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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22788: Memória dos lugares (433): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte IV


Guiné > Região de Bafatá > Carta de Bafatá (1955 ) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bafatá, de Dando e  de Tabatô. A distância entre Dando e Tabatô, em linha reta, é de cerca de 4,5 km.   Dando fica na estrada Bafaftá-Gabu. A distância é sensivelmente a mesma: Bafatá-Tabatô (na estrada para Contuboel) e Bafatá-Dando (na estrada para Gabu): cerca de 10 km. O Dando (ou Dandum) é referido pelo grande repórter do "Diário de Lisboa",  Norberto Lopes, na sua viagem à Guiné, na crónica publicada em 27 de fevereiro de 1947 (*). Eis aqui um excerto:

"A caminho do Gabu, a circunscrição do extremo Norte da Colónia, a mais extensa e a menos povoada das nove circunscrições em que se divide a Guiné,passamos na pitoresca tabanca de Dandum, à beira da estrada, onde o régulo  Idriss Alfá Baldé, nos faz as honras da sua morança e nos apresenta, como é da praxe, à sua corte de mulheres e conselheiros. Entre eles, figura o 'judeu' ou 'jalifó', espécie de bobo encarregado de divertir o seu senhor e de lhe exaltar as proezas numa lenga-lenga monótona e interminável, que é as mais das vezes produto da sua fértil imnaginação.

"O velho régulo de Dandum, que gozava de grande prestígio no Gabu, onde  não esqueceu ainda a fama de Monjuro Embalô,o famoso régulo de Coiada, último representante da dinastia gloriosa dos Emablªo-Cunda, morreu em 1944, com 88 anos de idade, caso raro entre os fulas que em geral não  não ultrapassam a médis dos 70!"... (E depois tem dois parágrafos com uma curiosa explicação da "decadência dos fulas", outrora uma tribo viril de pastores e guerreiros, atribuída à deficiente alimentação e ao uso e abuso da npoz de cola pelos jovens e pelos adultos...) (*).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)




A lenda de Alfa Moló: uma das belíssimas ilustração do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos maiores ilustradores e autores de banda desenhada. In: "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5.  
Com a devida vénia..


1. Dois comentários, de 24 e 25 de novembro de 2021,  de Cherno Baldé ao poste P22471 (**):


[ Cherno Baldé: nosso colaborador permanente, e nosso especialista em questões etno-linguísticas, nasceu no chão fula, e é muçulmano; tem formação universitária tirada na antiga União Soviética e em Portugal; é e um acérrimo crítico dos "demónios étnicos" que estão longe de ter sido esconjurados e expulsos do seu país;  além disso, é  membro da nossa Tabanca Grande desde 16/8/2009; com cerca de 240  referências no nosso blogue, é autor da notável série "Memórias do Chico, menino e moço"]

 

(i) Caros amigos,

Acho que a melodiosa música Afro-Mandinga” tomou conta da cena, de toda a plateia de admiradores,  e embriagou alguns analistas da actualidade da Senegâmbia no geral e da pequena Guiné-Bissau em particular de forma que muitos estão a ver a árvore, ignorando a floresta.

Para compreender as origens e existencia deTabató, deve-se antes de mais compreender a história da localidade de Dandum (Dando) ou melhor da trajectoria do Alfa Molo Baldé, o rei de Firdu ou Fuladu,  cuja historia de vida ja aqui foi evocado varias vezes.

O túmulo de que a antropóloga brasileira [, Carolina Carret Höfs, autora da tese doutoramento " Griots cosmopolitas : mobilidade e performance de artistas mandingas entre Lisboa e Guiné-Bissa", Lisboa, Universidade de Lisboa, 2014] , se refere é precisamente o de Alfa Moló, pai de Mussa Moló, ambos régulos de um dos últimos reinos da Africa Ocidental em substituição do Império de Gabu na segunda metade do séc. XIX.

Os griots (músicos) profissionais mandingas da linhagem dos Djabaté, como era seu hábito ao longo de séculos, teriam vindo da Guiné-Conakri (Kankan) ou convidados, como diz a narrativa, para trabalhar à sombra da nova dinastia Fula,  vencedora da guerra que tinha oposto a coligação das forças muçulmanas contra os animistas Soninqués do império de Gabu (e não fulas contra mandingas, como os portugueses a apelidaram no intuito de tirar proveitos de dividir para reinar).

E, Dandum,  no período entre a queda de Cansala (1867), o desaparecimento fisico de Alfa Moló (1881) e a fuga de Mussa Moló  para a Gâmbia, para tentar escapar da tutela da França (1903), foi o centro e capital de toda a região sul do reino de Fuladu e, como tal atraia todos os tipos de artistas e músicos que viviam à sombra do poder instalado no momento, da mesma forma que o faziam no passado, durante a epopeia mandinga de Gabu do séc. XIII ao séc. XIX.

Era a continuação da tradição que não conhecia fronteiras tribais, não se limitava na simples nomenclatura dos grupos étnicos, o mais importante sempre era: Quem detinha o poder no momento e como era possivel conseguir a sua graça e tutela e que eram merecedores de todos os louvores e a glória dos vencedores.

Foi Dandum que deu origem a Tabatô (se é que não é a mesma localidade?) que, etimologicamente,  significa a sombra do Tabá, uma árvore gigantesca, frondosa e que, provavelmente só existirá nessa região, detentora de uma longa lista de crenças magicas e de mística tradicionais entre os africanos da costa ocidental e que, para os grupos hoje muçulmanos, ocupa o mesmo lugar que os Poilões na tradição dos povos animistas do litoral guineense e não só.

É o facto que explica, o chefe da tabanca, não sendo mandinga nem músico (griot), ser o chefe tradicional da tabanca, pois que é a herança da família ao longo dos anos desde a épica caminhada de Alfa Molo na conquista desse feudo mandinga, pondo a região a ferro e fogo, mesmo nas barbas dos portugueses, acoitados no pequeno presídio de Geba. 

O griot (músico) não é detentor do poder nem da terra e as regras da tradição mandam que, tudo o que os griots fazem carecem da autorizaçao dos donos da terra, no caso os fulas. Todavia a modernidade e a conjuntura sócio-politica e económica, estão a alterar a situação e as próximas gerações viverão num ambiente completamente diferente e, provavelmente mais liberal e de maior responsabilizaçao pessoal e colectiva,  numa comunidade onde já não haverá a distinção étnico-tribal.

