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quinta-feira, 21 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19607: In Memoriam (342): Fiquei muito chocado com a morte do Jorge Rosales (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)


Comandante Jorge Rosales
Foto: Manuel Resende


1. Mensagem de Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), datada de 20 de Março de 2019, com uma dedicatória ao já saudoso nosso camarada Jorge Rosales que nos deixou recentemente:


No dia 19 de Fevereiro de 2019 morreu o Jorge Rosales

Fiquei muito chocado com a morte do Jorge Rosales, tinha acompanhado o seu internamento no hospital, por telefone, enquanto ele o pôde atender, depois o amigo Manuel Resende deu-me algumas informações sobre intervenções cirúrgicas a que foi sujeito, que não eram boas notícias. Como ele era um homem grande com espírito forte e uma compleição física avantajada e robusta pensei que resistisse. Fui adiando a minha ida a Lisboa para o visitar no hospital, entretanto morreu e eu senti uma mágoa muito grande por nunca lhe ter feito essa visita.

Não fui ao funeral pois achei que dum amigo, se pudermos, com a discrição necessária, devemos despedir-nos em vida. Somente hoje ganhei coragem para falar dele e estas palavras são parte do meu luto para me libertar da tristeza que me causou a sua perda.

Tínhamos muitas afinidades, um pouco como tinham no passado a Galiza e Trás-os-Montes, no trabalho, na pobreza, no isolamento, na emigração, em muitos vocábulos e no carácter das suas gentes. Ele era um citadino a morar na linha do Estoril mas com profundas raízes rústicas galegas que herdara dos pais, eu um camponês, nascido e criado em Trás-os-Montes. O Jorge, ele disse-me, gostava muito de ler os textos que eu escrevia sobre Brunhoso, a minha aldeia, afinal as aldeias galegas de antigamente não eram muito diferentes.

Antes de adoecer tivemos ainda bastantes conversas por telefone

Com alguns camaradas dos Bandalhos, almoçámos um dia na Taberna do Valentim, em Viana do Castelo, com muitos camaradas almoçámos um dia em Algés na Tabanca da Linha que tu dirigias, Grande Comandante, com o Manuel Resende, antes também com o José Manuel Matos Dinis.

Disseste-me algumas vezes que um dia irias a Brunhoso e convidaste-me a ir à Galiza onde ainda tinhas propriedades rústicas e ao Couço no Ribatejo, onde tinhas casa e uma vinha que produzia um pipo de vinho, de que tinhas tanto orgulho. Algumas vezes me prometeste uma garrafa desse vinho, partiste sem ma dar.

Foram poucos anos mas tivemos um convívio bom e saudável.
Gostei muito de te conhecer.

Até sempre Comandante Rosales(*)

Francisco Batista
____________

Nota do editor

(*) Vd. poste de 22 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19517: In Memoriam (340): Até sempre, 'comandante' Jorge Rosales (1939-2019)

Último poste da série de 6 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19555: In Memoriam (341): Falecimento, no passado dia 3 de Março, do 1.º Sargento João da Costa Rita da CART 2732 (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19236: Em bom português nos entendemos (17): os vocábulos "sinceno" e "sincelo" no nosso blogue e no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa


Do sítio brunhoso.net (com a devida vénia...)

1. Caros/as leitores/as: o nosso blogue, a caminho dos 15 anos de idade, dos  20 mil postes publicados  e dos 11 milhões de visualizações de páginas, é uma fonte de informação e conhecimento sobre a Guiné-Bissau e a guerra colonial de 1961 a 1974... 

É um blogue coletivo de partilha de memórias (e de afetos), entre combatentes (de um lado... e do outro, se bem que mais de um lado do que do outro...). E edita-se em português. Tanto quanto possível, "em bom português"... E é visitado por gente de todo o mundo, e em especial do mundo lusófono, dos EUA à Austrália, de Portugal à China...De facto, é em português que nos entendemos, de Lisboa a Bissau, de Brasília a Luanda, da Praia a Maputo...

Não deixa de ser curioso assinalar que os nossos dicionários "on line" (ou em linha), como é o caso do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa também vêm "pescar nas nossas águas"... O nosso blogue (Luís Graça & Camaradas da Guiné ou blogueforanadaevaotres.blogspot.com) é, com alguma frequência, citado pelo Priberam...

É o caso, por exemplo, do regionalismo "sinceno", usado num texto do nosso camarada Francisco Baptista sobre o Natal na sua terra, Brunhoso, concelho de Mogadouro, Trás-os-Montes (*).  Aqui fica o registo do vocábulo e o seu significado,,,, Outros exemplos se seguirão em futuros postes desta série. (**)



2.  Francisco Baptista > O Natal em Brunhoso  > ... as oliveiras cobertas de sinceno...

(...) No dia 24, dia de Consoada, segundo as leis da Santa Madre Igreja, que a terra acatava,  era dia de jejum e abstinência.

Por ser o tempo da apanha da azeitona, levantávamo-nos bem cedo, logo ao alvorecer e andávamos 3 ou 4 quilómetros até às arribas do Sabor onde se situavam os olivais, plantados em socalcos como as vinhas do Douro.

Dias frios, desagradáveis por vezes, pela humidade, pelo nevoeiro com as oliveiras cobertas de sinceno. Aguentávamos, que remédio, a colheita da azeitona tinha que ser feita,  fizesse calor ou frio. Não havia almoço ou merenda, era dia de jejum e abstinência. (...) (*)

3. Comentário dos nossos leitores (e camaradas da Guiné):

(i) Alberto (Abrunhosa) Branquinho: 

(...) Achei engraçada a referência ao "sinceno". É que na minha terra (Foz Côa) chamamos-lhe "sincelo". Consultando o Dicionário Porto Editora, constato que ambas as palavras designam o mesmo: " Pedaços de gelo suspensos das árvores e dos beirais dos telhados...". Só que não são "pedaços de gelo", são gotas e gotas congeladas, como que paradas no tempo e no espaço, à espera de caírem. Quem conheça o Alto Douro (agora Douro Superior...) só na Primavera e Verão, não imagina que isso acontece por aquelas terras. (...) (*)

(ii) Carvalho de Mampatá:

(...) Eu, apesar de ter já experimentado, durante uma semana, o trabalho de varejador de azeitona, em Souto da Velha, não conhecia o vocábulo "sinceno", mas tendo consultado o dicionário, fiquei a saber que não é coisa boa e que tive a sorte de o não apanhar, por lá. (...) (*)

4. O que diz o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa:

sinceno | s. m.

sin·ce·no |ê|

substantivo masculino

[Portugal: Trás-os-Montes] Pedaços de gelo suspensos dos beirais dos telhados, das árvores ou das plantas, resultantes da congelação da chuva ou do orvalho, geralmente em situações de nevoeiro. = SINCELO

"sinceno", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/sinceno [consultado em 26-11-2018].

Esta palavra em blogues... Ver mais

... as oliveiras cobertas de sinceno .. Em blogueforanadaevaotres.blogspot.com

"sinceno", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/sinceno [consultado em 26-11-2018].

sincelo | s. m.

sin·ce·lo |ê|
(origem obscura)

substantivo masculino

Pedaço de gelo suspenso dos beirais dos telhados, das árvores ou das plantas, resultante da congelação da chuva ou do orvalho, geralmente em situações de nevoeiro (ex.: a vegetação amanheceu toda coberta de sincelo). = CARAMBINA, SINCENHO, SINCENO

"sincelo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/sincelo [consultado em 26-11-2018].

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de dezembro de 2013 >  Guiné 63/74 - P12500: Conto de Natal (17): O Natal em Brunhoso, Mogadouro

(**) Último poste de 22 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18666: Em bom português nos entendemos (16): senhores dicionaristas, grafem lá o vocábulo "grã-tabanqueiro" ou simplesmente "tabanqueiro"... O nosso pequeno contributo para a celebração do dia 5 de Maio, Dia da Língua Portuguesa e da Cultura da CPLP...

sábado, 7 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18819: História de vida (47): O centenário dos nossos pais (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Em mensagem do dia 3 de Julho de 2018, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos este belíssimo texto a propósito do centenário de seus pais que ocorre este ano.


O CENTENÁRIO DOS NOSSOS PAIS

Para recordar e homenagear os nossos pais, no ano do centenário do seu nascimento, estamos aqui os filhos, os netos e os bisnetos, está toda a sua descendência.

Ele chamou-se Emídio António Baptista. Ela chamou-se Maria das Dores Magalhães. Nasceram na Rua dos Paus, em Brunhoso, em casas que distavam entre si cerca de cem metros. Nesse convívio próximo, que marcou o seu crescimento de meninos e adolescentes, aprenderam a conhecer-se, a estimar-se e a admirar-se.

