncamento, putativamente por ser "velho". Iludi  a atitude movendo uma ação em tribunal da qual aguardo o julgamento.

Sou o diretor clínico de uma agência de seguros em Tomar e faço alguma clínica privada em Torres Novas.

Por "pressão" familiar comecei a escrevinhar umas notas para escrever um livro sobre o Hospital de Tomar e a comunicação social, no período 1990 a 1996, período esse em que fui diretor e presidente do conselho de administração.

Estou ainda a elaborar umas notas, com fotos, para o blogue, sobre o tema Os nossos Capelães. Refere-se ao meu amigo Padre José Torres Neves, que fez parte do Batalhão 2885 e do qual aguardo a anuência.

Continuo a aguardar o encontro para os nossos abraços fraternos (sem "bicho")

Força para aguentar este período com votos de ótima saúde, Votos de Feliz Natal e um Ótimo 2021, extensivos à(s) família(s). (*)

Um grande abraço,
Ernestino Caniço

2. Comentário do nosso editor LG:

Bom e leal amigo e bravo camarada dos tempos daquela guerra já esquecida onde cada um de nós deve ter passado pelo menos dois aniversários, nos nossos verdes anos... 

Obrigado pelos teus votos natalícios, fico feliz por saber que continuas em grande forma e fiel ao teu juramento hipocrático... Na realidade, um médico não se reforma e continua sempre ao serviço dos outros... 

Fico a guardar o teu trabalho sobre o Capelão José Torres Neves (que esteve no CTIG de maio de 1969 a março de 1971, ou seja, é meu contemporâneo): convida-o para integrar a nossa Tabanca Grande!... Até um dia destes, ou até um próximo  encontro da malta toda. Um chicoração para a tua simpática esposa.

PS - Sobre o nosso camarada Ernestino Caniço:

(i) Ribatejano, nasceu em Almeirim, em 1/12/1944;

(ii) Tirou a a especialidade de Carros de Combate M47, na Escola Prática de Cavalaria de Santarém;

(iii) Alferes Miliciano, foi Comandante do Pel Rec Daimler 2208;

(iv) Chegou a Bissau em Fevereiro de 1970:

(v) Esteve em Mansabá cerca de quatro meses com metade do pelotão e adido à CCaç 2403, comandada pelo Capitão Carreto Maia; e posteriormente à Cart 2732 (onde conheceu os Carlos Vinhal, entre outros);

(vi) Mais tarde foi para Mansoa onde ficou cerca de seis meses com a outra metade do Pelotão, dependente do BCAÇ 2885;

(vii) Findo esse período, foi desativado o Pelotão;

(viii) Foi então colocado na Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica em Bissau, até ao seu regresso à Lisboa, em Dezembro de 1971;

(viii) Depois do regresso à Pátria, licenciou-se em medicina; vive e trabalha na região Centro;

(ix)  É membro da Tabanca Grande desde 21 de maio de 2011 (**); tem cerca de 4 dezenas de referências no nosso blogue; e é presença regular nos Encontros Nacionais da Tabanca Grande, em Monte Real desde o VI (em 2011);
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Guiné 61/74 – P21659: (Ex)citações (380): Mensagens Natalícias de antigos combatentes. Realidades de guerra. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas, 

Não obstante a realidade atualmente vivida, covid-19, uma pandemia mundial cujo inimigo é invisível, é tempo, tal como o tinha feito no texto anterior, em trazer à estampa as mensagens natalícias que os nossos camaradas endossavam para a Metrópole aquando se aproximavam as épocas de Natal e Ano Novo. 

Na RTP, único canal televisivo e com as imagens emitidas, a preto e branco, a proliferar nesta Pátria lusitana, os familiares e amigos regozijavam-se com a presença no pequeno ecrã dos nossos camaradas. 

E foi precisamente com o objetivo em que jamais esqueceremos uma veracidade que nos fora conhecida em tempos de uma guerra para a qual fomos atirados, que lancei no meu último livro – “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” – o texto que a seguir transcrevo. 

 


Mensagens Natalícias de antigos combatentes 
Realidades de guerra 

O tempo foi, é e será de uma efetiva Paz que a humanidade expressamente muito aprecia e considera. Uns acreditam piamente no solene momento espiritual; outros, guiam-se pelo inatingível “estrada de Santiago” mostrada no infatigável horizonte boreal que os conduzem ao mundo das utopias. 

Prezo a quadra mágica do Natal e do Novo Ano. Considero e respeito todas as opiniões. Recordo, com um inabalável e contemplativo sentimento nostálgico, as mensagens que os soldados fixados então nas três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné - transmitiam aos seus familiares e amigos nestas épocas festivas.  

