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sexta-feira, 6 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23235: 18º aniversário do nosso blogue (12): Entrevista com Leopoldo Senghor, ao "Jeune Afrique", n.º 701, de 15/6/1974, sobre os seus contactos com o gen Spínola e com o PAIGC, reproduzida, em português, no Boletim do MFA, Bissau, n.º 2, 17/6/1974 (Victor Costa, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)


Leopoldo Senghor, presidente da República do Senegal, 
entre 1960 e 1980. 



1. O nosso camarada Victor Costa, ex-fur mil at inf, Victor Costa,  mandou-nos este "recorte de imprensa", que reproduzimos abaixo. Trata-se de uma entrevista dada pelo então presidente da República do Senegal (o primeiro, entre 1960-1980), poeta, teórico da negritude, panafricanista e profundamente francófono Léopold Sédar Senghor (1906-2001) ao influente jornal "Jeune Afrique", n.º 701, de 15 de junho de 1974, traduzida e reproduzida no Boletim do MFA, Bissau, n.º 2, de 17 de junho de 1974, ou seja, dois dias depois. 

O jornalista, que entrevista o Leopoldo Senghor, é Jean-Pierre N' Diaye. Em 13 de março de 1975, Senghor (apelido paterno, para uns corruptela da palavra portuguesa "Senhor", para outros um apelido sererê, veja-se a o artigo em inglês na Wikipedia),  filho de pai sererê, rico comerciante de amendoim, e filho de mãe de origem fula (a terceira esposa do pai),  é agraciado, em Portugal,  com o Grande Colar da Ordem Militar de Santiago da Espada. E em 1980 iria receber o Doutoramento Honoris Causa da Universidade de Évora.  

Acrescente-se que o então semanário "Jeune Afrique", francófono, panafricano, tinha sido criado em Tunes, capital da Tunísia, em 1960.

Destaque

(...) É preciso nunca desesperar dos homens e jamais confundir o povo com o seu governo. Eu tive sempre um  grande afecto e  admiração pelo povo português. Sabe que o meu nome é português, que provavelmente tenho uma gota de sangue português, que os meus antepassados eram da Guiné-Bissau; e é a razão pela qual estive sempre atento a tudo o que era português. (...)

(...) Penso que é do interesse do povo português e do interesse dos povos da Guiné-Bissau,  Angola e Moçambique,  guardar laços com Portugal depois da sua independência. (...)











Entrevista do presidente da República do Senegal, Leopoldo Sédar Senghor, ao semanário "Jeune Afrique", n.º 701, de 15 de junho de 1974, traduzido e reproduzido no Boletim do MFA, Bissau, n.º 2, de 17 de junho de 1974 (dois dias depois). 

Vamos associar este documento à celebração do 18º aniversário do nosso blogue (nascido em 23 de abril de 2004) (**). Obrigado, Victor Costa,
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23234: (In)citações (205): O general Spínola, a guerra e a paz (Victor Costa, ex-fur mil, at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

(**) Último poste da série > 4 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23226: 18º aniversário do nosso blogue (11): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - IV (e última) Parte: 31 de agosto de 1972: "Spínola: Infelizmente ainda tenho que dar tiros, mas a guerra não se ganha aos tiros"... Mas o pior será quando a guerra acabar, conclui o Avelino Rodrigues...

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22859: Notas de leitura (1403): Léopold Sédar Senghor, o poeta da Negritude (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Um achado num alfarrabista possibilitou-me conhecer uma antologia poética do então Presidente Senghor. Note-se que tudo o que aqui se releva é o homem e a sua poesia bem antes de ser iniciada a luta armada. Senghor era profundamente estimado pelos intelectuais franceses, reconheciam que a sua poesia era uma inovação em todo o lirismo escrito em francês. Não fizeram favor nenhum em torná-lo membro da Academia Francesa. Um poeta praticamente desconhecido entre nós e que procurou intervir desde a primeira hora numa solução pacífica de transição colonial para um país independente. Também temos esse dever de memória com o extraordinário poeta que foi Léopold Senghor.

Um abraço do
Mário



Léopold Sédar Senghor, o poeta da Negritude

Beja Santos

Em 1962, a conceituada Présence Africaine dava à estampa o estudo feito por Armand Guibert da poesia de Senghor, nascido numa região acima do Casamansa conhecida por La Petite Côte, recorde-se que esta região foi altamente frequentada, nomeadamente nos séculos XVI e XVII por judeus portugueses que aqui se implantaram, caso de Joal, aqui perto Senghor passou a sua infância. Já poeta consagrado, Senghor exprimia a sua satisfação por estes lugares não longe do oceano, cheios de coqueiros. Frequentou em jovem a missão católica de Joal, onde aprendeu as primeiras letras. Deixou La Petite Côte aos dezasseis anos para fazer os seus estudos em Dacar e em 1928 parte para Paris, nos bancos do Liceu Louis–le-Grand foi colega de Paul Guth, Georges Pompidou e Thierry Maulnier, entre outros. Aqui se vai robustecer o humanismo que lhe inculcará o ideal da libertação. Faz amizade com Aimé Césaire, nome influente no pan-africanismo. A sua poesia tem influências daquilo que ele vai designar como o conjunto dos valores culturais dos africanos negros. Entretanto, ganha os seus títulos universitários, regressa a Dacar, já tem em mente a independência futura do Senegal. É um adepto da não-violência, diz repetidamente que a liberdade cultural é a condição sine qua non da libertação política. A sua devoção é África mas mantém uma lealdade crítica à França, será combatente na II Guerra, feito prisioneiro em 1940. Depois da guerra será eleito deputado do Senegal à Assembleia Constituinte, como parlamentar fará inúmeras viagens, como a Estrasburgo, a Bruxelas, a Florença, a Lisboa e a Nova Iorque. Em 1955 e 1956 será Secretário de Estado na Presidência do Conselho.