Ele, sendo o filho varão mais velho da família, com a morte do pai, que aconteceu quando tinha apenas 16 anos, teve uma adolescência difícil pois teve que trabalhar duramente na lavoura e ajudar a mãe a dirigir a casa agrícola. Muitas vezes a nossa mãe, na varanda ou atrás das janelas, terá visto esse seu vizinho passar com carros de vacas, carregados ou vazios, para as hortas, para as sementeiras, para as colheitas do trigo e do centeio ou para a cortiça.

Fisicamente era bastante alto, forte, atlético e ágil. Sem nunca se vangloriar disso foi durante muitos anos campeão do lançamento da relha e do ferro, jogos tradicionais muito praticados pelos jovens e homens desse tempo. Nas feiras de Mogadouro vinham por vezes lançadores doutros concelhos a desafiá-lo para a prática desses jogos.

Ela era uma jovem inteligente, bonita, duma vaidade austera, humilde na sua relação com todos mas orgulhosa dos pais que tinha. Gostaria de ter sido professora primária mas não a deixaram estudar. Nesse tempo o dinheiro não abundava e aos filhos de pequenos lavradores nunca lhes era dada essa possibilidade.

Aprendeu a costurar, arte que lhe foi muito útil para vestir filhas e filhos durante muitos anos, aprendeu a tratar do linho, da lã, a tecer e a fazer outros trabalhos domésticos.

Já numa fase tardia da adolescência, frequentando esporadicamente a casa dele, na companhia da Adelaide, sua irmã mais velha, de quem era amiga, duma forma discreta, como ambos gostavam, sem palavras, com um olhar claro e transparente, terá respondido ao olhar dele, que sim, que o amava.

O arquivo secreto da nossa mãe, onde guardava as cartas do namorado, depois marido, e dos filhos, era numa arca de madeira, no meio de lençóis de linho. Foi lá que uma filha, adolescente e curiosa, encontrou um dia algumas cartas que o namorado lhe terá escrito durante a vida militar. Cartas que começavam sempre por “Minha Maria”. Mas a nossa mãe encontrou-a nesse delito de inconfidência, quando ainda só tinha lido uma carta. Foi uma pena para a história da família, pois essas cartas nunca mais foram encontradas e perdemos a possibilidade de conhecer melhor o lado mais meigo e gentil do nosso pai que sendo educado na sociedade paternalista transmontana, procurou sempre esconder debaixo duma capa mais dura.

Do que escreveu, restam apenas três livros de deve e haver, de uma escrita simples de contabilidade dum lavrador e negociante de cortiça, com algumas observações ocasionais sobre a sua vida pessoal e familiar, que os filhos tiveram o cuidado de guardar.

Casaram com a idade de 24 anos e foram viver para uma casa pequena, próxima da casa da mãe dele, que tinha sido duma parenta conhecida por Maria Pequena. Só com cozinha e um quarto, foi a casa onde tiveram os primeiros filhos, dois ou três. Mais tarde foram viver para casa dos pais dela, enquanto iam construindo a casa deles, que encheram de filhos. Foram dez os filhos, três morreram ainda meninos. Somente recordamos, alguns de nós, o Zézinho, um menino calmo e meigo, de tez clara, era o mais novo de todos, um menino muito lindo, dizia toda a gente, segundo a nossa mãe. Era muito lindo, eu conheci-o.

Dos sete que se criaram falta aqui um, infelizmente morreu cedo, o Tomás, que hoje recordamos igualmente com muita emoção. Foi um grande trabalhador, tanto na casa dos pais como na casa dele, quando constituiu família. Eu, muito próximo dele na idade, nalguns trabalhos e noutras vivências, senti muito a sua falta. Todos os irmãos a sentem, cada qual à sua maneira, os filhos muito mais.

As boas árvores conhecem-se pelos frutos que produzem e o Tomás deixou três filhos e uma filha, todos bem educados, honrados e trabalhadores.

Os nossos pais, de início com poucos meios para criar a família que crescia quase todos os anos, foram cultivando terras emprestadas pela mãe dele ou pelos pais dela. Por outro lado, ele começou a negociar em cortiça, um negócio que já fora do pai dele e dum seu avô. Já conhecia alguns produtores do concelho e alguns fabricantes de Lourosa. Tinha uma grande convivência e amor, aos sobreiros que algum avô ou bisavô dele tinha semeado ou plantado nos montes da Lagariça, Ferreiros, Ortelã, Ribeira, Relva e Azinhal. Conhecia bem a cortiça.

Negociar é uma arte de que somente alguns conseguem conhecer os segredos e sabem praticá-la com êxito. Para além da seriedade e da fidelidade à palavra dada, com o seu feitio reservado mas sempre cordial, sabia usar as palavras certas para conquistar a confiança e a simpatia dos outros, o que transformava as suas relações comerciais em relações de verdadeira amizade.

A nossa mãe trabalhava muito. Andava sempre cansada, dizia-se que sofria do coração, mas nunca parava. Gostava de ter meninos, adorava-os. E os meninos cresciam, ficavam grandes e continuavam a dar muito trabalho. Mas ela continuava com um amor imenso a esses meninos que iam crescendo e se faziam homens e mulheres.

Ajudava algumas pessoas mais pobres. Com muita discrição uma vizinha, boa pessoa, com poucos recursos, de quem o homem até não gostava muito por a achar muito intrometida. Dava esmolas às ciganas que lhe batiam à porta a pedir pão, batatas e o azeite para o fiolho. Todas essas mulheres tinham muitos filhos, ela também mãe de muitos filhos imaginava a dor das outras mães por não terem pão para lhes matar a fome. Uma delas, uma cigana gorda, mal encarada, pedinchona, batia-lhe à porta quase diariamente e a nossa mãe dava-lhe sempre esmola, contra a vontade de alguns dos filhos, que não gostavam dela. É que essa cigana além de ter muitos filhos era viúva. Ajudava muito, também, as famílias de triteiros - faziam pequenas acrobacias, eles e os filhos e outros pequenos números de circo – que por vezes lhe pediam a curralada, em frente à casa, para se albergarem e darem espectáculos.

O nosso pai, tenho pensado que sem dar esmolas, dava uma boa ajuda aos seus trabalhadores, da seguinte forma:
Depois das ceifas, das colheitas do trigo e do centeio e da tiragem da cortiça, os meses de Setembro, Outubro e Novembro agravavam muito a pobreza dos trabalhadores, pois a colheita da azeitona só começava a 8 de Dezembro. Lembro-me que nalgum desse tempo parado, que podia ser de fome para algumas casas, contratava quinze a vinte homens, dos mais habituais ao serviço da sua casa agrícola, para trabalhar na Lagariça a fazer desmatagem dos sobreiros. Mas essa desmatagem profunda, feita com o arranque manual dos arbustos feita com pás e picaretas, durante cerca de um mês, nunca chegava a atingir meio hectare, o que não era significativo face aos vários hectares de área de sobreiros que ele lá tinha. Durante muito tempo intrigou-me esse facto, mas depois, conhecendo o carácter discreto do nosso pai e o respeito que tinha pelos trabalhadores, acabei por me convencer de que ele fazia essa desmatagem para benefício dos sobreiros mas sobretudo para benefício dos homens, que eram dignos chefes de família como ele e que precisavam de dinheiro para a alimentar, mas que também, sabia-o ele bem, nunca aceitariam esmolas de ninguém.

Era simpático com os jovens, comprava-lhes sacos de cavacos de cortiça, a bom preço. Alguns dos nossos primos e outros desse tempo ainda hoje me falam nisso. Aos filhos não nos comprava nada, talvez com receio de irmos encher os sacos às rimas de cortiça dele. Eu, de garoto, só me lembro dos trocos dos responsos que me dava o padre Zé na Igreja, e alguma coroa que encontrava quando andava ao rebusco lá em casa.

Se me encontrava na rua à luta com outros rapazes chamava-me e dava-me umas bofetadas com a mão dura dele, que magoava mesmo. Eu achava-o injusto porque pensava que o culpado da luta era o outro e o meu pai nem razões queria saber. Era assim, bastante duro com os rapazes, filhos dele, a quem procurava educar através duma educação espartana. Queria fazer de nós guerreiros destemidos. Recordo-me que, quando mobilizado para a Guiné, fui passar três dias a Brunhoso com ele, ele que nunca tinha cozinhado, fazia umas sopas muito boas. Estava sozinho, a mulher estava com os mais novos, que estudavam em Vila Real. Quando parti, foi comigo a Mogadouro, a despedida foi perto da estátua do Trindade Coelho, ele comoveu-se e deixou cair umas lágrimas, eu fiquei emocionado. Enfim, as lágrimas de um duro comovem qualquer guerreiro.

Com as filhas era mais meigo e tolerante e se tinha alguma censura a fazer-lhes encomendava-a à mulher. Quando veio a moda da mini-saia muitos recados ouviu a nossa mãe por causa de uma filha, que habilidosa, subia sempre as saias que a mãe lhe fazia abaixo do joelho.

