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segunda-feira, 8 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21983: Notas de leitura (1345): "Memorial, O livro dos 172 autores", da CCAÇ 1550 (Binta e Xime, 1966/68), DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
 
É bem verdade que todos estes testemunhos coletivos vão ter que ser tomados em conta pelos futuros historiadores. Esta região do Xime que aqui se viveu em 1967 e inícios de 1968 se transformou radicalmente de um ano para o outro. Quando a CCaç 1550 partiu, extinguiu-se o destacamento da Ponta do Inglês, desapareceu Samba Silate, ao que se dizia a maior tabanca de todo o leste da Guiné, o PAIGC atacava com ferocidade as tabancas entre Amdalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, com o evoluir da guerra abandonou-se Moricanhe, para mim uma aberração tal medida, era um posto avançado de inegável importância para proteger tanto o Xitole como Bambadinca. E Galomaro, que os autores tratam por colónia de férias, passou a ser sede de Companhia, daqui partiu uma em fevereiro de 1969 para uma operação de retirada de Madina do Boé, teve pesadas vítimas.
 
Honra a quem escreveu este legado de memória, tão singelo e tão terno.

Um abraço do
Mário



CCAÇ 1550, todos presentes e lembrados, 50 anos depois

Beja Santos

A obra intitula-se "Memorial, O livro dos 172 autores", DG Edições, 2018. Quem coordenou foi José Marques Valente, mal soube do acontecimento telefonei-lhe e pedi-lhe o documento, é um memorial enternecedor, pelo registo onde primam testemunhos quase incógnitos, onde cada um depositou as suas imagens e as suas memórias. 

Partiram para a Guiné em 20 de abril de 1966, a 26 seguem em coluna-auto de Bissau até Farim, vão sem armas, passam pelo K3, atravessaram na jangada o Cacheu, em Farim organizaram-se para ir para Binta e Guidage. Há uma apresentação sumária do setor, recorda-se que o Corredor de Sambuiá estava encravado entre Binta e Bigene. 

Vão então para Binta e segue para Guidage um grupo de combate reforçado. Foram render a CCaç 675, a do Capitão do Quadrado, Alípio Tomé Pinto, é história para nós conhecida, JERO escreveu a vida do primeiro ano da Companhia, é um documento histórico. É uma primeira fase de comissão que não deixou péssimas memórias: 

“Nos oito meses que permanecemos em Binta não se verificaram ataques violentos ao aquartelamento. Apenas por três vezes foram disparadas granadas de morteiro e tiros de metralhadora para dentro do aquartelamento e tabanca”

A relação com as populações terá sido magnífica, havia escola a funcionar e tratamentos para guineenses e senegalenses. Fizeram patrulhas de reconhecimento e foram a Sambuiá. Nas proximidades desta área sujeita a controlo do PAIGC destruiu-se uma ponte pedonal, via de acesso às culturas de arroz. Foram sempre felizes a picar as estradas, nunca houve sinistros no contingente militar.

E um dia a Companhia muda de poiso, vai para o Xime, Ponta do Inglês, Taibatá/Demba Taco e Samba Silate. No Xime a CCaç 1550 era reforçada com o Pel Caç Nat 53 e milícias da tabanca, na Ponta do Inglês havia um grupo de combate reforçado, Taibatá/Demba Taco, milícias e população em autodefesa e em Samba Silate população em autodefesa, mais adiante um destacamento em Galomaro, uma secção e muitas espingardas Mauser. Esta Guiné e esta região, nos inícios de 1967, serão bem distintas daquela que irei conhecer a partir de agosto de 1968.

A CCaç 1550 viera render a CCav 678, nessa altura havia flagelações praticamente todos os dias na Ponta do Inglês e picava-se o itinerário entre Xime e Bambadinca com muitos cuidados, não só as minas mas as emboscadas num local conhecido por Ponta Coli, sobretudo. Deixara de se fazer a ligação por terra entre o Xime e a Ponta do Inglês, aquele itinerário foi um sorvedouro de vidas e de viaturas. Explica-se a constituição da população do Xime, a organização do aquartelamento, a construção de uma paliçada. A vivência na Ponta do Inglês é mais do que inóspita:

“Formado por uns abrigos, onde se comia e dormia, rodeados por arame farpado e postos de vigia, estavam ali cerca de 40 homens, armados com G3, Morteiro 60 e bazuca. Os abastecimentos e correio eram entregues pela Marinha, que passava regularmente no Xime. A água era recolhida, diariamente, num poço a uns 500 metros do arame farpado, com a ajuda da única viatura disponível. Diariamente, sob o mesmo ritual, picava-se o percurso do arame farpado ao poço e avançava-se com o Unimog e os bidões. Uma parte do pessoal ficava de arma aperrada, enquanto os outros com balde e corda puxavam a água, até encher os reservatórios. O poço onde se ia buscar água era comum às nossas tropas e às populações do outro lado da bolanha (controlada pelo IN), pelo que o teste antiveneno para verificar se a água estava envenenada era praticamente desnecessário”.

Fala-se da vida em Taibatá e de Samba Silate, na margem esquerda do Geba, local de cambança de grupos IN, e há referência de que do outro lado do rio estava a zona de Mato de Cão onde acima havia bastantes casas de mato do IN. E recorda-se as matas onde o IN se instalava: Galo Corubal, Bissari, Fiofioli, Ponta Luís Dias, Buruntoni e Poindom. Galomaro, ao tempo, era uma paz de alma, em pleno Cossé, zona de Futa-Fulas, encruzilhada comercial entre o Senegal e a Guiné Conacri.

O aquartelamento do Xime é passado a pente fino e as imagens que o livro publica foram-me imediatamente familiares, incluindo a capelinha, a messe de oficiais, as caravanas ali instaladas, até os arruamentos dentro da tabanca. Detalha-se o que cada um fazia, desde a carpintaria, aos eletricistas, à mecânica auto.

E segue-se o lado emocionante do memorial, as fotos destes 172 autores, os seus nomes, posto e alcunha. E lembra-se que 45 já tinham partido deste mundo. Temos os testemunhos das doenças, dos medos, faz-se o elogio dos bravos, como se constituíam pés-de-meia, como se comia mal e se procurava comer bem, são testemunhos genuínos como o de um 1.º Cabo que em maio de 1977 foi a Demba Taco que tinha sido atacada, saqueada e incendiada durante a noite:

“Ficou um rasto de destruição, com civis mortos e outros raptados. Quando lá chegámos, do pouco que ficou, tudo fumegava.

Depois de feito o levantamento da situação, foi escalada a 1.ª Secção composta por sete militares, para ali ficarem a manter a segurança e ordem na reconstrução da tabanca. Não tínhamos qualquer tipo de abrigo. Ali ficámos com alguns alimentos, numa temperatura superior a 40º até que chegou a hora de preparar a primeira refeição. Foi necessário escolher, entre os sete camaradas, quem tivesse aptidão para cozinhar.

Destacado o soldado A. F. que logo improvisou com duas pedras e uma fogueira os meios para preparar a nossa refeição de batatas cozidas e atum de conserva. Mas quando nos preparávamos para distribuir as batatas e o atum, deparámo-nos com imensas crianças, olhando famintas. Jamais poderei esquecer este cenário. De entre as crianças destaquei uma, de nome Umaru Baldé, de 12 anos, que nessa noite tinha perdido o pai e a mãe.

Criei um sentimento de amizade e ternura que quando acabei a missão, em Demba Taco, me custou a separação desta criança. Com o tempo e as circunstâncias, perdi-lhe o contacto, mas nunca esquecerei este miúdo que me marcou profundamente nos quase três meses que estive em Demba Taco, em que dia a dia as minhas refeições eram repartidas com ele”
.

Obra tocante na composição e pelo recurso ao anonimato, vejam as imagens do livro, leiam a folha solta sobre o Victor, feita pelo organizador do livro, o José Marques Valente, a quem já comuniquei que este belíssimo testemunho seria publicado num blogue onde teremos o orgulho em o acolher, bem como aos seus camaradas da CCaç 1550.

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21959: Notas de leitura (1344): “Um Mergulho no Muxito”, por Jorge Paulino; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21907: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (8): "As colunas para Farim e Guidaje", "Os engraxadores" e "As ostras de Bissau"


Guiné > Região do Oio > K3 > 1973 > O José João Domingos: paragem da coluna para Farim

Foto (e legenda): © José João Domingos  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):


22 - AS COLUNAS PARA FARIM E GUIDAJE

A partir de outubro passamos a fazer segurança às colunas de Bissau para Farim, às quintas-feiras, com passagem em Nhacra, Mansoa, Cutia, Mansabá e K3, tendo substituído uma companhia independente de açorianos (ou madeirenses) que, já com a comissão cumprida, estava a ser bastante castigada.

Em novembro ou dezembro, uma das colunas estendeu-se a Guidaje. Lá fomos andando, um bocado receosos, porque uns meses antes tinha sido um fim do mundo naquela zona. Até Binta tudo correu bem mas, a partir daí, as coisas complicaram-se porque o comandante do esquadrão das Panhard, com justa prudência, exigia um carro rebenta minas com um rodado semelhante ao daqueles veículos. O rodado da Berliet que desempenhava tal função não cobria o rasto daqueles carros. Vai não vai, anda não anda, e lá foi um Unimog a desempenhar a função.

