quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21607: Boas Festas 2020/21: em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (1): Da Lapónia sueca, um vídeo da comuna de Jokkmokk, centro cultural e político do povo sami, mostra-nos o seu histórico mercado de inverno, que se realiza todos os anos, desde 1605, com temperaturas a rondar os 25 graus negativos (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)

 

You Tube > tinmar4 > Vídeo (11' 52'') > Tradições do povo sami: o mercado de inverno de Jokkmokk (2012) (o filme não tem legendas, nem precisa, mas talvez o José Belo nos  possa fazer um resumo mais alargado ...). Produção da comuna de Jokkmokk. [Ver, de preferência, em écrã inteiro.]

(Reprodução com a devida vénia...)


O mercado de inverno de Jokkmokk realiza-se todos os anos em Norrbotten, no norte da Suécia. É uma mostra  das tradições do povo desta região. Além do mercado, há diversos eventos lúdicos, tais como corridas de renas, trenós puxados por cães, música e arte...

Norrbotten é um condado, o mais a norte da Suécia, com mais de 98 mil quilómetros quadrados e cerca de 250 mil habitantes. A parte norte de Norrbotten fica dentro do Círculo Polar Ártico .A capital é Luleå (c. 48 mil habitantes)- Kiruna é outras das cidades importantes, 

Jokkmokk fica a 10 km a norte do Círculo Polar Ártico. Tem cerca de 3 mil habitantes, e é sede do município (ou comuna) de Jokkmokk. É o centro cultural e polítcio do povo sami. O Mercado de Inverno de Jokkmokk, realiza-e anualmente em fevereiro, desde 1605. Atrai cerca de 50 mil visitantes. A temperatira na época ronda em médis os 25 graus negativos.  Em 2021 será de 4 (quinta feira) a 6 (sábado) de fevereiro... com ou sem Covid.



Fotograma do vídeo com o mapa do condado de Norrbotten e a localização da cidadezinha sami de Jokkmokk.



José Belo. membro da Tabanca Grande 
desde 2009

1. Mensagem de José Belo [, régulo solitário da Tabanca da Lapónia que, ao longo destes 9 meses da pandemia de Covid-19, tem sido um camarada extraordinário, acompanhando. de maneira proactiva,  criativa, tolerante e... que sempre bem-humorada,  a produção do nosso blogue, através quer dos seus frequentes emails, quer dos seus postes e comentários;  obrigado, Zé!... ]

Com membros da Tabanca Grande, como o Zé Belo (o único português a viver no círculo polar ártico), a gente vai seguramente sobriver à Covid-19... E não queremos que ninguém morra. muito menos na praia!

E mais: prometemos fazer tudo para ficar por cá mais uns aninhos!... Neste nosso "chão". muito especial, que não paga IMI...Onde todos cabemos com tudo o que nos une e até, às vezes, com aquilo que nos pode separar...

Aguardamos, entretanto,  outras "prendinhas" dos amigos e camaradas da Guiné (vídeos, fotos, infografias, contos, poemas, cartas, etc.) para animar esta nova série e pôr na árvore de Natal da Tabanca Grande... 
~
Estamos sempre a dizer que a Tabanca Grande tem 822 membros, entre vivos e mortos, mas às vezes até parece que já lerpámos todos!...Amigos e camaradas da Guiné, o Natal de 2020 é uma boa ocasião para fazermos a "prova de vida", anual... Vamos acender as luzinhas de todas as nossas tabancas!...E haveremos de fazer, em 2021, o nosso Encontro Nacional... com "manga de ronco"|... Malta, vão já estendendo o braço para a "bacina"...mas até lá nada de baixar a guarda!... LG



De: José Belo
Data - 23 nov 2020 11h32
Assunto - Uma “fuga” ao isolamento social lusitano

Caro Luís

Ao longo de já bastantes anos tenho tentado fazer chegar aos Camaradas e Amigos alguns dos aspectos por aí menos conhecidos das realidades na Lapónia sueca e na Escandinávia em geral.

Mais de quatro décadas de vivências locais têm-me tornado observador atento.
Por vezes crítico mas,ao mesmo tempo...grato.

Comparando com outras sociedades e outras gentes, a que estou ligado tanto profissionalmente como, e não menos importante, residencialmente, surge a tal “gratidão” por muitas das realidades sociais suecas.

Neste difícil momento de restrições, isolamento, e outras medidas de sobrevivência à pandemia, encontrei este vídeo do YouTube entre material do meu arquivo.

Foi realizado pela Comuna (nome aqui dado às Câmaras Municipais) de Jokkmokk com o fim de divulgar um mercado de inverno numa pequena cidade do noroeste da Lapónia sueca.

Mais do que um milhão de palavras deste mui limitado “escriba”, o vídeo consegue transmitir todo um ambiente e maneira de “estar” locais.

Em alguns dos detalhes filmados quase, quase, quase se poderia encontrar algumas semelhanças com mercados locais lusitanos.

Creio ser apropriado para a época natalícia que se aproxima a passos largos, ajudando a seu modo,no seu exotismo,  para olhares desde a Ibéria,a uma saudável fuga momentânea das preocupações ligadas à pandemia.

Deverá ser visto em ecrã  total pois torna mais fácil a participação do observador.

Um grande abraço do J.Belo

Guiné 61/74 - P21606: Os nossos seres, saberes e lazeres (426): Memórias de Paradela (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Paisagem de Paradela


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 2 de Dezembro de 2020, trazendo algumas Memórias de Paradela:


MEMÓRIAS DE PARADELA

Francisco Baptista

Nesse tempo para ir de umas terras às outras, utilizavam-se os caminhos de terra, onde circulavam pessoas a pé ou a cavalo e carros de bois, no geral delimitados por muros toscos de pedra que os isolavam das propriedades. Havia muitos motivos e pretextos para os vizinhos se visitarem, laços de família, negócios, trabalhos em grupo ou de artistas, casamentos, festas anuais, etc. 

Já havia uma estrada municipal de macadame, via muito estreita, onde dificilmente cabiam dois automóveis a par, que saindo de Mogadouro comunicava através de ramais com Remondes, Brunhoso e Paradela no fim de linha. Pouco utilizada de resto porque quase não havia por lá automóveis, as distâncias eram maiores e as vistas melhores por caminhos antigos para quem gostava de apreciar,  com vagar, as culturas agrícolas, os prados, o gado e o arvoredo.

Em Brunhoso havia uma carrinha pequena, que andava sempre talvez a 20 Km à hora ou menos. O dono era um comerciante de cortiça, de apelido Sol, como tal concorrente do meu pai, não se falavam por estórias do tempo do meu avô que morreu cedo, que eu nunca consegui deslindar bem . O meu pai nunca falou disso mas havia uma família de trabalhadores da casa desses meus avós e dos meus pais que falavam mas, por serem muito fabuladores, eu não conseguia saber quando diziam ou não a verdade. Não mentiam mas tinham uma imaginação desenfreada que não conseguiam controlar.

Apesar disso, mesmo sem se falarem, o meu pai e o Sol tiveram sempre boas relações comerciais pois nunca se afrontaram um ao outro nesse âmbito.

Mais tarde, um lavrador inovador que tinha estudado em Coimbra, comprou um automóvel, penso que um Citroën,   já teria eu mais de 15 anos.

Todas as aldeias próximas comunicavam por caminhos entre si assim como com a Vila, onde se faziam as feiras e onde havia os grandes estabelecimentos comerciais.

Paradela fica três quilómetros a sul de Brunhoso. Saída pelo Fundão a trezentos metros, num cruzamento, derivamos à esquerda por um caminho pedregoso para as Rodelas do Fundo. Chegados aqui, vale bem a pena, fazer uma paragem. Para sudeste havia um pequeno vale com alguma água até ao Verão que corria no meio de uma regada (prado com ribeiro), antes de ficar coberto com árvores e arbustos que formavam uma pequena floresta cerrada, que ia dar ao ribeiro da Lagariça, quinhentos mais abaixo. A leste havia uma várzea extensa e fértil, a contrastar com o caminho percorrido. Terra funda e enxuta, a que chamavam Barriguinho, que produzia cereal com abundância, na sua maior parte propriedade de duas famílias ricas da terra. 

O meu pai tinha lá somente cerca de dois hectares, um deles trocou-o cedo por sobreiros, a sua maior paixão.
Paisagem com Brunhoso ao fundo

Maior campina de trigo era o Urzal, que confinava com Remondes, mas menos fértil, para o conseguir ser só em anos de muita chuva, pois as terras eram fracas para suster as águas. Como campo de trigo e centeio, o Urzal era impressionante porque se ligava a outras duas zonas de sequeiro, as Rodelas e os Lameirões. Era belo ver o trigo e o centeio verdejar ao vento nos meses de Março e Abril ou ver a grande campina loira nos meses de junho e julho antes das Segadas.

Depois do passeio por searas da minha mente indisciplinada,   voltemos ao caminho que a viagem é curta. A quinhentos metros das Rodelas do Fundo atinge-se o alto de uma colina que se chama Couço, onde está um marco geodésico a dividir os "termos " das duas freguesias. 