O nosso pai morreu cedo, aos 59 anos, depois duma doença grave que o atormentou durante três anos. A nossa mãe, viúva, com a mesma idade, sofreu muito com a partida do seu companheiro de sempre. Para agravar o enorme desgosto pela sua morte sofreu muito pela solidão em que ficou na sua casa vazia. Os filhos, alguns estavam casados, outros trabalhavam longe e outros ainda estudavam. Enquanto a saúde lho permitiu nunca quis deixar a casa dela, apesar de solicitada por filhas e filhos. Algum tempo mais tarde, a Lurdes, já casada e com meninas, alegou que precisava da ajuda dela e conseguiu levá-la para junto de si alguns anos.

Estava presa à terra dela com raízes fortes. Lá estavam todas as suas melhores recordações, dos seus queridos pais, do seu marido e dos filhos nas suas várias fases de crescimento. Na Igreja, essa casa grande e sagrada que a transportava para junto de Deus, todos os Santos lhe eram familiares.

Gostava de ir à horta de Lamas, esse chão para ela sagrado, que herdara dos seus pais, que ajudara a cultivar e tratar ainda menina, com os pais, e já adulta, com o seu homem e os filhos. A burra dela, muito dócil, foi o seu transporte e boa companhia de muitos anos, no caminho para lá, que os netos e netas adoravam, sobretudo quando subiam nela para a beira da avó. Gostava de encher a despensa com todo o género de hortaliças para dar aos filhos quando iam estar com ela ou somente visitá-la.

Porque lhe sobrava o tempo e porque não gostava de estar parada fazia também colchas de renda para os filhos.

O quarto dos nossos pais conserva ainda na parede da cabeceira da cama um quadro com a imagem do Sagrado Coração de Jesus, um grande rosário de cortiça numa outra parede e algumas imagens e estatuetas de santos pousados sobre uma cómoda, onde também se encontra um retrato de um soldado garboso, fardado com elegância, dos finais da década de trinta do século passado. Quando o seu Emídio morreu, a nossa mãe foi buscar essa fotografia do seu namorado, à arca onde a tinha guardado, e colocou-a nesse altar junto dos santos. Tinha-lhe sido enviada por ele de Mafra onde esteve na tropa, com uma linda dedicatória e era a única que tinha da sua juventude. A fotografia torna o nosso pai mais presente, a nossa mãe está presente em toda a decoração que ela fez, que as filhas e netas mantêm, com santos, santas e o amor da sua vida.

No silêncio do dia, da aldeia quase deserta, há uma nostalgia que se espalha pela casa vazia que parece trazê-los à vida. Eles continuam vivos, vivos no sangue que nos corre nas veias, vivos no amor, no trabalho, na dedicação, vivos nos ensinamentos e nos exemplos de vida, que foram muitos. Vivos na raça, na coragem, no génio, os nossos pais, vossos avós e bisavós, foram uns heróis e como os heróis eles são imortais!

Tiveram muitas qualidades, que sempre gostámos de ver projectadas em filhos e netos. Legaram-nos uma herança imaterial imensa, muito mais valiosa do que as terras ou sobreiros que nos deixaram, que todas as gerações de Magalhães Baptistas têm que preservar

Francisco Maria Magalhães Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de julho de 2018 30 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18470: História de vida (46): O meu saudoso mano mais novo, Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014) (João Schwarz da Silva) - III (e última)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18294: Brunhoso há 50 anos (13): Viagens de comboio ao Porto (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Estação de Mogadouro
Com a devida vénia a Caminhos de Ferro Vale da Fumaça


1. Em mensagem do dia 31 de Janeiro de 2018, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um texto sobre Brunhoso, desta vez lembrando as viagens de comboio até ao Porto nos anos 60 e 70.


Brunhoso há 50 anos

13 - Viagens de comboio ao Porto

Vamo-nos entretendo com histórias, como os meninos que já fomos há muitos anos, e gostamos delas com muitos feitios gostos e temperos: suaves, doces, avinagradas, românticas, de viagens, eróticas, guerreiras, dramáticas, trágicas, apimentadas ou humorísticas.

Esta é uma estória que pretende falar das grandes viagens de comboio que eu e os meus conterrâneos fazíamos desde Brunhoso, essa aldeia perdida entre as dobras da paisagem transmontana do nordeste, até ao Porto, seguindo o percurso dos rios Sabor e Douro, sobretudo nas décadas de 60 e 70, quando para além dos emigrantes as pessoas se começavam a deslocar mais para estudar nos seminários ou colégios distantes, para cumprir o serviço militar, outros por alguma diversão, outros por negócios, outros porque tinham conseguido trabalho na cidade grande.

Da aldeia à estação de caminhos de ferro de Mogadouro que ficava num descampado, eram catorze quilómetros, que tinham que ser feitos num carro de praça. Lá apanhávamos um comboio pequeno e antigo, puxado por uma locomotiva a vapor, com carruagens em madeira, incluindo os assentos, lento nas curvas, nas descidas e nas subidas. Mais tarde automotoras um pouco mais rápidas, mais cómodas, mas mais pequenas, substituíram o velho comboio. Da estação de Mogadouro até ao Pocinho a viagem na linha do Sabor fazia-se por encostas e montes a alguma distância do rio e longe da sua vista. O rio só se tornava visível já depois de Moncorvo, na foz, quando alargava o leito ao encontrar-se com as águas do Douro e o comboio ia estabilizando a sua marcha ao atravessar a ponte perto da estação do Pocinho. Depois a confusão e a pressa habitual para mudar as malas de cartão, os sacos de batatas e de hortaliças, as galinhas, os presuntos, salpicões, linguiças, os garrafões de vinho e outros bens que muitos levavam para si próprios ou para os filhos e parentes, para o comboio maior da linha do Douro que nos levaria até à estação de S. Bento no centro do Porto.

O comboio da linha do Douro somente era maior porque a falta de comodidade era a mesma, do comboio da linha do Sabor, quente ou frio conforme as estações do ano, muito frio no Inverno, muito quente no Verão. Nas estações da CP seguintes, entrariam mais passageiros igualmente carregados de bagagens e sobretudo no tempo das festas do Natal, da Páscoa, no principio e fim das férias, esses comboios ficavam a abarrotar, sendo muitos deles obrigados a fazer toda a viagem de pé.

Linha do Sabor
Com a devida vénia a Os Caminhos de Ferro

O comboio segue pelo vale do Douro, bem próximo do percurso do rio, no meio dessa paisagem sublime, que para nós habituados a viver no meio da natureza eram caminhos da vida, bem difíceis de andar e trabalhar como os dos nossos montes e vales, que percorríamos sem lhes exaltar a beleza. Somente ao entrar em terrenos do distrito do Porto, no concelho de Marco de Canaveses, o comboio abandona as margens do rio.

Linha do Douro
Com a devida vénia a Viajar Entre Viagens

No Tua recebia muitos passageiras da linha com o mesmo nome e na Régua recebia também muitos passageiros da linha do Corgo.

Linha do Tua
Com a devida vénia a Pensar Ansiães

A Régua era a maior cidade da linha do Douro e tinha a maior estação de comboios de Trás-Os-Montes, terra com muito movimento, capital do Vinho Fino, como os velhos lavradores do Douro designavam o vinho que produziam nos socalcos das suas encostas e que os comerciantes do Porto e os ingleses baptizaram impropriamente de Vinho do Porto. Entre a Régua e o Porto existiam ainda algumas estações de caminhos de ferro com bastante movimento e o grande nó ferroviário de Ermesinde, onde as linhas do Douro e do Minho confluem para seguir a mesma rota até ao Porto que se aproxima. A Estação de S. Bento no terminus da viagem onde os viajantes depois de saírem dos comboios são recebidos com fidalguia no grande salão nobre da cidade, imponente com o seu tecto alto e trabalhado, as janelas grandes e artísticas e as paredes enormes decoradas com azulejos, que reproduzem belos quadros históricos da Cidade e da Nação. A Estação de S. Bento ergue-se em beleza e grandiosidade como símbolo da hospitalidade, dos comerciantes, dos artistas e dos burgueses da cidade do Porto, a todos os viajantes nacionais ou estrangeiros.

Estação da Régua

Todos os transmontanos das terras grandes e mais pequenas sentiam uma grande atracção pela cidade do Porto, onde gostavam vir pela sua grandeza, pela sua beleza, pelos seus limites fluviais e marítimos, pelo contacto com outras gentes, pela variedade de produtos comerciais disponíveis para a lavoura e outros actividades. Também pelo prazer de se sentirem a viver e a fazer parte duma grande comunidade de homens e mulheres e experimentarem essa envolvência, no meio da azáfama e do movimento que se sentia nas suas praças, ruas e avenidas, como algo novo e raro.

