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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22982: Historiografia da presença portuguesa em África (303): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Pergunto-me muitas vezes quantos investigadores vieram beber a este trabalho de longa cifra e decifra de Senna Barcelos, João Barreto, que escreveu a primeira História da Guiné, seguramente que o consultou à exaustão. Este brioso oficial da Marinha foi não só meticuloso com os factos e feitos que a História registou como nunca se escusou a dar opiniões, releva as situações de incúria e desleixo, as traquibérnias e assaltos, as incompetências e o estado de hostilidade permanente à volta das praças e presídios. Agora apertam-se as pressões da França a norte e da Inglaterra a sul, dentro de décadas iremos legalmente perder a nossa presença no Casamansa (estava praticamente circunscrita a Ziguinchor) e os brigues ingleses destroem e até matam em Bolama ou na Ilha das Galinhas, sonham deter a hegemonia no Rio Grande de Buba. A figura que sobressai é a de um político exemplar, Honório Pereira Barreto, e todo o período que Senna Barcelos a seguir vai descrever tem algo de tétrico, a rapina estrangeira cerca o que resta da Senegâmbia Portuguesa, Lisboa está praticamente indiferente, há um deputado alarve que nem sabe o que era o Casamansa e Alexandre Herculano, que se estreava nas lides parlamentares, zurziu a animália. O leitor que se prepare, a intimidação e a gula estrangeira vão ganhar intensidade.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (7)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Avançamos para o material restante da parte IV dos Subsídios para a "História de Cabo Verde e Guiné" que conheceram edição em 1910. A figura central deste período é Honório Pereira Barreto. Sabe-se de todas estas sublevações, assassinatos, roubos, intromissões e ingerências de potências estrangeiras graças aos relatórios que Senna Barcelos leu atentamente. O ex-Governador da Guiné Gonçalves Barbosa entregou um relatório referente à Guiné em 1841, mas dois anos antes Honório Barreto já tinha dito verdades como punhos e dava um quadro bastante cru da situação:
“As possessões portuguesas na Senegâmbia compõem-se dos Estabelecimentos seguintes: no rio de Geba, a Praça de Bissau; e nas dependências, Nova Peniche (Ilhéu do Rei), Geba, Fá; e Bolama no Arquipélago dos Bijagós; no Rio de S. Domingos o presídio de Cacheu e dele dependentes Farim, Bolor, Ziguinchor e Gonzo, tudo com uma população de 3 a 4 mil almas entre brancos, pretos, livres e escravos. Estes estabelecimentos todos são hoje de pouca importância pela indiferença culpável com que a maior parte das autoridades da província olham para as elites, indiferença que produz muitas outras causas para a sua decadência. Antigamente Bissau e Cacheu formavam dois governos separados, mas desde 1834 ficaram debaixo de um só governo. A sede é Bissau”.

E segue-se a descrição de Bissau como residência do governador, apresentada como uma praça de guerra regular, quadrada, tendo cem toesas de cada lado e estando ao tempo guarnecida com 70 baionetas e 22 peças de artilharia; dentro da Praça havia um quartel para 300 praças, mas em mau estado, e que ameaçava já ruína; o quartel para oficiais também estava degradado, havia uma pequena igreja, um armazém e falava-se mesmo num vergonhoso quartel do governo. Fora dos edifícios da Praça estava a povoação onde havia apenas cinco casas cobertas de telha, todas as outras eram de barro, cobertas de palha, indicando tudo o maior atraso e miséria. A figura de Honório Pereira Barreto agiganta-se como governante, com o seu elevado patriotismo, pelo seu timbre de lealdade. Adquiriu a amizade das populações, dava sinais de revolta contra a ociosidade, fosse dos Grumetes, fosse dos cristãos, sonhava com guineenses competentes e bons profissionais. Veja-se o teor de uma carta que manda ao Ministro da Marinha em Cacheu a 16 de dezembro de 1845:
“Ilustríssimo e excelentíssimo Senhor,
O bem do meu país é o único alvo a quem se dirigem todos os meus esforços, e todas as minhas vistas. Eu o promoverei com as poucas forças que tenho.
Por mim pouco ou nada posso fazer; mas eu tenho conhecido que Vossa Excelência também deseja e promove a felicidade das possessões ultramarinas.
Não posso ver sem dor a ociosidade, ou por melhor me explicar, a selvagem indolência em que vivem os habitantes deste presídio, chamados Grumetes. Nenhum deles sabe ofícios mecânicos; para se fazer a mais pequena obra é preciso mandar vir obreiros da Gâmbia. O governo sem dúvida quer propagar a civilização em África, e para isso tem mandado fundar escolas primárias: sem dúvida é um passo muito acertado, mas não é menos necessário que haja oficiais mecânicos. O país ganha com isso e é também um passo para a civilização.
Tenho observado que ensinados aqui os Grumetes, nada aprendem: porque cedo se dão à embriaguez ou à crápula e tornam-se por isso estúpidos. Proponho, pois, a Vossa Excelência que expeça ordens para que eu lhe remeta pelos navios do Estado, que vierem buscar madeira, um número de rapazes livres para aí se aplicarem a diversos ofícios.
Dir-me-á Vossa Excelência talvez de que Bissau se enviaram há tempos uns poucos de rapazes que estiveram no Arsenal, e nada aproveitaram do ensino. Permita-me porém que lhe observe que os Grumetes de Bissau são diferentes dos deste governo; e que lhes ensinaram a ler, e por isso desprezaram o ofício que aprenderam e se tornaram mercadores; eu creio ainda que quando eles foram para esse, já tinha uma idade suficiente para levarem consigo ao menos uma insuperável disposição para todos os vícios dominantes nestas praças; e por fim direi – a crer o que eles afirmam, nem os trataram bem, nem o seu ensino era muito rigoroso.
Outro tanto não acontecerá agora; porque eu escolherei a gente que mandar e estou inteiramente certo que Vossa Excelência vigiará sobre a sua aplicação. Deus guarde Vossa Excelência”
.

Voltando ao espírito destes relatórios, não é difícil concluir a existência de um quadro permanente de incúria, incompetência e detenções permanentes com as populações limítrofes, tanto em Bissau como em Cacheu. Lê-se constantemente queixas sobre a indolência, a perda de respeito à bandeira portuguesa, o gentio só obedece aos régulos: “O gentio insulta quotidiana e impunemente os habitantes sujeitos ao governo, espancando-as dentro das suas casas”. E concretamente em Bissau fala-se do que é o descontentamento militar:
“Os pagamentos às Praças de Pré são feitos em toda a colónia em pólvora, tabaco e algumas outras mercadorias; e aos empregados oficiais, inclusive o governador, metade como aos soldados e outra metade em cédulas que são umas notas emitidas por Manuel António Martins quando Prefeito. Ora, esta maneira de pagar bem mostra a desgraça do país; não há uma botica, e isto num país onde o clima é letal; a casa que serve de hospital é própria para fazer adoecer os que têm saúde e para matar os que estão doentes”.

Falou-se anteriormente na chegada a Bissau de Alois de Rolla, Dziesaski. Polaco, tal como de Chelmicki, nascido naquele país em 1997, veio para Portugal ao serviço da rainha em junho de 1883, depois de promoções sucessivas foi tenente-coronel em 1882. Revelou-se um oficial brioso, tendo prestado relevantes serviços à Guiné, pugnando sempre pelos interesses da sua pátria relativa.

Os ingleses voltam a cometer tropelias, raptos e destruições. Senna Barcelos regista a queixa do agricultor, que foi coronel de milícias e antigo Governador, Joaquim António de Matos, proprietário na Ilha das Galinhas, contra o comandante do vapor inglês Pluton, a tripulação praticou extorsões e destruições em série na ilha, roubaram-lhe a casa e tiveram a barbaridade de assassinar a filha mais velha. A queixa foi endereçada a António Tavares da Veiga Santos, então Major Governador de Bissau, em março de 1842. Nesse mesmo ano, o ministro inglês em Lisboa, Lord Howard de Walden, reclamou do Duque da Terceira, Ministro dos Negócios Estrangeiros, contra as ordens expedidas pelos governadores de Bissau e Cacheu para que os navios estrangeiros não pudessem subir os rios Geba e Cacheu, e isto na ocasião em que se negociavam os tratados de comércio e navegação e em que se procurava pôr termo à escravatura. Acontece, como informou o Ministro da Marinha e Ultramar ao Duque da Terceira, estava proibida aos navios estrangeiros por direito estabelecido e reconhecido por todas as nações e continuaria a ser, com exceção dos casos de arribada forçada. Os apetites ingleses não paravam. Em maio desse ano chegava novo vapor inglês cujo comandante vinha reclamar os direitos de Inglaterra à soberania e posse da ilha. A questão de Bolama ganhava intensidade. A bandeira inglesa será arreada e até 1848 os ingleses não exercerão mais nenhum ato de pirataria em Bolama. Depois sim, no período até 1853 voltarão à carga, não querem só apossar-se de Bolama, querem também o rio Grande de Bolola, é a região de Buba.