“Daqui fala o soldado…” um combatente que transmitia à plebe que se “encontrava bem” e lá ficavam os beijos e os abraços para que o povo, carente de sensível saudade, descansasse a sua alma que se inseria num manto salpicado de tristeza. “O meu rapaz está bem”, comentava uma desconhecida mãe no mais recôndito lugar nesta pátria lusitana, mas que, entretanto, se mostrava refeita de uma desmedida saudade pela ausência do caridoso fruto que colocara no mundo. Via-o na televisão e logo o seu ânimo ressuscitava.  

Nesta panóplia de infindáveis mensagens lá surgia um camarada que enviava beijinhos para o seu recém-nascido filho ou filha, mas que por ora não conhecia. Partiu para a guerra com o embrião aconchegado na barriga da sua amorosa companheira.  

As imagens televisivas, onde o cenário de guerra mostrava jovens envergando os seus camuflados e normalmente inseridos numa paisagem onde a vegetação de fundo apontava para os gigantescos planos de uma África no seu melhor, eram escolhidas a dedo, sendo que o repórter de imagem não corria um alegado risco físico que interferisse com o bem-estar pessoal. 

Em Gabu ocorreram reportagens “encaixadas” em tempos de conflito. Todavia, as realidades da guerra eclipsavam-se por esses momentos de lazer. O combatente sentia que o seu dever era transmitir que “estava bem” e tudo se confinava a uma auréola de fértil esperança.   

Da então Nova Lamego, agora Gabu, guardo réstias de memórias dos tempos em que a televisão, a preto e branco, transmitia “Mensagens de Natal e de um Feliz Ano Novo” de camaradas que se entregavam ao elevo de uma fantástica máquina de filmar que lançava depois para o ar imagens de sonho e carregadas de confiança. 

Mas, tudo o que tem princípio tem um fim. Revejo, em lembrança, o período das nossas comissões militares na Guiné, e das “escarpas” que tivemos de ultrapassar, sendo algumas delas rotuladas de extrema dificuldade.  

Uns partiram rumo a solo guineense e chegaram isentos de mazelas; outros, infelizmente, morreram em combate, ou numa outra inusitada situação; mas existem aqueles que revelam danos corporais que um dia levarão para a sua derradeira morada, cuja consequência direta teve como origem uma mina antipessoal, uma bala que lhe perfurou o corpo numa maldita emboscada, ou como efeito uma improvável causa que entrementes lhe causou o desespero.  

E é com estas indesmentíveis realidades de guerra, sempre merecedoras de reparo, que partilho pequenos escritos sobre o conflito na Guiné, onde fomos evidentes protagonistas, uns como “heróis” no momento exato em que o combate acontecera, admitindo, com convicção, que todos foram substancialmente “heróis”, alguns deles vistos depois como “vilões” por força de um regime que libertou soldados entregues à sorte nas antigas províncias ultramarinas.  

Da Guiné, aquela em que todos nós combatemos, ficarão fundamentais retratos de homens que para além das suas mensagens natalícias, guardam nos seus baús pequenas cópias desses registos de guerra. 

Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. também o poste anterior deste autor:

23 DE NOVEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21570: (Ex)citações (379): Vidas (José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp)