Estação de S. Bento
Com a devida vénia a Ruralea

Próximo da estação de S. Bento, situada bem no centro da cidade, para comer havia bons restaurantes que alguns entre eles frequentavam: a Regaleira, a Abadia, o Onix, a Flor dos Congregados, o Girassol, o Leal, o Palmeira, a Viúva, o Romão e outros. Para conviver e beber um copo com os amigos havia os cafés Imperial, O Guarany, o Embaixador e a cervejaria Sá Reis.

Para outro tipo de vivências que alguns gostavam de experimentar havia outros cafés, bares, casas de "passe" nas ruas Cimo de Vila, Banharia, dos Caldeireiros, Escura, Bonjardim, etc.

Na Rua do Almada havia a boite e casa de fados Candeia muito frequentada por soldados, marinheiros, rufias, estudantes, doutores, comerciantes e burgueses. Ao tempo era a casa de diversão nocturna mais importante da cidade.

O comércio, tal como hoje, espalhava-se por estas ruas já referidas e outras tais como Rua de Santa Catarina, Sá da Bandeira, Santo António, Rua do Bonjardim, Rua de Cedofeita e muitas outras.

Nesses anos era frequente encontrar na Sá Reis ou no Imperial, o Dr. António, um advogado bom bebedor de cerveja, simpático e conversador, grande proprietário de Mogadouro, com casas também no Porto, que gostava de esperar a chegada dos comboios de Mogadouro, para falar com os conterrâneos.

Nos anos próximos do 25 de Abril, antes e depois, recordo-me que havia muitos estudantes e alguns, poucos funcionários bancários e públicos, de Brunhoso no Porto, que se juntavam inicialmente no café Bissau, na rua de Cedofeita, mais tarde no café Encontro na rua do Rosário.

No bar do Hotel Paris, na rua da Fábrica, sobretudo à noite e também por vezes à tarde, nos fins de semana, juntavam-se muitos transmontanos, alguns de passagem e lá hospedados e muitos outros a viver na cidade, Eram transmontanos sobretudo do Nordeste: Bragança, Miranda, Mogadouro, Moncorvo, Vila Flor. Havia alguns, poucos, beirões, minhotos e galegos. O Hotel era propriedade de três galegos. O Constante o mais novo e mais simpático, por vezes atendia no bar, sendo o homem do bar mais habitual o Mota, um minhoto sempre bem disposto de Cabeceiras de Basto, que também tinha uma pequena quota na sociedade. Tomava-se café, bebiam-se algumas cervejas, discutiam-se as últimas novidades politicas e futebolísticas, jogava-se a sueca e por vezes comiam-se alguns petiscos que o Mota cozinhava.

Recordo-me das viagens de regresso a casa como sendo mais agradáveis, comboios mais livres com menos gente e menos confusão de bagagens. Mas feitas geralmente mais tarde no dia, no Verão o vale do Douro era um inferno e pelas janelas abertas entravam golfadas de ar quente.

Na estação de Valongo havia mulheres a vender regueifa, na estação da Pala vendiam pequenas bilhas de barro com água duma fonte fresca e na estação da Régua vendiam os rebuçados da Régua. Essas mulheres com os seus pregões e os seus produtos davam mais colorido e animação à viagem.

Praça da Liberdade - Porto - Homenagem a D. Pedro IV e aos Mártires da Liberdade, entre os quais o ilustre matosinhense António Bernardo de Brito e Cunha (1782-1829), condenados à forca pelo regime Miguelista e enforcados nesta mesma Praça em 7 de Maio de 1829 (CV)
Com a devida vénia a selvagemtexas

Nos dias e meses após a Revolução de Abril de 1974, os moradores do Porto tinham por hábito juntarem-se em grupos na Praça da Liberdade, de volta da estátua de D. Pedro IV a falarem, uns talvez a tentar compreender a politica e os acontecimentos políticos que corriam a muita velocidade, outros a procurar doutrinar os menos informados. Eu que não tenho muito gosto nem jeito para falar em público, um dia resolvi entrar numa discussão com outro cidadão e logo alguns fizeram uma roda como era habitual. A discussão mais ou menos política já decorria há algum tempo quando ao deitar um olhar pela assistência vejo o meu pai e o meu tio Aragão, que teriam desembarcado há pouco na Estação de S. Bento, muito atentos e interessados. Quando acabei, e os fui cumprimentar, embora ciente que as minhas ideias politicas eram diferentes das deles, não me fizeram criticas desfavoráveis. Pela atenção deles fiquei convencido que o principal motivo que os tinha trazido ao Porto tinha sido tentar compreender a situação política. Ao encontrarem logo o filho e sobrinho a arengar na praça pública, terão pensado que tinham ali um politico e futuro deputado para os defender no futuro. Para possível desilusão deles, esta minha intervenção pública terá sido talvez a última, e a minha carreira política acabou aí.

Brunhoso era afinal ali ao lado, tão perto do Porto, somente a seis ou sete horas de comboio, que os homens, apesar da pouca comodidade, faziam com mais prazer do que ir à azeitona ou fazer a sementeira

A linha do Sabor já foi abandonada há mais de trinta anos. A linha do Douro acaba no Pocinho, tendo sido abandonado o troço até Barca de Alva na fronteira com Espanha. Políticas, ao tempo indiscutíveis, segundo os governantes que tomaram essas medidas.

Sem o som do comboio a subir a serra e do apito que o anunciava, o Nordeste Transmontano foi ficando mais abandonado e silencioso. Faz-me lembrar a beleza triste do olhar duma pauliteira jovem que ficou tal como uma moura encantada (que também lá as houve) por terras de Mogadouro e Miranda.

Comboios do Sabor e do Douro que ainda me transportam ao passado, e trazem tantas recordações!
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17097: Brunhoso há 50 anos (12): As casas e as gentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

quinta-feira, 2 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17097: Brunhoso há 50 anos (12): As casas e as gentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Rua de Brunhoso


1. Em mensagem do dia 28 de Fevereiro de 2017, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um texto sobre Brunhoso, desta vez falando sobre as casas e as gentes.


Brunhoso há 50 anos

12 - As casas e as gentes

Em Brunhoso há ruas inteiras onde não vive ninguém, nem passa vivalma. Nas Fontainhas a maior parte das casas de todas as ruas estão vazias, sem vida, fechadas e somente guardam recordações de gente que partiu há décadas para fugir a uma vida de muito trabalho, sacrifícios e privações.
Nas outras zonas da aldeia, sobretudo as menos centrais, o panorama é idêntico, vêem-se casas simples e pequenas que nos primeiros anos da diáspora para terras de França, os chefes de família, quando o dinheiro lhes começou a sobrar para esses “excessos”, procuraram melhorar em comprimento ou altura para dar mais conforto às suas famílias numerosas. Depressa se deram conta de que essas soluções em espaço e conforto não eram o que procuravam.
Com o tempo e mais poder económico, passaram a construir ou comprar casas maiores na aldeia e também, por vezes, por influência dos filhos já mais crescidos, na vila ou nas grandes cidades. Dispersas pelo casario, igualmente desabitadas, ou com um ou dois habitantes nostálgicos ou resistentes ao vendaval dos tempos que tem dispersado as gentes para muitos destinos, vêem-se as casas dos lavradores “remediados”. No geral reconhecem-se por terem, no primeiro andar da frontaria, duas janelas e ao centro uma porta com sacada. Tal como a “casa grande” da D. Adelaide, que já retratei nestas crónicas, são casas construídas na mesma época, com um estilo mais moderno, embora mais modestas e menos espaçosas.

 Casa de lavrador remediado

Ainda existem algumas casas em ruínas, ao estilo antigo, com escaleiras (escadas em Trás-Os-Montes, tal como na Galiza) exteriores, de pedra, com varandas de madeira. Nas décadas de sessenta e setenta, quando todos abandonavam a aldeia à procura de melhores condições de vida, os lavradores fizeram um derradeiro esforço, que as condições sempre débeis duma agricultura de subsistência em decadência acelerada pela saída dos seus melhores trabalhadores, lhes permitiram, para garantirem aos filhos alguma instrução e a possibilidade de procurarem também fora da aldeia alguma hipótese de futuro. Foram enviados para seminários, onde o ensino era muito mais barato mas sendo os padres demasiado exigentes e os seminários claustrofóbicos, a maior parte deles pouco se demoravam por lá. Foram depois mandados para colégios o que obrigou os pais a um esforço financeiro acrescido.