No quadro das grandes transformações que sofreu o território que, entretanto, passou para a administração portuguesa, no último quartel do séc. XIX e, diga-se em abono da verdade, graças aos régulos fulas que queriam fugir ao dictat de Mussa Moló, pese o facto de isso nunca ser referido na historiografia portuguesa, preferindo dar os louros ao seu sobrinho, o mestiço Honório P. Barreto. Na verdade, só o sector de Boé é, territorialmente, muito superior à cidade de Cacheu e arredores que, pretensamente ele teria comprado como se fosse comprar terras indígenas nos territórios da antiga Senegâmbia.

Caro Luis Graça, também desconheço os instrumentos designados por Neguelin, Mirantelen e Cutil. Em contrapartida o Dumdumtama é um instrumento Fula, uma espécie de tambor (dumdum) e que se toca dos dois lados com a ponta arredonda de pau curvo, de formato curvo.

As expressões "dimbasumo" e “cambanicafó" sao derivadas do substantivo feminino “Dimba”,  ou seja mulher em idade fértil,  e “Cambani” quer dizer rapazes. Os sufixos “sumo” e “Cafo” quererão dizer grupos de idades, socialmente organizados para certas finalidades julgadas úteis para a comunidade.

Sobre “Jacatu”, o Gouveia (#)  já respondeu e bem, falta acrescentar que é tão amargo como a famosa cola, mas que é considerado um afrodisíaco que as mulheres gostam de oferecer aos esposos, “soit disant” para dar força e carácter masculino. Alguns acreditam e outros não tanto.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé 24 de novembro de 2021  


(ii) Sobre o comentário do Luis Graça (**):

"Sei que Tabatô também tem bolanha, e deve por isso haver cultura do arroz...
Curiosa é esta mistura, não habitual, entre fulas, mandingas e jacancas... Ser "artista" e "agricultor" não deve ser fácil... Mas vê-se, pelas fotos mais recentes, que há moranças com cobertura de colmo, novo!..."

Tenho a dizer que:

(i) A prática da agricultura de subsisténcia é generalizada em todo o território da Guiné. No caso de mandingas e fulas há uma divisao do trabalho que ordena que os homens trabalhem nas terras altas para o cultivo de diferentes tipos de milhos (preto, bacil,  etc.) e de produtos de renda (algodão, amendoim, gergelim,  entre outros) e as mulheres se dedicam ao cultivo do arroz nas terras baixas e alagadas (bolanhas). Mesmo entre os artistas de diferentes profissões as suas mulheres sempre trabalham nos arrozais para suprir as necessidades da família e suas próprias economias pessoais.

(ii) Na zona Leste o normal é, precisamente, a mistura que o Luís considera de "não habitual entre fulas, mandingas e jacancas...". E ao contrário do que afirma a antropóloga brasileira, quase todas as localidades dignas deste nome ainda continuam a ostentar o nome que tinham na época do domínio mandinga, e os exemplos são inumeráveis, porquanto todos os topónimos que não tenham o "Sintcha" ou "Saré", sao topónimos mandingas. 

Alguns exemplos: Bafatá-Contuba-Contuboel (versão fula)-Cambaju-Fajonquito-Canjadude-Paunca-Jabicunda-Farim-Canjambari-Can-sissé-Tabajan-Tabassai-Sonaco-Tubandin-Berecolon-etc...etc. E na maior parte destas localidades, mandingas e fulas e outros grupos mais pequenos coexistem de forma pacífica há séculos. E, sempre que houve problemas no passado recente, os culpados foram ou administradores do então regime colonial ou dos nossos pseudo-políticos da actualidade, na procura de benefícios políticos como acontece um pouco por todos os paises de Africa.

Cordialmente,  Cherno Baldé  25 de novembro de 2021 

(#) Comentário do Fernando Gouveia:

Luís, "jacatu" tem todo o aspeto de um tomate mas o gosto é completamente diferente. Não se come cru como o tomate mas tem que se cozinhar. Quando lá estive em 2010,  comprei-o várias vezes no mercado de Bula para cozinharmos,  eu e o Chico Álen,  no empreendimento, meio abandonado, de Anura, onde estávamos.
Abraço.

Fernando Gouveia
_____________

Notas do editor:


(*) Vd. poste de 22 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22741: Memória dos lugares (431): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte II

Vd. também o poste anterior (P22738) e posterior (P22747)

21 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22738: Memória dos lugares (430): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte I

24 de novembro de 2021 >
Guiné 61/74 - P22747: Memória dos lugares (432): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte III

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22530: (Ex)citações (390): o ouri (ou uril) de Madina Xaquili, um jogo de estratégia (Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Cherno Baldé)

O ouri de Madina Xaquili, em forma de canoa, feito em pau sangue, e trazido pelo Fernando Gouveia para a sua coleção de arte guineense. As pedras são sementes de coconote. O tabuleiro tem seis buracos de cada lado.


Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Comentários dos nossos leitores ao poste P22526 (*):

(i) Fernando Gouveia:

(...) Em Bafatá joguei várias vezes uril (em francês, "iuri", como então lhe chamávamos), com o ator Carlos Miguel, o "Fininho". De Madina Xaquili, onde cheguei a estar,  trouxe de lá um uril (ou ouri)  em forma de canoa. (...) Ver foto no poste P4585 e toda a história à volta dele. (**)


(ii) António J. Pereira da Costa:

(...) Tenho um jogo do ouri, mas faltam-me algumas peças. São sementes pretas de uma planta que não conheço. Deviam ser 48, mas não tenho tantas, Haverá alguém que me arranje as que me faltam? Pelas minhas contas faltam-me 7 sementes. No meu livro "A Minha Guerra a Petróleo" conto a história das derrotas que o "Balantazinho" me aplicava. O pagamento era feito em Sumol de Laranja ou Ananás... Uma garrafa por cada vitória. 