Guiné 61/74 - P21658: Parabéns a você (1909): Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71) e João Melo, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAV 8351 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21653: Parabéns a você (1908): Francisco Henriques da Silva, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2402 (Guiné, 1968/70)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21657: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (31): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
É no compasso de espera de reconstruir Missirá, fazendo algumas obras em Finete, calcorreando até Mato de Cão, mais de três meses de trabalho insano, que aconteceu o episódio de Bucol e se confirmou aquela insólita punição. As idas a Mato de Cão irão perdendo importância a partir de novembro desse ano, curiosamente quem lá vai todos os dias é transferido para Bambadinca, o porto do Xime ficou operacional nesse mesmo mês, o que facilitou o transporte de cargas muito qualquer ponto do Leste. De junho até novembro, como se verá, é o período calamitoso, meterá emboscadas, flagelações curtas e pesadas, um furriel ficará tresloucado, a tropa completamente exausta e a culminar numa mina anticarro, um tanto devastadora.
Annette Cantinaux vive empolgada a juntar todos estes papéis e a rescrevê-los, é um trabalho de Penélope, salvo seja, ela não deita fora o que escreveu na véspera, aprimora, ordena e comenta em voz alta, mas também por mail e ao telefone, tudo são fios condutores que a levam até ao seu amado.
E assim estamos, entre suspiros, dentro em breve Paulo Guilherme chega a Bruxelas, arriba à Rua do Eclipse e desta vez haverá passeio pela Flandres, andarão de bicicleta na região de Lier, a campina que rodeia Antuérpia, são dois cinquentões felizes, sempre a fazer juras de amor.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (31): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, que feliz me sinto com as notícias que me deste ontem, ter-te-ei comigo três dias em fevereiro, hoje mandas-me as datas, se acaso coincidirem com dias de trabalho tudo farei para encontrar um colega que me substitua. Diverti-me imenso com a descrição que me fizeste dos teus alunos, futuros jovens engenheiros, descendentes de antigos proletários, os aspetos educativos em carência, o modo como conversaste amenamente com eles, pedindo às meninas para não retirarem cera dos ouvidos em público e aos jovens para não terem as mãos nos bolsos, tu observaste que eles compreenderam muito bem a finalidade das observações. Chegou anteontem um maço de documentos diversos, uma mistura de papéis da época e observações tuas bem recentes. Há uma descrição da tua ida a Bambadinca, foste cedo para tratar de problemas de abastecimento e logo a seguir ao almoço foste ouvido por um major que queria aprofundar as razões pelas quais propunhas quatro condecorações para militares teus, impressionou-me muito, tu estavas feliz quando cambaste o rio e chegaste à povoação, a conversa tiveste com o costureiro Malam Mané a quem entregas a tua roupa para reparar, a divisão de tarefas tu estabeleces com os homens das transmissões, dos mantimentos, do material de engenharia, da manutenção das viaturas, a ida à secretaria por causa de assuntos de justiça militar, o cumprimentar toda a gente, nunca esquecendo o posto de enfermagem onde tu pilhas frascos de vitaminas e preparas próxima visita da população de Finete. E há depois as respostas que deste a um major, como não ficar chocada com aquela descrição do pacto de sangue, a distribuição dos últimos cartuchos, ninguém seria apanhado vivo, o bom acaso de quando escasseavam todas as munições os rebeldes terem retirado deixando Missirá transformada numa tocha.

O outro documento que me mandas é inacreditável, citas um aerograma de um oficial da Marinha, tu dizes que é o Comandante Teixeira da Mota, como é que é possível naquela atmosfera de ferro e fogo esse senhor, ao que tu dizes ter sido um dos maiores historiadores da Guiné, te ter escrito o seguinte:
“Acabei há dias de escrever um longo artigo contendo as aventuras de um príncipe Fula que, vencido em guerra civil aí por volta de 1600, foi parar a Mazagão e daí a Lisboa e Madrid a pedir auxílio militar, acabando por se baptizar. Juntei elementos que me permitirão reconstituir a sequência e duração dos reinados dos imperadores Fulas do Futa-Toro, a partir do lendário conquistador Tenguela e seu filho Coli (ambos continuam na boca dos Fulas de hoje), desde 1465 e 1591. Vou ver se publico este estudo em Dacar. A propósito, para completar uma nota desse artigo, pedia-lhe para averiguar junto da gente de Missirá o que sabem acerca de uma tabanca aí perto, além-Gambiel, no Joladu, chamada Bucol.
O que eu pretendia saber é se a tabanca é antiga ou moderna, qual o grupo étnico de quem a fundou e lhe deu o nome e se este é de língua Fula, Mandinga ou Beafada. A tabanca em si nada tem com o meu artigo, mas num documento antigo diz-se que os Fulas invasores destas bandas partiram de uma cidade chamada Bucol, no Sudão, e interessava-me averiguar se o nome é Fula ou não, pois não encontro esse nome nos clássicos da História sudanesa”
.

As peripécias que se seguiram! Conversaste com os homens grandes, havia a ideia de que a tabanca era de Beafadas, que o nome era antigo, falava-se de ser uma terra fértil, encurtando razões, ninguém sabia muito mais. E então tu tiveste aquele ato temerário, felizmente sem consequências, de atravessar o Gambiel, como se fosses patrulhar o Joladu, descobriste que não havia sinais de presença humana embora lá longe era bem claro que a população rebelde lavrava a terra. Levavas contigo nesse patrulhamento insólito um soldado por quem tinhas muita afeição, Cibo Indjai, como tu dizes, um bravo caçador, homem destemido que te disse calmamente que aquela terra era boa para apanhar gazela, havia pouca floresta e por isso não havia santuário da guerrilha. E escreveste ao historiador dando as informações lacónicas disponíveis, a mais não te sentias obrigado: ninguém associava em Missirá o príncipe Coli a Bucol; a povoação teria sido fundada por Mandingas, mas pessoas consultadas diziam que ali se falava predominantemente Beafada, antes da guerra; e ninguém sabia a antiguidade da tabanca, embora houvesse conhecimento de que tinham lá vivido colonos cabo-verdianos.

