quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22923: Documentos (35): Comunicações e Ordens enviadas pelo Estado-Maior do Exército e do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné - Anexo à Circular N.º 1703/NP da 2.ª Repartição do Estado-Maior do Exército (2) (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)


1. Continuação da publicação dos documentos enviados pelo nosso camarada Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974) em mensagem de 16 de Janeiro de 2022:

Amigos e Camaradas da Guiné
Existem algumas fotografias publicadas sobre alguns militares das NT em acções políticas usando viaturas do Exército e camisolas do IN (PAIGC), abraços, envolvendo oficiais etc, que ocorreram durante o período pós 25 de Abril na Guiné,que desconhecia. Quero lembrar que, além de sermos militares, as Delegações do MFA tinham toda a informação sobre o processo negocial e a postura a assumir. Estas ações políticas, no processo de transferência de soberania da Guiné, a mim parecem-me no mínimo, desnecessárias, despropositadas, não respeitaram os nossos mortos em combate, não melhoraram a nossa imagem e entendo que não deviam ter acontecido.
Devo no entanto dizer que foi emitido um comunicado do Secretariado do MFA na Guiné de 16 de Junho de 74, com a linha política definida pela 5.ª Divisão constituída em 15 de Junho de 1974, onde estas actividades podiam eventualmente ser enquadradas. Desconheço porém se exerceram alguma influência no comportamento destes militares.

Assim é meu propósito dar a conhecer e tornar públicas as comunicações e ordens que recebemos enquanto Delegação do MFA na Guiné da parte do Estado Maior do Exército e do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné relativas a esse período, nomeadamente a Circular N.º 1703/NP e anexo, mandadas executar pelo ex-Cap. Dias Silva e mais tarde reafirmadas pelo próprio como mostra a nota original escrita a vermelho por cima da Circular N.º 2736/AP/74, cito "Deve a delegação do MFA desta dar cumprimento rigoroso explicando a todo o pessoal em 25/7/74", Dias Silva Cap - e que apelavam à disciplina e respeito pela hierarquia e informação das NT sobre as negociações em curso do Processo de Paz na Guiné, a abstenção de actividades políticas no exercício das nossas funções dentro do quartel, etc. Estava aberta a via negocial para o conflito, as ordens eram muito claras e equilibradas e foram cumpridas e executadas por todos nós. Só nos restava esperar o Acordo das partes em confronto para sairmos da Guiné com a cabeça erguida e regressar a casa. Assim aconteceu, a CCaç 4541/72, não esqueceu os camaradas mortos e feridos em combate, nomeadamente aqueles em Choquemone no dia 21 de Novembro de 1972. Tinham algum ressentimento resultante da condução desta operação e do número de militares envolvidos que sempre os acompanhou. Quando cheguei a esta CCaç encontrei "velhos" que não eram vaidosos, sabiam de guerra, tinham tarimba e era notável a sua capacidade psicológica e estas, tive a sorte de aprender com eles. No período de transição não tivemos nenhum envolvimento ou problema com o PAIGC e mantivemos nosso bom relacionamento com a população local.

Relativamente ao Comunicado às Delegações do MFA de 16 de Junho de 1974, devo dizer que não foram realizadas estas ações na nossa Unidade, no entanto eu recebi essa comunicação. Tem uma inscrição original escrita a vermelho, na parte superior, dirigida a mim, Fur. Costa. Estudei este documento e decidi que não me competia a mim enquanto militar nem me sentia habilitado para fazer esclarecimento político sindical, propaganda e animação cultural e outras que constam deste comunicado. Entendi também, que não era possível conciliar este tipo de ações com disciplina e hierarquia próprias da Instituição Militar.

Note-se que a Circular N.º 1703/NP de 28/5/74 diz claramente, que: (Perante a política, as Forças Armadas têm que ser imparciais, coesas e conscientemente disciplinadas) e nós graduados devíamos dar o exemplo.
Na operação acima citada estes rapazes da CCaç 4541/72, tinham menos de dois meses de Guiné, eram "Piriquitos". Porque lhes foi atribuída esta missão? Será que os Donos da Guerra, dos alfinetes, mapas e mesas, nas salas em Bissau como alguém aqui e muito bem lhes chamou, tinham consciência do tempo necessário para fazer um operacional? Penso que não. Na minha opinião, eram necessários seis meses de atividade operacional numa zona de menor atividade, antes de sermos colocados no ferro. Entretanto a CCaç 4541 vai para Bissau tratar das feridas do Choquemone. Ainda estas não tinham sarado, um mês depois, "operação Grande Empreza", conquista do Cantanhez na posse do IN onde era o "Maior". Entram na posse de Caboxanque gentilmente cedida pelas CCP 121 e 122 e mantêm-nas em sua posse até serem transferidos para Safim em Março de 1974. As guerras nem sempre são justas, mas hoje temos um problema mais grave no nosso país: Não valorizamos os nossos guerreiros. Penso que não devemos fechar este debate, nunca esqueci os lamentos e raiva de alguns deles, "se fosse hoje aquilo nunca tinha acontecido". Como é evidente, referiam-se à Operação do Choquemone.

(Seguem os documentos citados)
Circular Nº1703/NP e anexo de 28/5/74
Circular Nº2736/AP/74 de 22/7/74
Comunicado às Delegações do MFA em Bissau de 16 de Julho de 1974

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf


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(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22921: Documentos (34): Comunicações e Ordens enviadas pelo Estado-Maior do Exército e do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné - Circular N.º 1703/NP da 2.ª Repartição do Estado-Maior do Exército (1) (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

Guiné 61/74 - P22922: Notas de leitura (1411): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte II: as dolorosas memórias do tempo da pirataria




Capa do livro do nosso camarada Arsénio Chaves Puim, "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada, Santa Maria, Câmara Municipal de Vila do Porto, 2021, 286 pp. Capa: Ilha de Santa Maria, do cartógrafo Luís Teixeira, 1587, Biblioteca Nacional de Florença.


1. Não se trata de um trabalho académico, previne o autor, não sem alguma modéstia. Em "palavras prévias", da 1ª edição (2008),  diz-nos que o seu livro não pretende "ser obra de carácter científico", podendo todavia  "interessar a estudiosos e ao grande público".

Mais importante  é o seu objetivo expresso de "contribuir para o estudo e salvaguarda do patrmónio cultural mariense, preservar a memória daquilo que se fazia no passado e do modo como se dizia,e não se perder o elo de ligação entre as gerações novas e as antigas" (pág. 10).

Eu diria que é uma obra de amor e de reconciliação do autor com o seu passado, a sua infância, a sua terra, as suas gentes.  É,  por outro lado, uma obra singular: "Tudo o que escrevi neste livro foi o que eu vivi, particularmete numa prineira fase da minha vida, entre meados da década de trinta e meados da década de cinquenta" (pág. 12).