(...) O meu ouri é em forma de canoa e tem duas "caixas" nas proas para guardar as sementes, antes de começar o jogo. Ja´enviei para o blog fotos das minhas peças de arte guineense. Para esclarecimento é só lá ir(...) (*)

 (iii) Cherno Baldé:

Na minha explanação, disse erradamente que eram 5 buracos de cada lado, na verdade são 6 buracos ou casas de cada lado, onde no início da partida se colocam 4 pedras/sementes em cada uma das casas. O sentido do jogo é sempre de esquerda para a direita, no sentido contrário aos ponteiros do relógio. O jogo faz-se distribuindo a totalidade das pedras/sementes de uma das casas de cada vez.  seguido do adversário que também procede da mesma forma, tentando capturar ou comer (como se diz nas línguas africanas). 

Para a captura usa-se a estratégia do lobo, ou seja,  de atacar o lado mais fraco do adversário. Quando a distribuição das pedras/sementes termina numa casa ou numa série de casas com menos de 4 sementes (2 ou 3),  estas encontradas em situaçao de fragilidade, consideram-se capturadas/comidas e são retiradas e guardadas na ponta do lado direito de cada um dos jogadores. E quando não houver mais sementes, ganha o jogo aquele que tiver mais pedras ou sementes capturadas.

(iv) Fernando Gouveia:

(...) Ainda bem que o Cherno fez a correção dos seis buracos,  e não cinco. Porém no meu tempo, em Madina Xaquili aprendi que só se comia quando nas últimas casas se encontravam ou uma ou duas pedras e só no lado do adversário. (...)
 
(v) Cherno Baldé:

Caro Fernando Gouveia, está certo o que dizes, todavia, para capturar (comer) tens que juntar (distribuindo) mais uma pedra a outra (quando é 1) ou as outras (quando são 2). 

Quando a distribuição das pedras de uma casa termina numa casa vazia (sem pedras) ou numa casa totalizando 4 ou mais pedras, não se pode capturar porque 4 é um número neutro (de segurança mínima), razão porque designo este jogo por estratégia do Lobo que só ataca o lado mais fraco das suas vítimas. 

Neste jogo as casas em risco de ser capturadas são as que tem 1 ou 2 pedras pois que quando se junta mais uma pedra do adversário são capturadas. Cada um dos adversários vai tentar atrair para o seu lado o máximo de pedras e construir casas fortes de ataque ao adversário, acumulando um número significativo de pedras (artilharia) as quais serão redistribuidas no momento oportuno, de modo a poder capturar/matar (comer) o maior número de inimigos/pedras do seu adversário. (...) )***)

____________

(**) 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4585: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (7): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro (VI Parte)

(...) Relato do 12.º dia – 23JUN69

Essa pureza que referi iria ser quebrada. Em determinada altura ouço, perfeitamente fora do contexto, um gargalhar de dois milícias. O que se passava? À porta de uma palhota um militar metropolitano mostrava a esses dois camaradas africanos um baralho de cartas, daqueles com cenas pornográficas. Interrompi a sessão, chamei o metropolitano e expliquei-lhe, em pormenor, a poluição do seu acto, etc., etc.

À tarde aproveitei para tirar algumas fotos e ir falar com o Braima para saber se ele me vendia a guitarrinha, daquelas típicas, feitas com meia cabacinha, pele de macaco e cordas de fio de pesca. Não o consegui mas falando-se também do seu iuri que ele próprio escavou em pau sangue, com forma de canoa, aqui sim, consegui convencê-lo, considerando essa a peça mais significativa que trouxe da Guiné. (...) 

(***) Último poste de 19 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22386: (Ex)citações (389): Caminheiro, peregrino, pagador de promessas...(Jaime Bonifácio Marques da Silva, ex-alf mil prqd, BCP 21, Angola, 1970/72)

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Guné 61/74 - P21862: Fotos à procura de... uma legenda (143): "Macaco verde" [Chlorocebus sabaeus], dizem eles, depois do sueco Lineu (em 1766), que nunca esteve em Buruntuma ou em Bafatá e muito menos no Cantanhez... (António Marreiros / Fernando Gouveia / António Levezinho / Virgílio Teixeira)


Foto nº 1 


Foto nº 2

Foto nº 3

Guiné > Região de Gabu > Buruntuma > CCAÇ 3544, "Os Roncos de Buruntuma" > 1972 >  O nosso "macaco verde"... Nome científico: Chlorocebus sabaeus (Linnaeus, 1766)

Fotos (e legenda): © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto nº 4

Guiné > Região de Bafatá  > Bafatá  > Cmd Agr 2957 (1968/70) > O alf mil rec e info Fernando Gouveia com um juvenil de "macaco verde"


Fotos (e legenda): © Fernando Gouveia (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guis dos Mamíferos do Parque Nacional do Cantanhez, da autoria de Nicolas Bout e Andrea Ghiurghi (2018, 189 pp., AD - AIN - IBAP - IUCN, ISBN: 9788890894923).



1.  Os nossos camaradas e amigos estão "confinados", como os nossos editores e colaboradores permanentes estão "confinados" por causa do raio da pandemia de Covid-19... Mas não estão "tramados" e muito menos "finados"... 

Continuam, desde há 17 anos (tantos quantos existe o blogue) a ser generosos e a responder às nossas iniciativas... Por que afinal a "nossa guerra" não foi só de tiros: desconbrimos um país e um povo fantásticos... Descobrimos as suas paisagens deslumbrantes, a sua biodiversidade, a sua multicultura...E aprendemos, neste blogue, a partilhar as nossas memórias (e afetos) e até o transformámos numa fonte de informação e conhecimento. Sempre numa base de grande tolerância e respeito por tudo aquilo que nos une mas também por aquilo que nos pode separar...

Num espaço de horas, houve logo resposta ao nosso desafio (*). E eu tinha aproveitado, entretanto,  para mandar a alguns de nós que se interessam mais pela "Fauna e flora" da nossa Guiné-Bissau, um guia, em formato pdf, útil para  a observação de mamíferos do Parque Nacional do Cantanhez, na região de Tomboli, fortemente regada pelo sangue de muita gente, de um lado e do outro, nos tristes anos em que andámos lá aos tiros...


2. Mensagem para o Tony Levezinho, 

Data - 6 fev 2021, 21h10
Assunto - Material deestudo para o DI, agora "confinado"

Vê se o teu DI [, Diogo , o neto, com 14 anos]  me/nos ajuda a identificar esta espécie animal (*)...