Vejamos agora em síntese alguns acontecimentos relevantes apontados por Senna Barcelos no período correspondente a 1843 até 1853.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22958: Historiografia da presença portuguesa em África (302): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (6) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22958: Historiografia da presença portuguesa em África (302): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Do que até agora se transcreveu do importantíssimo trabalho de Senna Barcelos, a continuidade que o autor pretendeu dar à sua ampla investigação que se inicia com as primeiras viagens à região da Senegâmbia, e passando por três dinastias, dá perfeitamente para compreender o papel subalterno que era politicamente conferido à subcolónia, tudo era decidido em Cabo Verde, o governador punha e dispunha, embora as nomeações para Cacheu e Bissau viessem de Lisboa. O que agora se reporta corresponde ao período de intervenção de Honório Pereira Barreto, que sai claramente engrandecido na narrativa de Senna Barcelos. Barreto não só compra porções de território e oferece-os à Coroa, como troca correspondência bem frontal com os franceses em Gorée. E os ingleses também estão à espreita, não querem só a Serra Leoa, ambicionam estacionar no Rio Grande de Buba e apoderar-se de Bolama. Tudo é sempre precário em Bissau, como iremos ver na continuação e conclusão destes Subsídios para a História da Guiné e de Cabo Verde, parte IV, 1910, sublevações, homicídios, raptos, cercos à fortaleza e à povoação limítrofe serão fartura.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (6)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. 

O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Estamos em 1837, Honório Pereira Barreto está atentíssimo ao que se passa na região do Casamansa, assiste à gradual infiltração francesa. Em 16 de junho, dava conta ao Ministro da Marinha e do Ultramar da ida do governador da Gorée ao rio Casamansa numa escuna de guerra, com o fim de ocupar uma das margens, fazendo-se ali um estabelecimento comercial. Enviou-lhe cópias da correspondência trocada entre as novas autoridades e o comandante e governador do Senegal. O governo de Lisboa manifesta-se pouco sensível à gravidade da situação. Ora a presença a francesa tem o seu histórico. 

Foi em 1828 que o negociante francês comprou aos gentios na foz do Casamansa a Ilha dos Mosquitos (hoje Ilha Carabane), onde fez depósitos para guardar mancarra e outros géneros comerciais. Sorrateiramente, compraram também os franceses em 1837 a um chefe Mandinga um terreno denominado Selho para ali estabelecer as suas feitorias. 

Forçada em Ziguinchor a passagem pelo rio acima, sem que a nossa diplomacia por essa época conseguisse sacudir dali os franceses, o governador da Gorée mandou levantar a fortaleza guarnecida de boa artilharia e tropa. Era a política do facto consumado. E inventou-se a patranha de que o território estava associado à França. Vejam-se os argumentos. O governador do Senegal escreve em 28 de abril de 1838 que muito antes dos ingleses e portugueses a França tinha criado estabelecimentos no Senegal e que em 1713 o Tratado de Utrecht, entre a França e Portugal, tinha reconhecido o direito da França. O governador francês pura e simplesmente inventava argumentos, será prontamente refutado, o Artigo 21º do referido Tratado de Utrecht previa que a França evacuasse todos os territórios portugueses. A refutação não ficou por aqui, foi-se à história, invocou-se a Crónica da Guiné de Zurara, a Bula Papal que erigiu o bispado de Cabo Verde e onde se reconhecia a legitimidade dos portugueses no descobrimento e posse da Guiné, adicionando mais elementos, como o Tratado Breve dos Rios da Guiné, de 1594, o seu autor foi André Alvares d’Almada, a Relação do Padre Fernão Guerreiro, de 1605 e a Descrição da Guiné escrita em 1669, por Francisco de Azevedo Coelho.

Senna Barcelos é minucioso em toda esta documentação sobre a presença francesa no Casamansa, a troca de correspondência com o Ministro da Marinha e Ultramar é abundante. Logo a carta de Sá da Bandeira, datada de 21 de junho de 1838 em que dá notícia que a rainha ordena ao governador-geral de Cabo Verde que expeça ordem ao governador de Bissau para que com a maior brevidade erija um forte com bandeira portuguesa na margem do sul da embocadura do rio Casamansa, no mesmo braço do rio em que se acha o estabelecimento francês feito em 1828. E há os protestos de Ziguinchor pela atitude soberana e provocatória de barcos de guerra franceses. O cinismo deixa de ter limites na gula francesa, veja-se a carta do comandante da ilha de Gorée, G. Dagorne enviada para Ziguinchor:

“Tenho a honra de vos informar oficialmente que acabamos de adquirir em nome de Sua Majestade, o rei dos Franceses, na aldeia mandinga de Selho, um terreno destinado para estabelecer uma feitoria. Estando convencido que as relações mais extensas, que esta circunstância vai estabelecer entre o comércio e os habitantes de Ziguinchor, serão úteis e agradáveis a ambos os lados, eu espero que as embarcações mercantes francesas, que navegarem no Casamansa para cima e para baixo, longe de experimentarem o menor embaraço neste lugar, onde comandais, acharão pelo contrário todo o bom acolhimento e benevolência, que prestam ordinariamente as nações civilizadas e amigas”.

Honório Pereira Barreto deu-lhe prontamente a resposta:

“Acabo de ser informado pelo comandante de Ziguinchor que Vossa Excelência a bordo de um navio de guerra passou aquele presídio, foi pelo rio acima e comprou um terreno aos Mandingas em Selho. Por este motivo o supradito comandante protestou contra semelhante ato e eu da minha parte me dirijo a Vossa Excelência para dizer que a compra que Vossa Excelência fez do terreno nada influi, muito bem sabe que não tinha direito algum de passar a bandeira portuguesa dentro do rio Casamansa; e que Vossa Excelência não fez mais do que usar do direito da força que nada valida, e assim eu protesto contra uma tal agressão por Vossa Excelência cometida”.

Todas estas peripécias estão minuciosamente inventariadas por Senna Barcelos, dá-se mesmo conhecimento ao governador da Gâmbia de tudo quanto se está a passar, mas da Gâmbia não chegaram os socorros pedidos por Honório Pereira Barreto. O governador do Senegal insiste com os direitos históricos franceses, sempre refutados e o governador de Cabo Verde informa da situação para Lisboa.

Mas os acidentes não acabam por aqui, vão-se estender a Bolama, isto enquanto Honório Pereira Barreto procura adquirir mais parcelas na Guiné. Ele passa por Bolama em dezembro de 1937, é governador da Guiné, e ratifica a posse da ilha, onde Caetano Mozolini e Aurélia Correia possuíam boas propriedades agrícolas e urbanas na região oeste. 

Barreto celebra em 25 de dezembro desse ano um acordo com Ondoton, rei do Chão de Intim, obrigando-se o governador a entregar a este rei mensalmente 12 frascos de aguardente e 25 libras de pólvora e o rei de Intim obriga-se a submeter toda e qualquer questão ou desavença à decisão do governador da Praia. Barreto compra o Ilhéu do Rei em novembro de 1839. Mas a chamada questão de Bolama já está em curso. O tenente Kellet, comandante do Brisk, deixou cometer os maiores desatinos em Bolama em dezembro de 1838, também aqui Senna Barcelos deixa abundantes referências à ação do governador. Barreto pede exoneração em 1839, e é-lhe concedida. Da força existente em Cabo Verde e Guiné, era assim a sua distribuição na Guiné em 1840: 96 em Bissau, 39 em Cacheu, 13 em Farim, 10 em Ziguinchor (com um alferes), 4 em Bolor, 15 em Geba (com um alferes), 15 em Bolama (com 2.º sargento e um cabo), um total de 184 militares. São crónicas as insubordinações das forças militares de Bissau. Em 18 de novembro de 1840 passou a Bissau o Major Alois de Rolla Dziesaski, será governador de Bissau em diferentes períodos.