Pelo caminho, metia respeito observar os sinais dos combates ocorridos em maio de 1973, quando ainda estávamos na Metrópole, com várias viaturas militares consumidas pelo fogo, perto da picada. Mas, enfim, lá chegámos a Guidaje sem contratempos.

Enquanto nos instalavamos fomo-nos apercebendo do estado psicológico de grande desânimo em que se encontravam os camaradas ali colocados, apesar de seis meses passados sobre a ocorrência. Mostraram-nos um dos abrigos onde teriam morrido vários camaradas, as valas onde também morreu gente e, mais impressionante, as campas de algumas das vítimas das flagelações e combates que, creio, repousam hoje nas suas terras de origem, graças ao trabalho de camaradas que não os esqueceram.

Estivemos até tarde à conversa, ouvindo camaradas a contar as situações horríveis por si vividas, contadas de forma dorida, não para impressionar periquitos, antes buscando uma palavra de ânimo e solidariedade de outros que, mais novitos e não tendo passado por situação semelhante, estavam ainda com alguma força psíquica para os animar.

De manhã cedo, o regresso, que tardou porque quem tinha a incumbência de fazer a segurança não estava para isso. Conversa e mais conversa, lá chegaram a um consenso, mas fiquei com a impressão de que segurança não houve, apenas sorte, mais uma vez.



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23 - OS ENGRAXADORES

Nas deslocações a Bissau tinha por hábito frequentar o café do Bento, 5.ª Rep, embora também fosse, por vezes, ao Império e à Ronda.

Mal o cliente se sentava na esplanada apareciam miúdos guineenses a oferecer os seus préstimos, de engraxador de sapatos ou de fornecedor de mancarra.

No caso dos engraxadores, se o cliente estava recetivo, acordava-se o preço, conforme fossem sapatos ou botas o calçado a engraxar. Se o cliente não queria o serviço o garoto mantinha-se perto dos sapatos, normalmente com bastante pó, e, como quem não quer a coisa, ia passando a escova num dos sapatos e insistindo na prestação do serviço que o eventual cliente ia rejeitando. Porém, quando este olhava para os pés verificava que um dos sapatos estava bastante mais limpo que o outro e acabava muitas vezes por contratar a engraxadela.

Um exemplo concreto de que a necessidade aguça o engenho.


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24 - AS OSTRAS DE BISSAU

Instalados no Ilondé, desde outubro de 1973, passamos a usufruir de vez em quando do consumo de ostras em Bissau.

Vários estabelecimentos de Bissau vendiam ostras mas, não sei porquê, frequentava sempre um estabelecimento que ficava no passeio do Pelicano, mais ou menos ao meio da rua, quase em frente ao Mussá, e tinha uma pequena esplanada.

Pedíamos travessas de ostras, que eram enormes, e, munidos de uma pequena faca, lá íamos abrindo as ostras que mergulhávamos no molho de limão bem picante e acompanhávamos com cerveja que, na altura, já era fabricada na Guiné. As cascas eram depositadas numa enorme caixa de cartão.

Mas, para além do petisco, a casa apresentava outra atração consubstanciada no jovem guineense que servia os clientes, de seu nome Joãozinho, que por acaso já tinha estado em Lisboa.

Dava gosto ouvir as suas histórias das quais me lembro de duas.

A primeira: Joãozinho não acreditava que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, tivesse sido feita com intervenção humana, antes tinha brotado espontâneamente do mar e ninguém o convencia do contrário.

A segunda: na sua estada em Lisboa, Joãozinho foi visitar o Jardim de "Orloge", como ele dizia, e, durante a visita aos répteis, saiu disparado (“no goss”) do recinto com medo “dos cobra”.

Perante a amostra é fácil perceber porque nunca mudei de fornecedor de ostras.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21824: (In)citações (179): Lembranças de JERO e do seu legado literário (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2021:

Caríssimo,
O JERO vai fazer falta a todos, ficará na memória de muitos e o seu irrepetível legado literário será peça obrigatória que os investigadores, no futuro, não deixarão de esmaltar como caso único de um cronista que deu voz coletiva a um grupo de jovens que seguiu incondicionalmente um inesquecível comandante de companhia.

Um abraço do
Mário


Lembranças de JERO e do seu legado literário

Mário Beja Santos

C
onheci o JERO quando tive a oportunidade de ler o "Diário da Companhia de Caçadores 675"[1], ele era assumidamente o responsável pela narrativa, não escapava ao leitor o tom de exaltação pela figura do Capitão Tomé Pinto (que ficaria conhecido como o Capitão do Quadrado) e as vicissitudes desta unidade durante o ano, por Binta e arredores. Trata-se do primeiro diário de uma unidade militar, tem um escrivão dotado de fala coletiva, teve seguramente acesso aos dados da atividade operacional de uma companhia que chegou a um local, em 1964, infestado pela guerrilha, havia mesmo o desplante da população afeta ao PAIGC fazer descaradamente lavras a escassos quilómetros do quartel. Há momentos impressionantes deste diário de JERO, tenho repetidamente observado aquela descrição em que o capitão é ferido e até ser evacuado para Bissau foi alvo de transportes de um afeto, de uma solidariedade impressionantes pelo que continham de genuíno, de uma afabilidade sentida.

Pedi para falar com JERO, havia algo de estranho naquele diário, era facto que se tratava de uma edição do ano seguinte, mas as comissões são mais prolongadas, o Capitão Tomé Pinto partira para um curso que lhe daria a promoção a major, a CCAÇ 675 acusou a falta daquela figura icónica, aquele verdadeiro traço de união que metia valentia, lucidez e muito tempero na liderança. JERO, bem como o seu afável camarada Belmiro Tavares, explicaram que aquele ano marcara a memória de todos, tudo o mais fora uma sucessão de obrigações.
Este tipo de observações seriam confirmadas pelo livro seguinte de JERO, "Golpes de Mãos"[2], o antigo furriel-enfermeiro sentia-se liberto para ter uma escrita um pouco mais desabrida e descrever os factos circunscrevendo-se à sua própria leitura dos acontecimentos. Fiz a recensão da obra, o General Alípio Tomé Pinto fez questão de nos reunirmos, o que aconteceu num restaurante ali para os lados da Avenida da República, em Lisboa, vieram algumas explicações sobre aquele diário truncado. E conhecedor como sou do que mais significativo se escreveu e compõe a literatura da guerra da Guiné, guardei para os meus livros os adjetivos de admiração deste diário, obra única de voz coletiva pelo punho de um cronista que nunca alardeia qualquer gabarolice, eleva a épica de uma unidade de caçadores que em escassos meses limpa a sua zona de ação, sem desfalecimentos, e às ordens de um destemido capitão.

Encontrámo-nos recentemente, e a afabilidade era a mesma. Estava a preparar o livro "Nunca Digas Adeus às Armas", o ponto de partida era um poeta popular que cantava as lides do BCAV 490, e em dado momento cruzam-se as vidas do batalhão de Farim e os homens de Binta, havia esclarecimentos, o Belmiro Tavares promoveu o encontro a três, de novo contei com a afabilidade de JERO, a rememorar factos. Tínhamos aprazado um encontro para a apresentação do meu livro no Palácio da Independência, obviamente que convidara o General Alípio Tomé Pinto e os seus camaradas, não se efetivou devido à pandemia, conversámos ao telefone, era tudo questão de aguardar uma nova oportunidade. Não haverá nova oportunidade de me encontrar com JERO, mas o seu legado literário, a sua serenidade, o facto de ele ser um guardião de memórias como nenhum outro, faz com que eu o guarde na lista das grandes cordialidades, sabedor como sou do seu diário é obra incontornável da literatura da guerra da Guiné. E assim me curvo respeitosamente diante do cronista de olhar sempre iluminado e basto sorriso.
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Notas do editor

[1] - Vd. postes de:

21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

25 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9094: Notas de leitura (305): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

28 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9107: Notas de leitura (306): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (3) (Mário Beja Santos)
e
2 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9128: Notas de leitura (307): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

[2] - Vd. poste de 26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8822: Notas de leitura (277): Golpes de Mão's, Memórias de Guerra, por José Eduardo Reis de Oliveira (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de Janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21819: (In)citações (178): Até já, José Eduardo!... (Joaquim Mexia Alvez, régulo da Tabanca do Centro)

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20395: Notas de leitura (1241): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (34) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Retoma-se o Diário de JERO e algumas das suas páginas mais emocionantes e sintetiza-se alguns dos títulos significativos da história do BCAV 490 na sua zona de ação, aspeto bem curioso não muito distante por onde começou a sua atividade operacional, antes de ser lançado na batalha do Como.
Recorda-se Amândio César e até de uma sua visita a Binta. Procura-se escavar este período da guerra da Guiné e dói a falta de documentação ou relatos fundamentados. A mágoa é tanto maior quanto se sabe que à volta desse "homem providencial" de nome António de Spínola tudo se procurou deixar publicado, desde as suas primeiras diretivas, as suas viagens ao mato, as suas entrevistas, as suas aparições mediáticas nos Congressos do Povo, e o mais que se sabe. Com Louro de Sousa e Schulz é bem o contrário, parece mesmo que se procurou construir a imagem de que foram líderes impreparados para o turbilhão da luta armada. E não deixa igualmente de ser curioso que quem anda a historiografar nunca cite as instruções mais importantes destes dois oficiais-generais que estão publicadas em diferentes volumes da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África.
Enfim, muito caminho há a percorrer para se chegar à verdade histórica e a uma justa cronologia de toda aquela guerra.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (34)

Beja Santos

“Tivemos 3 feridos
o Sousa cego ficou.
José dos Santos Pascoal
muito sangue derramou.