Casas antigas com escaleiras e varanda

Os lavradores, para aguentar esse esforço pouco habitual no passado, venderam terras por bom preço aos emigrantes, desejosos por adquirir esses bens, quando já tinham amealhado muito dinheiro. Um mau investimento de que se irão dar conta brevemente, quando descobrem que o seu trabalho duro e mal pago era afinal a mais valia dessas terras e sem a força do seu trabalho não tinham rentabilidade. Tiveram porém um prazer enorme em serem proprietários de hortas, olivais e grandes terras de cultivo que tinham trabalhado tantos anos para outros e que passavam a ser deles e nessa transmissão de bens eles sentiram-se renascer e crescer em poder e auto-estima.

Hoje, mesmo que muitas dessas terras estejam incultas, como a maioria das da aldeia, são propriedades deles, a terra passou a estar mais dividida e quem viveu e cresceu no meio dela tem sempre a esperança que nalgum futuro dos seus descendentes ela volte a tornar-se produtiva e útil.

Os baldões da vida e da fortuna pelos caminhos do Mundo levaram-os a uma análise e compreensão dialéctica das relações económicas e sociais muito diferentes da que tinham quando estavam limitados ao pequeno mundo onde nasceram e foram criados, sem horizontes ou aspirações para além de um trabalho duro para garantir a sobrevivência. Passaram a ser proprietários de boas casas e de terras, deixaram de ser humildes e passaram a exigir a quota de dignidade a que todos os homens têm direito. Por sua vez os velhos lavradores, os que duramente trabalhavam as terras muitas vezes também pagando jeiras a trabalhadores sem terras, morrem após esse derradeiro esforço de garantir algum futuro aos filhos, depois de verem que a terra já não lho podia garantir. A morte deles antecede o abandono progressivo dos campos e a morte anunciada há décadas dessa agricultura tão antiga que com poucas variantes reproduzia a agricultura das antigas civilizações do Mediterrâneo, do tempo de Jesus Cristo, dos romanos, dos gregos, dos antigos egípcios e outros. Amaram essas hortas, esses campos de trigo e centeio, os olivais, os sobreirais, os lameiros e regadas (campos de pasto) com o mesmo amor com que amaram as suas mulheres, os filhos, os netos, os pais e os avós, porque eles, como Xamãs da terra-mãe, estiveram sempre ligados aos seus mistérios, à sua renovação, ao milagre das colheitas do trigo, do centeio, do azeite, do vinho, das batatas e do linho.

Havia uma relação profunda entre o respirar da Terra ao ritmo das estações do ano e a vida destes homens dificilmente traduzível em palavras, porque a Terra não se exprime por palavras e os lavradores sempre na sua companhia habituaram-se a ser parcos no seu uso. A relação primordial do homem, aquela que mais o humaniza é essa relação que estabelece com a natureza e com os seus elementos. Com a morte deles e com o fim dessa agricultura milenar, perderam-se milhares e milhares de páginas, nunca escritas, de sabedoria, sobre essa comunhão tão estreita entre os homens e a natureza. Isto poderia levar-nos a fazer considerações sobre a agricultura moderna, mecanizada, intensiva, híbrida, de laboratório, industrializada. Para não alongar demasiado esta crónica deixo isso à reflexão de cada um.

A casa grande que se retrata, reproduz uma casa de lavrador rico construída na primeira metade do século XIX. Desse século havia outras casas grandes, talvez cinco, propriedades dos lavradores ricos, que tinham anexas ou próximas as lojas do gado, os palheiros, as curraladas e por vezes as casas dos criados, quando não dormiam na loja dos animais. Essas casas grandes, de paredes de xisto cobertas com cal, com mais de um metro de largura, foram construídas num estilo incaracterístico, somente com a preocupação de serem espaçosas e sólidas. Duas dessas casas recordo-me que foram transformadas e em parte modernizadas para um estilo mais actual.


Casa de lavrador rico

Curralada de lavrador rico, de 1817

Outras duas foram demolidas por compradores que construíram casas novas nesse espaço. Quem as construiu e quem primeiro as habitou, é hoje uma incógnita pois a história não escrita da terra, aquela que se transmite pelo falar das gentes de geração em geração, diz-nos que todas as famílias de grandes proprietários de terras que dominaram a aldeia a maioria dos anos do século vinte eram originárias doutras povoações mais ou menos distantes.

 Casa antiga

Quando eu era criança ainda, conheci a família dos Pereiras, dois irmãos e uma irmã, mais velhos do que os meus pais, que não deixaram herdeiros, de quem se dizia que eram os descendentes da família mais rica de Brunhoso. Ao tempo eram lavradores modestos, muito discretos, educados e duma delicadeza extrema no trato com toda a gente. Dos antepassados deles se dizia que com uma lapada (o mesmo que pedrada) de um homem, se percorria toda a área agrícola da freguesia sempre a atingir uma propriedade deles.

Terá havido um padre Coelho, homem muito rico, dono da "Casa das Feiticeiras" que pelo seu estilo senhorial penso que terá sido construída pelos Távoras, e que a família dele terá adquirido quando essa família poderosa caiu em desgraça. Com a morte do padre nos finais do século XIX sem deixar herdeiros, os seus bens terão sido adquiridos (ou herdados?) pela família Neves Ferreira, originária da aldeia de Castelo Branco.

Fala-se também da família Brás, outros grandes proprietários, com raízes antigas na aldeia, que terão vendido à família Felgueiras e a outras famílias, sendo o mais conhecido, por ser o mais recente ainda com algum poder económico, que terá já morrido nas primeiras décadas do século vinte, o João Brás, que acabou por vender a quase totalidade dos bens que restavam da família. As causas que provocavam a ruína dessas família ricas, que levou a que tivessem que vender todos os bens a famílias provenientes doutras freguesias do concelho terão sido as seguintes: má administração, jogo, dificuldade em escoar os produtos agrícolas, envelhecimento ou indolência das novas gerações habituadas a viver sem trabalho e sacrifícios. A administração dessas casas agrícolas sabe-se que nem sempre era exemplar: no geral esses lavradores ricos não exerciam outra actividade agrícola a não ser supervisionar o trabalho dos outros, serviço de que por vezes encarregavam feitores. Os filhos e os outros descendentes também raramente sujavam as mãos no trabalho da terra. Tinham que sustentar os filhos e a restante família que no geral nada produzia, tinham que pagar e alimentar criados e criadas e ainda pagar a muitos trabalhadores que contratavam para as colheitas e outros serviços.

 Rua de Brunhoso

O escoamento dos produtos agrícolas nalguns anos era difícil e pouco rentável. O jogo de cartas a dinheiro, antes de Salazar tomar o poder era uma autentica praga disseminada entre os povos do interior, que destruía casas e fortunas. Salazar com leis drásticas e uma fiscalização muito rigorosa acabou com esse vício. O ditador, que sempre teve como um objectivo nacional que o país fosse auto-suficiente em produtos agrícolas através da criação dos Grémios e das Federações Agrícolas garantiu também o escoamento da maior parte dos produtos agrícolas com algum lucro, com bastante nalguns anos, para os lavradores.

O trabalho na lavoura a baixo custo, garantiu-o pela ausência de sindicatos, salário mínimo e segurança social. Aproveitou para tal o vazio laboral que tinha herdado da Monarquia e da Primeira República, reforçado com alguma vigilância discreta sobre possíveis tentativas de alteração da ordem vigente. Os grandes lavradores e até os médios conseguiram ter mais rentabilidade e estabilidade económica durante o Estado Novo enquanto os trabalhadores sem terra nada beneficiaram com essa política.

Francisco
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16948: Brunhoso há 50 anos (11): Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16948: Brunhoso há 50 anos (11): Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Rio Sabor


1. Em mensagem do dia 7 de Janeiro de 2017, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta à sua série Brunhoso há 50 anos, desta vez para nos falar do Crasto, da Fraga do Poio e do Rio Sabor.


Brunhoso há 50 anos

11 - Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor

No lugar do Crasto, que ocupa uma colina fronteira à aldeia, identificada na fotografia, segundo a memória transmitida por muitas gerações ao longo dos séculos, que se confunde com a lenda, terá existido uma povoação romana. Quando eu era mais novo vi lá algumas vezes pedaços de telhas que os lavradores desenterravam ao lavrar as terras.

O Crasto, que dominava toda a paisagem em redor numa lonjura de vistas variável, a menor nunca inferior a dois quilómetros e a maior superior a 50, era um sitio estratégico para os seus habitantes se precaverem e poderem defender de ataques surpresa de possíveis invasores, nos tempos em que as guerras de conquista e reconquista eram constantes. Existe em muitas povoações e nalgumas denomina-se “Castro” pois são palavras com a mesma raiz etimológica e significado. Era um lugar fortificado num sitio estratégico, entre os povos romanos ou pré-romanos. Hoje está morto e enterrado debaixo do pó da terra que os ventos transportam e que se foi acumulando ao longo de centenas de anos, tendo os lavradores lavrado essa terra que o cobre para semear trigo e onde algumas árvores foram crescendo, semeadas pelas aves e pelo vento. A sua forma cónica e a proximidade da aldeia, associada à lenda doutras eras, dá-lhe uma beleza um pouco familiar, misturada com uma certa nostalgia de um passado desconhecido.