(continua)


Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Rio Casamansa
Estátua de Honório Pereira Barreto em Bissau, período colonial. O Estado independente ainda não reviu a sua posição com um dos seus pais-fundadores
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Notas do editor

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Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22956: Historiografia da presença histórica portuguesa em África (301): mapa francês dos anos de 1680 que mostra a região de Casamansa, Cacheu Farim e Bissau

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22941: Historiografia da presença portuguesa em África (300): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2021:

Queridos amigos,
É indubitável que Senna Barcelos investigou a sério estes subsídios da História de Cabo Verde e não é por puro acaso que os estudiosos ainda hoje a ele recorrem. Estou à vontade para dizer que assim é, descreve fomes, sublevações, melhoramentos, penúria, corrupções, com minúcia, são textos intencionais, vê-se perfeitamente que ele deposita ali a sua alma de cabo-verdiano. É muito mais parcimonioso com a Guiné, o que também dá para entender, mas de modo algum se coíbe de falar nas sublevações, roubalheiras e atos afins. Chegámos ao tempo da guerra civil entre liberais e absolutistas e ele destaca perfeitamente a ocupação de Bolama e a cessão da Ilha das Galinhas, a Guiné continua totalmente dependente das decisões de Cabo Verde, e o leitor que se prepare, Honório Pereira Barreto vai entrar em cena e Senna Barcelos vai-nos dar com todo o pormenor a entrada dos franceses no Casamansa.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (5)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Estamos num período de transição, faleceu D. João VI em 10 de Março de 1826 e o período que se perfila no horizonte é de extrema convulsão, abarca a Guerra Civil e vamos assistir às administrações liberais. A questão de Bolama começa a ganhar contornos. O Governador de Cabo Verde, Caetano Procópio, encarregou Joaquim António de Matos, Coronel de Milícias da ilha de Santiago, do novo estabelecimento de Bolama. Matos chega a Bissau em 20 de Abril de 1830 e reuniu com os reis de Canhambaque e Rio Grande, pediu a confirmação da concordata feita em 1828 com o então Governador Muacho, a confirmação foi dada, e seguirão todos para Bolama para a tomada de posse. Em Junho, Joaquim António de Matos foi nomeado Governador da Praça de Bissau e Diretor do Estabelecimento de Bolama. Neste período fundou-se o presídio de Bolor. Matos, incansável, pretendia influenciar a presença portuguesa. Foi à Ilha das Galinhas onde fez saber que obtivera do rei Damião, da ilha de Canhabaque, uma ilha denominada das Galinhas, tendo mandado construir casas, cortar mato e fazer sementeiras, alegando que era importante mostrar aos ingleses, que tinham estabelecimentos próximos, que era ali que a bandeira portuguesa plantava. Não queria tomar conta da ilha das Galinhas sem licença do rei Damião. Este fez a doação da ilha ao Coronel Matos que pronto a cedeu à Coroa de Portugal. O coronel, então das milícias, requereu a patente de Coronel de Primeira Linha, e garantia que iria estudar os domínios de Portugal na Guiné. O Conselho Ultramarino emitiu parecer favorável aos pedidos do Coronel Matos que o rei deferiu.

Mas a instabilidade nas Praças e Presídios era permanente. Damos a palavra a Senna Barcelos:
“Em Maio de 1826, parte dos soldados da guarnição do presídio de Cacheu sublevou-se, desobedecendo ao comandante e insultando os oficiais, sendo mais ofendido o major António Tavares da Veiga Santos. Restabelecida a ordem, efetuaram-se algumas prisões, e pelo inquérito a que se procedeu, apurou-se serem 15 os soldados culpados, que foram remetidos para a Praia; nesta inquirição ficou culpado o tenente-coronel Paulo Xavier Crato, governador da Praça, acusado de ser o iniciador e consentidor do tumulto. O governador Procópio de Vasconcelos, de posse do processo ao Conselho de Averiguação, teve dúvidas se este conselho seria o bastante para os culpados responderem a Conselho de Guerra, ou se seria preciso fazer-se pela Ouvidoria-Geral uma devassa; igualmente sobre o tenente-coronel Crato encontrava dificuldades para responder a conselho, por falta de um general, como determinava o regulamento de 1763. Consultou o ministro que lhe respondeu que esperasse até que houvesse ouvidor-geral nas ilhas para fazer a devassa, pois esta era indispensável para os culpados responderem a conselho de guerra. O ouvidor nomeado não passara às ilhas e o tenente-coronel faleceu em janeiro de 1830 sem ser julgado”.
Podíamos continuar, mas neste caso a culpa morreu solteira.

Em 1827, cedeu-se à Coroa de Portugal os terrenos de Fá, no rio Geba. Já estamos no período em que há combates renhidos em vários pontos do país entre os partidários de D. Miguel e os de D. Pedro. A infanta-regente D. Isabel Maria entregou a regência a D. Miguel em 26 de Fevereiro de 1828. D. Pedro, que havia confiado a regência a seu irmão D. Miguel, arrependeu-se, o Senado de Lisboa proclamava D. Miguel rei e os partidários deste, muitas vezes à pancada, faziam assinar às pessoas que encontravam uma representação em que se pedia a D. Miguel que cingisse a Coroa. O resto é bem conhecido de todos, D. Pedro abdicou em junho de 1831 à Coroa do Brasil e com o simples título de Duque de Bragança pôs-se à frente de uma expedição que partiu dos Açores em 23 de Junho de 1832. A guerra é fratricida concluirá com a Convenção de Évora-Monte, em 26 de Maio de 1834, seguindo-se o exílio de D. Miguel.

Voltando à Guiné, é nomeado em 1827 Governador de Bissau o Primeiro Tenente da Armada Francisco José Muacho. Em Julho do ano seguinte, conseguiu este governador dos reis de Canhabaque e de Beafadas a cessão da ilha de Bolama para a Coroa de Portugal, nos seguintes termos que constam do relatório que o governador produziu:
“Neste dia – 11 de Julho de 1828 – veio o rei de Canhabaque à casa da residência do Governo, e tratando com ele sobre o estabelecimento dos portugueses na ilha de Bolama, e confirmando com o aperto de mão e abraço, que ele só quer que os portugueses ali se estabeleçam, pois que só os portugueses ama por estar aparentado com eles, e que mesmo, se outra qualquer nação pretendesse obter dele licença para se estabelecer na dita ilha, não consentiria sem permissão do Governador de Bissau, em quem delegava a sua autoridade a este respeito. Que não vende nem cede nenhum dos seus terrenos nem aos portugueses nem a outra qualquer nação (e o mesmo diz o rei de Beafada), porque os seus maiores nunca venderam nem cederam possessão alguma do que lhes pertencia a recebendo o presente que lhe fiz e aos seus grandes se retirou contente”.

Entramos agora na parte IV dos Subsídios da História de Cabo Verde e Guiné, o volume foi editado em 1910 e o primeiro período em análise refere-se a 1833 até 1842. Senna Barcelos desenvolve abundantemente as consequências das lutas entre liberais e absolutistas em Cabo Verde, descreve as fomes terríveis do arquipélago e dá-nos uma lista impressionante de deportações de opositores políticos de D. Miguel quer para as ilhas de Cabo Verde quer para Bissau e Cacheu. Os direitos alfandegários continuavam a ser tema dominante, Cabo Verde insistia em centraliza-los não dando qualquer autonomia à Guiné. Comprova-o o regulamento para a alfândega da Guiné aprovado nesta época que diz coisas como estas:
- O Delegado fará imediatamente constar por editais que a Fazenda Pública na Guiné tem um regulamento uniforme com o resto da Província, que não receberá direitos de alfândega nem outro tributo em géneros, mas sim em moeda-corrente nas ilhas de Cabo Verde e que para o futuro serão reguladas as alfândegas da Guiné pela mesma pauta que se adaptar às ilhas de Cabo Verde;
- Qualquer navio português ou estrangeiro que aportar em Bissau, Cacheu, Ziguinchor ou Bolor entregará na respetiva alfândega os papéis do navio que depois de examinados serão depositados num cofre para lhe serem entregues depois de ter satisfeito todas as obrigações com a mesma alfândega.

Um dado curioso que apraz registar é o tipo administrativo que então se usava, neste caso o de Prefeito: o Prefeito da Província de Cabo Verde e Costa da Guiné.

E de seguida Senna Barcelos, depois de nos dar um retrato de Honório Pereira Barreto detalha ao pormenor a crescente presença francesa no Casamansa perante a indiferença das autoridades de Lisboa.