Adoro as referências que tu fazes às tuas leituras, pergunto-me onde é que tu arranjavas tempo para ler tanto livro. É bem curioso, referes o nome de um poeta português consagrado, Mário Cesariny, aqui há uns tempos fui cair numa conferência em que se falava da literatura surrealista e creio que um holandês referiu o poder inovador da sua lírica, achei curioso, quis conhecê-lo e encomendei dois livros, de um deles, intitulado Pena Capital, mando-te um poema que podia muito bem falar do amor que tenho por ti:

“Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço meu te procura”


Mon adoré Paulo, estou a escrever este poema e a desejar-te ardentemente, apesar da distância tenho o calor da tua voz, o ciciar da tua escrita, o poder de apoderar-me do teu passado e sentir-me que conquisto a alegria do meu presente pensando em ti, pondo todo este amor a trombetear o futuro. É como se eu estivesse agora a acariciar-te, percorro neste momento a teu lado em Missirá, tu recebeste a visita de um coronel que vem inquirir o teu recurso por causa daqueles malfadados dois dias de prisão simples, tu tratas como uma iniquidade, uma injustiça, e pediste reparo a um general. No interior de um abrigo ele lê-te a acusação, de que foste descuidado na limpeza do aquartelamento, que este tem pouca segurança, e depois exige ver com os seus próprios olhos as razões fundadas da pena e as razões que tu dás para não ser punido. Percorrem lentamente Missirá, a população civil mostra-se indiferente, as mulheres preparam o chabéu, as couves e as beringelas que juntam ao arroz, o coronel faz perguntas sobre as mangueiras, a natureza daquela agricultura, tu respondes o que sabes. Mostras-lhes o novo balneário, o arame farpado todo renovado, a Missirá renascida, as valas e os taludes, e guardo um apontamento teu em que pressinto o maior sofrimento que te atola a existência: “Sinto uma moinha na cabeça, que sei vir da alma, uma vergonha inenarrável de ter de me justificar pelo que fiz e pelo que não fiz. É um novelo espesso de raiva que procuro controlar, agarrando-me ao autodomínio que não sei de onde parte nem para onde vai”. Depois a tua resposta foi passada a escrito, o dito coronel não revela agressividade nenhuma, pergunta se os teus superiores conheciam a situação, tu respondes que existe em Bambadinca, é só pedir essa documentação, ofícios alarmantes sobre a degradação em que encontraste Missirá e todos os pedidos insistentes que fizeste. Cúmulo da humilhação, só parcialmente o teu recurso foi contemplado, mantêm-se os dois dias de prisão simples por não teres dedicado o máximo do teu interesse às deficientes condições de defesa e limpeza de Missirá. Depois de tudo quanto aconteceu, foste lentamente arrefecendo a cólera, o Cuor era mais importante. Tenho agora para rescrever o relato de uma emboscada noturna lá para os lados de Madina, tu chamas ao local Sinchã Corubal e depois vais a Bissau, viagem curta, testemunha do milícia que deixou fugir o prisioneiro. E segundo tu me dizes, vai seguir-se um período calamitoso de muito fogo, eu que me prepare.

Amor da minha vida, não sei explicar como me estou a colar e me sinto embevecida com esta oportunidade que me deste, a mim, uma belga, alguém que ao nascer teve que viver na clandestinidade por ter sangue judeu, que estudou e descobriu a aptidão para as línguas, que trabalha em cabines de interpretação saltitando do inglês para o neerlandês, do francês para o italiano, do espanhol para o alemão, do português para o francês, de descer a um inferno da guerra, algures na colónia da Guiné Portuguesa, um mero pretexto para te amar no fundo da minha alma, alguém que me faz suspirar a todo o momento e desejar que possamos finalmente viver todos os dias juntos, o que acontecerá, demore o tempo que for necessário, temos afeto bastante para superar estes quilómetros que nos separavam e agora nos unem. Obrigado por tudo o que me dás, bien à toi, Annette.
Pormenor do Geba, o rio da minha vida
Rio Geba: Cais de desembarque em ruínas, fotografia de Humberto Reis, retirada do nosso blogue
Dança guerreira bijagó, fotografia de Jacek Pawlicki, com a devida vénia
Pescaria no Geba
A caminho de uma operação, fotografia do autor
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21632: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (30): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21656: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (13): Faz hoje 50 ans que regressei do CTIG...Abrecelos natalícios para toda a Tabanca Grande (Valdemar Queiroz, ex-fur mil at art, CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)