À tardinha trabalhando
para estarmos descansados
fazendo recuar os malvados
que nos cordéis vão tropeçando.
Vamos granadas armando
nos sítios mais escondidos
para ver se os bandidos
não nos vêm atacar,
mas um dia, com azar,
tivemos três feridos.

Um grande desastre se dava
ao espoletar uma armadilha:
o 407 afrouxou a cavilha
e nisso não reparava.
Ao Alferes Monteiro a entregava
e o percutor desarmou.
Neste momento rebentou
levando-lhe dois dedos de uma mão.
E nesta mesma ocasião
o Sousa cego ficou.

A 13 de Outubro se seguia
quando uma mina explodiu,
o António de Sousa se feriu,
às 16 horas do dia.
No helicóptero se metia,
directamente para o Hospital.
Com seus colegas, muito mal,
tudo foi evacuado
e com o corpo estilhaçado
José dos Santos Pascoal.

Neste mês aconteceu
outra coisa amargurada:
Emídio bom camarada
no dia 25 morreu.
Uma úlcera lhe apareceu
que a morte originou.
Essa nascença rebentou,
foi grande a infelicidade
até ir para a eternidade
muito sangue derramou.”

********************

O bardo continua a desfiar o seu rosário de desditas, volta-se àquela bela página contida no diário de JERO, o “Diário da CCAÇ 675”, onde se descreve a retirada do Capitão do Quadrado para o Hospital Militar 241, cercado pela ternura dos seus militares.
É um texto pleno de sinceridade e ternura:
“Embora necessariamente combalido, o nosso capitão enquanto caminhava tranquilizava os que o acompanhavam que se sentiam manifestamente impressionados pelo acontecimento.
Renovado o penso e depois de estancada a hemorragia que tinha voltado a surgir durante a caminhada até à coluna, pediu-se helicóptero para evacuação urgente já que não se podia avaliar da extensão do ferimento e da sua gravidade. O estilhaço tinha penetrado profundamente e poderia ter lesado algum órgão importante.
Organizada a coluna, voltaram-se as viaturas já com todo o pessoal montado, iniciando-se o regresso o mais depressa possível pois o estado do nosso Capitão inspirava sérios cuidados.
Recusando-se a tomar sedativos que lhe aliviariam as dores mas que o tornariam inconsciente, continuou a dar ordens que eram transmitidas pelo furriel-enfermeiro.
Apenas uma centena de metros tinham sido percorridos quando, no meio de uma mata fechadíssima, um inimigo emboscado atacou. Um tiro de pistola inicial e depois rajadas de pistola-metralhadora. As viaturas pararam imediatamente, os ocupantes ripostaram o fogo inimigo.
Por duas vezes o Alferes Santos, que deve ter sido referenciado pelo inimigo por ter dado ordens em voz alta, foi particularmente visado, passando uma rajada de pistola-metralhadora bem perto da sua cabeça.
De salientar no momento, a calma e sangue-frio do nosso Capitão que foi sempre transmitindo ordens, insistindo pelo afastamento da coluna o mais rapidamente possível da zona de morte da emboscada. Com frequência, soldados abeiravam-se do Unimog onde seguia o nosso Capitão perguntando pelo seu estado, não conseguindo ocultar uma lágrima teimosa que descia pelos seus rostos sujos de terra e suor.

Cerca do meio-dia, quando seguíamos na região de Sansancutoto, surgiu dos lados de Binta o helicóptero pedido para a evacuação do nosso Capitão que, já há cerca de duas horas ferido, começava a sentir-se enfraquecido e com dores que os solavancos da viatura tinham aumentado.
Montada a segurança em círculo, o helicóptero desceu em manobra perfeita numa clareira junto à estrada.
O momento que se seguiu não mais será esquecido por todos aqueles que o viveram.
Alguns daqueles homens de camuflado que poucos quilómetros atrás tinham zombado das balas inimigas, desprezando a morte com um sorriso altivo nos lábios, choravam agora como crianças despedindo-se do seu capitão.
Não menos comovido, este, deixava correr livremente pelo seu rosto marcado pelo sofrimento, lágrimas de que um homem não se envergonha.
Todos queriam pegar na maca para o transportar até ao helicóptero; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca do helicóptero; outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate; outro ainda quase que o obrigava a beber a água do seu cantil. Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa.
Será difícil para um mortal comum cujas emoções fortes nunca passaram além da discussão com um polícia por causa do estacionamento do carro ou de um momento mais emotivo de um desafio de futebol ou de uma tourada, avaliar do que se sente num momento destes, quando se vê sofrer um homem, que além de um chefe de excepção, é um amigo a quem se quer como a um pai e pelo qual todos nós daríamos um pedaço da nossa vida, um pouco do nosso sangue.”

E de Binta e de um ferimento que felizmente não trouxe graves consequências ao Capitão do Quadrado retorna-se à história do BCAV 490. Se nos é lícito fazer uma síntese, recorde-se que partiram para a Guiné em julho de 1963, onde permaneceram cerca de dois anos. Haverá um número substancial de alterações nos Comandos no decurso da comissão, farão inicialmente um conjunto de operações na região do Oio, partem depois para a Operação Tridente, que durou 71 dias. Após um período de recuperação em Bissau, o BCAV 490 sedia-se em Farim, o seu campo de ação não será minimizável: Farim, Jumbembem, Cuntima, Binta, Bigene, Barro, Guidage, Canjambari, viu-se que a CCAÇ 675, em Binta, foi confrontada com o inimigo que praticamente se passeava pela sua zona, o PAIGC precisava de transportar gentes, armamento e munições, abastecimentos de toda a ordem, através de corredores que saíam do Senegal e que apontavam primordialmente para a região do Oio. A história da unidade detalha minuciosamente as diferentes operações, a partir de junho de 1964, recorde-se a operação realizada à região de Farincó-Mandinga, em 24 de setembro de 1964, de que resultou captura de material e foram destruídas cerca de 37 casas de mato. Igualmente aqui se fez referência ao grave acidente sofrido em 5 de janeiro de 1961 pelo Pelotão de Morteiros 980. Sucedem-se as operações em que se destroem algumas casas de mato e se captura material, emboscadas, nomadizações, como é timbre na guerra de guerrilhas, vai-se da falta de resultados a sucessos inesperados. Foi o caso da Operação Vouga, realizada pela CCAV 487, em 31 de maio de 1965, não longe de Farincó e Fambantã, entrou-se num acampamento, houve reação de fogo, o inimigo resistiu e depois retirou, apreendeu-se bastante material, e escreveu-se no relatório que o inimigo persistia em permanecer na área, mudando de lugar. Em junho desse ano, deu-se a rendição do BCAV 490, foram-se deslocando de Farim para Bissau e de Bula para Bissau, ficaram aquartelados em Brá até ao embarque para Portugal. A história da unidade elenca os efetivos, as baixas sofridas, condecorações e o resumo do material mais importante apreendido às forças do PAIGC.

É tempo de voltar ao escritor e jornalista Amândio César e ao seu livro “Guiné 1965: Contra-Ataque”, Editora Pax, 1965.
É o seu regresso à Guiné para fazer reportagens, fala de Bissau e da sua evolução, da variedade de etnias que se espalham pelo território, a natureza da guerra subversiva conduzida por Amílcar Cabral, elenca os progressos no sistema educativo, faz o balanço de um ano de governo do General Arnaldo Schulz, as batalhas vencidas na doença do sono, da lepra e da tuberculose, as belezas do artesanato, recorda com saudade o falecido Capitão Francisco Torres de Meireles, falecido na região do Xime em junho desse ano, visita o régulo de Pachisse Sené Sané, acredita piamente que Bolama recuperará o esplendor do passado, visita o Chão Felupe, onde assiste a uma luta livre ao lado do Rei do Caruai, comove-se com o Juramento de Bandeira em Nhacra e visita Binta, onde foi recebido pelo Capitão Tomé Pinto e os seus oficiais.
Dedica alguns parágrafos a Binta, elogiosos:
“Diga-se desde já que quando a tropa aqui chegou encontrou apenas 38 pessoas nas tabancas que constituem Binta. A recuperação vai-se verificando dia após dia. O Capitão Tomé Pinto apresenta-nos o professor de Binta. Binta tem para mim um estranho significado: aqui deixou a vida o filho de um velho amigo meu – o Furriel Vilhena de Mesquita – que, em seis meses de Guiné, fora duas vezes gravemente ferido e morreu ao deflagrar de uma mina na estrada de Binta a Bigene. Vi partir o Furriel Vilhena de Mesquita para a Guiné e depois acompanhei o seu pai – o jornalista Rebelo de Mesquita – quando os despojos do filho chegaram a Lisboa”.

É um relato eivado de propaganda, contudo fala-se prudentemente da guerra, mais do desenvolvimento, dedica-se alguma atenção à história da imprensa na Guiné, à indústria no Ilhéu do Rei, dedica todas as suas reportagens aos soldados da Guiné, pela sua coragem, pelo seu sacrifício. Como atrás se disse, Amândio César fará uma segunda visita à Guiné, não se cansará de elogiar o trabalho de Arnaldo Schulz, considera que a subversão está a ser detida e a generalidade da população mantém-se fiel à soberania portuguesa.
Veremos adiante numa diretiva de Schulz datada de 1 de dezembro de 1966 que ele tece previsões muito sombrias para o futuro da Guiné.