(continua)


Pormenor da Fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22919: Historiografia da presença portuguesa em África (299): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22919: Historiografia da presença portuguesa em África (299): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Senna Barcelos é muito estudado pelos investigadores de Cabo Verde, tem infelizmente uma procura residual por quem estuda a Guiné. O que é injusto, ele procedeu a um levantamento muito sério do estado da Senegâmbia Portuguesa, teve mesmo intentos de procurar fazer um levantamento dos factos históricos a partir do século XV, como é evidente todo este período acabou por ser credor de mais rigorosas investigações, mas mantém a maior pertinência tirar do limbo todo este quadro convulsivo da mais completa derrisão em que se perpetuava a presença portuguesa, impressiona a péssima qualidade de gente que se mandava para a Senegâmbia, desde governadores ladrões a falanges completas de presos do Limoeiro. O que aqui se anota são alguns casos, e se o leitor se der à tarefa de ler estes Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné não tenho dúvidas que sentirá o maior desconforto com tanta sublevação, subornos, compadrios e ganância desmedida.

Um abraço do
Mário


Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (4)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que agora nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense. Tendo em conta os quatro principais depoimentos sobre a presença portuguesa da Guiné ou o estado da Senegâmbia Portuguesa na primeira metade do século XIX (são eles Conrado de Chelmicki, Travassos Valdez, Honório Pereira Barreto e Senna Barcelos) é indubitável que foi este oficial da Armada quem mais investigou nos arquivos, lançando as bases ténues da historiografia guineense. Possui um olhar implacável, não gosta de dourar a pílula, denuncia corrupções e mostra à saciedade a péssima qualidade da maior parte dos governantes, isto para já não esquecer as condições precárias reveladas a todo o momento da presença portuguesa naquele espaço.

Estamos ainda no período correspondente à parte III, estende-se de 1793 a 1816, edição de 1905. Veja-se a vivacidade de certos pormenores:
“Em 5 de Abril de 1795 saiu de Lisboa o novo governador Maldonado de Eça, na galera Leonisa, e como esta levasse rumo errado foi parar a Bissau com 30 dias de viagem! Encontrou a Praça em guerra com os gentios Papéis, vizinhos da mesma, e deu conhecimento deste facto ao ministro em carta de 9 de maio, dizendo-lhe que apenas chegasse ao seu governo, mandaria soldados por não os haver ali senão velhíssimos!”. E, mais adiante: “Para a Praça de Bissau seguiu em 1799 o novo comandante José das Neves Leão, que comunicou a sua chegada ali e não ter encontrado ali quem lhe entregasse o comando, porque o seu antecessor, José António Pinto, já em Lisboa, havia abandonado o lugar, fugindo para o gentio de Fá por os soldados, na Praça, se terem levantado contra ele pelas delapidações e opressões que exercera em todo o tempo do seu comando”. Como o leitor não ignora, Cabo Verde sofreu as consequências do bloqueio continental e a luta assanhada nos mares entre britânicos e franceses. O autor aliás adverte-nos: “A França e a Espanha declararam guerra a Portugal, baseando-se na repugnância com que o príncipe-regente aderia à causa continental e de não ter confiscado as propriedades inglesas no seu reino”.

Senna Barcelos, quando necessário, corrige Chelmicki ou Travassos Valdez. A propósito de direitos de exportação da cera da Guiné e da cultura do algodão, observa: “Diz Chelmicki na sua Corografia que foi por esta época que se introduziu em Cabo Verde a cultura do algodão. Merece-nos muito respeito o ilustre escritor, hoje falecido; a sua afirmação, porém, fora inexata. A cultura do algodão começou a fazer-se na ilha de Santiago logo que a esta chegaram os primeiros colonos italianos com pretos da Guiné. No século XV já se exportava bastante e no XVI os navios iam recebê-lo também à Ilha do Fogo, onde já se tratava da sua cultura em larga escala. Era com algodão cultivado ali durante aqueles séculos e posteriores que se fabricaram milhares de panos, com os quais se adquiriam por compra negros da Guiné”.

Senna Barcelos recorda-nos as tentativas dos comerciantes de Cacheu e Bissau escaparem ao pagamento de direitos alfandegários diretamente a Cabo Verde. Em 1795, os comerciantes de Lisboa que negociavam com Cacheu e Bissau reclamaram contra o capitão-mor de Bissau por este ter elevado os direitos, alegando que não era das suas atribuições. O ministro, o Marquês de Ponte de Lima, dirigiu ao Governador Maldonado de Eça uma carta na qual pedia que lhe suprimissem a jurisdição que tinha sobre os comandantes de Bissau e Cacheu, e mais praças e portos da Guiné, retirando qualquer liberdade para a imposição de taxas alfandegárias por iniciativas do capitão-mor de Bissau.

Há um relato bastante impressivo sobre a natureza de estado de sublevação permanente em que se vivia em Bissau e outras praças e presídios. Tome-se em atenção este esclarecedor relato:
“Em Bissau instigava uma revolta nos soldados o capitão-mor de Farim e comissário volante da Praça de Bissau, Tomás da Costa Ribeiro, aconselhando-os a que principiassem por negar o pagamento, com a promessa de lhes oferecer muita aguardente, e que matassem o governador capitão-mor da Praça, o tesoureiro José Valério e as demais autoridades. Mas como os soldados não anuíssem, foi então tratar com os gentios, fazendo-lhes ver que o governador da Praça tinha ido para ali a fim de os agarrar e mandá-los para o Maranhão, e também queria tirar a desforra de um seu irmão que tinha sido vítima do gentio.
Os moradores da Praça, que conheciam o caráter de Costa Ribeiro, que na Guiné cometera muitos vexames e roubos, dirigiram ao Ministro Visconde de Anadia uma queixa, expondo-lhe que logo à chegada à Praça do Governador Pinto de Gouveia quisera Costa Ribeiro corrompê-lo, oferecendo-lhe uma porção de escravos, como praticara com os outros havia mais de 10 anos, e como ele não quisesse aceitar e não consentisse que Costa Ribeiro cometesse mais abusos, começou este a presentear os gentios e reunindo-os em sua casa a altas horas da noite aconselhou-os a matar o governador, negociantes e autoridades. Os gentios revelaram estes factos aos negociantes, dizendo-lhes que o rei de Bissau viria à Praça na noite de 21 de setembro contar o caso, como efetivamente veio às duas horas, aparecendo com a sua corte, pedindo para avisarem o inocente governador que Costa Ribeiro tinha com ele tratado para na manhã de 22 darem o assalto à Praça, para tomarem os quartéis, assassina-lo e o mesmo fazerem à família e aos que resistissem.
Pediu o rei que assassinassem Costa Ribeiro ou que o pusessem fora da Praça porque era um traidor. Costa Ribeiro, vendo-se descoberto, dirigiu-se aos ídolos (Irã), com grandes somas, e falando ao demónio ofereceu-lhe a sua alma contando que o ajudasse a matar o governador. O Irã não lhe fez a vontade. O ministro ordenou que ele saísse de Bissau para Farim; não quis obedecer com o pretexto de que tinha licença para regressar a Lisboa. Como hóspede de Costa Ribeiro havia certo bacharel chamado José Tomás de Sá, que armou toda a chicana, aconselhando o seu amigo a não aceitar a intimação, ameaçando ao mesmo tempo Pinto Gouveia de recorrer aos bons ofícios do seu primo, o governador de Cabo Verde, que também recebera favores de Costa Ribeiro e que o havia de livrar nesta ocasião”
.

Lendo Senna Barcelos não há dificuldade alguma em perceber o estado da mais completa derrisão em que se encontrava a Senegâmbia Portuguesa neste turbulento período em que a família real se encontrava no Rio de Janeiro, em que os navios franceses pilhavam Cabo Verde e a pirataria assolava toda a região. O pessoal recrutado para as praças e presídios era da pior qualidade, vivia-se entre crimes, roubos, intentonas, pilhagens. Nada como continuar com os exemplos:
“O Governador D. António nomeou João Cabral da Cunha Goodolphim, capitão de infantaria, para governador-interino de Cacheu e sindicar de factos acontecidos ali contra o governador daquela Praça, Joaquim José Rebelo de Figueiredo e Góis, que havia sido deposto, formando-se um triunvirato para a governar, composto do Vigário Manuel Gomes de Oliveira, preto, natural da Ilha de São Nicolau; do Sargento-Mor João Pereira Barreto, natural de Santiago, filho de um padre e de uma escrava, e do Tenente de Ordenanças e Tesoureiro António de Miranda de Carvalho, natural de Cacheu, filho de um preto de Santiago e de uma preta gentia, vizinha da Praça. Este governo provisório havia participado ao de Cabo Verde e que o referido governador de Cacheu estava doido e que o mandasse substituir. O Governador D. António limitou-se apenas a mandá-lo substituir, e comunicou este facto para o Rio de Janeiro. O ministro mandou que seguisse para Cacheu a corveta Aurora a buscar Figueiredo e Góis, o que não foi preciso por já estar na Praia. Seguiu no brigue Triunfo para o Rio de Janeiro, e ali foi promovido a sargento-mor em atenção aos seus bons serviços. O novo governador Cunha Goodolphim não sindicou, embora o ministro tivesse dado ordem para isso e para prender os autores e remetê-los para a Corte”.