 Como prenda de anos atrasada, segue um guia de observação de mamíferos da Guiné-Bissau, Parque Nacional do Cantanhez (que visitei em 2008; e o João em 2009)...

Pode ser que ele aprecie...embora agora seja mais ornitólogo do que primatólogo...

Grande abraço para os dois "guardiões da Ponta de Sagres".. Luís


3. Resposta do António Levezinho, meu camarada e amigo do peito, desde os tempos da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71):

Luis, 

Pede-me o Di que te agradeça o guia do parque do Cantanhez. Ao visualizá-lo disse logo que gostava de lá ir. Confesso que não lhe dei qualquer esperança em ajudá-lo a satisfazer o seu desejo.
 
Quanto à pergunta sobre a espécie do macaco,  ele disse desconhecer. A praia dele, neste momento, são mesmo as aves.
 
Um abraço cá do Sul.

4. Resposta de outros camaradas:

(i) Antonio Marreiros, 7 fev 2021, 00:26

Olá, camaradas,

Aproveitei uma aberta sem chuva para continuar a limpar o quintal porque há sinais de Primavera ...mas também uma frente ártica vem a caminho que pode ser má,  se descer a -7 C... Na pradaria Canadiana está mesmo frio, de -30 a -40 C para este fim de semana! Em Sagres são 14 positivos!!!

Encontrei duas fotos a cores do mesmo macaco que adorava dormir no meu peito quando tinha a camisa vestida e lhe abria dois botões (*).

Pelo que li no Guia, parece que é o "macaco verde"...

Coitado com certeza sentia falta do bando pois estava amarrado e só tinha um cão pequeno como companheiro...Um e outro davam-se bem e dormiam juntos,  normalmente o macaco em cima do cão!

Um abraço,
A. Marreiros

PS - Quando visitaram esse novo parque nacional conseguiram ver alguns animais ou não foi possível?


(ii) Fernando Gouveia, 7  fev 2021, 1h04  [ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, Cmd Agr 2957, 1968/70), autor de, entre outras séries notávais, "A Guerra Vista de Bafatá  (Fernando Gouveia)" de que se publicaram cerca de 9 dezenas depostes;arquitecto reformado, transmontano, vive no Porto; tem mais de 165 referências no nosso blogue]

Olá,  Luís, ai vai mais uma imagem do macaco que penso ser da mesma estirpe. Em anexo.

Abraço.
Fernando G.

 
(iii) Virgilio Teixeira, sábado, 6/02/2021,  22:40

Boa noite Luis,

Grande obra que tiveste a lembrança de me enviar. Sei muito pouco sobre fauna, quer na Guiné ou outro local qualquer. Dei uma vista de olhos e gostei, vou ler com atenção e curiosidade.

Onde estavam estes animais durante a Guerra de 61/74?

Obrigado pela lembrança, e espero que haja um bom titulo para estas curiosidades fantásticas.

Abraço, Virgilio Teixeira



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional de Cantanhez > Iemberém > 9 de dezembro de 2009 > 15h50 > Macaco fidalgo vermelho (ou fatango, em crioulo). Espécie, nome científico: Procolobus badius. Em inglês, western red colobus. 

É mais um primato em perigo,  está ameaçado de extinção, fundamentalmemte devido à caça,   à desflorestação, às mudanças climáticas, etc. No Cantanhez não haverá mais do que duas centenas de indivíduos. Vd. pp. 30/32, do "Guia  dos Mamíferos do Parque Nacional do Cantanhez". 

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21855: O segredo de... (34): Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando (testemunho recolhido por José Ferreira da Silva)


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 
Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 

O nosso tertuliano José Ferreira da Silva (,, o "Silva da CART 1689") com o protagonista desta história, o camarada Dionísio Cunha , aqui à direita. 


Foto (e legenda): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. É um segredo... que já não é segredo (****). Foi recolhido e divulgado há cerca de 8 anos, pelo nosso camarada (e escritor, com três livros publicados), o José Ferreira da Silva (ex-fur mil op esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com mais de 160 referências no nosso blogue.


Foi publicado na sua série "Outras memórias da minha guerra" (e mais tarde reproduzido em livro, o I volume das "Memórias Boas da Minha Guerra", Lisboa, Chiado Books, 2016) (*).

Já na altura tive ocasião de dar os parabéns ao Dionísio e ao Zé Ferreira pela coragem, frontalidade, autenticidade e honestidade deste testemunho. Não tinha na altura (nem tenho ainda hoje) razões para pôr em causa a sua veracidade nem o rigor da recolha do Zé Ferreira. Sei que ele levou alguns meses a confirmar e acertar certos pormenores. E obteve aautorização do Dionísio para publicar esta "história", primeiro no nosso blogue (*) e depois em livro [, vd, imagem da capa à esquerda].

Eu próprio falei, há dias, no dia 24 de janeiro passado, com o Dionísio. E mais uma vez ele não levantou qualquer objecção a que o seu testemunho pudesse ser de novo reproduzido, agora, nesta série, "O segredo de...". Disse-me: "Tudo o que lá está foi verdade"...

Por sua vez,eu retorqui-lhe que um dia ainda haverá um cineasta que pegue  nesta história já esquecida, mas reveladora da importância que têm os valores humanos, na paz e na guerra.  E repeti o que tinha comentado há oito anos atrás:

 "Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um 'fait-divers' da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma. (...) Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande."... 

Sei que o Dionísio não é utente das redes sociais, não conhece o nosso blogue, não tem computador nem endereço de email... Mas tem um filho que é informático, e a quem vou pedir um dia destes uma foto do pai, do tempo da Guiné, para o apresentar formalmente à Tabanca Grande e sentá-lo à sombra do nosso poilão, como ele tão justamente  merece. 

Continua ligado ao Centro Social e Paroquial de Valbom. Estava em casa com a sua Ângela, um e outro já com alguns problemas de saúde  próprios da idade. Desejei felicidade a ambos.

E vamos agora "ouvir (e saber ouvir)" o seu testemunho (****), reproduzido com talento, detalhe e rigor pelo Zé Ferreira.  Mesmo que para aqueles que já o conhecem, o depoimento merece ser lido, relido e comentado. 