Em frente já em terrenos de Paradela iremos passar pelas eiras da terra, bastante grandes, uma zona de lameiros  algumas hortas, antes de entrarmos na povoação por uma das três ruas principais. À Praça a que os paradelences chamavam Pracinha, com muito orgulho, talvez por estar bem enquadrada e ter uma boa área, em terreno plano, iam desembocar as três principais ruas da aldeia, num lado está a Igreja Matriz, noutro havia uma taberna e um "soto" (mercearia no Nordeste) no outro. 

Era lá, ainda será, que se reuniam os homens a falar da agricultura, do tempo e a comentar as notícias da terra e as de fora. Uma das outras ruas, uma vai para norte em direção à estrada camarária, a outra mais pequena para o sul, na direção do Salgueiro, uma terra anexa com poucas casas a meio caminho do rio Sabor. 

Agora vive lá pouca gente como de resto em todas as aldeias, porém no tempo a que se reporta esta escrita, viviam lá três ou quatro casais todos com muitos filhos.
Pracinha de Paradela
Igreja de Paradela

Nesses tempos havia muito convívio entre aldeias vizinhas. Nas festas, em bailes, jogos de futebol e outros raros convívios a mocidade de uma terra e outra juntava-se muitas vezes. Os jogos de futebol eram muito renhidos e um pouco trauliteiros. O tio Chico Carrasco de Brunhoso, grande trabalhador, muito sociável e amigo da farra, sempre o admirei e muitas vezes convivi com ele, jogou até aos cinquenta anos ou mais, era defesa, a bola podia passar mas o homem não. No fim do jogo era homem para convidar as duas equipas beber à taberna ou ao café.

Nos bailes de Brunhoso, os rapazes de Paradela, sempre melhor arranjados, procuravam agradar e dançar com as raparigas da terra, e elas como mulheres talvez se mostrassem sensíveis à apresentação dos cavalheiros, o que desagradava aos seus conterrâneos, que muitas vezes depois do baile, escorraçavam os "estrangeiros" à pedrada. 

Havia muita picardia de parte a parte mas apesar disso nunca houve danos ou ferimentos visíveis entre eles. Os de Brunhoso detestavam que os de Paradela, vaidosos e fanfarrões, lhes quisessem roubar as raparigas, que eles consideravam suas. Diziam, entre outras maldades: "Paradela com sol a casa" para os desvalorizar e denegrir.

Em tudo isso havia alguma verdade, os de Paradela mais vaidosos, não trabalhavam tanto, os de Brunhoso mais negligentes no vestir, mas trabalhavam muito. Porém nas festas anuais depois do futebol conviviam como amigos e rivais que se respeitam e iam comer às casas dos que faziam a festa.

Algumas regras dos bailes:

Uma jovem depois de se recusar a dançar com algum rapaz, não podia mais dançar nesse dia.

Geralmente os rapazes convidavam as jovens mas a determinado momento havia um mandador que dizia: "Valsas das damas!", a partir daí eram elas que convidavam os rapazes.

O normal era irem só solteiros mas também podiam entrar casados. Algumas vezes, poucas, me encontrei com o meu pai, que era melhor dançarino do que eu, em bailes de Brunhoso. Tive uma prima, muita amiga, que em bailes de família, em casa dela, me tentou muitas vezes ensinar. Dizia-me: Chico faz assim, dois passos para um lado, um para o outro. Eu trocava os passos, era indomesticável!

Uma noite no arraial de Paradela encontrei uma moça alegre, vistosa e divertida, parecia a rainha do baile, fui dançar uma vez com ela e continuamos a dançar, estava descontraído, ia falando e ela a ouvir-me com muitos sorrisos mas nisto o meu amigo que me tinha dado boleia e que tinha o pé mais pesado do que eu, nunca o vi dançar, chamou-me para irmos embora. Estragou-me a festa, em silêncio chamei-lhe todos os nomes, mesmo os mais ordinários.

O padroeiro da festa de Paradela a que eu e os meus irmãos íamos sempre, convidados pela grande família que lá tínhamos, era S. Calisto que foi Papa nos primeiros anos do cristianismo e mártir também, tal como as padroeiras de Brunhoso e Remondes. A Igreja Católica santificou muitos mártires e pô-los nos altares das igrejas de toda a Terra provavelmente para os pobres se resignaram à sua vida miserável. Entretanto, em Roma, depois da conversão de dois Imperadores romanos, cresceu o luxo, a pompa e a devassidão.
Rua de Paradela

O clima da terra era idêntico aos das aldeias ribeirinhas do Sabor próximas, mais quente na ladeira onde havia oliveiras e amendoeiras e mais frio nas proximidades da povoação, onde se cultivava o trigo, o centeio e a cevada e onde estavam as hortas. A distribuição das terras era desigual, muitos pobres com uma hortinha, poucas oliveiras e pouca terra onde semear os cereais, três ou quatro lavradores ricos e alguns mais remediados.

A minha avó materna, que teve alguns irmãos, só teve uma irmã que casou em Paradela. Sendo muito amigas,  cultivaram sempre essa amizade e transmitiram-na à família. A minha mãe só teve irmãos, e as irmãs fazem tanta falta às mulheres, cultivou muito a amizade com as primas duma terra ou de outra. 

Recordo-me de ir lá às festas e ser disputado para almoçar por três ou quatro casas de parentes, os meus irmãos também se tivessem idade para tal, o meu pai muitas vezes, a minha mãe quase nunca, pois estava ocupada com os filhos mais novos ou com a lida da casa.

Tinha lá outra prima, filha de um tio dela, com quem tinha boas relações, embora menos próximas, algumas vezes fui também a casa dela, convidada pelo filho que era da minha idade, infelizmente já falecido há alguns anos.

As primas da minha mãe eram hospitaleiras e simpáticas, os maridos, as filhas e os filhos delas também.

De Paradela era o Jorge, uma alma simples, tinha algum atraso mental, muitas vezes aos domingos e quase sempre em dias de festas em Brunhoso, passava por lá, ficava um pouco à conversa com os rapazes e abalava dizendo que ia beber água a Remondes. 

Outro homem muito recordado em casa dos meus pais era um pequeno lavrador que numa feira de Mogadouro vendeu uma vaca ao meu pai. Foi com um irmão meu a acompanhar a vaca a Brunhoso e o meu irmão conta que foi sempre a chorar. Era uma vaca valente, pouco meiga mas rápida e cheia de génio, o meu pai manteve a descendência dela enquanto pôde, teve filhas e netas valentes como ela. Demos-lhe o nome igual ao apelido do lavrador que mais a chorou.

Para concluir não posso deixar de contar um episódio da minha vida de garoto que me ficou gravado na memória:

Teria 8, 9 ou dez anos, terei sido convidado por um rapaz de Paradela, amigo, primo, não recordo quem, para ir jogar futebol com eles. O que recordo, a minha memória nunca apagou, é que depois de passar pela Praça, na rua de cima que dá para a estrada apareceu à minha frente uma rapariga próxima da minha idade, um pouco magra e mal arranjada, que de uma forma desabrida me perguntou se gostava dela. 

 Eu não gostei confesso, mas por compaixão disse-lhe que sim, segui o meu caminho para o campo de futebol que era mais acima depois de virar à direita numa colina sobranceira à aldeia. Não sei se as bolas rematadas para esse lado com força não sairiam costa abaixo. Quando cheguei estavam lá muitos contemporâneos meus. Formaram-se equipas e não sei se por ser bastante alto e atlético valorizaram muito a minha presença. Eu que nunca soube jogar futebol, tinha tão pouco jeito para isso como mais tarde para dançar, fui muito incentivado e aplaudido, até parecia um craque estrangeiro.

Foi o meu dia de glória no plano desportivo.

Esses rapazes puros e generosos apostaram na minha carreira desportiva, e fizeram-me correr de alegria no regresso à minha aldeia. Depois o sonho acabou, para mim nunca tinha começado, eles quiseram acreditar nele, agradeço-lhes de todo o coração.

Gostei de conhecer Paradela e as suas gentes, passei lá muitos dias felizes.
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Notas do editor

Último poste da série de Francisco Baptista de 21 de Novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21564: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Memórias de Remondes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Último poste da série de 28 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (425): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21605: Os nossos capelães (14): João Baltar da Silva (Santo Tirso, 1944 - Moçambique, 2011): fez duas comissões no CTIG, de 16/9/1971 (Joaquim L. Fernandes, ex-alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974)



Pe. João Baltar da Silva (1944-2011)

Foto: Cortesia do blogue Aviagens, de Armando Cabreira



IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 
14 de junho de 2014 > Missa na igreja paroquial de Monte Real > 
O Joaquim Luís Fernandes (Maceira / Leiria). 
Tem 15 referências no nosso blogue.É o autor da série "Acordar Memórias"

Foto: © Manuel Resende (2014). Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário de Joaquim Luís Fernandes [ex-alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974], ao poste P21594  (*):


Caro Luís Graça, quando em 2013, quase 40 anos volvidos do meu regresso da Guiné, iniciei o processo de acordar as minhas memórias desse tempo, uma das personagens que se ergueu foi a do capelão P. João Baltar. 