 Duas perspectivas do Lugar do Crasto

Com a progressiva pacificação da Península depois da ocupação dos romanos, invasões dos bárbaros, os Suevos, os Vândalos e os Visigodos, e das invasões dos muçulmanos, provavelmente ainda muito antes do inicio da nacionalidade, a povoação terá sido construída no lugar onde hoje se encontra, um sitio mais baixo, entre colinas, mais protegida dos ventos frios e agrestes do Inverno e do inferno dos calores estivais. Uma planície mais verdejante, entre pequenos montes e colinas, onde nascem os ribeiros, mais abrigada dos ventos e das intempéries.

Já longe da aldeia, passando pelos montes de sobreiros e entrando na zona das oliveiras, quando os terrenos começam a descer em declive na direção do Rio Sabor, encontramos a Fraga do Poio, um monumento natural que marca a paisagem pela sua dimensão. A Fraga do Poio é um enorme penhasco de xisto com cerca de 300 metros de altura e com uma largura, na base, superior, formando um penedo, que impõe a sua presença em toda a paisagem em redor, como se fosse uma enorme catedral de pedra erguida em tempos antigos a um Deus da Terra menos omnipotente e mais próximo dos mortais do que o Deus dos Céus que, na sua ânsia de poder, quis ser Deus dos Céus e da Terra. Sinto dificuldade em definir o sentimento que os brunhosenses sentiam e sentem em relação a essa fraga gigante: respeito, temor, veneração, exaltação, vaidade, orgulho? Talvez um pouco de tudo isto mesclado com a simplicidade e a naturalidade que foram sempre características dos meus conterrâneos.


 Vistas da Fraga do Poio

Sem saírem da povoação, tinham à vista o Crasto que lhe povoava a imaginação dum passado de gentes que confundiam com romanos e mouros, mais mouros que foram os últimos a passar por lá e dos quais alguns resquícios da memória coletiva conservavam lembranças difusas envoltas em lendas.

Descendo por caminhos ou carreiros de terra batida, em direcção ao rio Sabor, a três quilómetros, podiam debruçar-se de cima da Fraga do Poio e apreciar as vistas do rio serpenteando no vale, a cerca de dois quilómetros, brilhando como prata em dias mais claros de sol ou como chumbo em dias mais escuros de inverno .

 Panorama a partir da Fraga do Poio

Hoje para quem o vê e admira, o Sabor parece um rio grande, que a barragem a jusante, perto da foz, converteu num enorme lago de águas paradas que irá aumentar ou baixar o seu volume conforme as necessidades das barragens hidroeléctricas do Rio Douro, no seu caminho para a Foz do Porto, em direcção ao Atlântico. O Sabor não será mais aquele rio furioso e selvagem dos Invernos chuvosos do Nordeste ou calmo e com tão pouca água no Verão, que se deixava atravessar a vau nalgumas partes do seu percurso. Com a construção da barragem, o Sabor deixou de estar ao serviço dos habitantes das aldeias das suas margens, cada vez mais desertas, para se transformar num rio moderno para produção de electricidade para os grandes burgos. Entrou na era da globalização tal como a maioria dos habitantes de Brunhoso e das outras terras pequenas atraídos pelas grandes cidades do país e do estrangeiro, que ainda antes da construção da barragem já o tinham abandonado .

As pessoas crescem e fazem-se na contemplação do meio ambiente em que são criadas e é ele que que lhes vai ajudar a moldar o carácter e a personalidade. O Crasto, a Fraga e o Sabor irão marcar para sempre as gentes de Brunhoso. A colina arredondada e elevada do Crasto, tão perto da povoação, com vestígios doutro povoado mais antigo, deu-lhes uma dimensão difusa da longevidade que transportam os séculos e da história que os homens escreveram quando se espalharam pela terra. A Fraga do Poio, erecta, firme e imutável na sua consistência e rigidez de pedra, com milhões de anos, dá-lhes a ideia confusa e mal assimilada, das medidas e dum tempo astral, quando tempo e distâncias se confundem e se transformam em crenças que a pouca ciência ou a ignorância dos homens não conseguem decifrar.

O rio Sabor, antes da construção da barragem, suave e transparente no Verão, cheio, escuro e apressado no Inverno, vai dar-lhes a beleza fluída e envolvente ora calma e transparente no Verão, ora furiosa e temerosa no Inverno, da água, essa mãe primordial que tanto cria, alimenta e afaga os outros elementos, como os destrói na sua passagem impetuosa.

 Rio Sabor

Há cinquenta anos, quando Brunhoso ainda estava povoado de gente a viver num mundo mais difícil, primitivo e antigo, os seus habitantes formaram pois o carácter sob a influência da colina do Crasto que lhes deu o sentido do passado e da história, da Fraga do Poio que lhes transmitiu dureza e algum sentido de grandeza, do rio Sabor que lhes deu outra dimensão da beleza e da vida.

É tão difícil utilizar as palavras mais apropriadas para definir a luta e a comunhão entre a natureza e esses antigos habitantes da história de Brunhoso, que antecedeu a minha partida para a Guiné.

Peço desculpa, se a emoção, de quem ainda viveu parte dessa história, lhe dificulta a razão e lhe prejudica a objectividade e imparcialidade.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16651: Brunhoso há 50 anos (10): As casas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16651: Brunhoso há 50 anos (10): As casas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 18 de Outubro de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal, Brunhoso, há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

10 - As casas

As primeiras fotografias procuram retratar parte dos muros que formam um círculo, dentro dos quais havia uma casa antiga e grande e outros edifícios anexos, que ainda conheci em ruínas há já mais de cinquenta anos, na rua do Fundão. Hoje da casa e das dependências agrícolas nada resta e o terreno onde os edifícios estavam implantados está invadido por silvas e fenanco (feno alto).

O homem que está junto do prédio é o seu actual proprietário, o meu amigo Joaquim Cordeiro, mais conhecido por Joaquim Passarinho, que a comprou aos seus últimos herdeiros há cerca de trinta anos.



O Joaquim Passarinho é um monumento vivo da aldeia pela sua energia e pelo trabalho incansável que tem desenvolvido ao longo de mais de sete décadas, em todas as áreas da agricultura ao serviço das casa grandes e das mais modestas e como emigrante em Espanha e em França. Lá fora em trabalhos duros, como muitos dos seus conterrâneos, ganhou muito dinheiro que aplicou totalmente na compra de prédios urbanos e rústicos da aldeia, passando a trabalhar na casa agrícola que formou tendo melhorado muitos terrenos com plantações e outros benefícios. Herdou a altura, a energia e a alcunha do seu pai o Ti João Passarinho que trabalhou quase até à hora da morte, já depois dos 80 anos.


O meu amigo Joaquim, também conhecido por Jacob, sendo um efabulador com uma imaginação sempre activa ao comprar as ruínas desta casa grande, ele que viveu na infância e na juventude, quase paredes-meias com ela, numa casa pequena e pobre, terá talvez pensado construir nelas um grande castelo que assombrasse as gentes das redondezas, tal como Luís da Baviera, esse rei sonhador que construiu aquele enorme Castelo de Neuschwanstein, castelo de duendes e fadas, num penhasco dos Alpes Bávaros.
Há homens que têm sonhos tão loucos e grandiloquentes, que podem nunca os ver realizados, mas são felizes enquanto convivem com eles.

A minha imaginação tinha dificuldade em preencher aquele espaço de casario em ruínas enorme e murado. Tal como eu, as gentes da aldeia, que também não conheciam a sua história, nem os seus moradores que se adivinhavam ricos, teriam a mesma dificuldade em compreender aquelas paredes mortas e abandonadas ao vento, ao sol e à chuva, e talvez por isso deram-lhe o nome de “Casa das Feiticeiras”. Naqueles verdes anos, ainda a navegar entre o sonho e a realidade, embora descrente de fadas, feiticeiras e zângãos, sentia que havia uma magia fantasmagórica naquele espaço abandonado, formado por esses muros altos e por essas construções em ruínas, onde as almas dos seus mortos esquecidos pareciam querer falar connosco. Constava-se que as feiticeiras saíam algumas noites, a desoras e gostavam de fazer bailes nessa casa grande, decrépita e abandonada ao luar ou na escuridão da noite.

Sendo conhecida como "Casa das Feiticeiras", era uma denominação que as pessoas aceitavam, sem procurarem outra, já que pelo mistério que infundia, se coadunava bem com o seu aspecto.