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 22 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20371: Notas de leitura (1238): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (33) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20381: Notas de leitura (1240): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (3): “Tiago Veiga”; Publicações Dom Quixote, 2011 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20347: Notas de leitura (1236): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (32) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fazem tréguas na indagação do que terá sido o pensamento estratégico dos dois Comandantes-Chefes que precederam Spínola, não se perca de vista que a história da guerra da Guiné carece fundamentalmente de uma investigação sistemática ao período que vai de 1962 a 1968, pairam ainda muitas nebulosas, há muita pesquisa em arquivos por fazer, a verdade histórica continua altamente condicionada.
Veio à ribalta o Capitão José Pais, que comandou a CCAÇ 14, em Farim, e abre-se o livro do diário de JERO, em Binta, em meados de 1964, andava tudo numa deriva, vai chegar a tropa do Capitão do Quadrado, entrou tudo num virote.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (32)

Beja Santos

“Muitos colegas foram feridos
os azares vão aparecendo.
Quando já estavam curados
o Diogo Augusto ia morrendo.

Ao caminharem pela estrada
feriram o furriel Ferreira
e no David à sua beira
acertaram com uma granada.
Nesta grande emboscada
Marques e Varela atingidos,
nos momentos aborrecidos
o Santos aleijou uma mão.
Neste mês de S. João
muitos colegas foram feridos.

O 490 a penar
muitos feridos já tem
e 6 baixas também
e não deixam de actuar.
Estão a ter muito azar
sempre com ataques sofrendo.
Vão o tempo percorrendo
nos arredores de Farim
e até que se chegue ao fim
os azares vão aparecendo.

O Garcês se aventurou,
pelo Comandante foi louvado.
Depois de ter rastejado
duas armas apanhou.
A sorte o acompanhou
mas tiveram azar muitos soldados:
depois de dois meses passados,
Varela e seu companheiro
foram feridos num carreiro
quando já estavam curados.

Helicóptero mandaram chamar
e para Bissau os levou.
O Varela na Amura ficou
levando o tempo a coxear.
O Santos, no Hospital Militar,
a operação lhe vai fazendo
12 dias não comendo,
começou a emagrecer
depois de tanto sofrer,
Diogo Augusto ia morrendo.”

********************

É da mais elementar justiça, já que continuamente aqui se fala em Farim, sede do BCAV 490, procurar uma peça literária alusiva, felizmente que ela existe. No dobrar do século, como é do conhecimento dos interessados, a literatura da guerra da Guiné viu uma das suas dimensões reforçada, o género memorial, começaram a aparecer livros de memórias às catadupas em detrimento do romance, novela, conto e até historiografia. “Coisas de África e a Senhora da Veiga”, por José Pais, edição de autor, 2001, é um grande livro de memórias, um documento inusitado pela fala do coração. O então Capitão José Clementino Pais era já um experimentado oficial do Exército: alferes, foi prisioneiro na Índia; depois, combateu para os lados de Nambuangongo; teve seguidamente uma comissão em Cabo Verde, e à quarta foi de vez, arribou à Guiné à frente da CCAÇ 14, feriu-se com gravidade em Farim, seguiram-se três anos de internamento hospitalar. É uma prosa onde não há enxúndia, é tudo económico e hábil, tem recorte de relatório. O desfiar das recordações anda sempre à volta de uma questão central que é cuidadosamente demarcada e depois segue em espiral. São narrativas avulsas que podem navegar entre o sentimental e a bruteza mais dura que a guerra consente. Para quem testou tal prosa, é bem penoso, constrangedor mesmo, diante desta arquitetura de contos reduzidos à medula, quase agrestes na geometria, ensaiar o resumo desta prosa de primeiríssima qualidade.
Fiquemos aqui com uma tocante história de amor, “A Xuxa e o soldado Marquito”.

“O Cabo Sila procurou nosso capitão, coisa de dimensão tamanha se passa na tabanca, envolve pessoal da CCAÇ 14, tropa Mandinga, sediada no perímetro de Farim, e convém esclarecer que quartel no sentido habitual do termo era coisa que não havia: uma arrecadação e um cubículo que servia de gabinete ao capitão, ao 1.º Sargento e a um Cabo ajudante entregue à papelada. Os poucos furriéis habitavam numa casa na povoação e os soldados na tabanca. É nisto que começa a história.

- Então diga Sila. Que se passa?
- Tem mesmo ‘pobrema’ nosso capitão. Tem menininha que gosta mesmo do soldado Marquito e já fugiu de casa do pai três “vez” para ir ter com Marquito!
- Então o que há a fazer é casá-los. Se gostam assim tanto um do outro!?
- Mas, nosso capitão, Xuxa é Fula e Marquito é Mandinga.

E Sila continou:
- Tem ainda outro ‘pobrema’ mais difícil.
- Sim. Diga lá.
- Menininha já casou com sobrinho do ‘Homem Grande’ de Jumbembem e ‘Homem Grande’ veio ontem na coluna para saber o que se passa.

Havia para ali coisa séria e explosiva. Foi chamado Marquito, confirmou tudo mas não tinha 3 mil pesos para casar com a Xuxa. Chamou-se a autoridade religiosa, não havia problema de casar Fula com Mandinga, a questão era devolver o dinheiro ao ‘Homem Grande’ de Jumbembem. À cautela, nosso capitão convocou reunião com toda a tabanca, até o chefe administrativo compareceu. Nosso capitão até cita o Corão. Chegou-se a um compromisso, nosso capitão adianta os 3 mil pesos, Marquito depois pagará em prestações. Nosso capitão, finda a reunião, pergunta a Sila se a reunião tinha corrido bem. 
- Muito bem nosso capitão. Mas agora ‘vai ter pobrema’, vais ter muito soldado a querer casar!

No dia seguinte, o primeiro-sargento, alarmado, comunicou que 27 soldados também queriam casar.
Estabeleceram-se umas regras que o General Comandante-Chefe, Spínola de seu nome, aprovou e casaram-se todos.
Só os que ainda não tinham ‘mujer’.”

E já que estamos em maré literária, é igualmente de elementar justiça abrir alas a um documento que faz parte da História, o diário da CCAÇ 675, conhecido como o 1.º Volume de “Dois Anos de Guiné”. É a todos os títulos um texto singularíssimo. Será porventura o primeiro diário de uma unidade militar na Guiné, meticulosamente escrito e documentado. Quem lhe deu letra de forma foi um furriel-enfermeiro de nome José Eduardo Reis de Oliveira, JERO assim ficará conhecido. O comandante da companhia era Alípio Tomé Pinto. O livro foi dado à estampa em 1965, em edição pirata, tivesse o Estado-Maior do Exército conhecimento desta ousadia e o hoje General Tomé Pinto passaria por muitos amargos de boca, descaro como este nunca se vira, contar tintim por tintim a história da unidade militar, logo a partir de maio de 1964, viagem a partir de Lisboa, chegada ao estuário do Geba, instrução operacional e em junho, no fim do mês, a companhia vai para Binta, Tomé Pinto ficará conhecido como o Capitão de Binta ou o Capitão do Quadrado.
Logo a descrição do aquartelamento:
“O local tinha uma forma mais ou menos rectangular, limitada por vedações de arame farpado num perímetro de cerca de 800 metros. Na ‘arquitectura’ de Binta avultavam a estrutura enorme de seis grandes barracões que tinham servido para armazéns de mancarra, agora abandonados e cheios de imundícies. Existiam ainda quatro habitações de pedra e cal, pequenas, duas das quais habitadas por famílias indígenas, uma outra onde dormiam os soldados do pelotão do Alferes Sequeira, da CCAV 489, que desde há três meses se encontrava na região, rodeada por bidons cheios de terra e troncos de palmeira, e ainda outra habitada por um indígena funcionário da Casa Gouveia. Os arruamentos eram regulares mas mal cuidados, com montes de lixo por toda a parte.
Disseminada ao longo de um caminho que saía do aquartelamento, estendia-se durante cerca de dois quilómetros a tabanca de Binta, com alguns bons edifícios de adobe e cal, e com muitas moranças, agora quase na totalidade desabitadas. A referir ainda uma importante serração de um metropolitano de nome Ribeiro, na Província há cerca de 30 anos, importante negociante de madeiras”.

Houvera uma receção com tiroteio, Tomé Pinto não está pelos ajustes, inicia a 3 de julho o reconhecimento da região envolvente, vão começar os estragos. População controlada pelo PAIGC anda por ali muito perto. Há nativos que são cercados, recusam a parar, são abatidos. Entra-se na tabanca de S. João. Junto à tabanca foram encontradas uma mala com manuscritos antigos, e três bicicletas, uma delas carregada com um saco de arroz, catanas e ferramentas agrícolas.
A seguir, parte um contingente para uma batida à região de Lenquetó, situada a cerca de 12 quilómetros de Binta:
“Passámos pelo esqueleto carbonizado de uma camioneta da serração de Binta que o inimigo havia destruído há poucos meses.
Às 4.45 horas estávamos perto do nosso objectivo. Ouviu-se por momentos com nitidez no silêncio da noite o ruído característico do pilão. Não muito longe cães latiram. Lentamente, a distância que nos separava de Lenquetó foi percorrida. Às 5.15 horas começou-se o envolvimento da tabanca, instalando-se em meia-lua os dois grupos de combate. Poucos momentos depois, viram-se alguns indivíduos sair caminhando na nossa direcção, sendo-lhes gritado que fizessem alto. Retrocederam rapidamente fazendo fogo de pistola de dentro da tabanca. As nossas tropas abriram fogo e durante alguns momentos 70 armas automáticas crepitaram fragorosamente numa mensagem de morte. A reacção do inimigo embora diminuta fez-se sentir. Um ‘suicida’ descortinou o nosso Capitão em pé e avançou para ele correndo com um ‘canhangulo’ em posição de fogo. Foi abatido depois de meia dúzia de passos”.