Tinha sido meu amigo, confidente e confessor. Muitas foram as conversas que travamos, não tanto no bar, onde nem sempre havia ambiente para tal, mas mais nas nossas passeatas, ao fim da tarde, avenida acima, avenida abaixo, da pacata vila/cidade de Teixeira Pinto [, hoje Canchungo].

Nas minhas pesquisas na Net para o encontrar, foi com profunda mágoa que li a notícia do seu falecimento em Malema, diocese de Nampula-Moçambique, em 5 de Dezembro de 2011, depois de ter sofrido um AVC que o debilitou e levou à morte.

João Baltar da Silva nasceu em Burgães, Santo Tirso, a 15 de Agosto de 1944. Foi ordenado sacerdote no Seminário de Cucujães a 28 de Julho de 1968.

Integrado na Sociedade Missionária da Boa Nova [, fundada em 1930 como "Sociedade Missionária Portuguesa"], partiu em Missão para Porto Amélia [, hoje Penha,] em Outubro de 1969.

Regressou em 1971 para ser incorporado no exército como capelão militar, tendo partido para a Guiné em 16/9/71 e regressado em 23/6/74. Duas comissões.

Depois da tropa, ainda em 1974, regressou como Missionário a Porto Amélia [, hoje Penha].

De regresso a Portugal, é em 1982 nomeado para a equipa formadora no Seminário de Valadares. Também exerceu as suas funções como sacerdote e professor, com elevado prestígio e reconhecimento, em outras localidades, entre elas Cucujães e Cernache.

Em 1987 parte novamente para as Missões em Moçambique, tendo ministrado em Pemba, Maputo, Chibuto, Matola e Malema.

Em 1994 pediu a nacionalidade Moçambicana.

No testemunho dos que com ele conviveram, se depreende ter sido um Missionário dedicado na sua Missão de evangelizador, mas que não ignorava as realidades humanas daqueles a quem se dirigia, estudando as suas culturas, o que eu já me tinha apercebido quando convivi com ele em Teixeira Pinto. 

Era um profundo conhecedor da cultura Manjaca e chegara a presenciar alguns dos seus ritos animistas.
Consta que ao longo da sua vida, nomeadamente em Moçambique, se referia às suas experiências e amizades de capelão na Guiné.

E é tudo por agora.
Votos de boa saúde e um Natal fraterno, mesmo que confinados.

Um abraço

Joaquim L. Fernandes

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Notas do editor:



(**) Vd. poste de 17 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19023: Os nossos capelães militares (9): segundo os dados disponíveis, serviram no CTIG 113 capelães, 90% pertenciam ao Exército, e eram na sua grande maioria oriundos do clero secular ou diocesano. Houve ainda 7 franciscanos, 3 jesuitas, 2 salesianos e 1 dominicano.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21604: Manuscrito(s) (Luís Graça) (195): In Memoriam: Eduardo Lourenço (1923-2020), pensador maior da nossa história, da nossa cultura, da nossa identidade como povo




Capa e contracapa do livro de Eduardo Lourenço (1923-2020), "Do Colonialismo Como Nosso Impensado" (. Organização e prefácio: Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi). Lisboa: Gradiva, 2014. 348 pp.

Dedicatória: "Para o Luís Graça, que conheceu e defendeu o nosso ex-Império, aqui repensado e evocado, com o abraço afectuoso do Eduardo Lourenço. Lisboa, [Feira do Livro,] 7 de Junho de 2014"


1. Não é habitual o nosso blogue dar "notícias da actualidade", e muito menos "necrológicas" (a não ser, obrigatoriamente, dos nossos amigos e camaradas da Guiné)... Mas, de vez em quando, abrimos algumas exceções: é impossível não falar da pandemia de Covid-19 que está a mudar as nossas vidas, desde março de 2020... Como também não podemos de deixar fazer uma referência à morte de um grande português, Eduardo Lourenço (Almeida, 1923 - Lisboa, 2020), um grande intelectual, da estirpe dos nossos maiores. 

E se aqui fazemos uma referência ao seu nome e lamentamos o seu desaparecimento, é porque ele é também um pensador incontornável da nossa identidade, da nossa história, da aventura de Quinhentos, do nosso império, do nosso colonialismo,  da nossa relação com o resto do mundo... Sem esqucer a "releitura" que fez  dos nossos maiores poetas, Camões, Antero, Fernando Pessoa... 

Falando do "império", ele nunca deve ter estado, que eu saiba, na Guiné, em Angola ou Moçambique (mas o seu pai, Abílio Faria,  esteve, como capitão de infantaria, jukgo que SGE,  no início dos anos 30, em Nampula). Mas teve um ano (1958/59), na Bahia, no nordeste brasileiro, e isso terá sido determinante na produção do seu pensamento sobre Portugal e os portugueses...

Não era das minhas relações, nunca privei com ele, terei estado duas ou três com ele ou perto dele, uma na Feira do Livro de Lisboa, em 2014, e outras duas em conferências ou colóquios,  na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Cultural de Belém, em datas que já não posso precisar. Foi, contudo,  um privilégio poder ouvi-lo e vê-lo em vida, mesmo que acidentalmente.

Falei com ele apenas uns breves minutos, na Feira do Livro de Lisboa, em 7 de junho de 2014. Ele estava só e parecia ter todo o  tempo do mundo, aos 91 anos.... Não era, naturalmente, um escritor de "best-sellers",não tinhas bichas de gente à cata de um autógrafo... Mas estava ali também para dar autógrafos, que a Feira do Livro também é uma Feira de... Vaidades...

Falei-lhe do nosso blogue, da minha condição de ex-militar na Guiné... e pedi-lhe para me autografar o seu livrinho, que acabava de sair em 2014, "Do colonialismo como nosso impensado" (*)... E foi por ele que soube que o seu pai também fora militar e que ele também passara pelo Colégio Militar, como muitos outros filhos de oficiais do exército.... 

Teve então a gentileza de me escrever três linhas de dedicatória, que reproduzo acima... Mas a impressão que guardei dele, mais forte, foi a de um homem, já com os seus 91 anos de "juventude", de uma humildade, afabilidade e empatia raras nos homens das letras e da academia...

Não vou repetir tudo aquilo que a comunicação social e as redes sociais têm dito deste português maior, um "príncipe da Renascença", que vai ser enterradado, hoje, na sua humilde aldeia fronteiriça de São Pedro do Rio Seco, Almeida, numa cerimónia íntima aberta apenas à família e aos seus poucos conterrâneos,  

Os seus livros esgotaram-se nas lojas da FNAC. É sempre assim quando morre um um escritor famoso. Os portugueses são generosos na morte. Somos unanimistas no reconhecimento póstumo dos nossos intelectuais, e nomeadamente dos "estrangeirados",,, Só Pessoa morreu (quase) anónimo. E foi preciso alguém, como Eduardo Lourenço, "de fora", para lhe dar a dimensão universal e genial que ele, Fernando Pessoa, hoje tem...

2. Vale a pena, isso, sim, ver e ouvir a entrevista dada pelo Eduardo Lourenço, à jornalista da RTP Fátima Campos Ferreira, em 25 de abril de 2016. O programa (50' 19''), foi gravado no Centro de Arte Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível aqui, na RTP Play.

No passado dia 1, dia da sua morte,  vi (ou revi) essa entrevista e, no meu diário, anotei, ao correr da pena, algumas observações de que tomo a liberdade de reproduzir aqui  alguns excertos (**):

(...) Foi uma entrevista intimista. As questãoes postas não eram apenas dirigidas ao filósofo e ao ensaísta mas também, e sobretudo, ao homem, ao beirão, ao cidadão, ao português.ao europeu. (...)

(...) Entrevistadora e entrevistado, estão sentados, a uma mesa, com dois copos de água em cima do tampo. Ele é filmado muitas vezes de lado, de perfil, e de repente pareceu-me ver o perfil, também beirão, de Salazar. (...)

(...) Para um homem que esteve, inicialmente, próximo do existencialismo,as questões que lhe são postas não podiam ser mais...existencialistas: Deus, o sentido da vida, a morte, a condição humana, o amor, a liberdade, a relação com os outros, a família, o ser português... e europeu.

(...) Do Colégio Militar, guarda melancolia...Foi-lhe difícil estar um ano, fechado num colégio intermo. Tirou-lhe a alegria da família e dos irmãos. Reconhece, no entanto, que lhe dei disciplina para a vida. (...)

(...) Qual teria sido o caminhos seguido pelos outros seis irmãos ? Não se falou disso, nem nas naturais dificuldades que teria uma família numerosa, nos anos 30. O vencimento de um oficial subaltermo do exército, nessa époa, era baixo.  Lembra-se de pastar cabras com a avó e a singuralidade de cada ser humano é uma das coisas que o fascina (...)

(...) Ganha uma bolsa, vai para França e aí conhece a futura mulher... O ter podido sair do país e tornar-se um 'estrangeirado', foi muito importante para a sua reflexão e para sua obra... Tem outro distancimamento crítico e afetivo que nunca teria se tivesse feito carreira académica na Universidade de Coimbra onde se licenciou em ciências histórico-filosóficas. Foi assistente do professor de filosofia Joaquim Carvalho. (...)