O único ponto de discórdia (, já discuti isso com o Zé Ferreira),  é o nome da operação, referida no texto: estamos a publicar a história da 3ª CCmds (1964/66), na versão de João Borges, e em maio de 1967 não parece ter havido nenhuma Op Azimute: houve duas no Oio (Op  Vermute, a 10 de maio;  e Op Vinagre, a 17; e uma terceira, na ponta Matar, na região de Cacheu, a 26 de maio). 

Pela descrição do Dionísio (que não se lembrava já do nome da operação, o Zé Ferreira é que lhe chamou Op  Azimute),  admitimos nós que possa ter sido  a Op Vermute, mas o relatório  parece ter sido omisso quanto a eventuais baixas civis. O que não admira: quem conheceu a realidade operacional do CTIG, sabe que os nossos relatórios de operações por vezes pecavam, uns por excesso, outros por defeito. Confronte-se, entretanto,  as declarações do Dionísio com o resumo da Op Vermute feito pelo João Borges, infelizmente já falecido em 2005  (***):

(...) "Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume." (...) [Dionísio Cunha]


Resumo  da Op Vermute, segundo João Borges (***)





Feia > Fiães > 2 de dezembro de 2017 > Sessão de apresentação dos Volumes  I e II de "Memórias Boas da Minha Guerra", do nosso camarada José Ferreita da Silva.   

"O  cmnbatente  da 3.ª CComandos, Dionísio Cunha - protagonista da história “É Guerra, é Guerra (Será?)”, pág,119, I Volume - fala da guerra, da sua justeza e da sua condição de desertor, de que se orgulha muito, segundo diz. Preso na Metrópole, voltou à Guiné e à sua Unidade, tendo participado voluntariamente em perigosas operações até terminar a sua comissão de serviço." (**)

Foto (e legenda): José Ferreira da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O segredo de Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando

por José Ferreira da Silva


Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial, oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, a destinava à próxima quadra natalícia.

Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:

– Quem está doente?

Logo a resposta veio célere:

– É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.

E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:

– Onde andaste?

– Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.

– Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.

O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.

Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.


A paixão, aos 18, pela Ângela, de 14

E foi assim:

É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom [Gondomar] . Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª classe, uma vez que já sabia ler.

Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.

Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano [Azevedo], no sector dos componentes eléctricos.

Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:

– Senhor Zé, tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.

– Desembucha, rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.

– Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.

–Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.

E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.

Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino, das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “Livre”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “Apurado  para todo o Serviço Militar”. Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.

Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal tenente  Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.


Maio de 1967 : No Oio, três mulheres mortas, 
com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas, vivos.


Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no RALIS de Lisboa. Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.

– Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei.

E ele iniciou:

"Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.

Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) (***), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.

Avançavam as equipas de dois de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e,  após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.

Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?

Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o subcomandante Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
– Cada um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos."


O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:


"Após algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.

Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça."


Saudades da Ângela e uma 'boleia' no Uige até casa, clandestino,  
no meio da comissão
 

"Estávamos aquartelados em Brá, Bissau,  e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o navio Uíge, que havia trazido mais militares (BART 1913) [, desembarcado em 1 de maio de 1967] e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.

Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.

As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.

Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.

Quando cheguei a Lisboa,  fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado. Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.

Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.

Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.

Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia: 

– O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras."


Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre [, leia-se: "Voz da Liberdade"], programa do conhecido Manuel Alegre. Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.

Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.

Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:

–Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.

– Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.

No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:

– Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!

Duas praças da Policia Militar, esperavam-no. Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá.


Eh!, pá, estás f..., sabes o que é um  desertor?!


Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca,  encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:

– Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.

Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:

– Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?

– Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.

– Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu alferes Sampaio Faria.

"Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou duas vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor 'Comando' Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó."

Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné: “Op Bola de Fogo”, para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade.

Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta operação, o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.


Voluntário para a Op Bola de Fogo: 
a salvação do Dionísio

O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.

– Entretanto, o sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: 'Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra comissão de serviço'.

O Dionísio, chateado, ainda perguntou:

– Quem foi que lhe disse que vou para os Adidos?

– Foi a informação que chegou do Quartel-General – respondeu o Sargento.

O Dionísio saiu ao encontro do Capitão:

– Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.

– Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – prguntou o Capitão.

– O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.

– Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação – disse o Capitão.

Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rolls Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.

(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até 15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).

Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.

O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.

– Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.

José Ferreira da Silva
___________

Post scriptum do autor:

Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.

Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:

– Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.

– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?

– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?

– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.

Foi então que o Dionísio rematou:
 
– Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.

[Revisão / fixação de texto /título e subtítulos, 
para efeitos de publicação deste poste: LG. 
Com a devida vénia, ao José Ferreira da Silva e ao Dionísio Cunha]

 
2. Comentários dos nossos leitores [em 2013; repare-se que três, infelizmente, já não fazem parte da lista dos vivos: o Jorge Teixeira 'Portojo', o Luís Faria e o Mário Vasconcelos]  (*)

(i) Fernando Gouveia

Luís Graça: Aqui tens a história, inderectamente contada pelo próprio, estória um pouco romanceada incluida no meu livro NA KONTRA KA KONTRA, a páginas 139. O Dionildo da minha estória, como podes ver, chama-se efectivamente Dionísio. (...)
 
19 de março de 2013 às 13:12
 
(ii) Luís Graça

Fernando, tinha ideia de ter ouvido esta história ... do "arco da velha". Algures... Afinal, foi no teu livro. Dou os parabéns, aos dois, ao Dionísio e ao José Ferreira...

Não tenho razões para pôr em causa a veracidade do testemunho do Dionísio e o relato do Silva. De resto, no blogue é proibido julgar um camarada. Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um "fait-divers" da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma.

Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande. (...)

19 de março de 2013 às 17:04

(iii) Carlos Silva

Olá,  Luís: A história do nosso camarada "melro" Dionísio Cunha e aqui contada pelo Zé Ferreira já é conhecida no seio da nossa Tabanca dos Melros, creio que desde a altura [2010/2011] que o Fernando Gouveia tomou conhecimento.

De facto a história das crianças é arrepiante ...

Quanto a conheceres pessoalmente o Dionísio Cunha, tu que vais várias vezes ao Norte, porque não apareces num 2º sábado de um mês à Tabanca para conviver com a rapaziada ?

Pode ser que ouças mais histórias por lá. (...)
 