Esta mentalidade ofensiva vai continuar, chegam ou louvores, sucedem-se as batidas, os golpes de mão, as emboscadas com êxito, faz-se contacto com a população no Senegal, começam as obras de beneficiação, as forças do PAIGC começam rapidamente a sentir que a vida não lhes corre de feição, toda aquela região era cultivada por população controlada, todo aquele mês de julho vai permitir à CCAÇ 675 um relativo e provisório domínio de terreno.
Nem tudo são rosas, e JERO passa ao papel o que se viveu em 29 de julho de 1964:
“Quando anoiteceu, uma secção comandada por um cabo, foi emboscar-se junto da serração, apenas a 50 metros do aquartelamento, com a missão de aprisionar qualquer indivíduo que viesse a sair da casa de um nativo, que se suspeitava querer passar para os terroristas.
Tinha havido o cuidado de recomendar a todos os soldados para não fazerem fogo, pois se na verdade alguém saísse de tal casa suspeita, não levaria armas. Só em última instância e em caso de fuga utilizariam as armas. Infelizmente, apesar de todas estas recomendações e de não correrem qualquer espécie de perigo do exterior, a fatalidade aconteceu.
Um soldado, já depois da secção instalada, ao deslocar-se por detrás de um colega seu, foi tomado inexplicavelmente por um inimigo e atingido com um tiro à queima-roupa.
O estampido alarmou toda a gente e momentos depois soube-se da triste novidade.
Socorrido o mais rapidamente possível ainda no local do desastre pelo médico e enfermeiro da companhia, logo se verificou ser desesperado o seu estado. Conduzido depois ao posto de socorros do aquartelamento, entrou em coma, vindo a falecer poucos minutos depois.
O infeliz soldado, de nome Augusto Gonçalves, de Santiago do Cacém, veio assim a acabar de maneira estupidamente trágica os seus dias, morto por um próprio colega em que a noite e o medo fizeram disparar precipitadamente a sua G3.
Mas a vida não pára e a nossa missão iria continuar.
Embora com o luto na alma, não cruzaríamos os braços nem nos deixaríamos abater pela fatalidade.
Em breve o inimigo voltaria a sentir a força e a coragem indómita da tropa de Binta. E os resultados obtidos no nosso primeiro mês de operações falavam melhor do que ninguém do valor e da qualidade dos homens da 675”.

Depois desta viagem a um livro de memórias e a um diário (deste, voltaremos a falar) vamos regressar à “Resenha Histórico-Militar da Guiné” neste período de 1964, impõe-se procurar um pouco de luz para perceber como os altos comandos procuraram sustar a sublevação, organizar populações aterrorizadas, contrariar um inimigo ainda mal municiado mas já determinado, em 1964 o PAIGC está posicionado a pé firme na região Sul, a população pulverizou-se, quem ficou debaixo da bandeira portuguesa vive no perímetro dos destacamentos, quase todos eles na orla marítima, os outros, perto da fronteira ou no interior, irão sendo sistematicamente flagelados, instala-se o corredor de Guileje; ainda em 1963, forças do PAIGC atravessaram o Corubal, instalaram-se relativamente perto do Xime, cultivam bolanhas e não estão muito longe do Xitole; e consolidaram posições nas matas do Morés, vão estabelecendo corredores a partir do Senegal. Reconheça-se, entre outros méritos, que esta Resenha Histórico-Militar abre alguma luz sobre o delineamento estratégico de Louro de Sousa e Arnaldo Schulz, em termos de investigação é insuficiente, é certo e seguro que há muito papel nos arquivos dos ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar que precisam de ser pacientemente examinados e sistematizados para se perceber qual o alcance da linha estratégica que os dois primeiros Comandantes-Chefes imprimiram à máquina militar, desde que começou a luta armada até à chegada do Brigadeiro António de Spínola.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 8 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20324: Notas de leitura (1234): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (31) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20333: Notas de leitura (1235): “Astronomia”, por Mário Cláudio; Publicações D. Quixote, 2015 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19925: Notas de leitura (1191): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (12) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Estamos no início das atividades do BCAV 490, o bardo relata os primeiros sinistros, feridos na ocorrência de uma mina anticarro. É coloquial e íntimo, não esquece os nomes, é um cronista sentimental. E flui a memória para esse manancial inesgotável de relatos de minas como de emboscadas. Pois neste exato momento lê-se o cartapácio "A Nossa Guerra", dois anos de muita luta, o histórico da CCAÇ 675 redigidos por dois eméritos confrades do blogue, o Belmiro Tavares e o JERO, aproveita-se aquele dia nefasto de 28 de dezembro de 1964 em que o Furriel Mesquita exalou o seu último suspiro, e como a Companhia do Capitão do Quadrado prontamente reagiu. A associação não é fortuita, em toda esta narrativa de Belmiro Tavares e JERO se fala no Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro e em Unidades da BCAV 490, eram próximos.
Aqui fica a minha homenagem às perdas que ambos tiveram.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (12)

Beja Santos

“Cumprindo a sua missão,
a 489 alinhava.
Feriu-se um rapaz nosso amigo,
quando a mina rebentava.

Muitas escoltas fazia
o José Pombo Cordeiro.
Quem para Bissorã saiu primeiro
foi a 3.ª Companhia.
Nesse tempo não havia
terroristas nesta região.
Passaram-se 18 dias então
e malvados ninguém viu
e a 487 os substituiu
cumprindo a sua missão.

O tempo vai-se percorrendo
e no mês de Outubro estamos
e todas as coisas que passamos
eu aqui vou escrevendo.
Todos nós fomos sofrendo.
Para isso alguém nos mandava.
Em Mansabá me preparava
para os terroristas deixar de ver
e para me vir render,
a 489 alinhava.

Em Bissorã se encontrava
o nosso Capitão Romeiras
e com as suas boas maneiras
a missão desempenhava.
De noite ou de dia mandava
a rapaziada para o castigo,
em busca do inimigo,
mas pouca vez o viram,
e, quando numa emboscada caíram,
feriu-se um rapaz nosso amigo.

Na última viatura ia
o Joaquim António Machado
que pelo ar foi levado
quando a mina explodia.
Ali se feriu o Francisco Maria
que no terreno se deitava
e o 314 gritava
com um ferimento muito forte.
Viu ali pertinho a morte
quando a mina rebentava.”

********************

Com estes feridos e minas, a memória voou para os livros que se têm escrito sobre a CCAÇ 675, contemporânea do BCAV 490. Muito se tem escrito sobre a tropa chefiada pelo Capitão do Quadrado, Alípio Tomé Pinto, também conhecido pelo Capitão de Binta. Esta unidade chegou em 1964 à região de Binta, então as forças do PAIGC e as populações que ele arregimentava movimentavam-se com total liberdade nesta quadrícula. No seu livro “A Nossa Guerra, a história da Ccaç 675”, Belmiro Tavares, de colaboração com José Eduardo Reis de Oliveira, edições dos autores, maio de 2017, fazem um histórico, um misto de diário, de agenda, de considerações soltas, sobre a sua presença em Binta e a amizade que ficou até aos dias de hoje. É impressionante a movimentação operacional que desenvolveram a partir de junho de 1964, limpeza das estradas cheias de abatises, destruição dos locais de residência das forças do PAIGC, emboscadas, golpes de mão, operações em Sambuiá, a abertura de estrada para Farim e igualmente para Guidage, havia jornal de caserna, acompanhamento médico para gente que vinha do Senegal. Tudo se lê e deixa-nos empolgados ao ver a consideração desmedida, a confiança incondicional que toda a Companhia depositava no Capitão do Quadrado. Combatiam e faziam obras de beneficiação, procuravam ajudar as populações, dava-se aulas regimentais para superar o analfabetismo de um conjunto de praças, tiveram dias memoráveis e dias nefastos.
Quanto a estes, ele relata um drama vivido em 28 de dezembro de 1964, é uma descrição pormenorizada e contextualizada:
“Sabíamos, por informações colhidas no Senegal, que os guerrilheiros de Sambuiá não queriam lá mais população não-combatente para beneficiarem de mais liberdade de movimento. Mantinham a população nas aldeias limítrofes, prometendo-lhes a segurança necessária; assim seria mais fácil prevenir-se, sempre que a tropa de Binta se aproximasse. Nós éramos os únicos a apoquentá-los.
Tudo foi feito para não denunciar a nossa presença, naquelas paragens: camuflagem, aproveitando as zonas de vegetação mais densa ao longo do rio e sem provocar ruídos desnecessários.
Apesar dos nossos esforços, eles aperceberam-se das nossas movimentações, dispararam sobre nós e obtiveram a nossa resposta no mesmo tom, mas com melhor pontaria; perseguimo-los e fizemos três prisioneiros, vários feridos e alguns foram abatidos.