E não é por acaso que o livro é dedicado aos seus Pais, António Carvalho Puim e Maria da Encarnação Chaves (, a querida mãe que perdeu num  naufrágio em 19 de Setembro de 1958), e ao Povo da ilha de Santa Maria, mostrando-se o autor "grato pela herança moral, cultural e linguística que me legaram".

É um trabalho de investigação etnolinguística  (, área da linguística que estuda as relações de uma língua com a cultura de um dado grupo étnico) , devendo remontar, pelo menos a meados dos anos 70. Em 1979, visitou a ilha de Santa Maria o grupo do "Atlas Linguístico- Etnográfico de Portugal e Galiza (ALEPG)", e na altura o bom do Puim cedeu "todo o material que recolhera". E acrescenta: 

"Algum tempo depois, reiniciei o meu trabalho de investigação, agora mais sistematizado e tendencialmemte orientado numa linha de relação entre a linguagem e a vida". Publicaria a seguir  uma séria de artigos, a partir de 1985, sob o título "O Povo de Santa Maria e o seu Falar",  artigos esses que vieram a lume no jornal "O Baluarte de Santa Maria", II série (, de que foi cofundador e primeiro diretor,  em 1977).

Lamentavelmente o Arsénio Puim foi vítima de apropriação indevida de parte do seu trabalho: alguns dos seus textos apareceram a público, noutro contexto, sem qualquer referência ao nome do autor e às  fontes originais... Houve até um caso que veio a público em 2006.

Já reproduzidos, em nota de leitura anterior, o índice do livro. Deliberadamente o autor optou por não apresentar um "glossário" de termos e expressões do falar mariense, mas antes "enquadrar, tanto quanto possível. os elementos selecionados em pequenos recortes explicativos ou resenhas de cariz social e histórico" (pág. 16).

É aqui que o livro ganha em vivacidade, originalidade e autenticidade, tornando-se a sua leitura uma fonte de saber e prazer. É impossível sermos exaustivos na análise do seu conteúdo, mas vamos ilustrar algumas das centenas de vocábulos do léxico popular mariense,  bem como locuções e expressões, americanismos, terminologia anatómica e sexual popular a par das expressões linguísticas das actividades tradicionais (como  a lavoura,  o linho, a pesca da baleia,  o artesanato, a arquitetura, a gastronomia, etc.).

Há vocábulos e expressões que ainda, infelizmente, não estarão grafados pelos nossos lexicógrafos (ou pelo menos pelos dicionários mais correntes, disponíveis "on line"), e que não podem deixar de contribuir para a diversidade e riqueza da nossa língua.

Por exemplo, o termo "achadas" que, na ilha de Santa Maria, usa-se para designar "os objetos diversos arrastados pelo mar e achados na costa" (pág. 20). Também se diz "achadas do mar"  ou "cacaréus",  por se tratar de coisas habitualmente sem grande valor material. Mas noutros tempos, uma simples garrafa de rum, vazia, deitada fora ao mar pela tripulação dos navios, era um bem valioso.  E com a  II Guerra Mundial e a batalha do Atlântico começaram a dar à costa as coisas mais diversas, e alguns de maior volume, como bidões de gasolina, pacotes de géneros alimentícios, madeira, borracha, etc.

Ainda hoje, diz o Arsénio Puim,  as "achadas do mar" teriam "um fascínio especial para as pessoas, como se fossem um dádiva maravilhosa dum mundo ignoto e longínquo" (pág. 21).

Uma palavra que seria "exclusiva e bem típica de Santa Maria é a interjeição "bei" (mais raramente, "buei"). Trata-se de "uma exclamação de admiração, a qual aspessoas reforçam alongando o som 'ei' em ondas sonoras de intensidae decrescente" (pág. 27),  sendo equivalente a expressões como "parece impossível!" ou  "quem haveria de dizer?!". 

Diz-se que a palavra  provém de um nome próprio, "Bei", um chefe mouro, do tempo das incursões dos piratas do Norte de África ao longo dos séc. XVI e XVII. (Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuesa, "bei" é um nome masculino: (i) Governador de província muçulmana; e (ii) título do soberano da Tunísia.)

Também o termo "facho", substantivo masculino, parece estar relacionado com  os tempos da pirataria.  Facho ou o pico do pacho designa "determinados montes existentes em diversas localidades da ilha onde (...) se vigiavam os piratas (...) e se costumava acender um facho sempre que se  avistava a sua aproximação ou desembarque" (pág. 38). Vem do latim: fasculu(m) > fasclu > facho.

 Curioso é o verbo transitivo "guerrear" (fazer guerra, andar à bulha) que também já ouvimos, há muitos anos, em finais dos anos 70, princípios de 80,  a um velho pescador do Alvor, no Algarve,  a quem alugámos uma parte de casa na altura das férias... Levávamos miúdos, e ele perguntou-nos: "Atão, os moços na guerreiam?!"...

Na pronúncia de Santa Maria, há a tendência para "mudar o primeiro 'e' em 'a' fechado": "garrear", garreiam"... 

Uma expressão que ainda se usa, na ilha, é "Olha os Moiros!", sinal de que  não se apagaram de todo, da memória coletiva mariense, "as marcas trágicas e dolorosas das incursões dos piratas do Norte de África " (pág. 77). A expressão era usada, no passado, para incutir temor à crianças e prevenir alguma percalço ou perigo.

Costume antigo também era o das crianças, e até dos adultos,  atirarem para cima das telhas do forno um dente caído ou partido, dizendo: "Moirão, moirão / toma lá o teu dente podre / e dá cá o meu são|"... No imaginário popular e infantil  surgia então " um  homem  barbudo e desgrenhado, de dentes estragados e aspecto horrível" (pág. 77).  

A palavra "moirama", por sua vez, também ainda hoje é usada para significar o carácter rude e o feitio violento de alguém, pessoa, grupo ou comunidade. (**)

(Continua) 
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Notas do editor:

(*) Vd.  poste da série 18 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22819: Notas de leitura (1399): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte I: "Muitos parabéns, muitos parabéns, muitos parabéns!"

(**) Último poste da série > 17 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22915: Notas de leitura (1410): “África Dentro”, por Maria João Avillez; Texto Editores, 2010 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22921: Documentos (34): Comunicações e Ordens enviadas pelo Estado-Maior do Exército e do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné - Circular N.º 1703/NP da 2.ª Repartição do Estado-Maior do Exército (1) (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)


1. Mensagem do nosso camarada Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 16 de Janeiro de 2022:

Amigos e Camaradas da Guiné
Existem algumas fotografias publicadas sobre alguns militares das NT em acções políticas usando viaturas do Exército e camisolas do IN (PAIGC), abraços, envolvendo oficiais etc, que ocorreram durante o período pós 25 de Abril na Guiné,que desconhecia. Quero lembrar que, além de sermos militares, as Delegações do MFA tinham toda a informação sobre o processo negocial e a postura a assumir. Estas ações políticas, no processo de transferência de soberania da Guiné, a mim parecem-me no mínimo, desnecessárias, despropositadas, não respeitaram os nossos mortos em combate, não melhoraram a nossa imagem e entendo que não deviam ter acontecido.
Devo no entanto dizer que foi emitido um comunicado do Secretariado do MFA na Guiné de 16 de Junho de 74, com a linha política definida pela 5.ª Divisão constituída em 15 de Junho de 1974, onde estas actividades podiam eventualmente ser enquadradas. Desconheço porém se exerceram alguma influência no comportamento destes militares.