Foto nº 1 > Guiné > Região de Gabu > Sinchã Sajori > CART 11 > 1970 > Vacinação da população local. com o  fur.mil.enf Edmond




Foto nº 2 > Guiné > Região de Gabu > Guiro Iero Bocari  > CART 11 > 1970  > Ninho da metralhador HK21



Foto nº 3 > Guiné > Região de Gabu > Guiro Iero Bocari  > CART 11 > 1970  > Intalações do pessoal



Foto nº 4 > Guiné > Região de Gabu > Guiro Iero Bocari  > CART 11 > 1970  >  O fur mil Valdemar Queiroz aperaltado para o regresso



Foto nº 5 > Guiné > Região de Gabu > Guiro Iero Bocari  > CART 11 > 1970  > Filha de um dos nossos soldados



Foto nº 6 > Guiné > Bissau >  16 de dezembro de 1970 > A última compar do Valdemar Queiroz, na Loja do Taufik Saad, um relógio Longines, no valor de 2950$00 [, a preços de hoje, o equivalente a 868,65 €].



Foto nº 7 > Guiné > Bissau > 16 de dezembro de 1970 > O bilhete de avião, na TAP; no valor de 4340$00 [equivalente, a preços de hoje, a 1.277,95 €]

Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Mensagem de Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; tem cerca de 120 referências no nosso blogue, e é um activo e incansável comentador]:

Data - quinta, 10/12, 16:13 
Assunto . Faz agora 50 anos 



É verdade. Faz este mês 50 anos que regressei da guerra na Guiné.

Depois de se ter feito a vacinação contra a cólera nas tabancas de Cadeu, Sibitó e Sinchã Sajori começamos a preparar o regresso à metrópole. Para nós estava próximo chegar a casa. Mas a guerra continuou por mais três anos e uns meses até ao 25 de Abril de 1974, e não acabou para os nossos soldados fulas renitentes em "abraçar" os guerrilheiros do PAIGC. Coitados de muitos deles... é assim a merda da guerra.

Em Guiro Iero Bocari e outras pequenas tabancas da região de Paunca, com a chegada da nossa CART 11, completa, deixou de haver problemas com ataques do IN. Pese embora ser uma região de fronteira, havia um rio como que de fronteira natural com o Senegal e com nossa acção, sempre em operações diurnas e nocturnas,  era mais difícil ao IN deslocar-se,

Nas últimas palavras escritas da HU da Companhia consta:

'O 1º. Grupo embosca na estrada de BOCARI.

Chegam a Paunca parte dos quadros que vêm render os Quadros Metropolitanos que terminarem a sua comissão. 

A partir de hoje, efectuam-se as sobreposições necessárias a fim de integrar os novos elementos no contacto com o pessoal nos diversos cargos e actividades, após o que seguem para Bissau os elementos rendidos individualmente, ficando a aguardar embarque para a Metrópole.'

Eu, o Abílio Duarte, o Manuel Macias e o Pais de Sousa regressamos de avião em 18 de Dezembro de 1970 e ainda passamos o Natal em casa, pagando a diferença para o "custo" da viagem de barco por esta só se verificar 20 dias depois.

As fotografias que junto, são de:

(i) uma acção de vacinação,contra a cólera,  na tabanca de Sinchã Sajori, com o nosso fur mil enf  Edmond (foto nº 1);

(ii) , do ninho da HK21 (foto nº2);

 (iii) instalação da minha posição na tabanca (foto nº 3);

(iv)  eu todo aperaltado para seguir pra Bissau  (foto nº 4);

(v) e a fotografia da filha de um dos nossos soldados fulas que estimo tenha sobrevivido e agora também ter feito 50 anos de vida (foto nº 5).

Desejo a todos os camaradas e suas famílias BOAS FESTAS
Abracelos

Valdemar Queiroz

PS - Anexo Recibo da última compra em Bissau  (foto nº 6) e o Bilhete da TAP do regresso (foto nº 7)

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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21655: Tabanca Grande (507): José Rosa da Silva Neto, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 1742 (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) que se vai sentar à sombra do nosso poilão no lugar n.º 823

Apadrinhado pelo nosso camarada Abel Santos, apresenta-se à tertúlia:

José Rosa da Silva Neto, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, NM 02584066, da CART 1742, "Os Panteras", Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69.

- Assentou praça no RI7 de Leiria a 24 de Outubro de 1966
- Iniciou a Especialidade no Regimento de Transmissões do Porto em 3 de Janeiro de 1967
- Foi colocado na Escola Prática de Infantaria Mafra em 21 de Maio de 1967
- E no Regimento de Artilharia 5, de Penafiel, em 13 de Junho de 1967, onde foi mobilizado para a Guiné.
- Embarcou no N/M Timor com destino ao CTIG a 22 de Julho de 1967, tendo regressado em 06 de Junho de 1969, no N/M Niassa, com chegada a Lisboa a 13 de Junho.