(...) Não fez uma carreira académica típica, nunca se doutorou, ao que eu saiba.  E em França era um estrangeiro, não dominando perfeitamente a língua, logo no início... Ironia: é hoje considerado um dos grandes pensadores europeus, e o maior pensador português do século XX... Mas não dá importância aos inúmeros prémios e condecorações que recebeu em vida, em Portugal, em França e muitos outros sítios. (...)

(...) Vê-se que é um homem ponderado não é palavrosos, mede as palavras, tem um discurso bem estruturado, encantatório, poético, metafórico, aguarda um, dois ou três segundos antes de responder às perguntas da jornalista... Com o típico gesto pensador, que põe a mão direita sobre parte da testa e da face....Controla as suas emoções, o tom de voz é sereno, mesmo quando há questões que o inquietam, a crise demográfica, o declínio da Europa,  a lenta mas crescente invasão da França e doutros países oriundos de outras cultutas e religiões.. Faz referência explícita aos povos islâmicos e ao terrorismo fundamentalista islâmico, preocupa-o a incapacidade da Europa para encontrar respostas, a solidão do Papa, a crise do cristianismo... E, a claro, fala da morte,  a impossível experiência da nossa própria morte. (...)

Para quem quiser saber mais sobre o Eduardo Lourenço, ver aqui a sua página oficiosa, organizada pelo Centro Nacional de Cultura. 

Por exemplo, ficamos a saber, da sua biografia

"1941 Pensa entrar na Escola do Exército mas desiste dos cursos preparatórios militares na Faculdade de Ciências e presta provas de aptidão à Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, tendo sido admitido; 1944 Conclui o 4º ano da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas; 1945 Frequenta o Curso de Oficiais Milicianos; 1946 A 23 de Julho conclui, com 18 valores, a licenciatura de Ciências Histórico-Filosóficas defendendo a tese intitulada O Idealismo Absoluto de Hegel ou O Segredo da Dialéctica; 1947 É convidado, pelo Prof. Joaquim de Carvalho, para Assistente (20 Outubro 1947-20 Outubro 1953) do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Presta serviço militar na Guarda, como alferes miliciano, no Batalhão de Caçadores 7"...

3.  A Fundação Calouste Gulbenkian está a  editar, desde há uns anos,  as suas obras completas,  que são numerosas. E em parte inéditas. O espólio de Eduardo Lourenço está à guarda da Biblioteca Nacioanl e está a ser estudado pelos especialistas. 

O livro cuja capa reproduzimos acima é uma obra que reúne escritos de várias épocas, tendo como fio condutor uma reflexão sobre o nosso "colonialismo", e que é publicado, em 2014, com "40 anos de atraso"... 

Gostaríamos, um dias destes, de poder deixar aqui a nossa "nota de leitura" pessoal dessa obra. Como dizem os organizadores, trata-se de um volume que reúne "textos publicados e inéditos, completos e fragmentários do Eduardo Lourenço sobre o 'problema colonial' português' ". O índice (resumido) dá uma ideia da riqueza do conteúdo do livro: Limiar; contornos e imagens imperiais: I. Crítica da mitologia colonialista (década de 60 até 1974); II.No  labirinto dos epitáfios imperiais (1974/75 e depois); III. Heranças vivas. 

Como Eduardo Loureno reconheceu foi fundamental a sua ida para o Brasil (em maio de 1958 foi,   por um ano, como professor convidado da Universidade da Baía, reger a cadeira de Filosofia):

(...) "Curiosamente estamos nos anos 58-59 e esse é um momento em que no mundo, em todos os continentes, se verificava o fim das descolonizações. E evidentemente percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo o 'arrière plan' do 'Labirinto da Saudade' tem a ver com a minha estadia na Bahia" (...).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 17 de agosto de  2015 > Guiné 63/74 - P15013: Notas de leitura (748): “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21603: Historiografia da presença portuguesa em África (241): Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905, por Alfredo Loureiro da Fonseca, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Alfredo Loureiro da Fonseca era tudo menos um arrivista, conhecia a poda, fez frequentes estadias na Guiné. Desde que me embrenhei na leitura dos artigos sobre a Guiné nos primeiros anos da vida do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (já cheguei a 1915) ganhei convicção de que são documentos obrigatórios para qualquer investigador. O entusiasmo dos autores é genuíno, não há para ali patranhas, ajustes de contas, prosápia de quem chegou, deu uma vista de olhos e agora fala de alto. O que Loureiro da Fonseca diz, em meados de 1905, é tremendo: andava-se a fingir que se intimavam populações revoltadas, gastavam-se rios de dinheiro para nada; na Guiné, com fronteiras definidas em 1886, apenas se exercia soberania efetiva em metade da colónia, sabe Deus com que organização administrativa; o comércio estava nas mãos dos estrangeiros e não havia uma política de incentivo para os pequenos proprietários.
Tem que se juntar esta peça ao vastíssimo puzzle que se inicia no século XIX com a abolição da escravatura, com as compras de territórios a régulos, até chegar à desafetação da Guiné de Cabo Verde; temos, felizmente, bastante documentação dos primeiros governadores, deplorando o abandono que lhes dá o Governo Central, sempre elogiando as possibilidades de desenvolvimento económico que a Guiné oferece. Mensagens que caiam em saco roto. Como terá caído em saco roto o diagnóstico feito por Alfredo Loureiro da Fonseca em plena Sociedade de Geografia de Lisboa, estávamos em 1905.

Um abraço do
Mário


Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905

Mário Beja Santos

Alfredo Loureiro da Fonseca, Oficial da Fazenda da Armada Real, teve várias passagens pela Guiné. No Boletim da Sociedade de Geografia, com data de 1905, este sócio ordinário da Sociedade faz uma comunicação com a data de 5 de junho, reproduzida no Boletim. Vamos reproduzir alguns parágrafos que nos parecem eloquentes, não esquecer que o seu autor tem experiência da colónia:
“Pode afoitamente dizer-se que apenas exercemos soberania efectiva em cerca de metade da Guiné, achando-se ainda por completo insubmissas algumas das mais ricas regiões da Província, tais como o Oio, Bassarel, Costa de Baixo, Bijagós e Balantas.
Quase todos estes povos têm sido por vezes batidos pelas nossas forças, mas como às vitórias obtidas nunca se seguiu uma ocupação efectiva, o estado de rebeldia continua sempre a manter-se, sucedendo por vezes o mesmo, como ultimamente no Oio, que a guerra não serve senão para agravar o mal que já existia. Esta ocupação efectiva será, porém, sempre impossível enquanto a Guiné só dispensar de um soldado em média por cerca de duzentos quilómetros quadrados de superfície.

O gentio está longe de ignorar esta nossa miséria e compreende bem a impossibilidade em que o governo da Província se encontra de tirar o mais insignificante proveito de qualquer vitória; foi assim que as operações de Bissau em 1873-1894, as de Canhambaque, Jufunco e Oio, em 1901-1902 e a do Churo em 1903, apesar de largamente dispendiosas, foram em absoluto improdutivas.
Em 1903, o comércio estrangeiro representava acima de 83%. A Guiné é portanto mais uma colónia estrangeira que portuguesa, e isso é a triste consequência do retraimento habitual dos nossos capitais para tudo quanto se assemelhe a empresas no Ultramar, ao passo que os franceses e alemães não hesitam em arriscar algumas centenas de mil francos em operações de comércio sempre que nelas vêem uma possibilidade de lucro, é sabida a possibilidade de entre nós se encontrar uma meia dúzia de contos, quando desde o primeiro ano de uma operação se não possa logo garantir um juro remunerador”
.

Mais adiante, provando que é profundo conhecedor das realidades económicas, dá-nos um quadro sobre o estado de desenvolvimento das suas riquezas, recorde-se que ele um pouco atrás já falou no poderio do comércio estrangeiro na Guiné:
“Concorre bastante para a desnacionalização do comércio da Guiné o mau serviço da ‘Empresa Nacional’ que só de quarenta em quarenta dias ali faz tocar os seus paquetes e, mesmo assim, nem sempre com regularidade, tendo já sucedido por mais de uma vez, nos dois últimos anos, passarem-se mais de dois meses sem comunicações com a metrópole.
Exceptuando as casas das firmas Silva Gouveia, Monteiro de Macedo e Cabral Avelino, os outros negociantes portugueses ocupam-se quase exclusivamente do pequeno comércio de mercearia e não praticam a permuta de produções indígenas, podendo-se dizer que todo o comércio do interior se acha nas mãos das casas Rudolf Titzek & C.ta, Bernardo Soller, sucessores, Louis Rolff & C.ª, Otto Shachtt, Fleckenstein & Moulin, alemãs; Compagnie Française de l’Afrique Ocidentale, Compagnie Coloniale d’Exportation, Compagnie Française du Commerce Africain, francesas; e de numerosos pequenos comerciantes italianos. As duas empresas belgas que depois de 1889 se propuseram iniciar explorações agrícolas e comerciais na Guiné, não viram os seus esforços coroados de êxito, tendo uma delas, a Société Générale d’Échanges, liquidado ultimamente, e achando-se a Compagnie de la Guinée Portugaise talvez em vésperas de liquidação, apesar de ter sido, de todas as empresas comerciais que têm tido por objecto a Guiné, aquela que dispunha de melhores elementos materiais e de um capital mais do que suficiente. Sucessivos erros de administração a levaram em poucos anos ao estado em que actualmente se encontra, sem outro resultado senão o de vir lançar mais uma injustiça desconfiança sobre o emprego de capitais na Guiné.