Assim é meu propósito dar a conhecer e tornar públicas as comunicações e ordens que recebemos enquanto Delegação do MFA na Guiné da parte do Estado Maior do Exército e do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné relativas a esse período, nomeadamente a Circular N.º 1703/NP e anexo, mandadas executar pelo ex-Cap. Dias Silva e mais tarde reafirmadas pelo próprio como mostra a nota original escrita a vermelho por cima da Circular N.º 2736/AP/74, cito "Deve a delegação do MFA desta dar cumprimento rigoroso explicando a todo o pessoal em 25/7/74", Dias Silva Cap - e que apelavam à disciplina e respeito pela hierarquia e informação das NT sobre as negociações em curso do Processo de Paz na Guiné, a abstenção de actividades políticas no exercício das nossas funções dentro do quartel, etc. Estava aberta a via negocial para o conflito, as ordens eram muito claras e equilibradas e foram cumpridas e executadas por todos nós. Só nos restava esperar o Acordo das partes em confronto para sairmos da Guiné com a cabeça erguida e regressar a casa. Assim aconteceu, a CCaç 4541/72, não esqueceu os camaradas mortos e feridos em combate, nomeadamente aqueles em Choquemone no dia 21 de Novembro de 1972. Tinham algum ressentimento resultante da condução desta operação e do número de militares envolvidos que sempre os acompanhou. Quando cheguei a esta CCaç encontrei "velhos" que não eram vaidosos, sabiam de guerra, tinham tarimba e era notável a sua capacidade psicológica e estas, tive a sorte de aprender com eles. No período de transição não tivemos nenhum envolvimento ou problema com o PAIGC e mantivemos nosso bom relacionamento com a população local.

Relativamente ao Comunicado às Delegações do MFA de 16 de Junho de 1974, devo dizer que não foram realizadas estas ações na nossa Unidade, no entanto eu recebi essa comunicação. Tem uma inscrição original escrita a vermelho, na parte superior, dirigida a mim, Fur. Costa. Estudei este documento e decidi que não me competia a mim enquanto militar nem me sentia habilitado para fazer esclarecimento político sindical, propaganda e animação cultural e outras que constam deste comunicado. Entendi também, que não era possível conciliar este tipo de ações com disciplina e hierarquia próprias da Instituição Militar.

Note-se que a Circular N.º 1703/NP de 28/5/74 diz claramente, que: (Perante a política, as Forças Armadas têm que ser imparciais, coesas e conscientemente disciplinadas) e nós graduados devíamos dar o exemplo.
Na operação acima citada estes rapazes da CCaç 4541/72, tinham menos de dois meses de Guiné, eram "Piriquitos". Porque lhes foi atribuída esta missão? Será que os Donos da Guerra, dos alfinetes, mapas e mesas, nas salas em Bissau como alguém aqui e muito bem lhes chamou, tinham consciência do tempo necessário para fazer um operacional? Penso que não. Na minha opinião, eram necessários seis meses de atividade operacional numa zona de menor atividade, antes de sermos colocados no ferro. Entretanto a CCaç 4541 vai para Bissau tratar das feridas do Choquemone. Ainda estas não tinham sarado, um mês depois, "operação Grande Empreza", conquista do Cantanhez na posse do IN onde era o "Maior". Entram na posse de Caboxanque gentilmente cedida pelas CCP 121 e 122 e mantêm-nas em sua posse até serem transferidos para Safim em Março de 1974. As guerras nem sempre são justas, mas hoje temos um problema mais grave no nosso país: Não valorizamos os nossos guerreiros. Penso que não devemos fechar este debate, nunca esqueci os lamentos e raiva de alguns deles, "se fosse hoje aquilo nunca tinha acontecido". Como é evidente, referiam-se à Operação do Choquemone.

(Seguem os documentos citados)
Circular Nº1703/NP e anexo de 28/5/74
Circular Nº2736/AP/74 de 22/7/74
Comunicado às Delegações do MFA em Bissau de 16 de Julho de 1974

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf



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(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22800: Documentos (33): Acção Militar na Guiné (1963/1964) - Docs. respeitantes à acção militar na Guiné, pelo General Fernando Louro de Sousa, Junho de 1965 (Vírgínio Briote)

Guiné 61/74 - P22920: (Ex)citações (399): Ética na guerra? O caso do "matador" do comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972): "Não se mata um homem de costas", disse ao António Duarte, o apontador da HK 21, do 4º Gr Comb da CCAÇ 12... (Seria o Cherno Baldé?)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno Baldé, Sori (Jau ou Baldé) e Umaru Baldé (que, feita a recruta, irão depois para a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, a partir de 18 de junho de 1970). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade (!). Eram do recrutamento local e, originalmente, não falavam português. Terá sido este Cherno Baldé o "matador" do Mário Mendes? Em 1969/71, havia dois soldados com este nome, ambos fulas, um deles o sold nº 82115269 Ap Metr Lig HK 21, da 1.ª secção do 4.º Gr Comb (que eu, Luís Graça, integrei muitas vezes ao longo da comissão).

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. C
omentário de António Duarte [ex-fur mil da CART 3493, a companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974; economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; tem mais de meia centena de referências no nosso blogue] (*)


Boa noite Camaradas.

O homem do PAIGC, Mário Mendes, lidera a operação de colocação de minas. Mata e provoca feridos à CCAÇ 12  e, passado mais de um ano,  morre às mãos da mesma companhia de caçadores.

Casualidades da guerra, bem tristes por sinal. Há uma curiosidade sobre a morte do Mário Mendes. À época eu pertencia à companhia de Mansambo, a CART 3493 / BART 3873 e assisti a uma conversa entre o furriel que comandava a secção de HK 21 e o soldado fula que o abateu, em Bambadinca. 

A CCAÇ 12 estava no mato e detetou a presença de tropa do PAIGC. Ficou também claro que a CCAÇ 12 estava detetada, Os dois grupos evoluíram com muito cuidado e, a determinada altura, penso já perto da Ponta Varela,  a CCAÇ 12  abandonou o trilho e emboscou dentro do mato, ficando a HK 21  apontada na direção de onde se pensava que poderiam vir as tropas do PAIGC. 