Navio Timor
Navio Niassa
Zona de Acção da CART 1742
O José Rosa Neto em Madina junto do marco com a inscrição "Madina o Algarve da Guiné".
Madina do Boé > Na foto, da esquerda para a direita: Rocha, Lemos, José Rosa Neto, Sousa, Fonseca e, de cócoras, o Cesário, tudo malta de transmissões, excepto o Lemos.
José Rosa Neto na actualidade

2. Comentário do coeditor:

Caro José Rosa Neto, bem-vindo à nossa Tabanca Grande, também tu apadrinhado pelo teu camarada Abel Santos, um operacional deste Blogue. Vais sentar-te no lugar n.º 823 desta tertúlia.

Não sabemos se tens endereço de email e se és um "craque" em informática, pelo menos no âmbito do utilizador. De qualquer modo, ficas desde já convidado a, dentro das tuas possibilidades, directamente ou através do Abel, colaborares com as tuas memórias escritas e/ou em fotografias.

Das fotos que nos mandaste não consegui fazer uma foto tua, fardado, tipo passe. Se tiveres por casa outras com melhor qualidade, manda para ver se conseguimos alguma com boa apresentação.

Em contacto telefónico, o Abel disse-me que da parte dele terás toda a colaboração, pelo que deves aproveitar a sua disponibilidade.

Deixo-te então um abraço em nome da tertúlia e dos editores com os votos de que tu e a tua família tenham Boas Festas em segurança e, a propósito, que o novo ano seja de modo a fazer esquecer este 2020 de má memória.

Carlos Vinhal

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21626: Tabanca Grande (506): António Marreiros, natural de Sagres, a viver há 48 anos no Canadá, ex-alf mil em rendição individual, CCaç 3544 (Buruntuma, 1972) e CCAÇ 3 (Bigene e Guidage, 1972/74): senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 822

Guiné 61/74 - P21654: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (12): A "cunha" da mana de Salazar, texto de Vargas Cardoso, cor inf ref, ex-comandante da CCAÇ 2402, Có, Mansabá e Olossato, 1968/70... Mais uma pequena homenagem à memória do nosso Raul Albino (1945-2020)


Guiné > Região do Oio > Có > CCAC 2402 (1968/70) > s/d > De pé: alf mil Francisco Henriques da Silva, alf mil Raul Albino e Cap Vargas Cardoso

Foto (e legenda): © Raul Albino (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O tema das "cunhas" é pouco natalício... Mas presta-se também à bonomia e ao bom humor próprios da época natalícia.. O cor inf ref Vargas Cardoso entregou ao Raul Albino esta história, que tem tanto de burlesco como de inefável (incitando por isso,  ao riso amarelo); foi, juntamente com mais uma vintena de textos, o seu contributo para o volume II das Memórias da CCAÇ 2402, cuja coordenação editorial esteve a cargo do Raul Albino. 

Tenho um exmplar desse volume, oferta pessoal do nosso saudoso amigo e camarada Raul que, como sabem, foi alf mil da CCAÇ 2402. Com a devida vénia ao Vargas Cardoso, e votos  de boas festas, para ele  e os demais camaradas da CCAÇ 2402,  "Os Lynces de Có", reproduzimos aqui a história da cunha da Dona Marta Salazar e do senhor presidente da junta de freguesia de Sta Comba Dão. intercedendo por um dos militares da CCAÇ 2402, companhia   que em junho de 1968 estava já mobilizada para o CTIG e ainda  em formação.no RI 1, Amadora.

Sobre o soldado Sereto (um dos militares a seguir referidos na narrtaiva) há outra história que poderemos reproduzir mais tarde, também da autoria do Vargas Cardoso ("E o Sereto chegou a tempo do embarque"). 

Este militar era um ex-casapaino, "filho de pai alcoólico e orfão de mãe" (sic) , jogador dos júniores do Sporting, que tinha chumbado na recruta do Regimento de Lanceiros 2 (Polícia Militar), e que o cap Vargas Cardoso se empenhou em  "proteger", esperançado em fazer dele "um cidadão útil para a sociedade"... LG



Excerto de : Parte II - Comando da Companhia - Textos de Vargas Cardoso, in "Memórias da CCAÇ 2402 (Guiné 1968/1970), Volume II", mimeog", 2008, páginas inumeradas,il. (Coordenação: Rui Albino). (Com a devida vénia...)