É uma repetição permanente de despautérios, faltas de autoridade, que não se extinguem mesmo quando D. João VI regressa à Europa. Pois veja-se mais um episódio passado já na monarquia constitucional:
“Em 1 de Maio de 1825 houve uma sublevação militar na Praça de Bissau, promovida por alguns oficiais e pelo capelão da tropa, recusando-se os soldados a receber o rancho; a causa dessa sublevação fora o mau rancho e a falta de dinheiro para pagamento. Governava a Praça o Capitão Domingos Alves de Abreu Picaluga, que não empregou meios enérgicos para conter os soldados. No dia seguinte aumentou esse motim, e entre os revoltosos foram eleitos os seus generais de guerra, deram assalto aos depósitos, exigiram do governador a chave da Praça, que foi entregue; deitaram a mão a uma embarcação ancorada no porto, guarnecendo-a com soldados; na bateria carregaram as peças e fizeram fogo contra algumas casas. O capitão-mor de Geba vem em socorro do governador, fugiram os cabeças do motim e efetuou-se a prisão de 38 soldados, de 5 oficiais e do capelão que foram remetidos para a Praia. O governador foi suspenso”.

Era este o estado deplorável da Senegâmbia Portuguesa. E, entretanto, vem a guerra civil, que não trouxe melhoras à Guiné.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22899: Historiografia da presença portuguesa em África (298): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22899: Historiografia da presença portuguesa em África (298): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Para quem está a acompanhar o laborioso levantamento de factos e feitos, da memória que Senna Barcelos prometeu à Academia das Ciências,não podem subsistir dúvidas que após o desgraçado período vivido na União Ibérica, as parcelas coloniais sofreram e muito os impactos na guerra da Restauração e, em concomitância, a crescente cobiça de franceses e britânicos. Faltava tudo no que restava da Senegâmbia Portuguesa, e as citações que aqui se deixam são concludentes dessa atmosfera degradada e degradante. Senna Barcelos teve o enorme mérito de proceder a uma organização escritural que permite hoje aos historiadores ir do século XV até aos princípios do século XX. É evidente que hoje há fontes muito mais ricas, para além de arquivos ainda inexplorados. Mas exalte-se este levantamento como um dos pontos de partida que contribuíram para lançar as bases da historiografia guineense e de tudo quanto se pode e deve estudar em Lisboa, em Bissau e em todos os outros espaços de investigação. Isto para enfatizar que Senna Barcelos é incontornável.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (3)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que agora nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense. Esclareça-se que o autor não se apresenta como historiador, aliás não faz conexões nem análises, esta memória apresentada à Academia Real das Ciências de Lisboa tem a forma de um levantamento de factos e feitos, trabalhou estrenuamente, não poupou esforços nos arquivos e a sua narrativa tem um caráter personalizado, desanca nos políticos corruptos, nos governadores ineptos, na selvajaria dos negócios, nunca ilude as desgraças e inclemências da natureza em Cabo Verde, a falta de presença portuguesa na Guiné e a permanente hostilidade dos autóctones com os portugueses.

Foi profundamente crítico do reinado de D. João V, procurou que o reinado de D. José fosse mais auspicioso. Diz mesmo que muitas súplicas se dirigiram a D. João V para fortificar Bissau e que D. José, com melhores olhos, compreendeu a necessidade de dar vida a esse riquíssimo domínio, onde só tinha uma praça fortificada, Cacheu, na foz do rio Farim.

Nos primeiros dias de 1753, partiu de Lisboa uma expedição com destino a Cacheu tendo à frente a nau Nossa Senhora da Estrela, a missão era levantar a fortaleza de Bissau. E veja-se o tom crítico do autor: “A praça de Bissau estava sem capitão-mor de nomeação régia, era governada por um preto boçal que desconhecia a língua portuguesa. Houve regozijo com a chegada dos barcos portugueses a Bissau, pois quem ali estava não podia comerciar pela belicosidade dos povos da vizinhança”. Começou um jogo de artimanhas entre portugueses e o régulo Palanca. Umas vezes celebrava-se a paz, outras vezes havia recontos sangrentos, voltava-se a pedir a paz, seguia-se nova arremetida do gentio, rechaçada. Então, Palanca mostrava-se amistoso, subia a bordo da nau e pedia para trocar um casal de negros por aguardente. Assim começou a construção da fortaleza de Bissau, obra que havia de durar quase dez anos (1766-1775). A Companhia de Cacheu falhara e em 1755 fora criada a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, tinha o exclusivo do comércio de todas as ilhas e da costa da Guiné desde o Cabo Branco até ao de Palmas. E o autor comenta: “Nada adiantaram as ilhas no reinado de D. José, que aturou as loucuras e espoliação da celebérrima Companhia do Olho Vivo, conhecida com o nome oficial de Grão-Pará e Maranhão”. Vamos de seguida fazer um apanhado de notas envolvendo o reinado de D. José até ao reinado de D. Maria I, ocasião em que o administrador da Companhia da Guiné informou que a Praça de S. José de Bissau estava completamente acabada e aportou elementos úteis para se ficar com uma ideia nítida do que era a presença portuguesa na Guiné no último quartel do século XVIII. E muito mais adiante iremos falar de outro período tormentoso, de 1816 a 1835.

Envia-se um relato, pois, falando da Praça de S. José, diz-se que está completamente acabada, mas que há edifícios em ruína, mesmo a igreja, o ofício religioso só se podia celebrar numa pequena capela na praça, na qual mal cabiam 40 pessoas. Não havia sacerdotes, a guarnição constava de 190 soldados, o autor dizia que a povoação tinha uma população de “700 pretos católicos, que viviam sem pensarem no espiritual”. E bem importante é o que o comandante da Companhia descreve a seguir:
“A povoação de Geba contava com mil católicos, não tinha sacerdote, falta que também se sentia nos cristãos dispersos pela Serra Leoa, tinham deixado de lá ir religiosos de Bissau. No rio Nuno havia mais de 18 anos que lá não ia um missionário. A guarnição de Bissau andava rota e esfarrapada. O governador, sem meios, faltava-lhes com o pagamento; como não recebesse géneros da Companhia, reinava grande descontentamento entre a guarnição da Praça. A praça de Ziguinchor estava sujeita ao comando de Cacheu, quase deserta por viverem os moradores com os gentios. O administrador João da Costa profetizara que apenas a guerra entre a França e a Inglaterra terminasse, era para recear que uma dessas nações tomasse conta de Ziguinchor por estar perto do rio de Gâmbia, e estar Cacheu num estado que a não podia socorrer; sendo essa praça tão importante e de onde se costumava enviar a maior porção de cera para Lisboa, e não menos de escravatura para outros pontos, era realmente para lastimar. A artilharia da Praça de Cacheu estava como a de Bissau, sem reparos; a guarnição sofrendo grandes faltas, e até os particulares, para comprarem géneros, vendiam os seus escravos para Bissau. Nas mesmas condições sofriam os de Farim”.

Suplicava-se à rainha que os deixasse com o monopólio do comércio, que lhes fosse oferecida uma embarcação que impedisse os ingleses e franceses de roubarem gado, escravos e forros.