Passados alguns minutos vem ao trilho um homem deles, que se ajoelhou e percebe-se que tenta "ler" as pegadas. Os restantes estavam emboscados no lado inverso ao da CCAÇ 12. O furriel faz sinal ao nosso militar para abrir fogo. Para espanto dele, em vez de disparar e apanhar o guerrilheiro em causa,  debruçado e de costas, o homem do quarto pelotão emite um ruído do género "pst pst", o guerrilheiro volta-se e nesse momento é abatido. 

Justificou-se então o nosso apontador, que ele nunca mataria um homem pelas costas.

Entretanto fui para a CCAÇ 12  em janeiro de 73 e tive a oportunidade de confirmar com o próprio e reafirmou-me que não matava ninguém pelas costas. 

Em síntese um código ético pouco compatível com a guerra.

Um abraço
António Duarte
Ex fur atirador, CART 3493 e CCAÇ 12 (Mansambo e Xime, dez 71 /jan de 74)


18 de janeiro de 2022 às 19:32

2. Comentário do editor LG:

O nosso coeditor Jorge Araújo já aqui deu mais informação detalhada sobre este encontro fatal do Mário Mendes. (***)

O comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972)  morreu em 25 de maio de 1972, 5.ª feira, no decurso da Acção Gaspar 5, realizada por seis Grupos de Combate,  três da CART 3494 e outros três da CCAÇ 12. 

O encontro fatal deu-se em Ponta Varela, tendo sido capturada a sua Kalashnikov, três carregadores da mesma arma e ainda documentação que dava conta do calendário de acções planeadas para a zona, atuava no Sector 2, da Frente Xitole-Bafatá (, nomenclatura do PAIGC), em particular no triângulo Xitole-Bambadinca-Xime.  (****)

Quem teria sido o "matador" do Mário Mendes?

No meu tempo, no 4º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca, julho de 1969 / março de 1971), a HK21 fazia parte da 1.ª secção. E o apontador era o Cherno Baldé, fula (F):

4.º Gr Comb | Comandante: alf mil  cav 10548668 José António G. Rodrigues [, já falecido, vivia em Lisboa]

1.ª secção | fur mil 15265768 Joaquim Augusto Matos Fernandes [, engenheiro técnico, vive no Barreiro; destacado para o redoordenamento de Nhabijões, logo em finais de 1969; substituído, em muitas ocasiões, pelo fur mil arm pes inf, Luís Manuel da Graça Henriques]

1º Cabo 18861568 Luciano Pereira da Silva [, morada actual desconhecida];
Soldado Arvorado 82115469 Samba Só (F)
Soldado 82109869 Samba Jau (Mun Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82115269 Cherno Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82117569 Mamai Baldé (F)
Sold 82117869 Ansumane Baldé (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82118269 Mussa Jaló (Ap Dilagrama) (FF)
Sold 82118969 Galé Sanhá (FF)

2.ª secção (a do Mort 60 e do dilagrama) era comandada pelo  fur mil at inf 11941567 António Fernando R. Marques [, vive em Cascais, empresário reformado] e  3.ª secção (a do LGFog 8,9) pelo 1.º Cabo 00520869 Virgílio S. A. Encarnação [, vive em Barcarena]:

É de todo provável que o Cherno Baldé, sold nº 82115269 tenha sido louvado (ou até ganho uma cruz de guerra) por este feito. Mas havia outro Cherno Baldé, também fula, soldado 82109669, Mun Metr Lig HK 21, que pertencia à 3.ª secção do 3.º Gr Comb (comandado pelo alf mil at inf Abel Maria Rodrigues [, bancário reformado, Miranda do Douro]. 

A 3.ª secção era comandada pelo fur mil at inf n.º 06559968 José Luís Vieira de Sousa [, natural do Funchal, agente de seguros reformado]. 
___________

Notas do editor:


(***) Vd. poste de:

17 de maio de  2017 > Guiné 61/74 - P17368: Efemérides (251): ... em abril de 2017: o 13º aniversário do nosso blogue, o XII Encontro Nacional da Tabanca Grande, os 43 anos do regresso da minha CART 3494, o 25 de Abril e o fim da guerra, o meu batismo de fogo há 45 anos em emboscada comandada pelo Mário Mendes (que viria a ser abatido um mês depois)...enfim, os nossos encontros e desencontros (Jorge Araújo)

21 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16865: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (3): Mário Mendes (1943-1972): o último cmdt do PAIGC a morrer no Xime... Elementos para a sociodemografia do seu bigrupo em 1972: tinha 27.9 anos de idade e 8.9 anos de experiência de conflito...

Guiné 61/74 - P22919: Historiografia da presença portuguesa em África (299): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Senna Barcelos é muito estudado pelos investigadores de Cabo Verde, tem infelizmente uma procura residual por quem estuda a Guiné. O que é injusto, ele procedeu a um levantamento muito sério do estado da Senegâmbia Portuguesa, teve mesmo intentos de procurar fazer um levantamento dos factos históricos a partir do século XV, como é evidente todo este período acabou por ser credor de mais rigorosas investigações, mas mantém a maior pertinência tirar do limbo todo este quadro convulsivo da mais completa derrisão em que se perpetuava a presença portuguesa, impressiona a péssima qualidade de gente que se mandava para a Senegâmbia, desde governadores ladrões a falanges completas de presos do Limoeiro. O que aqui se anota são alguns casos, e se o leitor se der à tarefa de ler estes Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné não tenho dúvidas que sentirá o maior desconforto com tanta sublevação, subornos, compadrios e ganância desmedida.

Um abraço do
Mário


Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (4)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que agora nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense. Tendo em conta os quatro principais depoimentos sobre a presença portuguesa da Guiné ou o estado da Senegâmbia Portuguesa na primeira metade do século XIX (são eles Conrado de Chelmicki, Travassos Valdez, Honório Pereira Barreto e Senna Barcelos) é indubitável que foi este oficial da Armada quem mais investigou nos arquivos, lançando as bases ténues da historiografia guineense. Possui um olhar implacável, não gosta de dourar a pílula, denuncia corrupções e mostra à saciedade a péssima qualidade da maior parte dos governantes, isto para já não esquecer as condições precárias reveladas a todo o momento da presença portuguesa naquele espaço.