Diz-se que um sindicato inglês está em ajustes com a Compagnie de la Guinée Portugaise, para adquirir os terrenos que esta ainda possui, destinando-os à cultura regular do algodão em larga escala; pena é que sejam ainda capitais estrangeiros os que compreendem o proveito que há a tirar dos recursos de uma colónia que é nossa.
É triste que assim seja, principalmente quando há quem, sendo português, conseguiu, em pouco mais de vinte anos, conquistar na Guiné a opulência.
Ninguém ignora o malogro de todas as tentativas feitas até hoje, no país, para se conseguir a organização de qualquer grande companhia para a exploração da Guiné e disso é ainda exemplo frisante a última grande concessão de terrenos feitas em 1903 nas ilhas Bijagós e que, até à data, ainda não começou sequer a ser aproveitada.
Só a quase absoluta ignorância que no país se professa pelo que diz respeito às colónias em geral pode talvez justificar, em parte, esse retraimento de capitais. Torna-se, portanto, indispensável uma propaganda activa e contínua que torne conhecidas as riquezas naturais do nosso Ultramar.

Na Guiné, é indispensável facilitar-se quanto possível a aquisição de terrenos quer para a exploração agrícola propriamente dita, quer para o estabelecimento de pequenas feitorias comerciais, vedetas da ocupação pacífica, que vão no interior da Província trocar os artigos da indústria europeia pelos produtos indígenas. É, principalmente, para as pequenas concessões que deve, em especial, voltar-se a atenção do legislador, porque essas não exigem grandes capitais de exploração e portanto mais facilmente encontrarão quem as aproveite. São os pequenos agricultores que mais merecem a protecção do Estado e, até hoje, os únicos que na Guiné têm feito alguma coisa em favor do desenvolvimento agrícola da Província. É obra patriótica ajudá-los a vencerem as múltiplas dificuldades com que lutam; e a completa falta de incentivos oficiais sugeriu-me a ideia de os reunir, fazendo-os constituir o primeiro sindicato agrícola das colónias. Lancei os lineamentos gerais desse projecto e a minha ideia foi na generalidade bem aceite por todos aqueles a que me dirigi. No meu próximo regresso à Guiné, tenciono prosseguir no meu intento, e se nada conseguir, o que não espero, terei ao menos a consolação de alguma coisa de útil ter tentado em favor do progresso da Província”
.
Edifício das Finanças em construção, década de 1930, Bissau, Avenida da República
A Bolama da era colonial, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra Bijagós, Património Arquitetónico, Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia
O que resta do cinema de Bolama, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra Bijagós, Património Arquitetónico, Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21580: Historiografia da presença portuguesa em África (240): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21602: Da Suécia com Saudade (85): A base aérea de Beja e o apoio alemão ao esforço de guerra de Portugal em África (José Belo)



José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada, 
1968/70); cap inf ref, jurista,  autor da série "Da Suécia com Saudade;  vive na Suécia 
há mais de 4 décadas; régulo da Tabanca da Lapónia; tem 180 referências no nosso blogue: 


1. Mensagem de José Belo:

Date: terça, 10/11/2020 à(s) 01:39
Subject: A base aérea de Beja e o apoio alemão

A localizacão estratégica da planície alentejana, longe de um possível teatro de guerra, foi decisiva para a instalação de uma estrutura militar de grandes dimensões que deveria funcionar como plataforma entre a Europa e os Estados Unidos no caso de uma ofensiva militar soviética sobre a Alemanha.

A instalação desta base teve papel preponderante no auxílio alemão a Portugal, destacando-se o fornecimento de equipamentos militares,sem os quais seria muito difícil a Portugal enfrentar as guerras em África. "garantindo ao mesmo tempo o tratamento em hospitais alemães de militares portugueses gravemente feridos em combate!.

Quando foi conhecido o teor do acordo entre os dois países de imediato surgiram críticas por parte dos governos africanos, obrigando o governo alemäo a "prestar mais atençã à sua posicäo externa de solidariedade com os justos anseios dos povos africanos".

A partir de 1964 assistiu-se a um progressivo arrefecimento nas relacöes luso-alemãs,  designadamente no campo militar, com reflexos na utilização prevista para a base de Beja.

Dá-se ento uma alteraÇÃo no conceito estratégico de defesa da NATO.

A obtenção de paridade nuclear entre as duas superpotências em 1966 relegava para segundo plano a rede de apoio logístico na retaguarda que tinha sido concebido para Beja.  (Será detalhe interessante o facto de o governo espanhol só autorizar a passagem de aeronaves alemãs pelo seu espaco aéreo com destino a Beja desde que os pedidos fossem solicitados com uma semana de antecedência e "caso a caso").

Foi programado alojar em Beja 5.250 cidadãos da RFA [República Federal Allemã],entre militares,funcionários,e respectivas famílias.

Näo era possível antecipar do ponto de vista humano as consequências resultantes deste súbito acréscimo de população estrangeira com um "nível de vida e culturalmente superior ao da grande maioria dos residentes da cidade".

Esperavam-se profundas transformações na ordem sócio-económica local.

E, quase espelhando problemas com as bajudas-lavadeiras na Guiné..., uma das preocupações residia no relacionamento dos militares estrangeiros com as... mulheres de Beja!

A comissäo luso-alemã que presidia à instalação do projeto militar, reclamava um código de conduta que "deveria servir de guia aos forasteiros quanto aos costumes locais". Principalmente quanto às relações com as mulheres, pois "seriam mais susceptíveis de causar conflitos com a população masculina". (G'anda alentejanos!)

As famílias abastadas de Beja foram confrontadas com o alastramento do "fenómeno militar alemão".
Não estavam a conseguir garantir a continuidade do "pessoal para servicos domésticos do sexo feminino a que habitualmente se dá a designação de...criadas de servir". (E o ditador lá voltou a "meter água" junto dos seus amigos do latifúndio. )

Os alemães ofereciam um salário mensal de 1.500 escudos que contrastava com os 300 escudos pagos pelas famílias abastadas.[em 1965, equivaleriam, a preços de hoje a cerca de 590 euros, e 118 euros, respectivamente, ou seja, os alemãs pagavam cinco vezes mais].

Por outro lado as instalacöes destinadas ao pessoal alemäo "näo deveriam incluir instalações para as criadas de servir." Estas exigências locais, entre outras, foram recusadas.

Em 1966 chegou à Base o primeiro contingente militar alemäo. Ali se mantiveram até 1993.

A estrutura militar que os alemães ergueram em Beja estava preparada para receber aeronaves de grande porte.

A própria NASA selecionou a pista como alternativa de aterragem para o Space Shuttle. Foram pistas classificadas como as de maior extensão a nível europeu.

Com uma área de mais de 800 hectares, tem condições para receber aeronaves de grande porte para além de 60 aviões tipo C-130 e mais de 300 aviões F-16.

Esta capacidade de acolher grandes meios aéreos é de importäncia extrema como base de retaguarda.
Concluídas muitas décadas desde o arranque de um projecto dimensionado para fazer face a um determinado contexto geoestratégico, cresceram as dificuldades com a manutencäo desta estrutura de grande dimensão pelos elevados custos envolvidos.

As restrições orcamentais impostas pelo governo reduziram a actividade militar na FAP e vieram a reflectir-se na manutenção e funcionamento desta Base.

Mas, e à distância no tempo, talvez seja melhor concentrarmo-nos no sério problema então surgido com as...criadas de servir!

Adaptação / condensação: J. Belo

Fontes: "Folha de S. Paulo", jornal "Público", Ana Mónica Fonseca, historiadora ("Política Externa Portuguesa/Dez anos de relaçöes luso-alemäs 1958-1968").
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de novembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21524: Da Suécia com Saudade (84): Ainda as “anedotas” do outro lado da “Cortina de Ferro”: recordações da Deutsche Demokratische Republik (José Belo)

Guiné 61/74 - P21601: Parabéns a você (1901): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art da CART 2772 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21597: Parabéns a você (1900): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21600: Blogpoesia (708): Prosema "Novembro neste ano de pandemia" (Paulo Salgado, ex-Alf Mil Inf Op Esp)

Vista de Torre de Moncorvo - Foto: Caravan Concierge / Google Maps, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 30 de Novembro de 2020, trazendo ao Blogue um "prosema":



PROSEMA – NOVEMBRO NESTE ANO DE PANDEMIA


Em Novembro correm as brisas nas serras mas não correm os homens cheios de vazios olhando o futuro sem futuro vazios de sonhos vazios de esperança.

Gritos para deuses desconhecidos sem gritar oh, deixai-nos lançar gritos, ao menos gritos que ajudem a viver.

E nem o vento liberta sons nem a chuva parece acertar nos telhados nem os gatos espreitam à nossa porta…

Terão medo, adivinharão a tristeza dos que lhes lançam a comida em pratinhos na rua, é assim na minha rua os gatos vivem nos quintais e vêm desconfiados comer à porta.