19 de março de 2013 às 17:54

(iv) Jorge Teixeira

Eu estava lá, ou por outra, estava cá a ouvir com atenção a história do Dionísio (estava mesmo em frente dele), mas também estive lá na guerra e como costumo dizer, aquilo em certas situações mais parecia a guerra do Solnado:

- Porra! Mas o que é que eu estou aqui a fazer, esta guerra nem é minha, aproveito a boleia do Uíge e vou mas é para casa! Se bem o pensou, melhor o fez!

Também sei que se contam muitas "estórias", mas estar ali frente ao Dionísio a ouvir a sua narrativa fluída e sem artifícios, sem dar ares de quem se estava a armar, foi impressionante.

Se porventura inventou alguma coisa foi sem maldade, porque via-se mesmo que não era fanfarrão e não estava a inventar.

Tempos de guerra. (...=)

20 de março de 2013 às 00:29
 
(v) Luis Faria

Gostei de ler.

A crueza da passagem (?) referente às crianças, reconduziu-me lá para as bandas de Capó,  Teixeira Pinto (Balanguerez). Vd. Poste P7172 de 24 Out 2010.

Por vezes a guerra obriga a tomada de opções com potenciais implicações, sempre dificeis de tomar e a meu ver nunca mais esquecidas! (...)


20 de março de 2013 às 10:48

(vi)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Ao apresentar estes dois camaradas, sabia que o Silva era capaz, como ninguém, de anotar e escrever de forma notável esta história de vida do Dionísio.

Não conheço o relato do Fernando Gouveia, mas presumo que também deve ser interessante.

Se bem me lembro há uma "Pasta" aqui no blogue referente ao capítulo dos desertores. A quem muita gente chamou de covardes. Parte da história do Dionísio poderia ser contada e arquivada nessa "Pasta". Alguém teria coragem de lhe chamar covarde ? (...)

2 de abril de 2013 às 13:40

 (vii) Mário Vasconcelos

Na verdade, este testemunho ou depoimento dava um perfeito filme.

O Dionísio é de facto, pelas descrições feitas, um grande militar, ao qual acrescenta situações mirabolantes, mas compreensivas. A leitura deu-me um bom dia para hoje.

Um abraço ao nosso camarada com votos de uma vida cheia de tudo. Ele merece-o, como tantos outros afinal.

14 de abril de 2014 às 13:18

 (viii) Ze de Lamego

Meus caros amigose camaradas.Adorei! Nunca tinha ouvido uma estoria deste cariz.Vou querer conhecer o ator.Consehuiu emocionar-me.Ao Ze Ferreira apenas dizer-lhe que continue a dar-nos o prazer de ler os seus escritos,pois são sempre de uma rigorosa veracidade.Abraço-vos. Ze de Lamego

14 de abril de 2014 às 14:17

 (ix)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Zé Lamego Pereira, já estiveste várias vezes ao lado dele. Pelo menos na mesma sala.
Na próxima vou-te apresentá-lo.

14 de abril de 2014 às 15:44

(x) Silva da Cart 1689 [José Ferreira da Silva]:

Caros amigos,

Tal como mostram algumas fotos, o Dionísio contou a história diante alguns camaradas, na Tabanca dos Melros (*). Daí até à sua publicação, foram vários meses. Como se tratava de um relato verídico, procurei que todo o resto também o fosse. Até porque os nomes se mantiveram os verdadeiros. 

Por outro lado, foi preciso aferir das coincidências ligadas à minha pessoa (Companhia de Comandos), ao desembarque do meu Batalhão, o  1913 (Uíge, Bissau, 1 de Maio de 1967) e à minha Cart 1689 (Gandembel, Op Bola de Fogo). Desloquei-me algumas vezes ao encontro do Dionísio e, com ele, efectuei algumas correcções.

Resta-me agradecer ao Dionísio pela sua disponibilidade e pela sua verticalidade nos testemunhos que me prestou. (...)

_________

Notas do editor:



quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Guiné 61/74: P21559: Arte guineense, fula e mandinga (Luís Dias, ex-alf mil inf, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74)


Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > O chefe da tabanca, com o traje usado durante o período do Ramadão [detalhe: usa ao peito um colar de prata, trabalho que só podia ser de ourives mandinga, vd. foto nº 8]


 Foto nº 2 > Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > Cerimónia do Ramadão


Foto nº 3 > Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi >  s/d [c. 1972/74] > Arte fula; alfange  e punhais, com bainha de couro




Foto nº 4 Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > s/d , c. 1972/74]  > Arte mandinga, pulseira em prata do ourives de Bafatá


Foto nº 6 Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > Arte fula; machados da fertilidade: o masculino, à esquerda;o feminino, à direita.


Foto nº 6 Guiné > Região de Bafatá > Setor de Galomaro > Dulombi > 1972 > Arte fula  [?} > O alf mil Luís Dias empunhando um canhangulo de caça grossa


Foto nº 7  Guiné > Região de Bafatá > Bafatá >> 1972 > Arte mandinga:trabalho do ourives de Bafatá, o Tchame, já falecido.

Fotos (e legendas): © Luís Dias (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 8 > Guiné-Bissau > s/l > s/d > Arte mandinga: colares de prata



1. Mensagem de Luís Dias [, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), o nosso especialista em armamento; tem mais de 8 dezenas de referências no nosso blogue]:


Data - sexta, 6/11, 12:10
Assunto - mais fotos agora de material de arte fula 


Seguem mais fotos, agora de arte fula e algumas de arte mandinga:.

(i) Arte fula: machados da fertilidade (representado à esquerda, o macho, e à direita a fêmea) [Foto nº 6];

(ii) Arte guerreira fula: alfange com com bainha de  couro  [, Foto nº 3];

(iii) Trabalhos em prata do famoso ourives de Bafatá [, de seu nome Tchame] [Fotos nºs 4 e 7];

(iv) Traje de cerimónia do Chefe da Tabanca do Dulombi, no período do Ramadão [Foto nº 1] e o Ramadão na Tabanca do Dulombi, ambas de 1972 [Foto nº 2];

7ª Um canhangulo usado pela população do Dulombi para abater animais de maior porte.



Foto nº 9 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1968/70 > O Tchame, o famoso ourives de Bafatá, em dia de Ramadão frente à Mesquita, com os seus dentes de ouro.