Guiné 61/74 - P21653: Parabéns a você (1908): Francisco Henriques da Silva, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2402 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21645 Parabéns a você (1907): Francisco Santos, ex-1.º Cabo Condutor Radiotelegrafista da CCAÇ 557 (Guiné, 1963/65) e Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21652: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (11): Homenageando a memória do Raul Albino (1945-2020): Os Natais de 1968, em Có, e 1969, no Olossato, da CCAÇ 2402 (João Bonifácio, ex-fur mil SAM, hoje a viver no Canadá)






Fotos (e legendas): © João Bonifácio (2008. Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa da brochura "Memórias da CCAÇ 2402 (Guiné 1968/1970), Volume II", mimeog", 2008, páginas inumeradas,il. (Coordenação: Raul Albino).


1. As fotos de cima (e as legendas) são do João G. Bonifácio, ex-fur mil SAM, da CCAÇ 2402 (, Mansabá e Olossato, 1968/70), a viver no Canadá. 

Ele foi um dos colaboradores deste II Volume, juntmente com o ex-cap inf Vargas Cardoso e de outros camaradas como o Carlos Sacramemto, Carlos Santiago, Carlos Costa, Joaquim Ramalho, Maurício Esparteiro, António Maria Veríssimo, António Fangueiro da Silva, e o próprio Raul Albino. O João Bonifácio é membro da nossa Tabanca Grande desde 1 de dezembro de 2006 (*)

Em homenagem ao Raul Albino, ex-alf mil da CCAL CC$02, que nos deixou há pouco tempo (, aliás foi o próprio João Bonifácio que nos deu a triste notícia) (**), vamos aqror reproduzir dois aponatmentos sobre o Natal de 1968 e de 1969 (***), da autoria do João, incluidos naquela brochura.

Aproveitamos para desejar a ele e à sua sua família, bem como à família do Raul Albino, mas também aos demais camaradas da CCAÇ 2402,os nossos votos de um Natal e Ano Novo, tão bom quanto possível, dentro dos contrangimentos a que todos estamos sujeitosnos  nossos países, devido à pandemia de Covid-19.(****).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1331: Blogoterapia (9): Quando a Pátria não é Mátria para ti (João Bonifácio, Canadá, exvagomestre da CCAÇ 2402)

Guiné 61/74 - P21651: Historiografia da presença portuguesa em África (243): Revista Estudos Ultramarinos, 1959 - n.º 2 - Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, ´

No mínimo dá que pensar se o corpo redatorial da revista Estudos Ultramarinos vivia num estado de inocência ou abstraídos da ascensão, já vigorosa, da luta anticolonial, um pouco por toda a parte. Reproduzem-se documentos que colidiam frontalmente com o ideário do Estado Novo, diz-se mesmo que está presente no II Congresso em Roma um representante angolano. Trata-se de Mário Pinto de Andrade, dirigente do MPLA, que trabalhará, a partir do ano seguinte, em estreita colaboração com Amílcar Cabral, em Conacri. 

Acervo de documentos que vão mesmo até à inclusão da resolução da Conferência de Tachkent, em que participaram escritores e artistas da Ásia e da África, tecendo-se várias críticas ao colonialismo, culmina este acervo de documentos com uma carta dos estudantes norte-africanos a proclamar em Tunis a criação da Confederação Norte-Africana de Estudantes, fazendo sempre a apologia da luta pela independência nacional. 

Mais trotil para o leitor da publicação do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, de onde se recrutavam os quadros para a nossa administração colonial, não podia haver.

Um abraço do
Mário



Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (2)

Mário Beja Santos

Já se referiu que a revista Estudos Ultramarinos, que tinha como diretor Adriano Moreira, ele também Diretor do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, não deixa de nos surpreender, à distância de cerca de seis décadas, e num tempo em que já pairava no ar o sinal de efervescência da luta anticolonial, a publicação de textos de figuras que se irão distinguir nessa luta ou apresentações ideológicas a que o regime frontalmente se opunha. 

Na verdade, a substância da resolução do I Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, que se realizou em Paris, em setembro de 1956, em nada era favorável à política colonial portuguesa. E a mensagem de Sékou Touré enviada ao II Congresso Internacional, que se realizou em Roma, em 1959, foi integralmente publicada na revista dirigida por Adriano Moreira, um texto em frontal rota de colisão com a doutrina imperial portuguesa. 