Na “troça” de pedra que encima o portão da entrada, sustentada por “ombreiras” de grandes pedras de xisto, consta uma data que só se consegue ler se subirmos próximos da inscrição já que está muito enegrecida pela passagem dos anos. Na inscrição, bem nítida, para quem se aproxima, utilizando uma escada, está a data de 1698 (MDCXCVIII) em algarismos arábes. Com a maior parte do muro exterior ainda em pé, penso que é a edificação mais antiga da aldeia. Desconhece-se quem a terá construído ou quem habitou esse enorme casarão que mais parecia uma fortaleza com muralhas tão altas, sabe-se apenas que o seu último proprietário terá sido o Sr. João "Lagoa" Ribeiro, viúvo de uma senhora de apelido Neves Ferreira, que o teria herdado dos seus pais. É muito duvidoso que essa família o tenha construído pois é voz corrente na terra que era originária doutra aldeia que dista 20 quilómetros de Brunhoso. Dessa família ainda há descendentes na aldeia embora não haja ninguém que tenha herdado esse apelido porque o último dos seus antepassados varões morreu há mais de 60 anos, solteiro e sem filhos.

A casa grande retratada na foto que se segue, foi mandada construir na década de 40 do século passado pela Dona Adelaide das Neves Ferreira, a última descendente conhecida dessa família que conservava ainda esse apelido. Era irmã do último Neves Ferreira que ainda terá vivido com ela ocasionalmente alguns anos.


Recordo-me desta senhora como de uma castelã nos seus domínios pois ela, que era solteira, vivia sozinha com as criadas, nessa casa imensa um pouco semelhante às casas solarengas que os nossos “brasileiros” ricos mandaram construir no início do século vinte. A casa foi construída por um lendário pedreiro de Brunhoso, de apelido Moredo, depois de ter regressado ainda novo do Brasil, para onde voltaria novamente alguns anos após a sua construção para garantir o sustento e o futuro dos seus onze filhos. Com muito trabalho, génio, conhecimentos adquiridos e com a ajuda dos filhos, esse pedreiro, quase analfabeto, fundou em S. Paulo uma firma de construção e importadora e exportadora de pedras, sobretudo mármores e granitos, de projecção internacional.

A Dona Adelaide era uma mulher afável, elegante e tão alta que os conterrâneos se referiam a ela com a alcunha de “A Longa”. Alguns mais antigos ouviram aos seus pais que na juventude se terá perdido de amores por um moço de lavoura da casa e quando a família lhe proibiu esse devaneio amoroso, jurou que nunca casaria com outro homem.

Nesses tempos antigos, apesar de muitas leis, muitos tabus e proibições, a atracção entre os sexos, sempre levou alguns enamorados/as mais fogosos e aventureiros a não respeitar essas barreiras e a entregaram-se a esse sentimento, por vezes transformado numa paixão tão violenta que apelava à comunhão de corpos e almas. A literatura fala-nos de muitas dessas paixões impossíveis por vezes trágicas, sendo a mais emblemática a de Romeu e Julieta.

Essa sociedade antiga, quase medieval de terratenentes, tinha regras próprias, muito rígidas sobre o amor, as paixões e o casamento. O amor era um bem somente transacionável e permitido entre os membros da mesma classe, com o mesmo poder económico e social. Quando eram homens ricos ou filhos de ricos atraídos pelas “criadas” (empregadas domésticas) , ou outras mulheres “pobres”, solteiros ou já casados muitas vezes conseguiam estabelecer ligações com essas mulheres, à revelia dos bons costumes e da família, muitas vezes ilegais, outras vezes adúlteras, segundo as leis da igreja e segundo a lei civil, que o tempo e o sentido prático das gentes, se encarregaria de "legalizar".

Quando eram mulheres ricas atraídas por criados de lavoura ou de uma classe económica mais baixa, raramente originavam relações esporádicas ou duradouras, dado o estatuto de inferioridade de que a mulher gozava que lhe dava pouca liberdade e autonomia.

Não casou, teve uma vida longa a ministrar conhecimentos de costura, tear, bordados e outros conhecimentos práticos às raparigas da aldeia.
Tratava também do arranjo da igreja, das capelas e dos santos, nesse tempo ocupações próprias para sublimar as frustrações das mulheres solteiras da sua condição social, privadas das alegrias próprias de quem constitui família. Ainda garoto entrei algumas vezes nessa casa grande, que me despertava bastante curiosidade, na companhia de um sobrinho neto da proprietária que por ironia do destino, continua ainda solteiro, tal como a tia-avó e vive sozinho nela, já restaurada e com algumas alterações no seu interior.

Há outras casas na aldeia que merecem um passeio, uma reflexão sobre o seu passado, as transformações que sofreram, o seu estado de conservação e os seus moradores mais antigos ou actuais.
Percorro as suas ruas que são também ruas do meu passado, as pedras que piso e as que se erguem em altura, com tanta história para contar, estão cada vez mais caladas porque as vozes do povo são pouco audíveis, o chiar dos carros de bois são um som que se perde no tempo e na distância e o chilrear dos pássaros cada vez mais monótono parece uma sinfonia triste.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16297: Brunhoso há 50 anos (9): O Ciclo do Pão (2) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

terça-feira, 12 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16297: Brunhoso há 50 anos (9): O Ciclo do Pão (2) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 8 de Julho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), traz-nos a segunda parte do Ciclo do Pão.


Brunhoso há 50 anos

 9 - O Ciclo do Pão (2)

Depois das ceifas ou em parte em simultâneo, era necessário fazer o transporte dos molhos de trigo que os ceifeiros tinham juntado em "rilheiros" nas terras já despidas de cereal e cobertas de restolho áspero. Começava a “acarreja” assim se chamava essa grande operação do transporte dos molhos de trigo e centeio para as eiras do Prado e outras eiras particulares, para serem trilhados ou malhados.

Os lavradores normalmente iam dormir às terras, com o gado, para a primeira carrada estar nas eiras ainda antes do nascer do sol, aproveitando o calor das noites e a luminosidade dessas alvoradas de Verão. Por esse ou por outros motivos cheguei a dormir muitas vezes no campo nessas noites quentes de verão, tendo por luz somente o céu estrelado que cobria a terra com um manto de estrelas que brilhavam como se o Universo tivesse renascido.

Os carros eram carregados, como diziam os lavradores, com "pousadas", conjunto de quatro molhos, e havia muito rivalidade nessas cargas, quer pela melhor aplicação da técnica utilizada, quer por carregarem mais, sinal de animais possantes e bem treinados.

Devido a esse peso, os carros "chiavam”, assim se dizia e, para que isso não acontecesse, primeiro porque o eixo aquecia muito e podia arder com a fricção, e também porque se andassem nas estradas, mesmo municipais, poderiam ser multados, untava-se o eixo e as "estreitouras" com sabão caseiro ou com borras de azeite.

Logo ao inicio do alvorecer, dessas manhãs claras de Verão, com o sol ainda escondido atrás dos montes, os lavradores, os filhos ou os criados de lavoura regressavam numa primeira viagem com os carros carregados de trigo ou centeio, numa marcha lenta que enchia os ares dessa música continua e arrastada, produzida pela fricção das rodas, que parecia um lamento transformado em sinfonia, que desagradava às autoridades policiais, mas não desagradava às gentes da aldeia. À medida que os dias iam passando, as medas nas eiras iam crescendo em largura e altura, algumas imponentes como grandes pirâmides, e outras mais ou menos modestas de acordo com a riqueza em terras de cultivo de cada um. Eu, como de resto os meus irmãos, na adolescência, só começávamos a ir à acarreja, quando o meu pai achava que já tínhamos músculos nos braços para poder atirar, com uma espalhadoura, os molhos para os carros, onde o irmão mais velho ou alguém os acomodava. Na década de cinquenta esse trabalho seria feito por um criado de lavoura, que se "justava" anualmente no dia de S. Pedro, e por um trabalhador que era chamado à jeira. Eu e os meus irmãos, à medida que íamos crescendo, como no geral os filhos dos lavradores menos abastados, íamos fazendo todos ou quase todos os trabalhos agrícolas. Depois das ceifas, o trabalho mais duro das colheitas, de que o nosso pai nos poupava com trabalhos menores, como distribuir água aos ceifeiros ou levar-lhes as refeições nos alforges em cima da burra, voltávamos a ser novamente trabalhadores activos no primeiro plano das actividades agrícolas. A acarreja seria uma tarefa de quinze dias, mais ou menos, em que animais e homens andavam num rebuliço constante que começava logo nesses alvoreceres de verão, suspendia-se durante as horas de maior calor, para recomeçar outra vez à tarde. As eiras do Prado eram um grande espaço de relva próximo da aldeia, propriedade da Igreja (Fábrica da Igreja, como se denominava), onde todos os que não tivessem uma boa área de terreno, uma cortinha ou um prado, próximo da aldeia, podiam trilhar ou malhar os cereais. Fora da época das colheitas era um terreno de pasto, destinado a burros e outros animais de carga, aproveitado sobretudo pelos mais pobres que não tinham “lameiros” (o mesmo que prados) onde os pudessem levar a pastar. Todos os grandes lavradores, cinco ou seis, tinham eiras próprias para fazer as debulhas.