Vêm os homens vazios de memórias e atravessam a praça, descrentes.

Somos amigos e inimigos não navegamos nos sonhos das distâncias nem sonhamos com mares e montanhas…

Estamos vazios no recolhimento e na poesia que inventamos e nas garças que nos olham nos rios da nossa infância…

Estamos aqui sem olharmos os mortos nem saber os seus nomes só os números que nos lançam como bombardas.

Vens vazio, amigo, só trazes o teu carinho e as cerejas de Junho o vinho malvasia e as castanhas da serra que colheste neste último Outubro.

Vens vazio, amigo, só trazes o teu cuidado e pedaços de pressa ali à porta e um olhar metido nos meus olhos marejados.

Vens vazio, amigo, só trazes o amor... e não trazes a Vila contigo. Trazes a ânsia dos rostos e nem damos conta das crianças e mulheres e homens que estão na ilha grega de Lesbos…

Onde está o nosso tempo o tempo de passearmos pela nossa Vila?

E eu só posso dar-te alguma



Poesia do Jorge de Sena e da Sofia e do Rogério…
Paulo Cordeiro Salgado
Novembro de 2020

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21592: Blogpoesia (707): "Hecatombe de estrelas", "A Criação" e "A sobriedade dos gestos", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21599: Efemérides (345): Foi em 1 de Dezembro de 1640, há 380 anos, executada a "Operação da Restauração da Independência" (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66, autor do livro "Guerra da Guiné: a Batalha de Cufar Nalu"), enviou-nos este texto lembrando a Restauração da Independência de Portugal em 1 de Dezembro de 1640,  que hoje se comemora.


Há 380 anos, em 1640: duas mulheres, D. Luísa de Gusmão, duquesa de Bragança, e a moça Constância de Faria, noiva de 17 anos, provocaram os nossos camaradas conjurados à execução da “Operação da Restauração”…

Manuel Luís Lomba

Tornei-me recorrente na partilha com os Camaradas da minha hermenêutica (herética) dos compêndios de História.

Naquele tempo, os reinos eram enformados por dinastias, de jure pela “Graça de Deus”, a “via urinária” ou a “manu militare” a sua legitimação.

Rei Filipe II de Espanha
(1527-1598)

Em Abril de 1580, pela Graça de Deus e legitimação por “via urinária”, o rei Filipe II de Espanha, neto do nosso rei D. Manuel I, logrou que as Cortes realizadas no Convento de Cristo, Tomar, o aclamassem rei de Portugal, Filipe I, jurando-lhe um compromisso, à maneira de bom discípulo de Maquiavel: dinastia a mesma, mas independentes os reinos, os impérios separados e a obrigação de alçar o seu primogénito a rei de Portugal em exclusividade.

Nenhum dos primogénitos dos seus 4 casamentos sobreviveu, o filho e neto seus sucessores não só não se quiseram diminuir a rei de Portugal em exclusividade, como cuidaram de corromper o que restava da nossa traumatizada nobreza (dizimada em Alcácer-Quibir) e a nossa alta burguesia. Mas o povo ficou de fora dessa corrupção.



Estava o rei Filipe IV (e nosso III da dinastia filipina) a acudir à guerra dos Países Baixos, à Guerra dos Trinta Anos e o ex-Cónego Católico Gaspar de Gusmão, Duque de Olivares, seu potente Primeiro-Ministro, arranjou-lhe mais duas, ao convencê-lo a decretar a “castelhanização” dos reinos da Espanha - a Catalunha reagiu com a sublevação e fez chegar à Resistência portuguesa a informação do seu decreto secreto da anexação pura e simples de Portugal e do seu império à Espanha -, e ao decretar a mobilização das Forças Armadas Portuguesas para combater a Catalunha e a cometer essa missão ao então seu Chefe do Estado-Maior General (Governador de Armas de Portugal), o Duque de Barcelos e Bragança D. João I, que, por ser trineto de D. Manuel I, se perfilava como o candidato de maior potencial ao trono de Portugal.

Com esses decretos e seu proceder, inaugurava a contagem decrescente da nossa Restauração.
A Resistência portuguesa começou a organizar caçadas conspirativas nas herdades de Vila Viçosa com o futuro rei D. João IV, a Duquesa sua mulher (espanhola de naturalidade e grande portuguesa de coração) dispensou-lhes a melhor hospitalidade e apoio, a sua contra-informação despistou a “secreta” castelhana com a “revolta” popular encabeçada pelo Manuelzinho, um jovem deficiente, começada com o fogo posto às repartições públicas em Évora, ganhou escalada e passou a ir apedrejar as janelas e os telhados do palácio de Vila Viçosa, a vociferar que o Duque era pró-castelhano.

A eclosão da Restauração pertence a D. Luísa de Gusmão, ao animar o marido com a afirmação, solene, o que os conjurados já sabiam dela: “Prefiro ser rainha por uma hora que duquesa toda a vida!”

D. Antão Vaz de Almada, mentor da conjura aos 80 anos de idade, então Governador de Lisboa, convocara os 40 operacionais, dos cerca de 60 conjurados, para jantar, em 30 de Novembro, no seu Palácio de S. Domingos (actual Palácio da Restauração da Independência), reunião de concertação da “ordem das operações” previstas para o dia 9 de Dezembro, data simbólica, fazia 60 anos que Filipe I entrara em Portugal por Elvas, em armas, onde passara 2 meses a preparar a sua aclamação de nosso rei. António Telo, Capitão-Mor das Naus das Índias, o mais decidido e fogoso desses operacionais, falhou a janta, compareceu alta noite, a bufar e afogueado, declarou o seu juramento da eliminação às suas mãos e nesse mesmo dia, o valido do rei de Espanha e Primeiro-Ministro Miguel de Vasconcelos e Brito. Estava a chegar de livrar a sua noiva da tentativa de rapto pela sua guarda e à sua ordem.

António Telo estava noivo de Constância de Faria, moça de 17 anos, aparentada com D. Antão, órfã de pai, um herói da nossa História Trágico-Marítima, a residir com D. Joana de Faria, a viúva sua mãe, na sua quinta de Almada, e quisera o acaso de Miguel de Vasconcelos comprar a quinta confrontante. Entrado no alcoolismo, começara a assediar a mãe e a filha, o seu insucesso levou-o à anexação por expedientes ilícitos da quinta delas à dele e a fazer-lhes um ultimato: ou a Constância aceitava consolar-lhe a solidão decorrente do seu alto cargo, ou perdiam a quinta e eram postas na rua, por despejo.

Dado o seu comprometimento como conjurado, António Telo foi-se limitando à vigilância, e então o apelo da noiva falou mais alto – e “é pra hoje e não para o dia 9”!

A “ordem de operações” terá sido mais ou menos assim: o Paço do Governo (da Ribeira) e o Castelo de S. Jorge (comando das forças espanholas) os objectivos principais, o confinamento de personalidades espanholas ou pró, objectivos secundários.

Às 9H00 daquele 1 de Dezembro de 1640, o comando encabeçado por António Telo neutralizou com um golpe de mão a sua conhecida guarda desse Paço, a mesma que tentara o rapto da sua noiva, lançou-se na procura de Miguel de Vasconcelos, escapado para a outra ala, matou um criado tudesco por engano, enquanto outro grupo assaltava a ala de D. Margarida de Sabóia, viúva do Duque de Mântua e Vice-Rainha de Portugal. 

Encontraram o Miguel de Vasconcelos escondido num seu armário-arquivo, liquidaram-no com uma estocada, apresentaram-se como oficiais e cavalheiros ante a Vice-Rainha, esta assinou o auto de rendição da guarnição espanhola, como representante do rei de Espanha, António Telo ficou senhor do Paço, o cadáver do Miguel foi atirado pela janela, o peito vazado pela sua espada, em vingança da honra da sua noiva, o outro grupo foi executar outro golpe de mão, este incruento, ao Castelo de S. Jorge, e o general espanhol subordinou-se à rendição da sua superiora hierárquica.
Aclamação de D. João IV como rei de Portugal, pintado por Veloso Salgado 
(Museu Militar de Lisboa).