Foto nº 10 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1968/70 > Uma pulseira, executada pelo ourives de Bafatá, , que a minha amiga Regina Gouveia, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia.


(...) De seu nome Chame (não sei se é assim que se escreve o nome), era conhecido em toda a Guiné pelo seu trabalho de ourives. Executava peças de prata e de ouro como qualquer oficina de ourivesaria de Gondomar e digo isto porque o género de trabalho mais praticado por ele era muito semelhante à nossa filigrana. 

Por mais que uma vez estive na sua oficina, uma pequena palhota na tabanca da Ponte Nova. No chão uma pequena fogueira ladeada por duas pedras onde eram colocados os cadinhos para derreter os metais e onde, soprando com o auxílio de um maçarico de boca, se iam soldando os fios dos metais preciosos. Completava a oficina, uma pequena mesa com ferramentas rudimentares. 

Lamento não ter tirado uma foto das instalações, mas não tinha flash. Numa das vezes fui lá com a minha mulher e comprámos-lhe uma pulseira (ver foto). Mas talvez o mais espectacular é que era o artífice das coroas de ouro dos seus próprios dentes, serviço que não fazia a mais ninguém. (...)

Fotos (e legendas): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Nota do editor:

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21538: Casos: a verdade sobre... (15): A retirada de Madina do Boé e o enfraquecimento do flanco sul / sudeste do território (regiões de Gabu e Bafatá) (Valdemar Queiroz / Cherno Baldé / António Rosinha / Fernando Gouveia)


Foto nº 4

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de junho de 1969 > A antiga tabanca de Padada, a 12 km a sul de Madina Xaquili, na direcção do Rio Corubal.


Foto nº 1 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de junho de 1969 > Restos, carboizados, da antiga tabanca de Padada, a 12 km a sul de Madina Xaquili, na direcção do Rio Corubal. 


Foto nº 2 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de junho de 1969 > O grupo de combate do Fernando Gouveia, progredindo nas proximidades da antiga tabanca de Padada,   


Foto nº 3 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de junho de 1969 > O Fernando Gouveia, nas proximidades da antiga tabanca de Padada,   



Foto nº 5 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Subsector de Galomaro > 21 de Junho de 1969 t > Uma pausa para retemperar as forças, a caminho de Madina Xaquili que, tal como Padada antes, viri a ser abandonada em outubro de 1969. 
  

Fotos tiradas pelo nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), no decurso de um patrulhamento ofensivo àquiela tabanca abandonada, com o seu grupo de combate (20 milícias e 10 soldados metropolitanos). Em Padada reencontar-se-ia com forças da CCAÇ 2405 (Galomaro / Dulombi, 1968/70), comandadas pelo Cap Mil Jerónimo. Foram encontrados vestígios recentíssimos da guerrilha do PAIGC.


otos (e legendas): © Fernando Gouveia (2009. Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários de Valdemar Queiroz, Cherno Baldé e António Rosinha ao poste P21531 (*)

(i) Valdemar Queiroz

A questão do abandono de Madina e toda aquela região da zona além Corubal,  é estranha em termos de estratégia da ocupação do terreno, para, inclusivamente, não dar azo a "zona libertada".

Vejamos nos mapas existentes no blogue de toda essa região à data em que foram elaborados. Vejamos, depois, como era a ocupação/fixação da população e presença da NT a partir do início do ano de 1969. 

Verificamos que apenas Canjadude e mais acima Cabuca eram as únicas tabancas existentes a fazer tampão a incursões a Nova Lamego, Dara e Piche, que a partir daquela data começaram a ser atacadas mais frequentemente. 

Em toda aquela área a leste da linha (estrada) Buruntuma - Nova Lamego, só existam Cabuca e Canjadude com pouca população e praticamente só ocupação militar. 

Não sei o que entretanto foi acontecendo (vim para a peluda em dezembro de 1970) com flagelações a estas duas tabancas. O facto de cada vez mais população abandonar essas tabancas da região, concentrando-se nas grandes localidades de Nova Lamego e Bafatá,  fazia com que apenas a NT resistisse nesses locais, não tardando, sabe-se lá, tambéma serem consideradas para retiradas estratégicas formando, assim, mais "zonas libertadas".


(ii) Cherno Baldé: 

Antes do início da guerra, o Sudeste da Guiné, que inclui a parte sul da região de Bafatá (Galomaro Cossé) e da região de Gabu (Boé), não eram zonas desabitadas,  como se pode pensar. 

O seu despovoamento foi gradual e aconteceu nos primeiros anos da Guerra e, em 1968 quando chega o Gen Spinola, a situação ja era irreversível. 

O Galomaro, como diz o nome,  era uma zona habitada por ricos ganadeiros fulas e com arrozais nas bolanhas a perder de vista. Foram abandonadas com o recrudescer da guerra. 

Se depois o abandono do terreno se justificava devido à inexistência da população, é caso para dizer que sempre existiu e existe uma grande diferença entre a teoria e prática, entre os sonhos e a realidade, como podemos perecber no excertodo discurso em baixo, é pena que o homem [. o António Oliveira Salazar,]  nunca tenha vindo ao terreno para constatar a realidade "in loco". 

“As terras coloniais, ricas, extensas e de fraquíssima densidade populacional são o natural complemento da agricultura metropolitana, nos géneros pobres sobretudo, e das matérias-primas para a indústria, além de fixadores de uma população em excesso daquilo que a metrópole ainda comporte e o Brasil não deseje receber. (...) 

"Nós cremos que há raças decadentes ou atrasadas, como se queira, em relação as quais perfilhamos o dever de chamá-las à civilização. Que assim o entendemos e praticamos, comprova-se pelo facto de não existir qualquer teia de rancores ou de organizações subversivas que neguem ou que pretendam substituir a soberania portuguesa. (...)"

Fonte:  António Oliveira Salazar. Discursos e Notas politicas, vols. III e V (1943 e 1957). Coimbra, Coimbra editora, sem data. 

(iii) António Rosinha:

Amigo Cherno: "as terras coloniais, ricas, extensas e de fraquíssima densidade" a que o Salazar se referia, foram os tais colonatos que foram construidos em Moçambique e principalmente Angola. 