O seu pensamento já está formado, Senghor é um homem livre de qualquer complexo de inferioridade, África deverá ser independente, acredita que vários países devem tentar a unidade. Em 1960 será proclamado Presidente da República do Senegal.


Para quem estuda a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau, a política de Senghor merece atenção obrigatória: viu sempre com desconfiança o sonho expansionista de Sékou Touré, procurou a moderação, ofereceu-se para o diálogo para se obter uma transição pacífica de independência para a Guiné Portuguesa. Vigiou a presença do PAIGC no seu território, nos primeiros anos da luta armada, sentiu-se coagido a cortar relações com Portugal, não se furtou a conversações com o Governo de Lisboa, encontrou-se com Spínola, propôs o cessar-fogo e defendeu uma transição até dez anos, para que a administração guineense não ficasse em roda livre, os acontecimentos militares geraram um outro curso dos acontecimentos.

Mas é bom pegar na sua poesia anterior à luta armada, uma poesia animada pelo génio africano, o fascínio pelas máscaras na diversidade de cores; mas é igualmente uma poesia que se deixa impregnar por uma certa mansuetude, a caridade cristã, sem prejuízo da sua atenção por um mundo em convulsão desde a guerra civil de Espanha, a guerra da Etiópia, a sua poesia ganha uma enorme fraternidade com aquela África submetida, redige mesmo poemas com termos jalofos e que pudessem ser recitados acompanhados por korás. Aliás, no seu relatório ao I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, ele destacou as línguas africanas como línguas essencialmente concretas, em que as palavras aparecem associadas a imagens, possuídas pelo valor do signo, falou em imagens analogias e imagens mesmo surrealistas.

A sua formação permitiu-lhe um conhecimento aprofundado da cultura greco-romana e mesmo das culturas mediterrânicas. Muitos dos seus poemas estão estreitamente associados às culturas do Mediterrânio Oriental, possuem um veio popular e não islamizado, muito próprio dos povos nómadas e pastores, mas há também claras referências aos trovadores muçulmanos e aos guerreiros.

No final da obra Armand Guibert conversa com Senghor, começa por o interpelar sobre a sua inspiração, a tónica dos elementos da Natureza, a magia e o fascínio das civilizações de cunho negro, a que Senghor responde que procura para o Senegal uma cultura nova, assente na negritude, sem detrimento das linhas da cultura francesa em que se formou. E não nega que a sua poesia possui um equilíbrio instável entre um passado anterior à colonização, o processo da aculturação e a tomada de consciência de que os africanos deviam seguir o seu próprio rumo. Observa mesmo que escolheu uma área geográfica muito confinada para os temas fundamentais da sua poesia, La Petite Côte, está marcado pelo sol, pelos instrumentos musicais como o korá, as flautas, os tambores, sente-se atraído pela rítmica da tragédia grega e dos trovadores medievais. E responde ao seu entrevistador dizendo que no Senegal a cultura é o fim último da política. Confessa que tinha interrompido a sua atividade poética porque estava a escrever um ensaio sobre a civilização negro-africana, considerava este trabalho a sua missão mais urgente para dar à política um fundamento cultural. Concluído esse ensaio, contava ainda escrever algumas elegias, e escrever mesmo para o teatro, um teatro simbólico e lírico na tradição negro-africana.

Eis um Senghor completamente desconhecido com a imagem que dele se faz ao tempo da luta armada na Guiné, tentou para o seu país uma via democrática, sujeitando a elevado controlo a existência dos partidos políticos.

Confessava-se adepto de um socialismo democrático, repudiou todos os quadros políticos marxistas que fizeram moda no seu tempo, naquele rincão africano.

Desaparecido da cena política em África, é tido hoje como o detentor de uma lírica inultrapassável na linha do encontro entre as culturas ocidentais e da África Negra.


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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22849: Notas de leitura (1402): Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969: A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dada a extensão e a importância que se confere a este livro, justamente premiado com o Prémio Fundação Gulbenkian História Moderna e Contemporânea de Portugal, aborda-se neste texto a passagem de Cabral para a clandestinidade, a sua ligação íntima ao movimento anticolonial português, a sua instalação em Conacri, a tentativa de conversações com Lisboa, a procura de apoios, os preparativos militares, a organização ideológica do líder fundador e a sua visão de unidade Guiné Cabo Verde e o advento da luta armada.
Se o segundo semestre de 1962 foi fundamentalmente ditado por atos de sabotagem que gradualmente desarticularam o Sul da província, 1963 assume-se como o tempo da instalação de duas frentes, a Sul e a Norte e a tentativa falhada na revisão do território, os excessos rápidos foram tais que Cabral chegou a acreditar que a vitória estava próxima. Mas a reação de Lisboa foi enorme, o dispositivo militar crescerá exponencialmente. Como veremos com o desenvolvimento da luta armada.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (2)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Amílcar Cabral abandona discretamente Lisboa e em 1960 vamos encontrá-lo no Norte de África em reuniões relacionadas com as lutas anticoloniais da chamada África portuguesa. Segue depois para Conacri, cabe-lhe montar a organização do PAIGC, esboçar uma ofensiva diplomática que permita formação de guerrilha para muitos jovens, acesso a armamento, apoio financeiro, e muito mais. Julião Soares Sousa descreve detalhadamente os combates espinhosos travados com organizações nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde em Conacri e em Dakar. Rafael Barbosa é o mobilizador dentro da Guiné Portuguesa. Em Dakar e Conacri o PAIGC goza de enorme hostilidade e vai vencê-la. No plano diplomático, e a nível do MAC (Movimento Anticolonialista), Cabral vai capitanear informações sobre o colonialismo português, terá a maior importância a sua viagem a Londres, trabalha ativamente na frente internacionalista, em grande unidade com figuras como Mário de Andrade e Viriato da Cruz, políticos de proa do MPLA.