Restauração da Independência Nacional – em memória e celebração dos nossos camaradas de antanho, quase desconhecidos, que conjugaram na “Operação Restauração” o amor pátrio com o amor mátrio:

- D. Afonso de Meneses, Capitão-Mor de Monção
- D. Álvaro Abranches da Câmara, Governador Militar das Beiras e de Entre Douro e Minho
- D. Antão Vaz de Almada, Governador de Lisboa
- D. António de Alcáçova, Alcaide-Mor de Campo Maior e Ouguela
- D. António Luís de Meneses, General de Cavalaria
- D. António de Mascarenhas, Comendador da Ordem de Cristo
- António de Melo e Castro, Capitão de Sofala e da Índia
- António Teles da Silva, Capitão-Mor das Naus da Índia
- António Saldanha, Almirante
- D. António Telo, Capitão-Mor das Naus da Índia
- Aires de Saldanha, Comandante da Infantaria do Alentejo
- D. Carlos de Noronha, Presidente da Mesa de Consciência e Ordens
- Estevão da Cunha, Prior de S. Jorge, Lisboa
- D. Fernando Teles de Faro, Mordomo de D. Luísa de Gusmão
- D. Filipa de Vilhena, viúva de D. Luís de Ataíde, Capitão-Mor de Leiria
- D. Francisco de Vilhena, filho que ela armou Cavaleiro, para participar
- Francisco de Melo, Monteiro-Mor e o primeiro a angariar conjurados
- Francisco de Melo e Torres, Alcaide-Mor de Terena
- D. Francisco de Noronha, Coronel do Terço de Ordenanças
- Francisco de São Paio, Governador de Armas de Trás-os-Montes
- D. Francisco de Sousa, Governador de Armas de Setúbal
- Gaspar de Brito Freire, Morgado da Baía - Brasil
- D. Gastão Coutinho, General de Cavalaria
- Gonçalo Tavares de Távora, Capitão de Cavalos
- Gomes Freire de Andrade, Capitão de Cavalos
- D. Jerónimo de Ataíde, Capitão-General da Armada
- D. João da Costa, Alcaide-Mor de Castro Marim
- D. João Pereira, Prior de S. Nicolau
- João Pinto Ribeiro, Administrador da Casa de Bragança
- João Rodrigues de Sá, Capitão da Índia
- João Rodrigues de Sá e Meneses, Comendador da Ordem de Santiago
- João Saldanha da Gama, Capitão de Cavalos
- João Saldanha e Sousa, Tenente-General de Cavalaria
- Jorge de Melo, Almirante
- D. Luís de Almada, Cavaleiro e filho de D. Antão
- Luís Álvares da Cunha, Morgado dos Olivais
- Luís da Cunha, Cavaleiro
- Luís da Cunha de Ataíde, Presidente da Junta de Cavalaria
- Martim Afonso de Melo, Governador de Mascate – Índia
- D. Miguel de Almeida, Alcaide-Mor de Abrantes (94 anos de idade)
- Nuno da Cunha Ataíde, General de Artilharia
- D. Paulo da Gama, Cavaleiro e bisneto de Vasco da Gama
- Pedro Mendonça Furtado, Alcaide-Mor de Mourão
- D. Rodrigo da Cunha, Bispo de Lisboa e Inquisidor-Mor
- Rui Figueiredo de Alarcão, Comendador da Ordem de Cristo
- D. Rodrigo de Meneses, Governador da Relação do Porto
- Rodrigo de Resende Nogueira, Capitão-General de Angola
- Sancho Dias de Saldanha, Capitão de cavalos
- Tomé de Sousa, Comendador da Ordem de Avis
- D- Tristão da Cunha Ataíde, Comendador da Ordem de Cristo
- Tristão de Mendonça, Almirante

(Fontes: Casa Real Portuguesa e Wikipédia)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21508: Efemérides (344): No dia de Finados, lembro os meus camaradas Manuel Gaio Neto, Joaquim Pinto de Sousa, Gabriel Pereira Bagaço e João Fernandes Caridade (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Guiné 61/74 - P21598: (In)citações (173): Padre José Marques Henriques, com 44 anos de vida sacerdotal na Guiné-Bissau, sobretudo como missionário mas também como capelão militar (menos de 6 meses, a seguir ao 25 de Abril): convite para integrar a Tabanca Grande (João Crisóstomo, Nova Iorque)


João Crisóstomo (Nova Iorque)


José Marques Henriques (Faro)


1, Mensagem de João Crisóstomo (Nova Iorque), enviada ao Padre José Marques Henriques (Faro), com conhecimento ao editor LG (*)


 Data -  30 nov 20200 17:09  


Caríssimo P. José Marques,

(Mais um E mail comprido…oxalá arranjes pachorra para me ouvir…)

"Seja por caridade!"... Assim mesmo, à maneira franciscana!… Como "não é o hábito que faz o monje", desde que "tomei o hábito” em Varatojo, mesmo depois de ter oficialmente deixado os claustros , “franciscano" nunca deixei de ser, ou pelo menos tento tentado… neste mundo tão confuso e egoista,  que tantas vezes me leva a sentir asco do que vejo, felizmente que há alguns oasis de paz e serenidade que nos ajudam a sobreviver… 

Felizardos os que alguma vez deste oásis franciscano tomaram conhecimento. Até no Vaticano podemos ver isso!

A propósito , deixa-me dar-te um grande abraço, atrasado mas não menos sentido, pelo teu 50º aniversário, de 17 de maio passado. Só agora (graças a um blogue de que te vou falar a seguir) dele tive conhecimento. Mas vou chatear o teu irmão Luís Marques… embora eu não pudesse ter ido aí pessoalmente este ano, ele podia-mo ter dito. Puxa vida!...

Não sabia que tinhas estado tanto tempo na Guiné [, 44 anos,] e não só como capelão militar. Teria tido "pano para mangas" para falarmos quando estivemos juntos em Vila Real no 50º aniversário do P. Maciel.

A experiência na Guiné também me ficou bem vincada na minha vida. De vez em quando até chego a imaginar-me ir lá ver de novo os lugares por onde passei...

Mas se tal visita provavelmente não vai mais acontecer, gostava mesmo muito que te juntasses a este grupo de indivíduos que por lá passaram e que,  partilhando entre nós as nossas experiências,   nos ajudamos uns aos outros… 

Tu não precisarás talvez de ajudas, mas acredito que o teu testemunho e a tua experiência podem ajudar muitos de nós. Aliás, mesmo sem o saberes a tua experiência já foi bem beneficente, como tive ocasião de verificar. E acredito que quando tiveres algum tempo livre gostarás de ler algo do muito que sobre a Guiné se tem abordado neste blogue “Luis Graca & Camaradas da Guiné”.

"Convida o teu amigo e nosso camarada para se juntar aos 821 camaradas e amigos da Guiné (, entre vivos e mortos)",  assim me instruiu o meu “camarada” mais velho e a muitos outros títulos meu querido irmão Luís Graça. É que além do mais até somos vizinhos….

E ficas já convidado para um encontro muito especial que tenciono organizar em Varatojo tão cedo quanto seja racionalmente possível . Eu explico:

Eu tenho a mania de encontros e abraços ( o poder dar um abraço destes levou-me a ir a Portugal de propósito no 50º do P.Maciel!); e quando vou a Portugal, sempre que possível ( meia dúzia de vezes já ) junto as minhas famílias ( “Crisóstomos" por parte do meu pai e “Crispins" por parte de minha mãe”) para o que convido sempre alguns bons amigos que gostaria de visitar pessoalmente , mas a quem evidentemente não me é possível visitar individualmente . 

Tenho organizado estes encontros (com a presença dos meus primos P. António Sabino, P. Crispim, P. Melícias, P. Estevão Crisóstomo, etc.,  etc...) num clube perto da minha casa [, em Paradas, A-dos-Cunhados, Torres Vedras]. 

Para este ano preparava-me para o fazer no claustro de Varatojo ( e já tinha o OK dos meus irmãos franciscanos). Aliás os dois primeiros encontros (há quase 20 anos), bem simples , foram em Varatojo que tiveram lugar.

Quando o próximo encontro for possível,  espero que me dês a grande satisfação de vires com o Luís Marques. Além das minhas famílias,  tenciono convidar outros bons amigos, como em anos anteriores , onde estiveram também alguns antigos "colegas de seminário” , camaradas da Guiné e outros amigos de coração.

Mais uma vez Muito Obrigado pela tua muito apreciada resposta.

E espero que me (nos) dês uma resposta afirmativa ao convite para te juntares ao nosso blogue. Para bem de todos nós.  (**)

A propósito já estiveste por estes sítios? Se alguma vez vieres até cá… espero que aceites a simplicidade da minha casa: é modesta mas “acolhedora” , costumam dizer. 

Um grande abraço de Paz e Bem
João e Vilma
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Notas do editor:

(*) Vd.postes recentes:


30 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21594: Os nossos capelães (13): José Marques Henriques, ofm, esteve no CTIG, de 28/4/1974 a 9/10/74 (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Guiné 61/74 - P21597: Parabéns a você (1900): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21581: Parabéns a você (1899): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Guiné, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21596: Notas de leitura (1327): "A Caixa de Correio de Nossa Senhora", por António Marujo; Círculo de Leitores e Temas e Debates, Outubro de 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2020:

Queridos amigos, 

É uma incursão inédita sobre o culto a Nossa Senhora de Fátima na envolvente da guerra colonial, militares, familiares e amigos, todos envolvidos. António Marujo é um jornalista credenciado na temática religiosa, "enfrentou" a leitura de cerca de 50 mil mensagens entre as milhões existentes, privilegiou o período que vai de 1917 a 1974, consultou personalidades avisadas, os temas da paz e da guerra são dominantes nos pedidos à Mãe de Deus, sem detrimento de muitos outros que vão desde a conversão da Rússia a pedidos de saúde ou de emprego, amores proibidos e confessados, crimes escondidos, desilusões amorosas, angústias existenciais, até afloram situações de pedofilia, mas há muito mais. 

Um livro que nos permite ir conhecendo melhor o país através do analfabetismo, da pobreza e da falta de proteção social, uma obra que nos permite igualmente entender o papel desempenhado por Fátima na fé dos combatentes, seus pais, mulheres, noivas e namoradas, madrinhas de guerra e grandes amigos. Até hoje.