Na Guiné não havia extensões agrícolas desabitadas, para albergar tantas famílias, como as que foram para Angola e Moçambique, principalmente transmontanos e açoreanos. Os colonatos de Angola conheci-os relativamente bem. 

Cherno, ainda hoje estou convencido que continua a haver maiores extensões desabitadas em Angola do que as que existem na Guiné, mesmo considerando que a região de Madina do Boé continue pouco habitada. Só que as grandes extensões desabitadas em Angola, hoje já está tudo demarcado e aramado pelos "novos senhores" de Angola. 

A Guiné, tirando a região de Madina, sempre deve ter tido uma densidade populacional muito maior que Angola, que conheci bastante bem. Salazar não ia ao terreno, mas estava bem informado. 

PS- Onde parece que está a ficar muito despovoado é o norte de Moçambique, com decapitações e fugas da população e nem a ONU nem Portugal nem a Inglaterra (aquilo já se passou para a Commonuelth) fazem frente à Jihad ou o que aquilo é. A Europa já não pode com uma gata pelo rabo! 

2. O caso do abandono  de Madina Xaquili em outubro de 1969:

Num dos postes da sua série A Guerra Vista de Bafatá, o nosso camarada e amigo Fernando Gouveia (ex-Allf Mil Rec e Inf, Comando de Agrupamento nº 2957,  Bafatá, 1968/70)  explica o porquê da sua ida intempestiva para Madina Xaquili,lá  no "cu de Judas":

"(...) Com a retirada das NT de Madina do Boé a 05/06 de fevereiro de 1969 e na sequência do fracasso da Op Lança Afiada em Março de 69 [,  de 8 a 21],  era de prever (...) que o IN progrediria no terreno, para Norte, ameaçando as zonas povoadas do Cossé, aproximando-se de Bafatá.

"Em princípios de Junho de 1969 chega ao Agrupamento [de Bafatá] uma ordem do Comando Chefe que determinava o envio de oficiais disponíveis, enquadrando grupos de militares, para as tabancas da periferia da zona habitada, no intuito de segurar lá as populações. Sabia-se que a região do Cossé era habitada predominantemente por fulas e que estes, ao mínimo pressentimento de problemas, se deslocavam aproximando-se de Bafatá.

"É neste contexto que o Cor  Hélio Felgas, meu Comandante (, Cmando de Agrupamento nº 2957), determina que eu vá para Madina Xaqili, sendo a Companhia sediada em Galomaro [, a CCAÇ 2405,] que me asseguraria a logística. (....) O Capitão, pessoa afável que gostaria agora de identificar [, cap inf José Miguel Novais Jerónimo,], deu-me todas as indicações sobre o que iria encontrar em Madina Xaquili.

"Sobre os 7 militares metropolitanos que me acompanhariam, escolheu um que sabia cozinhar, um que sabia fazer pão, outro que sabia de enfermagem e um rádio-telegrafista. Quanto ao armamento que me iria fornecer, fiquei alarmado: Além das G3 e de algumas granadas, só tinha o cano (só o cano e um cepo de madeira a servir de prato) de um morteiro 60, e 16 (dezasseis) granadas" (...).

"(...) Chegámos a Madina Xaquili a meio da manhã [ do dia 14 de Junho de 1969]. Era uma tabanca com umas 20 palhotas. Estava em auto-defesa, com cerca de 40 milícias, comandados pelo também africano João Vieira (sem Bernardo). Havia uma razoável cerca de arame farpado e abrigos construídos recentemente. A população civil (2 ou 3 famílias) e as mulheres dos milícias não tinham abrigos" (...). (**)




Guiné > Carta geral da província (1961) (Escala 1/500 mil) >  Posição relativa de Madina Xaquili (rectângulo a verde)  em plena zona leste, tendo a sul o Rio Corubal e a norte a estrada Bafatá-Gabu. Madina Xaquili fazia parte do mapa de Cansissé (1/50 mil). 

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010)


3. Com a retirada de Béli (em julho de 1968), Madina do Boé e Cheche (em fevereiro de 1969), passou a haver um corredor, com "via verde", por onde o PAIGC se infiltrava mais facilmente na parte sul / sudeste do chão fula, a norte do Rio Corubal. 

Apesar do reforço temporário de tropas paraquedistas do BCP 12, ao sector de Galomaro (a partir de agosto de 1969, COP 7), bem como da CCAÇ 12 (que vai ter a sua estreia e batismo de fogo logo em Julho de 1969, em plena época das chuvas), Madina Xaquili,  guarnecida Pel Mil 147.  tornar-se-ia insustentável, sendo abandonada pela população e depois pelas NT logo em outubro de 1969. Padada, mais a sul, também já tinha sido abandonada (não posso precisar em que altura). O PAIGC apertava o cerco ao chão fula, e nomeadamente o Cossé donde eram originários, juntamente com Badora,  os soldados da CCAÇ 12.

O Pel Mil 147 (Madina Xaquili) fazia parte, em finais de setembro de 1968 (data em que o BCAÇ 2852 passou a tomar conta do Sector L1), da Companhia de Milícias nº 14 que tinhas pelotões e secções espalhados por Quirafo e Cansamange (Pel Mil 144), Dulombi e Cansamange (Pel Mil 145), Madina Bonco e Galomaro (Pel Mil 144). Nesta data já não há referência a Padada, presumindo-se que tenha sido abandonada anteriormente.

Em agosto de 1969, Madina Xaquili e o Pel Mil 147 já constam no dispositivo das unidades combatentes do BCAÇ 2852, em virtude de se passado a constituir um novo Sector, o L5, com sede em Galomaro (onde já estava de resto a CCAÇ 2405, com forças espalhadas por Imilo, Cantacunda, Mondajane, Fá, Dulo Gengele), integrado no CO7 (Bafatá).


(***) Sobre Madina Xaquili ler as venturas e desventuras do Fernando Gouveia em kunho de 1969... Foram 13 dias surreais, de 12 a 24 de Junho de 1969, contados e fotografados como só ele sabe.

26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4585: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (7): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro (VI Parte)

6 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4470: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (6): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (V Parte)

28 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4429: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (5): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (IV Parte)

21 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4395: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (4): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (III Parte)

8 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4305: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (3): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (II Parte)

27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4254: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (1): Três oficiais: um General, um Coronel, um Alferes - suas personalidades