O autor consagra ampla reflexão à problemática da unidade africana e à unidade Guiné e Cabo Verde, estuda-as num certo paralelismo, encontra pontos de simbiose. Os sonhos de unidade africana cairão praticamente todos na água. Cabral concebe um projeto de união sub-regional, alegando que guineenses e cabo-verdianos partilhavam uma origem ancestral comum, referia-se à circunstância dos escravos transportados para as ilhas terem sido exclusivamente originários da Guiné, que havia identidade administrativa desde o século XVI e até 1879 entre as duas colónias. Toda a documentação que irá elaborar na viragem da década de 1960 insiste nesta identidade de interesses, vai encontrar enorme oposição. Por exemplo o cabo-verdiano Leitão da Graça defendia que não havia ligações históricas entre aquelas duas colónias, dizendo mesmo: “Na época colonial, a Guiné e Cabo Verde estiveram ligados organicamente mas para o interesse do colonialismo”. Cabral procura replicar dizendo que os cabo-verdianos jamais poderiam comandar os destinos da Guiné, seriam os guineenses a decidir depois da independência quem iria dirigir o país. Estava lançada uma semente de surdo descontentamento, passava a ser tabu mencionar-se as relações rancorosas entre guineenses e cabo-verdianos, estes eram os mandantes do poder colonial, chefiavam a administração, possuíam negócios, eram inequivocamente racistas. O descontentamento ficará adormecido até aos acontecimentos brutais de 20 de Janeiro de 1973, em Conacri.

Conquistada a liderança do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde, apoiado por Sékou Touré, Cabral escreve a Salazar propondo conversações para a independência das colónias, nunca obterá resposta. Em Dakar, o PAIGC não tem uma vida fácil, Leopoldo Senghor apoia a FLING e o MLG, estes dois partidos irão fundir-se mais tarde. De 1961 para 1962, a repressão sobre os militantes do PAIGC na Guiné enche as cadeias, é impressionante a vaga de prisões, em Março de 1962 Rafael Barbosa será preso, mas a subversão não para, a partir do segundo semestre de 1962 todo o Sul da Guiné entra em tumulto. Usando a expressão do autor, Cabral e o PAIGC entraram na fase do “Estado em construção”. Aqui Soares Sousa detém-se longamente sobre o pensamento ideológico de Cabral em matérias como o imperialismo, o neocolonialismo, a cultura e libertação nacional e como esta já estava a gerar cultura e identidade específicas.

Escreve ao autor que até Janeiro de 1963 a estratégia de Cabral amparava-se na ideia do restabelecimento da legalidade internacional, do direito dos povos á autodeterminação e à independência. Mas foi incitando uma atmosfera de subversão, tinha poucas ilusões de que Salazar aceitasse os ventos da história, a onda da descolonização. A violência e a luta armada foram-se gradualmente substituindo aos métodos pacíficos, começaram os preparativos para o início da guerra. Cabral era simultaneamente um marxista típico e atípico, aceitava a parte funcional da ditadura do proletariado mas tinha uma visão própria do proletariado, da vanguarda pequeno-burguesa mas dizia sem ambiguidade que “por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto”. Cabral estudava e mandava estudar a estrutura social guineense, as sociedades horizontais e as verticais, as razões que levavam Fulas e Mandingas a apoiar os portugueses, a posição ambivalente dos comerciantes e dos camponeses, o seu apreço pelo campesinato Balanta. Entendia que a política de mobilização na Guiné não podia incidir sob os mesmos princípios dogmáticos adotados na Argélia ou na China. Muito menos podia ser justificada a luta de libertação com base em conceitos sobre o colonialismo ou o imperialismo. Na Guiné, o problema da alienação de terras nunca se colocou. “Para que a mobilização produzisse os resultados desejados devia incidir sobre aspetos da realidade que fossem inteligíveis para as massas. A atenção devia estar virada para os seguintes problemas: o baixo preço dos produtos agrícolas, a obrigatoriedade de pagamento de impostos, os abusos perpetrados pelos funcionários administrativos. Não foi por acaso que a subversão eclodiu justamente em zonas controladas por companhias monopolistas e em terras predominantemente habitadas por Balantas”.