Um abraço do
Mário



Mãe, Senhora, ouve-me, que o meu filho venha são e salvo da guerra:
Uma assombrosa viagem pelo correio dirigido a Nossa Senhora de Fátima


Mário Beja Santos

A obra de investigação de que resultou esta reportagem jornalística intitula-se "A Caixa de Correio de Nossa Senhora", é seu autor António Marujo, um jornalista com largos créditos e pergaminhos na área da temática religiosa; afoitou-se à leitura de um bom número de dezenas de milhar de mensagens dirigidas a Nossa Senhora de Fátima, com os temas mais díspares (declarações, pedidos de saúde ou de emprego para o próprio ou para outras pessoas, amores proibidos e confessados, crimes escondidos, orações pela paz no mundo e pela conversão da Rússia, pedidos angustiantes para que filhos, maridos e familiares envolvidos nas guerras viessem sem beliscadura, obra editada pelo Círculo de Leitores e Temas e Debates, outubro de 2020. (*)

Investigação estimulante, o próprio autor observa que estas mensagens revelam muito do que era o país, há poucas décadas, marcado ainda pelo analfabetismo, pobreza e falta de proteção social.

Antes de nos centramos nas mensagens em tempo de guerra colonial, atenda-se às observações do autor. O país que estas mensagens revelam num acervo como não existe outro em Portugal, podemos ver quem era escolarizado ou não, saber que predominavam as mulheres, pois quem escrevia era quem ficava, não que os jovens que partiam não levassem a incumbência de rezar o terço ou ter no peito a medalhinha de Nossa Senhora ou contarem com ela as horas de aflição.

 Há depois a natureza da comunicação, mais a intimidade que a pura veneração, daí as invocações de Mãe, Mãezinha, Mãe Adorada, Querida Mãezinha do Céu, Minha Mãe Santíssima, Adorada Mãezinha do Céu, Minha Querida Nossa Senhora de Fátima, e muito mais. 

A mãe é protetora, é uma espiritualidade que se entrelaça com maternidade, envia-se mensagens a alguém que nos está próximo, pronto a ouvir, capaz de perceber que estes milhares de modos de escrever e falar, os pedidos são inúmeros, tem a ver com a saúde, com as fraquezas e traições, com as dúvidas de fé, pedidos de arrimo para os estudos, para se conseguir o amor dos pais, dos filhos ou do marido, pedidos para sair da pobreza, para curar a doença, pedido de amor quando se está em desespero. 

Há também nestas mensagens uma ligação estreita com a doutrina dos Papas, Paulo VI, surpreendentemente, em 13 de maio de 1967, centrou a sua mensagem na paz, Fátima nascera na I Guerra Mundial, houvera depois outra mais mortífera e o Papa tem conhecimento que Portugal vive numa guerra colonial, importa não esquecer que as primeiras questões postas por Lúcia tinham a ver com o fim da guerra.
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Nucleo Museológico Memória de Guiledje > Capela > 2010 > O Luís Branquinho Crespo e o António Camilo colocando a imagem na sua base.
Imagem de Nossa Senhora de Fátima, na capela do  Núcleo Museológico Memória de Guiledje.  Foi doada pelos nossos camaradas Luís Branquinho Crespo e António Camilo.  
Imagem do nosso blogue (**)


Consolidadas as mensagens de Fátima, e esta transformada em santuário com fama universal, desenvolveu-se cumulativamente a evocação anticomunista, falava-se na conversão da Rússia, não esquecer que se vivia em Guerra Fria e a imprensa portuguesa fazia o possível para revelar as perseguições da Igreja na Rússia. 

E António Marujo discorre sobre as cartas de mães aflitas a pedir que os filhos regressem salvos da guerra. É vasto o correio de Nossa Senhora quanto a testemunhos de angústia no tempo da guerra colonial, e logo desde 1961.
 
O autor escreve:

“As cartas que se referem à guerra dão conta da aflição ou da dúvida, do pedido genérico de paz ou da súplica dos mais próximos, da convicção ideológica alinhada pelo discurso oficial ou, mesmo se residualmente, da contestação ao regime e à guerra, de uma diversidade enorme: o soldado que envia a fotografia com uma mensagem escrita no verso, a mãe que pede pelo filho, a noiva que lembra o seu prometido, o soldado que quer regressar para ver os filhos, as madrinhas de guerra ou as crianças que nas escolas fazem trabalhos a pedir a paz no mundo e para Portugal. Neste último caso, há vários exemplos de mapas de Portugal e dos então territórios ultramarinos, desenhados em folhas de papel para as crianças colorirem ou preencherem com pequenas frases, junto a uma representação da Nossa Senhora de Fátima”.

Há também mensagens em que se pede para o filho não ir para a tropa ou não ir à guerra, há mensagens a pedir paz para todos os soldados que combatem nas frentes, há pedidos como este: “Salvai Portugal e os soldados que dão a vida pela Pátria”

Outro aspeto curioso que o autor regista são as mensagens referindo a guerra como um castigo pelos maus comportamentos da humanidade, há guerra porque os pecadores ainda não se converteram, há guerra porque é um castigo de Deus, porque ainda não se cumpriu a mensagem, perdoa Mãe Santíssima a estes filhos desavindos. E mais adiante:

  “Quando falam da guerra colonial, a esmagadora maioria das cartas são escritas por mães e irmãs, há depois as esposas, avós ou outras familiares aflitas, namoradas ou noivas esperançadas”.

Está hoje bem identificado que a mulher foi um grande apoio dos combatentes, procuravam dar estímulo e esperança no seu correio para o familiar na guerra, até conjuntamente se faziam promessas para ir agradecer a Nossa Senhora quando ele regressasse são e salvo.

Mais adiante, o autor fala dos jovens que regressaram são e salvos e que “reavivaram uma religiosidade de gratidão”. E veja-se um exemplo:

“A gratidão é o sentimento de Manuel Antunes, das Caldas da Rainha, hoje emigrante em Wasaga Beach (Canadá), onde casou. Todos os anos faz questão de estar no santuário português, acompanhado da esposa e do filho. Nos seus anos de guerra (Moçambique, 1967-69) rezava todos os dias a Senhora de Fátima. ‘Era a minha protetora, a minha fé foi fortificada na guerra e Nossa Senhora de Fátima fortificou a minha fé’, diz ele, durante a estadia em Portugal que o levaria ao santuário, em 10 de maio de 2019.

Consigo, Manuel transportava sempre um pequeno papel com os dados pessoais, para o caso de lhe acontecer alguma coisa. ‘Choro, lamento, mas amanhã irei para o mato. Mas irei: Nossa Senhora de Fátima me acompanha’, escreveu na pequena folha, hoje ainda legível. ‘Regressei, regressei, mas alguns ficaram lá…’, recorda, comovido. ‘Venho cá todos os anos e venho sempre a Fátima, rezo na Capelinha… Não vou pagar nada, só agradeço, tudo, tudo, agradeço por aquilo que me tem feito. É a minha fé”
.
Imagem do Santuário nos anos 1970

António Marujo também recorda episódios dolorosos como o de António Guerreiro Calvinho, antigo presidente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas  (ADFA), que não esqueceu Fátima na sua poesia. Sempre equacionando o papel da Mãe de Deus com a Mãe Natural, o autor recorda a importância da canção “Mãe” do Conjunto Oliveira Muge. Escrita por António Policarpo, a sonoridade da composição era semelhante a outras baladas pop de estrutura simples desses anos 1960. 

E há as madrinhas e namoros, envolvendo Nossa Senhora de Fátima. Há a história de Joaquim Gregório, taxista na Batalha, que embarcou nos primeiros contingentes enviados para Angola. Participou na tomada de Nambuangongo, todos os dias rezava o terço com vários camaradas, invocando a Senhora de Fátima. Ferido com gravidade, Gregório chega a ser dado como morto. Depois de regressar foi a Fátima várias vezes em agradecimento. E António Marujo lembra o poema “Nambuangongo, meu amor”, de Manuel Alegre, provavelmente o mais poderoso poema de toda a literatura da guerra colonial, que assim começa:

“Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.”


O autor discorre sobre a relação de Fátima com o tema da guerra e da paz logo encetado em 13 de maio de 1917, quanto à guerra colonial nem tudo era linear entre católicos, com o evoluir da guerra a chamada linha do catolicismo de vanguarda afrontou o regime, primeiro refletindo sobre o direito dos povos à autodeterminação e depois condenando a inflexibilidade em não se dialogar com quem queria ser livre.

Tratando-se de uma investigação inédita, julgo que também é inédito o alargado olhar sobre o papel de Fátima na guerra colonial. Uma leitura estimulante para entender a fé dos combatentes e dos seus familiares.
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Notas do editor

(* Último poste da série de 26 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21584: Notas de leitura (1326): família, casamento e sexualidade, comentário de Cherno Baldé a uma das "Estórias cabralianas" ["Cabral, salvador das bajudas desfloradas"], da autoria de Jorge Cabral (Lisboa, ed. José Almendra, 2020, pp. 93-94)