Sem a surpresa habitual, não seria aconselhável atacar Udasse, já fora de horas. Iniciámos o regresso a Sansacutoto; pouco depois das 12 horas, as viaturas iniciaram a marcha rumo a Binta com todos os operacionais a bordo; seriam umas 12h30, quando o rebentamento medonho, um estrondo anormal, fez parar a coluna; toda a gente saltou para as bermas da estrada, tomando posição uns metros fora da via. O que mais preocupava era não saber claramente o que tinha acontecido; ninguém queria acreditar que se trataria de uma mina anticarro; a coluna era constituída por 10 viaturas e o espaço entre elas era demasiado grande; a primeira viatura e a última, devido à poeira, estavam separadas por cerca de mil metros. Lá à frente, os guerrilheiros, emboscados ao longo da estrada, desencadearam uma violenta emboscada. Os nossos atiradores responderam na máxima força e em breve fizeram calar as armas adversárias. Lá na frente, uma grossa coluna de fumo espesso e assustadoramente negro subia pelos ares; via-se uma viatura que, ardendo, se desfazia em chamas; havia feridos, mas lá atrás não se sabia quantos nem a gravidade das lesões.

Em murmúrio, foi passando a dolorosa notícia que uma minha potente explodira debaixo de um Unimog, provocando vários feridos; logo surge a nova e mais brutal e atroz: há um morto, o Furriel Mesquita, natural de Famalicão.
O nosso médico, Dr. Martins Barata, tal como por vezes acontecia, naquele dia acompanhou a tropa no mato. No meio daquele desastre, ele foi de uma utilidade extrema. Com tantos feridos, ele e os enfermeiros não tinham mãos a medir. Foi logo pedido um helicóptero e duas avionetas; como a nossa pista ainda não se encontrava devidamente operacional, as avionetas aguardaram em Farim que o helicóptero chegasse com os feridos e o morto.
Depois de um jantar mal deglutido e sem vontade, o enorme capitão reuniu com os seus colaboradores mais directos; nem uma palavra sobre o que acontecera naquele malfadado dia; aparentemente eram águas passadas, mas uma dor imensa, tristeza infinita estavam notoriamente espelhadas nos seus olhos. Agora, o essencial era recuperar o ânimo da rapaziada, moralizar aquela gente”. 

Como se disse, trata-se de uma descrição minuciosa, lista-se o morto, os sete feridos em combate, fala-se do Soldado Atirador António Filipe que enquanto esteve internado no Hospital Militar Principal concluiu o quinto ano liceal, o que lhe proporcionou um emprego na Mague, onde trabalhou até à reforma, ficara com uma incapacidade de 77%. Houvera comportamentos de bravura, abarcando praças europeias e guineenses.
A tropa pôs-se logo em movimento, partiram na manhã seguinte para uma emboscada. “Pretendia-se demonstrar ao inimigo que não era um desaire que nos quebrava o ânimo, embora aquele contratempo fosse tremendamente doloroso e marcante; não seria facilmente esquecido; ainda hoje, volvidos mais de 50 anos, quando relembramos aquele dia, a voz fica embargada e a alma dilacerada. Pela primeira vez, com todos os operacionais no mato, o excelso Capitão de Binta ficou no quartel; quando saíam dois pelotões… ele estava sempre ao nosso lado; mesmo quando saía só um grupo de combate, ele quase sempre nos acompanhava. Com uma dor de alma inimaginável”.

(continua)

Aguarela do pintor Manuel Botelho, viatura destruída por uma mina anticarro, coleção de Mário Beja Santos.
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Notas do editor

Poste anterior de 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19907: Notas de leitura (1189): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (11) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19916: Notas de leitura (1190): "Memórias de África, Angola e Guiné", pelo General José de Figueiredo Valente; Âncora Editora, 2016 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19659: Notas de leitura (1166): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Recomendo vivamente a leitura da obra assinada por Belmiro Tavares e JERO. Não se pode ficar insensível à fidelidade, à camaradagem e solidariedade que estes homens mantêm entre si, extravasa encontros regulares, entreajudam-se, procuram-se depois da natural diáspora em que no fim da comissão (1966) muita gente procurou dar outros rumos à vida. Toda a documentação sobre a Companhia de Binta é motivo de estudo: como fora possível chegar a tanto abandono aquele ponto da região norte, tão sensível, já que Guidage era um quase ponto de fronteira, ali perto passava um corredor por onde as forças do PAIGC iam até Sambuiá e depois ao Morés?
Pode-se avaliar que havia um certo equilíbrio de armamento entre guerrilheiros e contra guerrilheiros; e estão aqui os dados flagrantes da condição de milhares de guineenses forçados a abandonar as suas tabancas para não serem colhidos entre os dois fogos e permanentemente intimidados pela guerrilha; e ressalta uma história sublime, a relação com o Capitão do Quadrado, momentos há, na leitura deste cartapácio, e nos outros livros que têm a ver com Tomé Pinto e os seus homens na Guiné em que somos forçados a reconhecer que muitas vezes a realidade é mais potente e grandiosa que os voos da imaginação, em literatura memorial.

Um abraço do
Mário


Binta, Guiné, A Companhia do Capitão do Quadrado, novas memórias (3)

Beja Santos

O livro intitula-se “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017. A capa é surpreendente, como se escreve: “Uma bonita abatis na estrada de Farim. Esta não cumprira a sua missão: impedir a passagem; as viaturas passavam por baixo!”. No blogue, já tive oportunidade de me debruçar sobre três livros referentes ao historial da CCaç 675: primeiro, o galvanizante “Diário de JERO”, um relato feito pelo enfermeiro da Companhia de tudo quanto se vai passando, e tudo quanto se vai passando gravita à volta de um oficial bem-amado, Alípio Tomé Pinto, que irá ficar conhecido pelo nome de “Capitão do Quadrado”, um documento publicado à sorrelfa em 1965, podia ter custado a carreira deste oficial que chegou a general; seguiu-se outra obra “Golpes de Mão’s”, se apresentava como o segundo volume do diário, leitura estimulante, mas não chegava ao sopro anímico do primeiro; terceiro, a biografia do general Tomé Pinto, da responsabilidade da jornalista e investigadora Sarah Adamoupoulos. O impulsionador deste quarto documento é um homem sentimental que ainda hoje nos impressiona tanto pela memória dos acontecimentos vividos, como pela sua arte de contar, não é a primeira vez que o oiço de voz embargada e lágrimas a bailar nos olhos, Binta e arredores não lhe saem do coração.

O fôlego, o ritmo da escrita do primeiro ano da comissão, vai conhecer quebras acentuadas na narrativa do segundo ano. A primeira condicionante é de que um homem não é de ferro, era inteiramente impossível manter aquela passada vertiginosa em limpezas de estrada, acolhimento das populações em fuga, fazer patrulhamentos ofensivos, operações e colunas de reabastecimento a Guidage. A segunda passará com uma alteração logística de tomo, a CCAÇ 675 é forçada a manter um pelotão em Guidage, começa a história do cavalo do inglês, o devaneio de que se pode fazer o mesmo com muito menos.

Fazem-se colunas, volta-se a Sambuiá, mantêm-se as batidas constantes. Na nota do diário de 12 de maio de 1965 lembram-se os três mortos, o que se passou, a frescura física já não é a mesma, a vida operacional vai-se mitigando, entenderam os autores apresentar uma galeria de retratos dos que mais se sobressaíram, uns mais desenvoltos ou desenrascados, outros introvertidos, são notas ternas sobre o Lua, o Aguardente, o Engrácia, o Moreira, o Eurico, o Vendas Novas, e muitos outros. O médico da Companhia também tem honras de destaque. O diário é mais sóbrio, resumido, aliás começam a aparecer súmulas mensais. O moral da tropa é oscilante, por motivos fúteis surgem quezílias. Um dos narradores, Belmiro Tavares, conta a morte do Nascimento que pisara uma mina antipessoal. Em Guidage, aconteceu algo de tétrico, fugira um prisioneiro, alguns soldados do pelotão espancaram até à morte o soldado Fó Gomes, houve decisão do tribunal militar. A guerrilha não perdeu totalmente a iniciativa, em agosto de 1965 ataca Guidage. O Capitão do Quadrado volta de férias e logo a seguir parte para fazer o curso do Estado-Maior, o novo Comandante é o Tenente Cruz. Partiu o BCAV 490, chegou o BART 733, vão começar os contenciosos com o Major Azevedo. Chegou a luz elétrica a Binta, as batidas e patrulhamentos entre Binta e Guidage são constantes, há consciência de que o PAIGC quer aumentar a perturbação com a afluência das populações que abandonam o Senegal e que pretendem acolher-se ao setor de Binta. Nisto, explode uma bomba numa festa em Farim, mortos e feridos aos montes, a maioria crianças e mulheres. Um velhinho Dakota faz várias viagens por essa noite para recolher os feridos às centenas. A PIDE executa prisões, o gerente da Sociedade Comercial Ultramarina em Farim, um madeireiro, o bailarino, um chefe do grupo de milícias, mas também funcionários da Administração de Farim, do Centro de Saúde, da Central Elétrica. Volta-se a Sanjalo, há notícias de um acampamento clandestino. Segue-se a história do soldado Joaquim Lopes Henriques que ficou com um braço esfacelado, uma história que ficou para a vida inteira. Crescem as tensões entre a CCAÇ 675 e o Major Azevedo. E assim se chega a 1966. Já não há diário, há resumos mensais, suspira-se pelo final da comissão. Recorda-se com saudade o soldado n.º 108 Mamadu Bangoran, um Fula valoroso, comportara-se heroicamente retirando das chamas vítimas de uma mina anticarro entre labaredas e ferros retorcidos, não temendo a explosão do depósito de gasolina, retirou todo o material de guerra que por ali se espalhava. O Capitão do Quadrado chamou-o para o elogiar e Bangoran que era um muçulmano heterodoxo pediu licença a Tomé Pinto para se embebedar.