Logo em 1961, quando o MLG atacou em Julho S. Domingos, Cabral se apercebeu que era indispensável acelerar o processo preparatório militar. Nesse ano os primeiros quadros partiram para a China. Marrocos e o Gana dotaram o PAI/PAIGC com as primeiras armas e munições. Depois da China, Moscovo tornar-se-á no principal aliado e fornecedor militar. Em Agosto de 1962 as sabotagens ganharam expressão no Sul, foram o antecedente próximo da luta armada. Esta inicia-se formalmente em Janeiro de 1963, eivada de dificuldades, ainda pouca preparação militar, armamento muito deficiente, processos intimidatórios que Cabral irá punir no ano seguinte, no congresso de Cassacá. A surpresa da estratégia utilizada foi muito grande, o dispositivo militar português instalara-se a contar com refregas nas fronteiras. E a seguir ao caos instalado na zona Sul que levou o Brigadeiro Louro de Sousa a escrever para Lisboa que o controlo era praticamente total por parte do PAIGC com exceção das povoações junto aos rios, a escalada ofensiva estendeu-se para a chamada Frente Norte, Cabral contava que a aceleração das sabotagens desarticulasse por completo a economia colonial, designadamente a monocultura do amendoim. Osvaldo Vieira e Francisco Mendes vão para a zona do Morés e são bem-sucedidos. A Frente Leste abrirá mais tarde, mas os relatório militares portugueses dão conta de situações muitíssimos graves, caso do Corubal que deixou praticamente de ser navegável. A luta armada estava de pedra e cal. Lisboa é forçada a mobilizar cada vez mais batalhões para a Guiné. No interior, PAIGC e as populações aliadas dos portugueses disputam-se encarniçadamente.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20898: (De)Caras (156): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte V: Quando fui a Pirada, em DO-27, em 2/5/1972, levar o inspector da PIDE/DGS, Fragoso Allas, a Pirada, para conversões secretas com os senegaleses... A 18 desse mês, Spínola encontra-se com o Senghor, em Cap Skiring (Gil Moutinho, ex-fur mil pil, BA 12, Bissalanca, 1972/74)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1973/74 > "Na casa do célebre senhor Mário Soares. Acompanhando-o quatro alferes milicianos e um capitão miliciano".

Um dos alferes era Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, membro da nossa Tabanca Grande desde 17/10/2012. (,. o segundo, do lado esquerdo). Do anfitrião (o primeiro, a contar da direita) sabe-se que gostava de (e sabia) bem receber, qualquer que fosse as suas motivações. O nosso camarada Gil Moutinho reconheceu, de imediato, esta mesa, à volta da qual esteve sentado em 2/5/1972, comendo do bom e do melhor, enquantoi o patrão da PIDE/DGS, e homem da confiança de Spínola, conferenciava com o Mário noutro aposento... Pequena história da História Grande...

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do  Gil Moutinho (ex-fur mil pil,  BA12, Bissalanca,1972/73); um dos régulos da Tabanca dos Melros,  Fânzeres, Gondomar) (*):

Ao ver a foto e a mesa, parece irrelevante, mas vi-me sentado ao seu redor e na altura, a 2 maio de 1972, chamou-me bastante a atenção, uma rodela de um tronco enorme e muito bem decorada com tudo do bom e melhor, o melhor presunto, outros enchidos, as melhores bebidas e muito mais.

Pois, na data acima, a minha missão foi transportar de Bissau o chefe da PIDE/DGS, o Fragoso Allas para Pirada,  passando por Bambadinca na ida e regresso, talvez levando alguém de lá.

As peripécias desse vôo estão contadas no poste 1040 do blogue dos especialistas da BA12. (#)

Não tendo passado para o lado do Senegal por sorte (nem um mês de comissão eu tinha!), lá aterrei e aguardei que os passageiros conferenciassem com o Mário Soares. e,  nos entretantos, fui obsequiado principescamente na famosa mesa e durante umas horas.

De facto o homem [, o Mário Soares, de Pirada] era importante!!!

Gil Moutinho

2. Reprodução  com a devida vénia, da mensagem do Gil Moutinho, acima referida (#):

Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74 > 14 de junho de 2009 > Voo 1040: A minha primeira ida a Pirada. (Excerto)

(...) Vou escrever agora umas pequenas histórias da Guiné.

A primeira de como cheguei ao destino por acaso e a segunda de um companheiro fiel.

Como sabem na província só haviam duas estações no ano, a das chuvas e a seca, sendo que ambas eram quentes, na das chuvas o ar era limpo embora com trovoadas e muita nebulosidade (muitas vezes tínhamos que contornar os cúmulos-nimbos, para não partirmos o estojo); na  [estação] seca, existiam permanentemente fumos e poeiras no ar que nos limitava a visibilidade como de nevoeiro se tratasse.

Na época seca, e era eu periquito com algumas semanas, foi-me destinada a missão, em DO 27, ,de transportar um elemento da PIDE/ DGS até Pirada, passando primeiro por Bambadinca para recolher correio. 

Estas viagens eram pouco usuais por serem directas de Bissau ao Leste. Até Bambadinca foi fácil, seguindo o rio  Geba, e é logo ali. A partir daí tinha que seguir a estrada até Nova Lamego, passando por Bafatá, e aí virar a Norte,  tentando seguir a estrada (picada) e tentar acompanhar o rumo pela bússola. 

Com a falta de visibilidade da época, tinha que praticamente ir a rapar. Pela bússola, se havia ventos laterais saíamos da rota, e aparentemente estávamos bem, pelo voo à vista e com a pouca visibilidade a estrada por vezes desaparecia entre as árvores e da minha vista.Também pela distância e pela velocidade se calculava o tempo de chegada com o rigor possível. 

Pois!... O tempo passava e já não tinha a certeza se estava na picada certa, assim como o tempo previsto se esgotava e eu poderia ter passado Pirada e estar do lado de lá (são só 500 metros até à fronteira). 

Nestes quase cagaços, vejo-me a passar rigorosamente por cima do edifício onde em letras garrafais dizia "PIRADA". 