Senna Barcelos dá-nos também informação de relevo sobre a situação de Ziguinchor, à entrada do século XIX:
“Em princípios de 1801, sendo comandante da Praça de Ziguinchor Manuel de Carvalho Alvarenga, a qual era dependente da Praça de Cacheu, que tinha por governador Manuel Pinto de Gouveia, atacaram repentinamente os gentios de Sandegú, próximo de Ziguinchor, umas embarcações mercantes portuguesas que se achavam na costa a negociar. O comandante de Ziguinchor deu conhecimento deste facto ao governador de Cacheu, e este mandou logo um gentio, velho e prudente, amigo dos portugueses, para ir a Sandegú saber o motivo das hostilidades, respondendo os gentios inimigos que não o atendiam. Em vista da resposta, ordenou o governador que se lhes desse um assalto, ficando eles derrotados e aprisionando-se alguma gente. Durante algum tempo ficaram mansos e subjugados, até que traiçoeiramente voltaram a atacar as embarcações, matando e aprisionando alguns marinheiros. O governador de Cacheu mandou então preparar 17 canoas, tripuladas por senhores e escravos, que seguiram para Ziguinchor, e ali com o auxílio do gentio vizinho, auxiliares, se organizou a expedição. Fora encarregado de uma das canoas Julião Mendes, alferes da companhia do Capitão Francisco Rabaça, do Corpo de Infantaria de Ziguinchor, sem vencimento, o qual conseguira essa patente do ex-governador de Cacheu, Farim e Ziguinchor, Lopo Joaquim Almeida Henriques. Julião Mendes tinha sido escravo e recebera a alforria em 20 de novembro de 1799. Ele tinha deixado a condição servil para ter a patente oficial e por isso não lhe causava repugnância cometer o crime de traição. Mandara ele avisar ao gentio de Sandegú, por um seu escravo, do assalto que lhe estava preparado e forneceu-lhe pólvora e bala. Com o mesmo gentio tinha ele já combinado que no caso de saírem bem da luta lhe fossem vendidos todos os escravos que ficassem prisioneiros. Indispôs algumas tribos aliadas da praça contra outros aliados que forneciam mantimentos, dando-lhes pólvora e bala, pois seria insustentável a Praça de Ziguinchor, faltando estes aliados, únicos que mantinham o comércio de víveres com ela. O velho gentio de Cacheu descobrira a traição estando já as embarcações em viagem e pelos gentios que Julião Mendes quisera revoltar soube a verdade de tudo. Houve grande desânimo entre os expedicionários, que duvidavam uns dos outros, por isso pensou o velho gentio de Cacheu de tornar ali mesmo público o procedimento de Julião Mendes, pois que a maioria estava falada para nos atraiçoar”.

A história não acaba aqui, o traidor fugiu, foi apanhado, pediam ao governador para o enterrarem vivo, o governador preferiu mandá-lo degredado para o Pará toda a vida e foram-lhe sequestrados os seus poucos bens. Julião Mendes chegou ao Maranhão, iludiu o governador dizendo que estava inocente, veio até Lisboa queixar-se de que lhe tinham tirado os seus bens, foi mandado um sindicante a Ziguinchor para descobrir a verdade, e o que ele escreve dá mesmo muito que pensar, o sindicante achou que dos bens do tal Julião faltavam seis escravos e três embarcações, mas que os acusados não eram responsáveis por elas: “Que Julião Mendes nutria ódios contra José Domingos por este ter requerido contra ele, ao comandante de Ziguinchor, em Alvarenga, em 1800, como traidor, pois que tendo José Domingos concordado com os Grumetes-Forros de Ziguinchor para fazer guerra aos Balantas de Sandegú, que lhes aprisionaram três canoas, as quais foram vendidas em Cacheu e Farim”. E prossegue a descrição da trama com várias cambiantes de rancores e não é difícil perceber o envenenamento e a carga de ódios entre todos estes mercadores, prontos a escravizar quem quer que seja.

Neste levantamento de Senna Barcelos há também aspetos pícaros e não se registe a contar um:
“Em fevereiro de 1805 fora chamado Manuel Pinto de Gouveia pelo Conde da Anadia para ir governar a Praça de Bissau, que se achava abandonada por terem envenenado o governador desta, António Cardoso Faria. A tropa que guarnecia Bissau era composta de pretos, naturais do país, que conviviam com os gentios, que se negavam a fazer serviço. O novo governador pediu o posto de brigadeiro, e tendo ido ao paço solicitar ao príncipe regente este dissera-lhe: ‘Já estou bem informado do teu requerimento. O prémio não se procura antes da comissão feita. Sabe desempenhar ao que vais, e logo que as coisas estejam em paz pela secretaria te será remetido o que pretendes, pois vejo que é de justiça’. Seguiu Pinto Gouveia para Bissau, com 150 degredados tirados do limoeiro, facínoras e dos maiores crimes, tendo alguns destes a alva vestida, que lhes foi despida. Em Cabo Verde recebeu mais 80 homens de péssimos costumes, e com 230 soldados indisciplinados em Bissau formaria um batalhão de 460 desordeiros. Com muito trabalho montou o serviço militar, que estava relaxado, e restabelecia a paz entre os gentios”.

Não tem em conta as insubordinações na Praça de Bissau, os relaxamentos eram permanentes e as relações entre todos intoleráveis, veja-se este apontamento de Senna Barcelos:
“Havia quatro anos que o governador de Bissau não recebia os seus vencimentos; porém com ele vivia oficiais e negociantes que o acusavam de intriguista e turbulento, que negociava e proibia que os outros o fizessem, que vivia amancebado com uma Clara Gomes a qual saía a altas horas da noite da fortaleza, que ele absorvia os rendimentos reais, roubando a pólvora da fazenda para seu negócio e o dinheiro que lhe era remetido de Cabo Verde para pagamento da tropa e que falsificava os livros”. Por sua vez o governador queixava-se aos seus superiores de que havia amotinadores, apontava os cabeças de motim, desde oficiais a escrivães.
E Senna Barcelos dá-nos um parágrafo que clarifica o estado de desmando em que se vivia em Bissau:
“Em 12 de Julho deu-se nova insubordinação dos soldados. Ao toque da assembleia, às horas da parada da guarda, não quiseram os soldados entrar na formatura, e passando o governador ao quartel foi ali insultado, exigindo-lhe os soldados o pagamento no meio de ameaças, e pegando em armas, que não quiseram entregar. Retirou-se o governador e pela tarde daquele dia foi avisado de que os soldados tinham resolvido assassina-lo a golpes de baioneta, bem como a família, em vista do que o governador mandou logo dizer que no dia seguinte faria o pagamento com o seu dinheiro”.

E mais peripécias se podiam contar, mas este cenário não se modificaria tão cedo, anos depois, na sua famosa Memória da Senegâmbia, Honório Pereira Barreto não poupará pormenores ao estado calamitoso em que se vivia na Guiné.

(continua)

Fortaleza de S. José da Amura, na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22877: Historiografia da presença portuguesa em África (297): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22877: Historiografia da presença portuguesa em África (297): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2021:

Queridos amigos,
A narrativa de Senna Barcelos, neste período posterior à Restauração, dá-nos conta das tremendas dificuldades da presença portuguesa na Guiné. Franceses e ingleses vão-se assenhoreando de porções importantes da Senegâmbia. Há mercadores em Cacheu que ditam a lei, vexam e chegam mesmo a prender o capitão-mor; a hostilidade dos autóctones é permanente, exigem tributos e prendas. Os da ilha de Santiago repontam, querem direitos alfandegários, não os deixando a Cacheu. Em Lisboa, não se sabe muito bem o que fazer quanto à criação de um presídio em Bissau. As companhias criadas para potenciar o comércio não vão durar muito tempo. E Senna Barcelos não perde oportunidade em exibir decisões régias inapropriadas, mostrar a cáfila de incompetentes e corruptos nos lugares de governação e nos negócios. Esta memória que o oficial da Marinha enviou à Academia das Ciências é uma peça fundamental no pioneirismo da historiografia guineense e permite vislumbrar, quase a olho nu, a ligação comercial, mormente no tráfico negreiro, entre a Guiné e Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (2)

Mário Beja Santos

S
ão três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense. Comenta factos com muita franqueza, não se escusa de dizer que o reinado de D. João V foi altamente prejudicial a Cabo Verde e à Guiné. É profundamente crítico também com a escolha de muitos governadores, fala com imenso à vontade de rapinas e corrupção. Inicia o seu trabalho no século XV, pouco nos detivemos aí, fomos diretamente para esse penoso período da Restauração que ele investigou com imenso cuidado, nunca escondendo que estávamos muito lentamente a sair de uma decadência profunda agravada pelo período filipino e que o cerco à Senegâmbia Portuguesa dava sinais inquietantes, franceses e ingleses infiltravam-se em territórios anteriormente ocupados por Portugueses. Comerciantes estrangeiros mercadejavam à socapa, impunha-se construir boas posições fixas, e falava-se na Fortaleza de Bissau. Igualmente este período vê aparecerem duas tentativas de criação de companhias de comércio, a de Cacheu e a de Grã Pará e Maranhão.