A CCAÇ 675 passou à disponibilidade em 4 de maio de 1966 mas está viva da costa, as páginas finais deste cartapácio relatam encontros, episódios pessoais, lançamento de livros, gente que se dispersou pelas sete partidas do mundo, falecimentos, doenças. Todos os acontecimentos à volta do Capitão do Quadrado são pretexto para ajuntamento dos seus homens, caso do lançamento da sua biografia que ocorreu em Lisboa em abril de 2016. O álbum fotográfico completa a obra. Foram dois anos de muita luta, escrevem insistentemente os autores, e dizem concretamente porquê. Mas o que sobressai, o que ficará para todo o sempre é um caso particular de devoção ao Comandante de Companhia, isto para já não esquecer aqueles primeiros meses de turbilhão que transformaram a região de Binta de corredor livre do PAIGC num caso de êxito de contraguerrilha, e por isso se percebe muito bem a ligação inquebrantável entre o Capitão do Quadrado e os seus devotados militares.
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Nota do editor

Poste anteriores de:

25 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
e
1 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19639: Notas de leitura (1165): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19639: Notas de leitura (1165): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Este cartapácio é uma obra de paixão. Não há memória, em toda a literatura da guerra colonial, de uma devoção tão sentida por um coletivo ao seu capitão, são-lhe tecidos todos os encómios, é temerário e visionário, sábio e previdente, líder de tal envergadura jamais abandonou ao longo de mais de meio século, a consideração dos seus subordinados. É tocante ver-se a agenda dos encontros, a entreajuda, a presença nos eventos dos filhos de quem já morreu, divulgação de notícias de quem está a merecer cuidados e precisa de ser acompanhado.
E lendo de fio a pavio o cartapácio assimila-se o que foram os horrores do início daquela guerra, os casos de jogo duplo, um deles será contado no episódio seguinte, como se procurou arredar a guerrilha, ela recuou mas não desesperou, e a comissão da CCAÇ 675 decorreu ainda numa fase em que o Senegal não se comprometera a fundo em deixar passar homens e armamento, e este era cada vez mais sofisticado.

Um abraço do
Mário


Binta, Guiné, A Companhia do Capitão do Quadrado, novas memórias (2)

Beja Santos

O livro intitula-se “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017. A capa é surpreendente, como se escreve: “Uma bonita abatis na estrada de Farim. Esta não cumprira a sua missão: impedir a passagem; as viaturas passavam por baixo!”. No blogue, já tive oportunidade de me debruçar sobre três livros referentes ao historial da CCaç 675: primeiro, o galvanizante “Diário de JERO”, um relato feito pelo Enfermeiro da Companhia de tudo quanto se vai passando, e tudo quanto se vai passando gravita à volta de um oficial bem-amado, Alípio Tomé Pinto, que irá ficar conhecido pelo nome de “Capitão do Quadrado”, um documento publicado à sorrelfa em 1965, podia ter custado a carreira deste oficial que chegou a General; seguiu-se outra obra “Golpes de Mão’s”, se apresentava como o segundo volume do diário, leitura estimulante, mas não chegava ao sopro anímico do primeiro; terceiro, a biografia do General Tomé Pinto, da responsabilidade da jornalista e investigadora Sarah Adamoupoulos. O impulsionador deste quarto documento é um homem sentimental que ainda hoje nos impressiona tanto pela memória dos acontecimentos vividos, como pela sua arte de contar, não é a primeira vez que o oiço de voz embargada e lágrimas a bailar nos olhos, Binta e arredores não lhe saem do coração.

A CCaç 675, se atendermos à vertigem da atividade operacional dos primeiros meses, impôs-se pelo espírito ofensivo, pondo os guerrilheiros a respeito, limpou os caminhos, encetou obra em Binta, todo e qualquer local pertencente ao setor foi vasculhado. Área delicada, no entanto: muita população fugira para o Senegal, estava sujeita às ameaças do PAIGC, vinha cultivar, digamos que em terra de ninguém, aí se encontravam com as patrulhas de Binta, angústia como esta era possível nos primeiros anos de guerra, e em muitos pontos da Guiné. O primeiro ano da comissão espelhou essa capacidade ofensiva que foi sendo creditada nos guineenses que tinham fugido para o Senegal. No segundo ano da comissão, são frequentes os relatos de guineenses que se apresentam em Guidage intencionados para refazer as suas vidas na Guiné, confiam na Companhia do Capitão do Quadrado.

Com uma mão na espada, a outra no arado, combatia-se e procurava-se pôr Binta num brinquinho, a par das aulas regimentais, atendimento sanitário de populações da Guiné e do Senegal, e muito mais. Andam num virote, nesse primeiro ano, irão várias vezes à península de Sambuiá, percorrem Sanjalo, Ufudé, Fodé-Siráia, Genicó Mancanho, muitos cuidados entre a bolanha de Cufeu e Guidage, limpa-se a estrada de Farim a Binta, percorre-se Cansenha, Caurbá, os autores são incansáveis a dar-nos pormenores: golpe de mão a Canicó, os ferimentos do temerário Capitão de Binta, que andava sempre em movimento, vai-se a Lenquetó e Temanto, percorre-se a estrada até Bigene, emboscadas, patrulhas, nomadizações, destroem-se acampamentos precários, ruma-se a Banhima, faz-se ação psicossocial na fronteira, narram-se dramas de toda aquela população entalada entre dois fogos. Mesmo desalojado, o PAIGC não deixa de atribular a vida da CCAÇ 675, com abatises, queimando pontões, flagelando à distância.

Há um jornal de parede, nele em 8 de dezembro de 1964, alguém homenageia a sua mãe, aqui fica um fragmento:
“Nas circunstâncias actuais da minha vida, que por ser dura e difícil, mais maturidade me vai dando, em que melhor aprecio a formação que me deu, grato me é registar o amor, a personalidade, a pureza da minha querida Mãe que, diariamente, com as suas orações e as suas notícias, com as suas palavras amigas, me vai dando coragem para encarar com resignação cristã, esperança e optimismo, a separação, as dificuldades de uma guerra em terreno primitivo e selvagem.
É principalmente numa numerosa família como a constituída pelos 160 elementos de uma Companhia, que vivem em comum, que damos conta do que significa para cada um de nós a sua Mãe. Nos momentos mais difíceis, no perigo, na dor, na doença, um apelo mudo, a que nos agarramos com força, parte dirigido a quem nos deu a vida.
Num dia como este, em que todas as Mães sentem à sua volta todo o carinho dos filhos, eu, cá de longe, rendo-lhe o preito da minha estimada, da minha admiração.
Deus permita que continue assim, por muitos anos, a tornar felizes todos os que vivem perto de si. Transmita à minha querida Avó os parabéns, por ter dado ao mundo tal filha.”

Este quinhão de memórias também destaca aspetos facetos, brejeirices, comicidades. Havia o 1.º Cabo Enfermeiro António Martins a quem os habitantes das aldeias senegalesas chamavam Dr. Martins.
Fazia-se acompanhar pelo Soldado Machado que sentia ganas de ser enfermeiro. O Martins dava-lhe a bolsa para carregar, um grande saco de lona, o Machado seguia-o docilmente.
Eis o episódio:
“Com o andar do tempo, o Machado começou a fazer curativos e até dava injecções aos nativos. Um dia, acabadas as consultas, o Martins conferiu o material de serviço, verificou que faltava uma agulha de seringa e fez o reparo ao Machado: ‘Falta aqui uma agulha!’.
O Machado esbugalhou os olhos, concentrou-se, deu uma palmada na testa, e saiu, correndo, em direcção à bolanha que marcava a separação entre a Guiné e o Senegal, abeirou-se de uma das últimas mulheres que haviam sido tratadas, levantou-lhe a saia e sacou-lhe do traseiro a agulha que ela levava ali espetada. Sempre a correr, voltou ao quartel e eufórico informou o Dr. Martins: Está aqui a agulha que faltava.”

Este outro episódio ocorreu no dia 18 de julho de 1964, houve patrulhamento ofensivo em Sanjalo, a tropa estafada seguiu-se para Quenejara, novo combate, esfalfados, pediram ao telefonista para que insistisse com as viaturas a chegarem rapidamente, o telefonista avisa que o informaram que estão prestes a sair, o capitão manifesta o seu descontentamento:
“- Diz-lhes que eu mando tudo bardamerda! O telefonista, um alentejano castiço que carregava nos ‘rr’ teve vergonha de usar aquela zombaria em frente do seu capitão, fazendo uso do seu sotaque, transmitiu via rádio: 
- Charly Óscar Mike Delta Tango deste está muito chateado! 
- Não estou chateado! Mando tudo bardamerda! 
O telefonista repetiu aquela mensagem um tanto envergonhado: 
- Charly Óscar Mike Delta Tango deste manda tudo borrdamerrrda!”