Ufff!.... Meia volta apertada, linha de descida e aterragem. Enquanto o passageiro  conferenciava com o Mário Soares (é outro),  fui obsequiado com mordomias impensáveis naqueles buracos.

O regresso foi fácil, bússola até ao Geba e depois Bissalanca.
A outra história fica para outra vez.
Um abraço
Gil Moutinho

Nota do Vítor Barata [, editor]:  Hoje é bom recordar momentos interessantes vividos a 3,4 e 5 mil pés de altitude,e nós,  Gil,  que tantas vezes voamos juntos, quando o perigo era encarado pela ousadia da nossa juventude,como um "sorriso nos lábios". Nunca me canso de evidenciar a altitude máxima na Guiné, 300/400 m em Madina do Boé,o equivale a dizer que quando em velocidade cruzeiro, toda a província nos via.Não seria isto uma autêntica exposição ao perigo?

Felizmente que o armamento antiaéreo do IN também não era o melhor para nos atingir.
Já lá vai, Gil, e correu bem, por isso aqui estamos a recordar.

Postado por Especialistas da BA 12 às 23:08:00

3. Comentário do editor LG (*):

Gil, a tua informação é preciosa... Tu fizeste história!...

A 2 de maio de 1972 foste levar, em DO-27, o chefe da DGS, o inspector  Fragoso Allas, a Pirada, para "negociações" com o Mário Soares, que, sabemo-lo hoje, foi intermediário no processo de contactos preliminares com o Leopoldo Senghor... 

O comerciante Mário Soares foi uma "eminência parda nesta guerra" (**)... O seu testemunho seria precioso, se fosse vivo, o que é de todo improvável atendendo à idade que já teria nessa época...

Em 18 de maio, Spínola encontra-se com o Leopoldo Senghor em Cap Skiring, próximo da fronteira... É um facto histórico, Spínola explora as possibilidades de mediação do presidente senegalês entre as duas partes envolvidas no conflito, Portugal e o PAIGC... Mas Lisboa vai-lhe tirar o tapete...
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Nota do editor:

(*) 21  de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20884: (De)Caras (128): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte IV: Versões contraditórias sobre o "resto da história" deste português, de quem o ex-alf mil médico José Pratas (, BCAV 3864, Pirada, 1971/73) disse que foi "porventura o branco mais africano que conheci"

(**) Os "bons ofícios" do comerciante de Pirada foram reconhecidos pelo antigo chefe de gabinete do gen Spínola, o então alf mil Barata Nunes, que enverediu mais tarde pela carreira diplomática... Veja-se o poste :

15 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (125): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal ? Um "agente duplo" ? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


(...) Depoimento do embaixador João Diogo Munes Barata:

[Alferes miliciano na Guiné (1970); secretário e, posteriormente, chefe de gabinete do Governador da Guiné, general António de Spínola (a partir de Maio de 1971); adjunto diplomático da Casa Civil do Presidente da República, António de Spínola (Maio a Setembro de 1974), tendo no desempenho deste cargo, colaborado no processo de descolonização; delegado do MNE na Junta de Salvação Nacional]

(...) Com essa ideia, portanto, com a ideia de avançar no processo de descolonização, o general tentou estabelecer contactos com o Governo senegalês e, através dele, com o PAIGC.

 Os primeiros contactos foram feitos através do chefe da delegação da PIDE/DGS [em Bissau], o inspector Fragoso Allas e por Mário Soares. Mário Soares, não o Dr. Mário Soares, mas Mário [Rodrigues] Soares,  um comerciante de Pirada, um homem que se chamava Mário Soares, mas que era comerciante em Pirada, uma povoação fronteiriça da Guiné com o Senegal. Esse comerciante ….

Eu lembro-me de um dia estar no meu gabinete no Palácio e de o senhor Mário Soares ir lá comunicar que já tinha estabelecido o contacto com o lado de lá e que, portanto, se podiam iniciar as negociações para uma ida, para um encontro do Governador com o presidente Senghor. Houve previamente um encontro. O general Spínola foi duas vezes ao Senegal (acompanhei-o em ambas as visitas).

A primeira, para um encontro com o ministro senegalês dos Assuntos Parlamentares, porque evidentemente o presidente Senghor, na altura, ainda não sabia bem quais eram as ideias do general Spínola e não quis, evidentemente, romper as exigências protocolares e, como chefe de Estado encontrar-se com o governador de uma província, de uma colónia. E mandou um ministro.  (...)

Fonte: Estudos Gerais da Arrábida > A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné (27 de, embaixador João Diogo Nunes Barata e general Hugo dos Santos [Disponível aqui]

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20170: Notas de leitura (1220): “Antologia de textos lusófonos sobre o Senegal”, seleção de textos de António Montenegro, José Horta e Mallé Kassé, sem indicação de editor; Dakar, 2015 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Esta publicação que tem tanto de maravilhoso e de singular foi-me gentilmente oferecida pelo professor José Silva Horta, historiador da Guiné. Quem elaborou a antologia primou pelo desvelo, pelo rigor histórico e ficamos assim com um documento que permite discernir as mentalidades e os conhecimentos de quem chegou àquela Guiné em primeiro lugar. Onde faltava cartografia a imaginação era luxuriante: tínhamos chegado à Etiópia Menor, o rio Nilo andaria por ali perto, e coisas assim. Trata-se de um documentário com pormenores relevantes sobre os povos, os sistemas de poder, os credos religiosos, os alimentos, as aves, os animais de caça. Ali começava a Guiné, no rio Senegal e a Senegâmbia ou os rios da Guiné de Cabo Verde estendiam-se até à Serra Leoa. E assim foi durante séculos, com tal incerteza que precisámos do século XIX para saber o que era a Guiné Portuguesa, deitando por terra todos os outros topónimos.