Enquanto nos confrontávamos em território europeu com a Guerra da Restauração, a presença francesa e inglesa é uma constante. O governador da Guiné e Cabo Verde, Veríssimo de Carvalho, alerta para o facto de os franceses quererem levantar uma feitoria da Real Companha de França em Bissau. É deste tempo que data a ideia de construir uma fortaleza em Bissau, o rei local, Bacampolco, concedia licença, em Bolor, igualmente se construía uma outra fortaleza.

Senna Barcelos é minucioso na denúncia de trafulhices, basta ler o que se segue:
“O capitão-mor era acusado de juntamente com Ambrósio Vaz, Bibiana Vaz de França e o feitor da fazenda Manuel de Sousa Mendonça prenderem à saída da missa o Capitão-Mor Oliveira, desterrando-o para Farim, onde esteve recluso num escuro corredor da casa de Bibiana durante 14 meses”. Fez-se uma sindicância, provou-se haver mais culpados, aplicaram-se punições e o autor comenta: “Cacheu estava num perfeito caos; a sua população constava de 12 pessoas, entre brancos e mulatos. Os capitães-mores que acumulavam o cargo de feitor da fazenda deixariam de o exercer quando se deu maior jurisdição a António de Barros Bezerra, porém este continuou a exercê-lo, deixando de escriturar os livros dos rendimentos reais; este mau exemplo seguiu o novo feitor, persuadido talvez que não encontraria oposição como Barros Bezerra, também partidário da ricaça Bibiana Vaz”.

A investigação de Senna Barcelos oscila em permanência na descrição de factos em Cabo Verde com os acontecimentos passados na Guiné. Em 1692 o rei decidiu que se construísse a Fortaleza de Bissau e o autor comenta: “Desde o século XV que os portugueses comerciavam em Bissau, alcançando do régulo, com engodo do negócio, o poderem levantar uma feitoria ou casa-forte para guardarem suas mercadorias. Muito antes de 1604 havia em Bissau algumas casas, porém nessa data, aparecendo ali os primeiros religiosos, catequizaram e converteram à nossa fé muitos pretos, que vieram reunir-se aos portugueses, tornando mais importante a povoação”.

Em 21 de dezembro de 1695 publicou-se legislação autorizando o Conselho Ultramarino a encarregar a Companhia de Cacheu e Cabo Verde da administração da fábrica da fortaleza de Nossa Senhora da Conceição de Bissau. A legislação estabelece os procedimentos: a Companhia de Cacheu e Cabo Verde pagaria a despesa, contribuindo igualmente os de Cabo Verde, tudo constaria dos livros de receita; da fortaleza haveria um capitão-mor e as embarcações que saírem da Ilha de Bissau poderão livremente vir por outro qualquer porto deste reino; a Companhia de Cacheu e Cabo Verde teria a incumbência do pagamento da folha dos oficiais da fazenda, guerra e presídio da dita ilha, etc. O rei confirma em 7 de março de 1696 este contrato.

E regressamos à descrição de atropelos e sobressaltos:
“Em 24 de Março de 1697 dizia o Capitão-Mor de Cacheu, Vidigal Castanho, que em 17 de Agosto de 1696 intentara o rei dos Mandingas, de Canicó, circunvizinho à população de Farim, dar nesta um assalto para a destituir de moradores e forros cristãos, que eram muitos, e roubar-lhes ao mesmo tempo as suas fazendas. Para este intento entrou manhosamente na povoação, envolto numa certa capa de amizade, dizendo que vinha visitar os brancos, para que a empresa lhe fosse mais fácil, pois que contava que a sua gente cairia no dia seguinte repentinamente, e a tomada da povoação se realizaria sem grande custo.
Para que esta traição não ficasse sem ser explicada, conseguiu arranjar um conflito, tentando amarrar um negro forro e cristão, o que não levou a efeito por acudirem os brancos, que lho tiraram das mãos; e como o rei empregasse resistência, auxiliado por dois filhos seus e por um dos seus soldados, foram estes mortos e aquele preso.
Estava assim declarada a guerra à povoação. Poucos eram os elementos para a sua defesa contra uma invasão de milhares de gentios, que representados por diversas tribos, mais ou menos aparentadas, não tinham compromisso algum, nem com o governo de Cacheu, nem tão-pouco com os moradores de Farim para socorrerem os moradores”
.

Seguem-se as peripécias, pede-se auxílio ao capitão-mor de Cacheu, este arma expedição, destrói-se a principal povoação dos Mandingas, os Balantas auxiliam os brancos, mas não se conseguiu chegar às aldeias Mandingas dada a quantidade de chuva. O autor comenta que a povoação de Farim era aberta, os moradores sofriam vexames sem conta e eram obrigados a pagar tributos ao rei de Canicó. O capitão-mor de Cacheu deixou Farim em estado de se defender, mandou construir baluartes e pôs artilharia.

Segue-se a descrição de um outro episódio, o autor prima pelos detalhes truculentos:
“Em 16 de Dezembro de 1715 fora nomeado governador Serafim Teixeira Sarmento, tomou posse a 6 de Abril do ano seguinte. E para Ouvidor nomeou-se Braz Brandão de Sousa em 11 de Novembro de 1717.
Estando o Senado da Câmara a governar pelo falecimento do Governador Calheiros, foi nomeado o Coronel António de Barros Bezerra. El-rei confirmou a nomeação em 2 de Agosto de 1716, ano em que se concedeu novamente aos navios que fossem a Cacheu não despacharem na alfândega de Santiago. Os resultados desta ordem inconveniente não se fizeram esperar. Como os rendimentos diminuíam, levantou-se o funcionalismo a protestar por falta de vencimentos, e neste sentido representou o governador que o atraso se devia à tal diminuição.
Em 19 de Outubro de 1717 recomendou-se em carta ao Capitão-Mor de Cacheu, António de Barros Bezerra, para evitar o comércio, que os moradores de Geba faziam em Bissau, de cera, marfim, escravos e coiros, com os estrangeiros, causando enormes prejuízos aos direitos reais, e fazer todo o possível para aqueles moradores derivarem o seu comércio para Cacheu, pagando ali os direitos. O capitão-mor respondeu não lhe ser possível obrigá-los a vir ali comerciar, e nem tão-pouco aos de Bissau, porque todos eram levantados, e quando algum manifestava desejos de vir a Cacheu mandava primeiro pedir seguro enquanto ali estivesse, para não o prenderem, e como se achavam todos seguros pelo rei de Bissau o qual não queria que fossem molestados, zombavam das ordens passadas pelos capitães-mores e nem respondiam a elas, por isso que se sentiam fortalecidos pelos gentios, bem conhecedores da pouca força de que dispúnhamos. O capitão-mor lembrava como melhor alvitre a reedificação da fortaleza de Bissau outra vez, porque com ela se evitaria o comércio que os franceses estavam fazendo. Concordou-se com a reedificação da fortaleza, mas o Conselho Ultramarino discordou com o fundamento de que Portugal não tinha meios para conservar e sustentar o presídio e também pela inconstância dos negros e reis de Bissau, motivos por que tinha el-rei mandado demoli-lo. O Conselho Ultramarino recomendava que todas as atenções deviam ser dadas a Cacheu que era a principal praça da Guiné e D. João V concordou com o parecer do Conselho Ultramarino"
.

É sem dúvida um período de franca decadência. Vamos agora dar atenção ao período de 1750 a 1777 correspondente ao reinado de D. José.

(continua)


Bibiana Vaz, grande negociante de Cacheu
Pormenor da Fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22853: Historiografia da presença portuguesa em África (296): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22853: Historiografia da presença portuguesa em África (296): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Este distintíssimo oficial da Armada, que combateu na Guiné, natural de Cabo Verde, elaborou uma extensa memória para a Real Academia das Ciências e sem dar por isso estava a lavrar os caboucos para uma aproximação à História da Guiné, o mínimo que se pode dizer é que foi um investigador pioneiro até a colónia ter fronteiras legitimadas. Não tem papas na língua, denuncia atropelos e corrupções. Na justa medida em que aqui se tem tratado com alguma largueza o primeira período da presença portuguesa, centrámos a observação com a chegada da Restauração, é bem patente a fatura de abandonos e incúrias, franceses e ingleses começaram a escolher posições e irão definir a geografia do Senegal e da Gâmbia, da Guiné Conacri e da Serra Leoa. O que se regista neste texto tem a ver com as tentativas de missionação e a garantia da nossa presença em Cacheu e zonas limítrofes bem como apoiar o comércio português em Bissau, também ele sujeito a severa concorrência. Não é admissível fazer-se historiografia da Guiné Portuguesa sem dar a palavra a Senna Barcelos, é dado assente.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (1)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. Todo este esforço de inventário é dedicado à memória de Gil Eanes e ele dá a justificação: “Gil Eanes não descobriu só o caminho marítimo para o Oriente; abriu as portas à navegação para todo o mundo. Das suas cinzas ninguém sabe onde repousam; recordação do seu nome nem no pobre casco de um navio português figura a par de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Sá da Bandeira, Duque da Terceira e outros que não cometeram nunca actos de tanto heroísmo nem deram a Portugal tantas riquezas e páginas tão brilhantes na sua História”.