Um primeiro ano de arromba, passou-se meio século e estes cronistas passeiam-se permanentemente por esta região de Binta e não vacilam em dizer que a Companhia do Capitão do Quadrado não tinha rival. Esfalfaram-se, surgiram mortos e feridos e muitos doentes, o Capitão do Quadrado irá partir para fazer um curso do Estado-Maior, o BCAV 490 parte, surgirão problemas com a unidade que os vem render, as relações Farim-Binta vão ser muito tensas.

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 25 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19630: Notas de leitura (1164): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (79) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 25 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2019:

Queridos amigos,
É um tomo de mais de 500 páginas, primeiro diarístico e depois mensal, 1964, Binta completamente controlada por adeptos do PAIGC, o seu potencial fogo ainda é precário, como precária é a sua capacidade de aterrorizar, Alípio Tomé Pinto tem uma Companhia bem preparada, as primeiras semanas correm a um ritmo enlouquecedor, não tivesse o essencial desta trama aparecido em obras anteriores e julgávamos tratar-se de um romance de aventuras.
Lê-se e medita-se: como a guerrilha cresceu de 1963 para 1964, tudo parte e irradia do Morés, bem se procurou desalojar a força militar do PAIGC e a sua população, o insucesso por completo.
Belmiro Tavares é de uma enorme coragem, diz desabridamente que as Unidades à volta mal saíam dos quartéis, permitiam uma quase total liberdade às forças do PAIGC.
O homem inspirador de tudo, que nesta obra é sempre incensado chama-se Alípio Tomé Pinto, permanentemente adorado por quem combateu às suas ordens naquele rincão da Guiné.

Um abraço do
Mário


Binta, Guiné, A Companhia do Capitão do Quadrado, novas memórias (1)

Beja Santos

O livro intitula-se “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017. A capa é surpreendente, como se escreve: “Uma bonita abatis na estrada de Farim. Esta não cumprira a sua missão: impedir a passagem; as viaturas passavam por baixo!”. No blogue, já tive oportunidade de me debruçar sobre três livros referentes ao historial da CCaç 675: primeiro, o galvanizante “Diário de JERO”, um relato feito pelo enfermeiro da Companhia de tudo quanto se vai passando, e tudo quanto se vai passando gravita à volta de um oficial bem-amado, Alípio Tomé Pinto, que irá ficar conhecido pelo nome de “Capitão do Quadrado”, um documento publicado à sorrelfa em 1965, podia ter custado a carreira deste oficial que chegou a general; seguiu-se outra obra “Golpes de Mão’s”, se apresentava como o segundo volume do diário, leitura estimulante, mas não chegava ao sopro anímico do primeiro; terceiro, a biografia do General Tomé Pinto, da responsabilidade da jornalista e investigadora Sarah Adamoupoulos. O impulsionador deste quarto documento é um homem sentimental que ainda hoje nos impressiona tanto pela memória dos acontecimentos vividos, como pela sua arte de contar, não é a primeira vez que o oiço de voz embargada e lágrimas a bailar nos olhos, Binta e arredores não lhe saem do coração.

Entendeu Belmiro Tavares, de colaboração com JERO, regressar ao tempo dos acontecimentos, começa quase como a forma de um diário, de uma agenda volumosa, pretende contar tudo o que aconteceu, relembrar factos desagradáveis, e aí mostra-se inabalável na descrição até de atos irresponsáveis, fraquezas várias, comportamentos impensados.

Seguindo uma cronologia convencional, temos a chamada para Mafra, a recruta e a especialidade em Mafra, tudo em 1963. No início de 1964, Belmiro Tavares está no RI 16, em Évora, onde em abril se forma a CCaç 675, inicialmente o seu futuro parecia talhado para Moçambique, dá-se a mudança de rumo para a Guiné. Convém não esquecer que por essa época se estavam a precipitar acontecimentos na colónia, tudo se agravava, Arnaldo Schulz pedia mais efetivos, alguns foram-lhe concedidos, inclusive meios aéreos. O Uíge leva-os até Bissau, a narrativa recorda uma vez mais que os oficiais e os sargentos iam bem instalados e as praças viajavam em condições imundas, nas entranhas do barco, escuras e fedorentas, numa atmosfera pestilencial. Estamos em maio, chega-se à Guiné, os oficiais ficaram alojados num avelhantado prédio sem água corrente, os soldados de novo alojados em péssimas condições, camas era coisa que não havia.

Da primeira à última página deste relato que excede as 500 páginas, a figura central, carismática, tratada com todos os encómios, é o capitão do quadrado, o autor recorda que nenhum dos homens da CCaç 675 veio a sofrer do síndroma pós-traumático de guerra, a sua unidade militar era a gloriosa, era e continua a ser. Em junho, rumam para Binta, nesse tempo a guerrilha toma praticamente conta de toda a região, cultiva placidamente, do Senegal, através de Dungal avança-se para Sambuiá e daqui para o Oio, será esta a rota preparada por Osvaldo Vieira para receber Amílcar Cabral e Gérard Chaliand quando ambos visitam a região, em 1964, o livro de um dos mais eminentes historiadores dos conflitos revolucionários do século XX será publicado no ano seguinte, na Maspero. Tomé Pinto pretende atrair populações a Binta e limpar o seu setor até Guidage. E o leitor imediatamente começa a ouvir falar em Sanjalo, Lenquetó, Caurbá, e outros pontos de constante visita.

O diário da guerra abre com uma descrição de Binta e no dia 3 de julho abrem-se as hostilidades, visita-se a Tabanca de S. João, a 4 quilómetros e depois Genicó Mandinga. População em fuga, há tiros, a tropa apercebe-se que toda aquela gente vive o drama de ter que tomar um partido, crueldade não falta, mesmo que se fuja para o Senegal há sempre ameaças, é preciso estar do lado da guerrilha, há aldeias queimadas, picadas intransitáveis. No dia seguinte, é o batismo de fogo, em Lenquentó, descobre-se que a picada para Guidage está polvilhada de abatises.
No adianto do relato, Belmiro Tavares explica-nos o funcionamento do quadrado:
“Saindo a pé do quartel, normalmente em noite escura, seguíamos em fila indiana; ao amanhecer, se aconselhável, passávamos a duas filas: os dois pelotões deslocavam-se lado a lado. Quando nos aproximávamos de um local potencialmente mais perigoso, ou havendo contacto com o inimigo, em escassos segundos, formávamos o nosso quadrado. Esta formação de combate era, para nós, muito querida, porque nos permitia grande poder de fogo em todas as direcções. Caminhar em fila, no meio do mato, entre árvores ou arbustos, no meio do capim, muitas vezes mais alto do que nós, não era tarefa fácil e o homem da frente tinha de ser substituído com alguma frequência. Caminhar pelas matas em quadrado, é uma tarefa muito mais desgastante porque a linha da frente tem de abrir 16 trilhos… Apenas tantos quantos os homens das duas secções que as constituem. Se seguíssemos em duas filas paralelas e se se tornasse obrigatório formar o quadrado fazíamo-lo em dois tempos: as duas secções da frente, uma de cada pelotão, formavam uma linha de 16 homens; as duas secções seguintes afastavam-se lateralmente uma da outra, colocando-se no enfiamento de dois extremos da linha da frente; as duas últimas secções formava, em simultâneo, a linha da retaguarda daquela hábil e eficiente formação de combate.
Progredir em quadrado no meio do matagal era difícil e extenuante; fazê-lo em corrida e debaixo de fogo, era dose para leão. Rodar o quadrado em velocidade, sem desalinhar (como se no cruzamento das diagonais houvesse um eixo vertical) para que enfrentássemos adversários sempre com uma frente de 16 atiradores, era tarefa hercúlea. A verdade é que fazíamos aquilo em absoluta sincronia. Se uma das laterais era atacada em força, a frente e a retaguarda alinhavam com esse lado e logo atacávamos com uma linha de 40 combatentes. Se fossemos atacados pela retaguarda, o quadrado não rodava; todos fazíamos meia volta e, em quadrado, logo atacávamos, afugentando os guerrilheiros. Estas mudanças bruscas eram uma grande surpresa para eles. Por vezes, o nosso sábio capitão e os subalternos entendiam que ainda não era hora de mudar a formação e já um outro soldado alertava os oficiais para se proceder à alteração. Era difícil e cansativo mas era preferível andar em quadrado e ter segurança do que procurar facilidade que só nos traziam perigo. As secções de cada pelotão rodavam as posições sempre que saíamos para o mato, para que não fossem sempre os mesmos a enfrentar o maior sacrifício, encabeçando o quadrado. Cada secção sabia, em cada dia, qual era o seu lugar na coluna. Se saíamos nas viaturas a ordem era a mesma”.

E vamos entrar agora num rodopio operacional tão persistente, tão atuante, que o PAIGC, à cautela, abandona todas as posições que detinha na região de Binta.

(continua)



Belmiro Tavares, o primeiro à direita, segue-se o  JERO, o comandante do navio e Virgínio Briote, um contemporâneo da CCaç 675, fotografia já existente no nosso blogue (, publicada aquando da entrada do Belmiro Tavares, em 1/11/2009, para a Tabanca Grande), A foto é do JERO.
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Nota do editor

Último poste da série de22 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19610: Notas de leitura (1161): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (78) (Mário Beja Santos)