Um abraço do
Mário


O Senegal, a Guiné em textos lusófonos

Mário Beja Santos

A obra intitula-se “Antologia de textos lusófonos sobre o Senegal”, é bilingue, seleção de textos de António Montenegro, José Horta e Mallé Kassé, sem indicação de editor, Dakar, 2015. Na apresentação, António Montenegro diz explicitamente que “Os portugueses foram quem primeiro cartografou o território do Senegal e primeiro escreveu sobre as suas populações. Os cronistas portugueses do século XV, que escreveram sobre as navegações ao longo da costa Ocidental de África, e os cartógrafos que pormenorizaram o recorte do continente africano, mencionaram longa e detalhadamente, o que é hoje o Senegal. Deram à península onde se situa Dakar o nome que ainda hoje conserva, o Cabo Verde e, dentro deste, o Cap Manuel, do rei D. Manuel I, e a Pointe des Almadies, de um tipo de barco português”.

Os organizadores maravilham-nos com o acervo dos autores antologizados, logo com Honório Barreto, a que se seguirá um vasto reportório de autores como Fernanda de Castro, Benjamim Pinto Bull, Nize Isabel de Morais, António Pinto da França, Gilberto Gil, Gonçalo Cadilhe, José Luís Peixoto, Ondjaki e Léopoldo Sédar Senghor. A antologia abre com o capítulo XXXI da “Crónica do descobrimento e conquista da Guiné”, e que tem a designação “Como Dinis Dias foi à terra dos negros e dos cativos que trouxe".

Este Dinis Dias pediu ao Infante D. Henrique para armar caravela, “porque era homem desejoso de ver coisas novas”. O Infante agradeceu-lhe, Dinis Dias armou uma caravela, “passou a terra dos Mouros e chegou à terra dos negros que são chamados Guinéus. E ainda que nós já nomeássemos algumas vezes em esta história por Guiné a outra terá em que os primeiros foram, escrevendo-lho assim em comum, mas não porque a terra seja toda uma; pois grande diferença têm umas terras das outras, e muito afastadas estão”. Filharam quatro nativos, “os quais foram os primeiros negros que em sua própria terra foram filhados por cristãos”. Dinis Dias prosseguiu viagem até que chegou a um grande cabo, ao qual puseram o nome Cabo Verde. “E dali fizeram volta para este reino, e conquanto presa não fosse tamanha como as outras que antes vieram, o infante a teve por mui grande, por ser daquela terra. E assim fez por isso a Dinis Dias e a seus companheiros grandes mercês”.

Convém contextualizar o espaço e o tempo destas viagens: a cartografia era então elementar, desconhecia por inteiro o recorte desta África Ocidental, razão pela qual surgiram efabulações à volta da Etiópia, do rio Nilo, na natureza dos povos justapostos entre berberes, mauritanos que habitavam até às proximidades do rio Senegal e os negros, por vezes islamizados, e os outros, puramente animistas, todos eles com sistemas de poder bem diferentes. Só assim se pode entender a leitura de Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira, que fala do rio Senegal, que ali era o princípio dos etíopes e homens negros, que havia li duas Etiópias, a inferior, que corre e se estende pela costa do rio Senegal até ao cabo da Boa Esperança, e que a este rio também se chama Guiné. A outra Etiópia, superior, começa no rio Indo, além do grande reino da Pérsia…

No canto V de Os Lusíadas, Camões também aborda a novidade destas terras descobertas, revela o nível de conhecimentos disponíveis na época:

“Deixámos de Massília a estéril costa,
Onde seu gado os Azenegues pastam,
Gente que as frescas águas nunca gosta,
Nem as ervas do campo bem lhe abastam;
A terra a nenhum fruto, enfim, disposta,
Onde as aves no vento o ferro gastam,
Padecendo de tudo inópia,
Que aparta a Barbaria da Etiópia.”

“Passámos o limite a onde chega
O Sol, que pera o Norte os carros guia;
Onde jazem os povos a quem nega
O filho de Climene a cor do dia.
Aqui gentes estranhas lava e rega
Do Negro Sanagá a corrente fria,
Onde o Cabo Arsinário o nome perde,
Chamando-se dos nossos Cabo Verde.”

“Por aqui, rodeando a larga parte
De África, que ficava ao Oriente,
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente;
A mui grande mandinga, por cuja arte
Logramos o metal rico e luzente,
Que do curvo Gambeia as águas bebe,
As quais o largo Atlântico recebe.”

Importante testemunho é o do missionário Baltazar Barreira (1538-1612), que visitou a Guiné e a Serra Leoa. Na sua carta ao padre João Álvares ele refere que o rio Senegal é o princípio da Guiné, dizendo mais ou menos isto: “Esta parte de África que os portugueses propriamente chamam Guiné começa no rio Cenaga (fórmula com que ao tempo se falava do rio Senegal), e corre pela costa até à Serra Leoa, obra de 180 léguas de Norte a Sul, é tão caudaloso este rio Cenega que sobem por ele os navios 150 léguas”. Fala dos Fulos que habitam este rio, seus usos e costumes e refere depois os Jalofos que habitam a parte Sul do rio Senegal. Mais adiante, dá-se a palavra a André Álvares de Almada, logo no primeiro capítulo do seu incontornável Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde fala dos negros Jalofos, dos seus costumes e trajes, são páginas extraordinárias tal como o capítulo VIII, dedicado ao reino do Casamansa.