Estamos ainda no período correspondente à parte III, estende-se de 1793 a 1816, edição de 1905. Veja-se a vivacidade de certos pormenores:
“Em 5 de Abril de 1795 saiu de Lisboa o novo governador Maldonado de Eça, na galera Leonisa, e como esta levasse rumo errado foi parar a Bissau com 30 dias de viagem! Encontrou a Praça em guerra com os gentios Papéis, vizinhos da mesma, e deu conhecimento deste facto ao ministro em carta de 9 de maio, dizendo-lhe que apenas chegasse ao seu governo, mandaria soldados por não os haver ali senão velhíssimos!”. E, mais adiante: “Para a Praça de Bissau seguiu em 1799 o novo comandante José das Neves Leão, que comunicou a sua chegada ali e não ter encontrado ali quem lhe entregasse o comando, porque o seu antecessor, José António Pinto, já em Lisboa, havia abandonado o lugar, fugindo para o gentio de Fá por os soldados, na Praça, se terem levantado contra ele pelas delapidações e opressões que exercera em todo o tempo do seu comando”. Como o leitor não ignora, Cabo Verde sofreu as consequências do bloqueio continental e a luta assanhada nos mares entre britânicos e franceses. O autor aliás adverte-nos: “A França e a Espanha declararam guerra a Portugal, baseando-se na repugnância com que o príncipe-regente aderia à causa continental e de não ter confiscado as propriedades inglesas no seu reino”.

Senna Barcelos, quando necessário, corrige Chelmicki ou Travassos Valdez. A propósito de direitos de exportação da cera da Guiné e da cultura do algodão, observa: “Diz Chelmicki na sua Corografia que foi por esta época que se introduziu em Cabo Verde a cultura do algodão. Merece-nos muito respeito o ilustre escritor, hoje falecido; a sua afirmação, porém, fora inexata. A cultura do algodão começou a fazer-se na ilha de Santiago logo que a esta chegaram os primeiros colonos italianos com pretos da Guiné. No século XV já se exportava bastante e no XVI os navios iam recebê-lo também à Ilha do Fogo, onde já se tratava da sua cultura em larga escala. Era com algodão cultivado ali durante aqueles séculos e posteriores que se fabricaram milhares de panos, com os quais se adquiriam por compra negros da Guiné”.

Senna Barcelos recorda-nos as tentativas dos comerciantes de Cacheu e Bissau escaparem ao pagamento de direitos alfandegários diretamente a Cabo Verde. Em 1795, os comerciantes de Lisboa que negociavam com Cacheu e Bissau reclamaram contra o capitão-mor de Bissau por este ter elevado os direitos, alegando que não era das suas atribuições. O ministro, o Marquês de Ponte de Lima, dirigiu ao Governador Maldonado de Eça uma carta na qual pedia que lhe suprimissem a jurisdição que tinha sobre os comandantes de Bissau e Cacheu, e mais praças e portos da Guiné, retirando qualquer liberdade para a imposição de taxas alfandegárias por iniciativas do capitão-mor de Bissau.

Há um relato bastante impressivo sobre a natureza de estado de sublevação permanente em que se vivia em Bissau e outras praças e presídios. Tome-se em atenção este esclarecedor relato:
“Em Bissau instigava uma revolta nos soldados o capitão-mor de Farim e comissário volante da Praça de Bissau, Tomás da Costa Ribeiro, aconselhando-os a que principiassem por negar o pagamento, com a promessa de lhes oferecer muita aguardente, e que matassem o governador capitão-mor da Praça, o tesoureiro José Valério e as demais autoridades. Mas como os soldados não anuíssem, foi então tratar com os gentios, fazendo-lhes ver que o governador da Praça tinha ido para ali a fim de os agarrar e mandá-los para o Maranhão, e também queria tirar a desforra de um seu irmão que tinha sido vítima do gentio.
Os moradores da Praça, que conheciam o caráter de Costa Ribeiro, que na Guiné cometera muitos vexames e roubos, dirigiram ao Ministro Visconde de Anadia uma queixa, expondo-lhe que logo à chegada à Praça do Governador Pinto de Gouveia quisera Costa Ribeiro corrompê-lo, oferecendo-lhe uma porção de escravos, como praticara com os outros havia mais de 10 anos, e como ele não quisesse aceitar e não consentisse que Costa Ribeiro cometesse mais abusos, começou este a presentear os gentios e reunindo-os em sua casa a altas horas da noite aconselhou-os a matar o governador, negociantes e autoridades. Os gentios revelaram estes factos aos negociantes, dizendo-lhes que o rei de Bissau viria à Praça na noite de 21 de setembro contar o caso, como efetivamente veio às duas horas, aparecendo com a sua corte, pedindo para avisarem o inocente governador que Costa Ribeiro tinha com ele tratado para na manhã de 22 darem o assalto à Praça, para tomarem os quartéis, assassina-lo e o mesmo fazerem à família e aos que resistissem.
Pediu o rei que assassinassem Costa Ribeiro ou que o pusessem fora da Praça porque era um traidor. Costa Ribeiro, vendo-se descoberto, dirigiu-se aos ídolos (Irã), com grandes somas, e falando ao demónio ofereceu-lhe a sua alma contando que o ajudasse a matar o governador. O Irã não lhe fez a vontade. O ministro ordenou que ele saísse de Bissau para Farim; não quis obedecer com o pretexto de que tinha licença para regressar a Lisboa. Como hóspede de Costa Ribeiro havia certo bacharel chamado José Tomás de Sá, que armou toda a chicana, aconselhando o seu amigo a não aceitar a intimação, ameaçando ao mesmo tempo Pinto Gouveia de recorrer aos bons ofícios do seu primo, o governador de Cabo Verde, que também recebera favores de Costa Ribeiro e que o havia de livrar nesta ocasião”
.

Lendo Senna Barcelos não há dificuldade alguma em perceber o estado da mais completa derrisão em que se encontrava a Senegâmbia Portuguesa neste turbulento período em que a família real se encontrava no Rio de Janeiro, em que os navios franceses pilhavam Cabo Verde e a pirataria assolava toda a região. O pessoal recrutado para as praças e presídios era da pior qualidade, vivia-se entre crimes, roubos, intentonas, pilhagens. Nada como continuar com os exemplos:
“O Governador D. António nomeou João Cabral da Cunha Goodolphim, capitão de infantaria, para governador-interino de Cacheu e sindicar de factos acontecidos ali contra o governador daquela Praça, Joaquim José Rebelo de Figueiredo e Góis, que havia sido deposto, formando-se um triunvirato para a governar, composto do Vigário Manuel Gomes de Oliveira, preto, natural da Ilha de São Nicolau; do Sargento-Mor João Pereira Barreto, natural de Santiago, filho de um padre e de uma escrava, e do Tenente de Ordenanças e Tesoureiro António de Miranda de Carvalho, natural de Cacheu, filho de um preto de Santiago e de uma preta gentia, vizinha da Praça. Este governo provisório havia participado ao de Cabo Verde e que o referido governador de Cacheu estava doido e que o mandasse substituir. O Governador D. António limitou-se apenas a mandá-lo substituir, e comunicou este facto para o Rio de Janeiro. O ministro mandou que seguisse para Cacheu a corveta Aurora a buscar Figueiredo e Góis, o que não foi preciso por já estar na Praia. Seguiu no brigue Triunfo para o Rio de Janeiro, e ali foi promovido a sargento-mor em atenção aos seus bons serviços. O novo governador Cunha Goodolphim não sindicou, embora o ministro tivesse dado ordem para isso e para prender os autores e remetê-los para a Corte”.