Nos primeiros anos da década de cinquenta os cereais ainda eram debulhados, tal como acontecia com as ceifas, pelo processo tradicional e histórico, igual aos dos antigos povos de lavradores da bacia mediterrânica, com recurso ao trilho e à trilha.

O trilho, aparelho para debulha do cereal, é uma espécie de estrado de madeira, compacto e com algum peso, com lâminas de ferro em forma de faca fixados na parte inferior. Puxado pelo gado na eira, com o condutor em cima do trilho, para maior pressão sobre o cereal tirado das medas, e previamente espalhado, depois de cortados os ”vincelhos” dos molhos. Os vincelhos, com que os ceifeiros atavam os molhos de cereal na ceifa, faziam-se atando o próprio cereal pelas espigas de forma a não se soltarem. Havia sempre um garoto que ia no trilho com uma cortiça em concha, para aparar as fezes dos animais.

Trilho
Com a devida vénia a Capeia Arraiana

As lâminas de ferro separavam o grão da espiga e cortavam a palha.

A Trilha, em tudo igual aos trilhos, mas em vez de metal, tinham seixos cravados na madeira e usavam-se, sobretudo nas lentilhas e tremoços.

Depois da malha o trigo (ou centeio) era junto em parvas, compridos montículos com pouca altura, para fazer a separação da palha e do grão, com a ajuda do vento, utilizando pás próprias para esse efeito. Depois de separado o cereal da palha, era metido com as rasas ou rasões nos sacos de linho grosso com a capacidade de cerca de cinquenta quilos cada um. No fim do dia os sacos seriam carregados nos carros de bois e transportados para as despensas dos lavradores, muitas vezes despejados em tulhas a aguardar o transporte para o celeiro, situado à beira da estação dos caminhos de ferro de Mogadouro. A palha era também carregada nos carros que eram providos de grandes cancelas para puderem transportar mais quantidade, e levada para os palheiros e curraladas. As curraladas eram recintos grandes que alguns lavradores tinham, onde guardavam as alfaias agrícolas, a palha, o feno e nalguns casos também os animais de trabalho.

Os mais pobres ainda utilizavam os malhos ou, "manguais", para todo o tipo de cereal, primeiro porque a colheita era pequena, segundo porque os trilhos eram caros para as suas posses.

Malhar o centeio
Com a devida vénia a Quinta do Lagar da Moira

Parte do centeio era sempre malhado pela força dos homens com os malhos, preservando o caule inteiro, chamado colmo, muito útil para fazer albardas, belfas, encher os xaragões (colchões de colmo, já que outros não havia) e para chamuscar o pelo dos porcos nas matanças, durante o inverno. Nesse tempo havia uma aldeia no concelho de Freixo de Espada-à-Cinta, chamada Fornos, a cerca de 30 kms de Brunhoso, onde os telhados da maioria das casas eram cobertos de colmo. Outras iguais havia nas zonas serranas e mais afastadas, tanto nas Beiras como em Trás-Os-Montes.

A debulha era o epílogo do longo ciclo do pão, o culminar de uma grande jornada onde todos estavam presentes: os homens, as mulheres, os pais, as mães, os filhos, os patrões, os trabalhadores, os novos, os velhos. A gente de Brunhoso saía toda de casa para ajudar nas malhas, o final das colheitas do cereal. Em casa só ficavam as mulheres dos lavradores e algumas ajudantes a fazer comida, pois era necessário alimentar todo esse exército de trabalhadores que estavam nas eiras a tratar do grão e da palha. A comida era abundante tal como tinha sido a dos segadores nas ceifas. Havia uma algazarra própria dos grandes acontecimentos, com todo esse povo de homens e mulheres, sujos do pó do cereal e da palha, a trabalhar debaixo desse sol tórrido de Agosto, ou sentados em longas mesas improvisadas com trigo ou centeio a comer as melhores comidas que as patroas sabiam fazer e a beber o vinho “precioso” da colheita do patrão ou comprado para os lados de Miranda do Douro. Eram dias de grande convívio, trabalhava-se muito, mas falava-se, gracejava-se, comia-se bem, bebia-se bastante. O que recebiam desses dias de trabalho além do vinho e da boa comida, do prazer dessa convivência alargada, era um agradecimento dos lavradores que se confundia com a caridade cristã, de alguns alqueires de trigo ou centeio, ou pães já cozidos que em tempos posteriores de mais necessidade lhes dariam para eles e para os filhos e alguns sacos de palha, para alimento dos burros. Era pouco mas esse pagamento ancestral dessa ajuda por comida e por alguns benefícios futuros certos ou incertos, era muito antiga, tão antiga que os mais velhos já não sabiam se tinha sido instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, na Galileia, que era terra de trigo. Tinha uma vizinha, mãe de muitos filhos, boa mulher, muito faladora e sociável que não perdia um dia de colheitas.

Nos primeiros anos da década de cinquenta, do século passado, era eu garoto, e recordo-me ainda das debulhas serem feitas da forma que descrevi atrás, somente por homens e animais. Talvez ainda antes de meados dessa década surge a malhadeira uma grande máquina que por processo mecânico, movida inicialmente por um motor a gasóleo e posteriormente por um tractor, separa a palha do grão, saindo a palha já moída por uma abertura larga e o grão por outras aberturas mais estreitas onde havia sacos de linho a encher, vigiados por trabalhadores.

Malhadeira
Com a devida vénia a Paisagens de Trá-os-Montes

O primeiro tractor agrícola surge em Brunhoso, disso recordo-me ainda bem, a meio dessa década e quando foi levado ao lavrador que o comprou para demonstração, com arados e outros acessórios provocou grande sensação e juntou muita gente, pequena e grande sobretudo do género masculino.

Nunca me esqueci era um David Brown, grande e azul .

Tractor David Brown 900 de 1957
Com a devida vénia a The David Brown Tractor Club

Passados alguns anos, já na década de sessenta, irão entrar na aldeia as ceifeiras debulhadoras, máquinas agrícolas, uma espécie de grandes tractores, que se deslocam às searas e fazem toda a ceifa e a debulha à medida que cortam o cereal, que irão alterar radicalmente as formas ancestrais de ceifar e transformar as searas em grão e em palha. As primeiras ceifeiras da região, eram do chamado GRÉMIO DA LAVOURA, instituto do estado que fomentava o cultivo dos cereais, quando vieram para esta região já eram usadas, vinham do Alentejo, onde já eram consideradas pequenas e obsoletas. Com a introdução das ceifeiras-debulhadoras, os antigos ceifeiros passam a ser meros espectadores desse progresso tecnológico onde não havia lugar para eles. Provavelmente será uma das causas, associada a outras, da debandada em massa, a salto, desses trabalhadores para França e para essa Europa das nossas ilusões, depois das Índias, das Américas e das Áfricas. Os homens querem jeiras, querem trabalho e ele cada vez escasseia mais.


A agricultura sujeita a variações de produção provocadas pela seca, a chuva excessiva, as trovoadas o granizo e outras causas naturais pelo que os povos de agricultores procuraram sempre a protecção de entidades sobrenaturais para se protegerem de todas essas calamidades.

A palavra cereal vem de Ceres, a deusa romana da agricultura da colheita e dos grãos.
Ceres, generosa na essência e na forma, é bela sem sofisticação, serena e natural como uma flor silvestre.
Tem outras representações de acordo com os gostos e a sensibilidade dos seus adoradores ou artistas. Eu imagino-a tal como a descrevi.

Ceres é também um símbolo da fertilidade e da vida tal como a sua irmã da mitologia grega a deusa Deméter.
Quando o Império Romano declara o cristianismo como sua religião oficial, no século IV dC, através o imperador Teodósio, as competências de muitos deuses e deusas da antiga religião politeísta são atribuídas pela Igreja a santos e santas.
S. Isidoro, um santo espanhol, é o protector dos lavradores, quase desconhecido no Nordeste Transmontano onde no geral se pedia auxílio a Santa Bárbara, virgem e mártir, protectora das trovoadas e doutros males associados como aguaceiros fortes e o granizo.
A festa à Santa Bárbara, nesse tempo antigo, ainda antes da "fuga" dos trabalhadores para a Europa, era celebrada no segundo domingo de Setembro, quando as colheitas já estavam feitas com o cereal e a palha recolhidos. Era um tempo em que se podiam lançar os foguetes sem o perigo de incendiar as searas ou as medas de trigo e era a ocasião de agradecer à Santa os resultados das colheitas do ano.

Francisco Baptista
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Nota do editor

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