Começa o seu levantamento do período de 1460 a 1466. Abre deste modo: “A história destas ilhas não é para nós, filhos delas, um estudo indiferente, de mera curiosidade, em que toquemos ao de leve. Consultámos os principais cronistas, Fernão Lopes, Azurara, Rui de Pina, Damião de Góis, João de Barros, André de Resende e lemos com atenção as viagens do piloto veneziano Luís de Cadamosto; passámos pela vista os trabalhos de Lopes de Lima e de outros escritores modernos; com sossego vimos os arquivos das ilhas, Torre do Tombo e as bibliotecas públicas de Lisboa, Évora, Coimbra e particularmente a da Ajuda, as quais encerram preciosos manuscritos”.


É desassombrado, desmascara tropelias, corrupções, atos de maldade, até erradas decisões régias. Vê-se que escritores e investigadores que o seguiram o leram cuidadosamente, a ponto de vezes sem conta o repetirem. Como não vejo novidade de tudo quanto ele escreve até meados do século XVII, vamos tomar em conta alguns dados que ele apresenta com D. João IV e a Restauração. Não esconde que as lutas da Restauração afetaram profundamente a Guiné e Cabo Verde, basta pensar na proibição de comércio, a escassez de navios de Portugal para permutar fazendas com géneros coloniais. O Vaticano, indisposto com Portugal por causa de Castela, negou-se a confirmar bispos, foi assim durante toda a Guerra da Restauração. “D. João IV, prevendo as funestas consequências que haveria se o fervor religioso desaparecesse, especialmente na Guiné, onde os nossos domínios se estendiam à sombra da Cruz, ordenara a construção, na cidade da Ribeira Grande, de um convento e de um hospício na Guiné, cujas obras só ficaram concluídas depois da sua morte. Além disto ainda a despesa era aumentada com o transporte e alimentação dos religiosos, pagos com ordenado custeado pelos rendimentos da capitania. Reduzido à maior pobreza o erário desta, abusavam por necessidade, governadores e ouvidores, das ordens régias, proibindo o negócio com estrangeiros e até negociando alguns por sua conta e risco, vendendo-nos escravos para assim conseguirem meios de poderem viver desafogadamente (…) Os religiosos, passando à Guiné, iam primeiro a Cacheu e dali internavam-se pelo chão do gentio, convertendo este; para melhor podermos ajuizar dos trabalhos e martírios destes varões narremos o que nos conta frei André de Faro entre 1663 e 1664.

Deu começo à sua missão partindo do Cacheu para o porto de Guinguim, reino dos Banhuns, e uma vez na Praça do Rei D. Diogo lhe disse o fim por que viera à Guiné. Foi bem tratado pelo rei, e como nesse porto se estivesse fazendo uma igreja e próximo houvesse um china (feitiço ou ídolo dos pretos) pediu Frei André ao rei que o mandasse tirar dali, ao que ele anuiu. Em seu lugar armaram uma cruz, fizeram a procissão, e depois de um Te Deum Laudamus seguiram para Bissau, continuando na conversão dos Banhuns os religiosos que já ali estavam.
Em Bissau foram igualmente bem recebidos pelo rei. Havia já ali uma igreja e religiosos. Os frades pediram ao rei para se batizar, dizendo ele que a essa hora não podia responder, porém que não proibia a ninguém do seu reino que se fizesse cristão.

Passaram ao rio Nuno e foram à povoação onde vivia o rei D. Vicente, que já se tinha convertido ao Cristianismo. Aqui também já havia uma igreja, e conta Frei André que era grande o número de portugueses ali residentes e empregados no comércio de tintas, marfim e negros, e que se encontravam casas inglesas. Em peregrinação para a Serra Leoa encontrou Frei André um religioso espanhol, de quem se separou no rio, indo agasalhar-se na casa de um gentio ausente da aldeia; dentro da casa estavam os ídolos, que Frei André e um seu companheiro quebraram e deitaram ao fogo. Os gentios, sabedores disto, irritaram-se, e se não fora o soba cristão teriam pago com a vida essa imprudência, sujeitando-se apenas a serem expulsos (…) As necessidades e sofrimentos que deviam ter suportado os religiosos na missão de Cabo Verde e Guiné podem-se bem avaliar comparando-as com a miséria dos padres seculares das freguesias novas, criadas nas pequenas e estéreis ilhas de Maio, Boavista e S. Nicolau, que para se manterem à testa da freguesia lhes fora preciso aceitar esmolas dos habitantes, já de si pobres”
.

O estado de abandono, a ausência de presença portuguesa convidava a concorrência estrangeira, como escreve Senna Barcelos: “Vimos a França de posse da Goreia sem para isso ter despendido um real com missões, e também a Inglaterra que mandava ocupar a Gâmbia quase às portas de Cacheu, onde a nossa influência já era grande. Fizemos despesas enormes com a construção de conventos e sustentação de religiosos, para os deixar viver na ociosidade, sem deles se aproveitar o que mais importava a Portugal: a nossa expansão na Guiné”.

Mais adiante o investigador fala-nos na evolução da situação em Cacheu: “Em 1686 houve um levantamento do povo de Cacheu contra o Capitão-Mor, José Gonçalves de Oliveira, prendendo-o e desterrando-o para Farim, por motivo de excessos cometidos. Foi nomeado então António de Barros Bezerra para tratar de compor a sedição, prender os criminosos, fazer a ocupação, ficando Cacheu independente de Cabo Verde enquanto os ânimos dos alevantados não sossegassem. O novo Capitão-Mor, Bezerra, mandou levantar um auto pelo juiz ordinário, do qual se provou terem sido autores dessa prisão uma tal Bibiana Vaz, ricaça de Cacheu, e que vivia no chão do gentio; e seu irmão António Vaz e sobrinho Francisco Vaz, que andavam indispostos com o capitão-mor por este não consentir que negociassem com inglês e mais estrangeiros. Ordenou-se ao novo governador de Cabo Verde que passasse à Guiné e sequestrasse os bens daqueles criminosos. Não pôde fazer sequestro algum, visto que a fortuna da Bibiana estava nas terras do gentio. Regressou a Santiago trazendo os dois criminosos presos. Durante a sua permanência em Cacheu ocupou-se da proibição do comércio com os estrangeiros e da fortaleza de Bolor. O Capitão-Mor Bezerra dizia em 4 de março de 1687 haver muito sossego em Cacheu, e ter fortificado esta Praça, porém que o comércio estava arruinado porque os ingleses e franceses causavam ali grandes danos com os navios que metiam naqueles portos, dizendo senhores de toda a costa até ao Cabo da Boa Esperança.

Relatou circunstanciadamente a pretensão que tiveram os franceses de construir uma fortaleza em Bissau para o que já tinham enviado três fragatas de guerra e os materiais precisos, assim como quatro pequenas embarcações, assenhoreando-se de todo o negócio dali, e que, se não houvesse cuidado, em breve seriam senhores de toda a Guiné; porém que ele tinha evitado essa construção por intermédio daquele gentio e que eles vendo frustrados os seus desejos, intentaram fazê-lo no ilhéu junto, o que ele não podia impedir por falta de recursos. Mostra que a importância de Cacheu proveio dos rios, e principalmente de Bissau, para onde vão os portugueses, que ali pretendem levantar uma fortaleza, levando as suas embarcações de pouca força, que não são de guerra, o que fará sucumbir Cacheu, que se ia despovoando com a fuga de muitos para o mato por não poderem comerciar com os estrangeiros”.

É um relato minucioso, dele vamos dar mais pormenores até chegarmos à parte terceira, já no reinado de D. José I.

(continua)


Bibiana Vaz, grande negociante de Cacheu
Pormenor da Fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22830: Historiografia da presença portuguesa em África (295): Memória dos Felupes, artigo de José Joaquim Lopes de Lima, 1839 (2) (Mário Beja Santos)