É uma repetição permanente de despautérios, faltas de autoridade, que não se extinguem mesmo quando D. João VI regressa à Europa. Pois veja-se mais um episódio passado já na monarquia constitucional:
“Em 1 de Maio de 1825 houve uma sublevação militar na Praça de Bissau, promovida por alguns oficiais e pelo capelão da tropa, recusando-se os soldados a receber o rancho; a causa dessa sublevação fora o mau rancho e a falta de dinheiro para pagamento. Governava a Praça o Capitão Domingos Alves de Abreu Picaluga, que não empregou meios enérgicos para conter os soldados. No dia seguinte aumentou esse motim, e entre os revoltosos foram eleitos os seus generais de guerra, deram assalto aos depósitos, exigiram do governador a chave da Praça, que foi entregue; deitaram a mão a uma embarcação ancorada no porto, guarnecendo-a com soldados; na bateria carregaram as peças e fizeram fogo contra algumas casas. O capitão-mor de Geba vem em socorro do governador, fugiram os cabeças do motim e efetuou-se a prisão de 38 soldados, de 5 oficiais e do capelão que foram remetidos para a Praia. O governador foi suspenso”.

Era este o estado deplorável da Senegâmbia Portuguesa. E, entretanto, vem a guerra civil, que não trouxe melhoras à Guiné.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22899: Historiografia da presença portuguesa em África (298): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (3) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22918: A nossa guerra em números (13): Literacia e numeracia... A propósito das 2 minas A/C accionadas em 13/1/1971, à saída do reordenamento de Nhabijões, causando 1 morto, 8 feridos graves e 2 viaturas destruídas (1 Unimog 411 e 1 GMC)...




Fonte: (1971), "Comunicado - Frente Leste", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40689 (2022-01-18)
(Com a devida vénia...)

Instituição:Fundação Mário Soares
Pasta: 07200.170.117
Título: Comunicado - Frente LesteAssunto: Comunicado da Frente Xitole Bafatá sobre as acções militares do PAIGC em Nhabiam, Bambadinca e Xime.
Data: Quarta, 27 de Janeiro de 1971
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Diversos. Guias de Marcha. Relatórios. Cartas dactilografadas e manuscritas. 1960-1971.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos 


1. Transcrição de comunicado do PAIGC sobre acções levadas a cabo em Nhabijões (13/1/1971) e Xime (14/1/1971), referidas no poste P12139 (*), com revisão/fixação de texto pelo editor L.G. O comunicado é manuscrito em papel de carta, com linhas.

Comunicado

No dia 13/1/71, um grupo de 5 camarada[s] armados estalaram [instalaram] 2 minas anti-carro na estrada entre Nhabions [Nhabijões] e Bambadinca, causou os [causando aos] inimigos de grandes perdas em vidas humanas, e destruiu [destruindo] 2 viaturas cheio[as] de tropas tugas que tinham ido [iam] pra [para] Bambadinca buscar comida para aqueles que ficaram na[em] Nhabions [Nhabijões].

Os Inimigos sofreram grandes percas em vidas humanas, entre mortos e feridos.

Por no [nosso] lado não houve nada mau.
Dirigido por [pelos] camaradas:
Mário Mendes e Mário Nancassá.

No dia 14/1/71, os nossos artilheiros bombardiaram [bombardearam] guarnição fortificada de militares tugas no Xim[e], com canhões e morteiros 82, causou os [causando aos] inimigos estagionados [estacionados ] de grandes percas em vidas humanas, entre mortos e feridos.

Por nosso lado, não houve nada mal.

Bombardiamento [bombardeamento] foi dirigido por [pelos] camaradas:

Djambu Mané, António da Costa e Bicut Iula [ou Tula] [?]

[Assinatura ilegível]

Sector 2 da Frente Leste, 27/1/71
 


Guiné > Região de Baftá > Setor L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72) > Janeiro de 1971 > Cemitério de viaturas de Bambadinca... O estado em que ficou o "burrinho", o Unimog 411, conduzido pelo sold cond auto, da CCAÇ 12, Manuel da Costa Soares, que teve morte imediata, ao accionar uma mina A/C, à saída de Nhabijões, aglomerado populacional, em fase de reordenamento, e que era de maioria balanta, com parentes no "mato", sendo considerado sob "duplo controlo"... A sua proximidade ao Rio Geba e à grande bolanha de Samba Silate davam-lhe um valor estratégico tanto para o PAIGC como para as NT.. (**)

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário do editor:

Segundo informação do António Duarte, nosso camarada, membro da Tabanca Grande, ex- furriel miliciano da 3ª terceira geração de quadros metropolitanos da CCAÇ 12, o "Mário Mendes, comandante de bi-grupo na zona do Xime, foi morto numa acção da CCaç 12 no final de 1972: numa deslocação feita para lá de Madina Colhido, foi abatido pelo apontador de HK21 do 4º pelotão". (***)

O Mário Nancassá era, por seu turno, o chefe do grupo de sapadores do setor 2 (Xime/Xitole). Foi ele que montou as minas em Nhabijões. Foi ele que matou o sold cond auto Manuel da Costa Soares, da CCAÇ 12... Enfim, a guerra também tem rostos!

Cotejando as versões dos acontecimentos, do nosso lado e do lado do PAIGC, é óbvio que eram diferentes as preocupações de rigor factual, bem como a literacia dos combatentes de um lado e doutro.  Na realidade, há diferenças no cômputo das baixas: "1 mortos e 8 feridos graves" (segundo as NT) e as
 "grandes percas em vidas humanas, entre mortos e feridos" (segundo o PAIGC).

Eu fui uma das "vítimas", embora tenha saído ileso da GMC, a 2ª viatura,  que foi pelos ares nessse dia fatídico...

A mesma expressão hiperbólica  "grandes percas em vidas humanas, entre mortos e feridos" volta a ser  usada o caso da notícia sobre flagelação, à distância,  ao aquartelamento do Xime (, guarnecido pela CART 2715 / BART 2917), no dia seguinte, e que não teve quaisquer consequências.

 Mas fica aqui, para apreciação crítica dos nossos leitores, o que sobre nós diziam e escreviam  ou difundiam os homens (e as mulheres) que. no passado, foram nossos inimigos e contra os quais combatemos. (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12139: A minha CCAÇ 12 (29): 1 morto e 6 feridos graves em duas minas A/C, no reordenamento de Nhabijões, Bambadinca, em 13/1/1971, aos 20 meses de comissão (Luís Graça)

(...) Resumo: Em 13/1/1971, às 11h24, na estrada Nhabijões-Bambadinca um Unimog 411 que ia buscar a comida para o pessoal do destacamento, accionou uma mina A/C, causando um morto e 3 feridos graves.