Esta antologia é uma obra de devoção e de rigor científico, aqui podemos perceber a nebulosidade do conceito territorial da Guiné, como a sua fronteira imaginária começava no Senegal, os textos registados, primorosamente selecionados a partir de Zurara e consagrando nomes como André Donelha, Francisco Lemos Coelho e até Honório Pereira Barreto, devia ser acessível ao leitor português, nesta área da África Ocidental escrevemos páginas brilhantes de uma literatura que permanece praticamente ignorada, é um dano cultural reparável e necessário para portugueses e guineenses, está aqui a nossa proximidade, o nosso abraço lusófono, também.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20161: Notas de leitura (1219): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (24) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18736: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (56): Procuram-se informações sobre uma possível troca de dois pilotos portugueses, prisioneiros no Senegal, por um opositor ao governo senegalês, preso em Bissau às ordens da DGS, com intermediação de Leopold Senghor, em Junho de 1966 (Miguel Pessoa / José Nico)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74), com data de hoje, 11 de Junho de 2018:

Caros camaradas
Recebi da parte do General Nico, da Força Aérea, um pedido de apoio para esclarecimento de um acontecimento ocorrido na Guiné no seu tempo (em meados de 1966) e que envolveu então uma troca de prisioneiros.
Naturalmente dado reportar-se a factos anteriores à minha comissão desconheço pormenores deste assunto, pelo que reproduzo o mail que recebi, na expectativa de que exista nos arquivos do blogue alguma informação registada, ou que algum dos leitores habituais disponha de alguns dados que permitam esclarecer este episódio:

"Caro Pessoa
Tenho feito muita pesquisa no sentido de determinar quem, do PAIGC, terá sido trocado por dois pilotos nossos que tinham sido internados em Ziguinchor, no Senegal. Como tu tens muitos contactos talvez alguém tenha ouvido falar deste assunto.
Tudo se passou durante as duas últimas semanas de Junho de 1966. Por volta do dia 21JUN66 (Não há certeza da data exacta), um DO-27 com dois pilotos perdeu-se por razões meteorológicas. Estavam a voar por cima de um manto de nuvens e acabaram por se dirigir para o mar para se tentarem orientar. Depois, não reconhecendo a costa, voaram para Norte porque pensaram que podiam estar já na Guiné-Conakri.
Sem combustível acabaram por aterrar numa pequena ilhota tendo o avião ficado destruído - mas os dois pilotos sobreviveram. Antes dessa aterragem chamaram a atenção de um navio da RDA que navegava próximo e que desceu um bote para os recolher. O navio levava um piloto da barra de Dakar porque era para lá que se dirigia. Os pilotos ficaram internados à guarda da "gendarmerie" senegalesa. A DGS entrou em acção e conseguiu acertar uma troca com um (mais provável) ou dois presos que tinha em Bissau. Essa troca foi efectuada por volta do dia 1JUL1966 na fronteira de S. Domingos.

A minha pergunta é: Quem foram os presos que a DGS entregou ao Senegal? Um deles parece que se chamava Francisco. Terá sido o "Chico Té" (Francisco Mendes, que terá sido 1º ministro no tempo do Luís Cabral)? Teria estado preso em Bissau e sido solto nessa data? Ou será(ão) outro(s) indivíduo(s)?
Vê se descobres alguém que possa saber alguma coisa ou dar algum palpite pf.
Abraço
J. Nico"

Posteriormente recebi do General Nico um segundo mail em que me é fornecida informação complementar, e que reproduzo igualmente:

"Pessoa
Mais uns elementos acabados de conseguir. Está provado que quem assumiu a detenção dos pilotos foram as autoridade senegalesas, e o próprio presidente Senghor não só estava informado como se envolveu no assunto.
Agora tudo indica que o PAIGC não foi tido nem achado sobre este problema. Isto justifica uma hipótese que me foi sugerida por quem participou no planeamento da troca, por parte da FAP, de que os pilotos foram trocados por um único indivíduo, que estava preso em Bissau à guarda da DGS, e que era um senegalês ferrenho opositor do governo do Senegal. Na altura correu até a ideia de que os senegaleses estavam muito interessados na troca, o que é verdade, e que este indivíduo poderia ser liquidado a seguir à troca.
Portanto a questão continua em aberto: quem foi o indivíduo trocado pelos dois pilotos? Já existe também mais um dado que é o da data provável da troca que terá sido por volta do dia 2JUL1966. Abraço
J. Nico"

Agradeço qualquer informação que possa ser prestada sobre esta matéria.

Um abraço.
Miguel Pessoa

********************

Em tempo:

2. Recebemos no dia 13 de Junho, do nosso camarada Miguel Pessoa, a seguinte mensagem: 

Caros camaradas
Mais alguma informação que acabei de receber da parte do Gen. Nico sobre a troca de prisioneiros efectuada em 1966:

Acabo de receber elementos de um dos pilotos envolvidos no episódio, que ele foi desencantar no "sótão" da casa dele. São duas notícias que apareceram no Diário Popular e ainda alguns dados da caderneta de voo. As notícias vão em anexo e a informação que me foi facultada reza assim:

"Envio-te no anexo duas notícias publicadas no Diário Popular sendo uma de 22 de Julho e a outra de 28 de Julho. Tenho dúvidas quanto à data aposta na primeira, pois nesse dia tenho dois voos registados na caderneta, em T6 ("ATAP-LOCAL" e "DESP Bissau-FARIM). Desde o dia 23 de Julho até ao dia 3 de Agosto não consta qualquer registo. No dia 4 de Agosto tenho o registo de um voo no ALIII - 9275, "DESP (Varela-ZO-Bissau) o que corresponderá ao regresso a Bissau."