Como se escreveu em artigo anterior, a mensagem de Sékou Touré escalpeliza a essência do ensino colonial e traz propostas para que seja rebatida, tornara-se inevitável recuperar, em todos os povos de África, as manifestações artísticas originais, e estudar o pensamento profundo que anima a arte africana e a torna socialmente útil. Faz a apologia dos deveres do intelectual ou do artista africano, ele deve integrar o seu pensamento com a sua ação, ligá-los às aspirações populares. Se o escritor ou artista se isolam, se nele permanece a mentalidade do colonizado, ele não pode aspirar a uma ação revolucionária, será um desenraizado ou estrangeiro na sua própria pátria. E enuncia como se deve fazer a descolonização intelectual. Dá exemplos ligados ao bailado, com os balés de Keita Fodéba.

Estava a ressurgir, escreve a mensagem de Sékou Touré, o homem africano outrora marcado pela indignidade dos outros, excluído dos empreendimentos universais, homem despojado de tudo, agora podia reivindicar a plenitude dos seus direitos humanos e uma participação a tempo inteiro. Mensagem que não silencia a crítica e a responsabilidade das civilizações de conquista, fala no crime de Fernando Cortez que liquidou o império Asteca e arrasou os poderosos valores culturais de uma das mais expressivas civilizações pré-colombianas. E a sua mensagem termina com os seguintes parágrafos:

“O processo da participação do homem negro nas obras universais, parte em primeiro lugar da personalidade africana, que não poderá ser reconstituída pelas vontades ou forças exteriores a África, tem que estar integrada na independência e unidade em que repousa o destino do mundo negro. Os compromissos culturais que a dominação estabeleceu impõem ao homem de África uma completa reconversão a fim de que reapareça a sua autêntica personalidade. Na independência da sua jovem soberania, é a via na qual o povo da Guiné está unanimemente comprometido para a libertação total e a unidade efetiva dos povos africanos a fim de que se acelere a sua marcha ou progresso técnico, económico e cultural numa sociedade em perfeito equilíbrio social e moral e num mundo de real civilização humana”

Bonitas palavras para um político que muito rapidamente se transformou num tirano cruel e sanguinário. O tom da resolução do II Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros é muito mais radical, nada tem a ver com a amenidade da resolução de 1956, fala na violência, nas segregações mais insuportáveis que se vivem na Argélia, no Quénia, na Niassalândia, no Congo, em Angola, na Rodésia e particularmente na União Sul-Africana, uma violência que calca os direitos fundamentais dos povos a dispor deles próprios. Recomenda-se a resolução rápida e pacífica dos conflitos violentos em África e principalmente na Argélia, apela-se à libertação de todos os africanos presos ou exilados pelo facto de lutarem pela independência dos seus países e condena a utilização dos africanos nas guerras coloniais. 

Mas em Roma, João XXIII concedeu audiência aos 150 participantes do Congresso. Estavam presentes congressistas de diferentes países, e fala-se na presença de Angola, era Mário Pinto de Andrade. Dirigia o Congresso o embaixador do Haiti em Paris, saudou o Papa, que respondeu com um discurso: 

“A Igreja aprecia, respeita e encoraja um trabalho de investigação e de reflexão que tem por objetivo libertar as riquezas originais de uma cultura própria, de descobrir os pontos de apoio na História, de manifestar as harmonias profundas através das mais diversas manifestações. A universalidade do olhar da Igreja, atenta aos recursos humanos de todos os povos, colocou ao serviço de uma verdadeira paz no mundo. A Igreja convida as elites de todos os povos a ter um espírito harmonioso na colaboração e simpatia profunda com as correntes provenientes das autênticas civilizações”.

A revista dirigida por Adriano Moreira transcreveu o documento em francês, fazendo depois em português um comentário final:

“O discurso do Santo Padre suscitou profunda impressão nos congressistas. Em grande parte estes eram católicos; mas também todos os outros, pertencentes a várias confissões religiosas, fizeram ressaltar que o ensinamento do Chefe venerado da Igreja Católica constitui documento altíssimo, com plena apreciação de quanto a população de estirpe negra sente acerca dos seus destinos e dos seus ideais, postos ao serviço dos mais nobres sentimentos de justiça, de fraternidade e de paz, apregoados por Deus a todos os homens”

Refira-se que ainda nesta secção de documentos se insere o apelo dos escritores dos países da Ásia e da África aos escritores do mundo inteiro, Conferência de Tachkent, outubro de 1958, onde igualmente se apostrofa o colonialismo.
Frantz Fanon no I Congresso de Escritores e Artistas Negros
Mário Pinto de Andrade (para saber mais sobre o II Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, ver a documentação de Mário Pinto Andrade, que nele participou: Casa Comum
Papa João XXIII
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21625: Historiografia da presença portuguesa em África (242): Revista Estudos Ultramarinos, 1959 - n.º 2 - Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (1) (Mário Beja Santos)