O Gr Comb da CCAÇ 12, que estava de piquete em Bambadinca, dirigiu-se de imediato ao local... No regresso, duas horas depois, cerca das 13h30, a GMC que transportava duas secções, accionou outra mina A/C, não detectada, na berma da estrada, a 10 metros da anterior. As NT sofreram mais cinco feridos graves, de imediato evacuados para o HM 241.

No dia seguinte, em 14/1/1971, o IN flagelou o Xime, da direcção de Ponta Varela, com morteiro 82, "à distância, sem consequências". (...)

Vd. também poste de 13 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22903: Efemérides (361): À uma e meia da tarde, à saída do reordenamento de Nhabijões... Em 13 de janeiro de 1971... Quando o teu relógio parou... (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 18 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22917: A nossa guerra em números (12): baixas militares e civis, de um lado e do outro... Por cada militar português morto, terá havido 2,7 guerrilheiros mortos... Na Guiné, o PAIGC terá tido 9 mil baixas, entre mortos (78%) e feridos (22%), entre guerrilheiros e população sob o seu controlo. Mas o nº de feridos pode estar subestimado e o de mortos sobreestimado.

Guiné 61/74 - P22917: A nossa guerra em números (12): baixas militares e civis, de um lado e do outro... Por cada militar português morto, terá havido 2,7 guerrilheiros mortos... Na Guiné, o PAIGC terá tido 9 mil baixas, entre mortos (78%) e feridos (22%), entre guerrilheiros e população sob o seu controlo. Mas o nº de feridos pode estar subestimado e o de mortos sobreestimado.

Quadro 1 - Guerra colonial / Guerra de África (1961/74): baixas civis, vítimas da acção da guerrilha. Estimativa com base nos relatórios militares portugueses. Fonte: Adapt. de Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 154.

 

1. Quantos civis (crianças, mulheres, homens, idosos) terão morrido na guerra da Guiné, a exemplo da "Mariema" do pungente poema do Alberto Bastos (*) ? E dum lado e do outro... 

Nunca saberemos ao certo... A única fonte disponível são os relatórios militares portugueses que poderão pecar nuns casos por excesso (nº estimado de guerrilheiros mortos) ou por defeito (elementos civis, nomeadamente entre a população apoiante da guerrilha ou sob o seu controlo).

Pedro Marquês de Sousa, o autor de "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021) (tenente-coronel na reforma, mestre e doutor em História e ex.professor na Academia Militar e no Instituto Universitário Militar) que temos vimdo aqui a citar, dedica apenas três páginas às "baixas civis", do lado português, nos três teatros de operações (pp. 154/156). (**)

A estimativa do autor aponta para 6200 mortos e 12200 feridos, em Angola, Guiné e Moçambique, num total de 18400 baixas civis,  em resultado da acção da guerrilha,  diretamente (ataques e bombardeamentos a aldeias) e indiretamente (minas e armadilhas) (pág. 154). 

Segundo o Quadro 1, acima publicado, Angola teve mais mortos em números absolutos e relativos. E a Guiné terá tido mais feridos...

Citando o autor:

"As baixas civis foram mais expressivas em Angola, sobretudo no início da luta armada (1961), quando foram atacadas as fazendas dos colonos brancos, mas também noutros períodos em que as vítimas eram quase todas africanas, como ocorreu em 1968-1970, numa fase em que a guerra decorria nas duas frentes (Norte e Leste), realidade que também resultou da rivalidade entre os movimentos de libertação" (pág. 154).

No que diz respeito a Moçambique, é a frente que apresenta menos baixas civis, "embora a quantidade de mortos e feridos tenha aumentado bastante nos últimos anos da guerra" (pág.155).

"Na Guiné, a quantidade de baixas civis também foi aumentando, à medida que a situação militar evoluía megativamente para os portugueses" (pág. 156).

2. Veremos, num próximo poste, com mais detalhe,  as nossas baixas militares e as baixas entre os guerrilheiros (, incluindo prisioneiros, para além dos mortos e feridos).

O autor estima que por cada combatente morto (por todas as causas), do lado português, terá havido 2,7 guerrilheiros mortos: em termos absolutos, 10409 mortos entre as NT, e 28266 do lado dos movimentos nacionalistas (pág. 164) (Quadro 2).

Nas baixas da guerrilha, deverão estar  naturalmente também civis, elementos da população que apoiavam a guerrilha ou estavam sob o seu controlo. Impossível, muitas vezes,  num guerra deste tipo ("subversiva", para as autoridadades portuguesas de então; de "libertação", para os movimentos nacionalistas),  conseguir-se separar os "civis" dos "combatentes". 

Na Guiné, o PAIGC terá tido 9 mil baixas, entre mortos (78%) e feridos (22%) (Quadro 2).

Parece-nos que o nº de feridos está  francamente subestimado (e o de mortos pode estar sobreestimados): vimos, no poste anterior (**) que o autor, Pedro Marquês de Sousa,  encontrou, para o caso das NT. um rácio de 10 feridos (hospitalizados) por cada morto. O nº de mortos estimados para a Guiné corresponderá grosso modo ao nº máximo de  combatentes do PAIGC  ao longo da guerra: 6000 guerrilheiros e 2000 milícias, segundo o autor que temos vindo a citar (pág. 331).

Aliás, basta comparar os dois quadros, 1 e 2: nas baixas civis, do lado português, a proporção dos feridos é sempre superior à dos mortos: 55% para Angola, 78% para a Guiné e 71% para Moçambique.  O Quadro 2 deve ser analisado com cautela uma vez que nas baixas dos movimentos nacionalistas é impossível separar os combatentes e os civis. 

Estes dados têm que ser vistos com reservas, já que são provenientes de uma única fonte (os relórios militares portugueses). Mas provavelmente também não há outros, válidos e fiáveis.


Quadro 2 - Guerra colonial / Guerra de África (1961/74):  baixas dos movimentos nacionalistas: guerrilheiros e população apoiante.  Estimativa com base nos relatórios militares portugueses. Fonte: Adapt. de Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 164.
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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22916: Antologia (82): Mariema, mãe-mártir... [Poema de Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73), poeta, dramaturgo, encenador e ator, natural de Vale de Cambra]


Alberto Bastos - “Bailam Flores: poemas”. Vale de Cambra: Câmara Municipal de Vale de Cambra, 1999. Capa de Joana Rodrigues.


Dedicatória do autor: "Ao meu 'irmão' Joaquim Pinto de Carvalho com amizade. (...)  99/11/17"


Dedicatória do autor no livro de teatro "A Máscara": "Ao meu velho camarada de armas, e meu atual e grande amigo,  Joaquim A. Pinto de Carvalho que muito, muito, me tem incentivado em tudo, mormente nas 'coisas' do teatro. Agradecido, o autor  (...)  15/11/2015"

Fotos (e legenda): © Joaquim Pinto Carvalho (2022). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mais um  tocante poema do Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73, poeta e homem de teatro (dramaturgo, encenador e ator), natural de Vale de Cambra. 

Entrou para a Tabanca Grande a título póstumo (*). É o único representante da CCAÇ 3399.










Fonte: Excerto de Alberto Bastos - “Bailam Flores: poemas”. Vale de Cambra: Câmara Municipal de Vale de Cambra, 1999, il Honório Rodrigues e Joana Rodrigues, pp. 127/  128.

Seleção e digitalização: Joaquim Pinto Carvalho. (**)
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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P22915: Notas de leitura (1410): “África Dentro”, por Maria João Avillez; Texto Editores, 2010 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
A cooperação da Fundação Calouste Gulbenkian com a Guiné vem desde o Estado Novo, assenta em dois eixos principais: educação e saúde. A Gulbenkian ajuda a capacitar bibliotecários arquivistas, profissionais de comunicação social, dá bolsas a professores e na saúde promove um vasto leque de programas que vão desde o hospital ao ambulatório. Rui Vilar convidou a jornalistas Maria João Avillez a fazer o périplo das antigas colónias portuguesas de África, é uma reportagem onde se dá conta de que a Gulbenkian aposta numa cooperação que visa preparação de gente autónoma, também na prevenção da doença e na promoção da saúde. A guerra civil de 1998-1999 destruiu equipamentos e infraestruturas que a Gulbenkian contribuiu para reabilitar, caso do INEP, e ajuda a melhorar as instalações de um dos mais lindos projetos, o da Cumura, com o objetivo de tratar quem sofre da lepra.

Um abraço do
Mário



"África Dentro", por Maria João Avillez (1)

Beja Santos

África Dentro
, por Maria João Avillez, Texto Editores, 2010, é uma avaliação em jeito de reportagem da intervenção da Fundação Calouste Gulbenkian nas cinco ex-colónias portuguesas de África. A Gulbenkian pretendia uma reportagem captada pelo olhar de uma jornalista. Foi isso que aconteceu. Vamos falar da Guiné-Bissau, onde a Gulbenkian privilegia dois polos de cooperação, na educação e na saúde.

A jornalista não pisava aquele solo há quarenta anos, solo de desamparos, como escreve, onde há um povo que os deuses parecem ter esquecido e onde tudo parece apontar para que o viandante se sinta desencorajado. Mas há o feitiço florestal, algo de genesíaco a prender-nos, e quem observa todas as dificuldades rende-se à beleza: “É certo que há as mais belas mangueiras de África, agora despontando em exuberantes cachos de flores rosadas, e os cajueiros incessantemente debruando estradas e caminhos, à beira dos braços de mar que molham o solo; há a pedra dos edifícios em estilo ‘colonial’, arruinadas memórias de um tempo que não voltará, mas encontrei aqui quem gostava que ele voltasse. Há uma cidade capital de geometria amável, feita de avenidas longas e de alguns cantos e recantos que conservam um visto de harmonia, há os hibiscos e as acácias que tentam, em vão, redimir Bissau da decadência que a vai afogando. E há ao longe, à beira-mar – desse mar que da cidade estranhamente quase nunca se avista –, o que resta hoje da fortaleza de São José da Amura e seus baluartes, fortificação tantas vezes feita e desfeita ao longo dos tempos”.

A visita começa no INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, era ao tempo seu diretor Mamadou Jau. Apresenta o INEP e os seus setores de investigação, biblioteca e arquivos. O INEP ainda não estava recomposto do vandalismo da guerra civil, tinha recebido, no ato fundador, todo o acervo do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e o espólio do Museu da Guiné. Esse acervo foi consumido entre 60 a 70% no conflito militar de 1998-1999. A Gulbenkian deu apoio estratégico, concedeu fundos para aquisição de materiais, ofereceu livros, financiou formação a nível de bibliotecários, arquivistas, secretariado. E passa-se para o projeto da Faculdade de Direito de Bissau, tudo se iniciara na década de 1990, assinara-se um protocolo de cooperação entre Portugal e a República da Guiné-Bissau na área jurídica, assim surgiu a Faculdade de Direito de Bissau. A Fundação Gulbenkian é uma associada, estabeleceu uma parceria de atuação, apoio à realização de ações de formação/especialização para professores guineenses em Portugal, estágios de investigação na Faculdade de Direito de Lisboa. Registou números do corpo docente e discente, constatou o empenho da Faculdade de Direito de Lisboa, tomou nota das publicações, não havia nenhuma edição do Código Civil antes da existência da Faculdade de Direito, a Fundação Gulbenkian ajudou a publicar um conjunto de compilações e ficamos a saber que ao nível de 2010 uma parte muito significativa do Direito que rege a Guiné-Bissau (entre 50 a 60%), continua a ser o Direito português.

Mas há mais, releve-se a importância da Fundação Evangelização e Culturas (FEC) e a Escola António José de Sousa, uma escola com maiúscula. A FEC é uma plataforma informal de entidades de voluntariado missionário, dá apoio à educação e à comunicação social, é um trabalho disseminado por todo o país, a partir de 2001, começou em Mansoa, apareceram depois as escolas solidárias, os centros de desenvolvimento educativo, estes visam o acesso a recursos pedagógicos, literários e de informação e informática para as povoações locais, há mesmo o programa ‘Andorinha’, uma aposta radiofónica do ensino da língua portuguesa através da rádio.

E o roteiro da educação a que se associa a Fundação Gulbenkian na Guiné-Bissau termina numa escola dirigida por franciscanos, tem à sua frente Frei Paulo. No ano letivo de 2007-08 a Escola António José de Sousa estava no top do ranking do Ministério da Educação, é a escola mais conceituada do país, é popularmente conhecida como a escola dos padres. A Gulbenkian ofereceu cadeiras, carteiras, quadros, a jornalista visita a biblioteca, as instalações da escola e comenta: “Ensina-se aqui o ciclo primário, com aulas da 1.ª à 4.ª classes, num universo de quase 500 alunos, rapazes e raparigas, distribuídos por 16 turmas. Dentro das classes, silêncio, ordem, disciplina. Do desenho do giz na lousa vão nascendo algarismos destinados a ilustrar somas e subtrações, seguidas por dezenas de pares de olhos redondos de atenção”. E daqui parte-se para os projetos ligados à saúde, são variados e, sem exagero, emocionantes.

(continua)


Biblioteca Pública do INEP.
Escola António José de Sousa, Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22906: Notas de leitura (1409): Diário da Companhia da Loira & Zorba, por Manuel Neves Fonseca; Projecto Foco, 2020 (Mário Beja Santos)