Além das ilações mais óbvias parece-me que a libertação dos pilotos foi anunciada pelo Senegal no dia 28 de Julho mas depois ainda passaram alguns dias até à troca na fronteira que só terá ocorrido a 4 de Agosto. Sobre o dia do acidente estou em crer que os voos registados no dia 22JUL terão ocorrido no dia anterior e foram mal registados na caderneta. Na notícia do dia 28JUL é referido que o acidente ocorreu na última sexta-feira, que foi o dia 22JUL66. Até agora a pesquisa que tinha estado a efectuar tinha-se centrado nas duas últimas semanas de Junho mas agora está claro que tudo terá ocorrido entre 23 de Julho e 4 de Agosto. 
J. Nico"



Mas parece-me que não vai ser tarefa fácil encontrar dados novos sobre este episódio...

Abraço.
Miguel Pessoa
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18590: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (55): Explicar a guerra colonial e o 25 de Abril aos alunos do 12º ano, da escola secundária Miguel Torga, Massamá (Jorge Araújo)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15752: Notas de leitura (808): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Na releitura desta obra de Luís Nuno Rodrigues fui agradavelmente surpreendido por um dado que já era óbvio na primeira leitura: o investigador deixa bem escarrapachado que Spínola nunca se furtou a informar os seus superiores sobre a evolução militar, em todas as fases críticas, nos cinco anos em que foi Comandante-Chefe. Se é facto que vai ziguezaguear em Maio de 1973, aceitando inicialmente a retração do dispositivo, prontamente se apercebeu que ficaria manietado no coração da Guiné, perdendo o controlo das franjas e desconhecendo inteiramente o que a guerrilha e a Organização da Unidade Africana preparavam depois da declaração unilateral de independência.
Spínola deixa a Guiné mas o mito ficara intocado e apresentar-se-á como o militar providencial no Largo do Carmo.

Um abraço do
Mário


Spínola e a evolução militar da Guiné (1968-1973) (2)

Beja Santos

A correspondência trocada entre Spínola e os seus superiores, no comando da Guiné, à luz do trabalho desenvolvido por Luís Nuno Rodrigues na biografia que escreveu sobre o mediático homem do monóculo, A Esfera dos Livros, 2010, torna claro, a despeito de certos excessos de pendor melodramático que a verificação que era transmitida sobre a evolução militar era fiável e baseada em dados fundamentados. 

Não cabe, neste tipo de apontamentos, explanar sobre o desenvolvimento económico e social que Spínola imprimiu à província. Terá certamente sentido ver como ele pretendeu encontrar soluções políticas confiando que Marcello Caetano apostasse numa política de “autonomia progressiva”. Os dois encontram-se no Buçaco no Verão de 1970, Caetano trabalha na proposta de revisão condicional. Spínola compromete-se a enviar um documento, envia-lhe em Outubro um relatório que servirá de base ao seu livro "Portugal e o Futuro"; relatório que ele intitulará “Algumas ideias sobre a estruturação política da Nação”

Sente-se animado pela tese federativa. Mas, inexoravelmente, caminhava-se para a deterioração das relações. Spínola aspirava a uma candidatura presidencial, Caetano aposta em manter Américo Tomás. A chamada Ala Liberal parecia entusiasmada com a eventual candidatura de Spínola à presidência da república. Depois Spínola é repreendido por Caetano quando concedeu uma entrevista ao Diário de Lisboa. E visando uma solução negocial para o problema guineense, Spínola pede a Caetano para se encontrar com Senghor. Sabemos como posteriormente Caetano desautorizou Spínola para novos encontros, na correspondência de ambos transparece um tom discordante onde outrora havia coloquialidade. 

Segundo Luís Nuno Rodrigues, em Outubro de 1972, Spínola, em férias no Luso, recebeu uma mensagem urgente do inspetor Fragoso Allas, o responsável pela PIDE da Guiné, dizendo que Amílcar Cabral estava na disposição de ir a Bissau conferenciar consigo e, inclusivamente, com o próprio Marcello Caetano. Este continua a rejeitar qualquer tipo de contactos. 

Spínola escreve-lhe em 24 de Outubro, reiterando as suas apreensões, seria “a última hipótese do Governador da Guiné dialogar com Amílcar Cabral em situação transitória de manifesta superioridade”. Caetano responde que “para a defesa global do ultramar é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado com os terroristas, abrindo caminho a outras negociações”.

1973 é o ano crítico das suas relações. A 20 de Janeiro é assassinado Amílcar Cabral. Não vale a pena entrar na polémica sobre os labirintos deste assassinato, continua tudo por esclarecer, o importante são as grandes mudanças no terreno, ditadas pela chegada dos misseis antiaéreos Strela. Perdida a supremacia aérea, ocorre em Maio uma grande ofensiva militar do PAIGC que deixou marcas indeléveis. 

A 22 de Maio Spínola envia ao General Costa Gomes um conjunto de pareceres e propostas relativos à nova situação militar na Guiné, evocava uma reunião extraordinária de Comandos realizada a 15 de Maio. Impunha-se tomar decisões urgentes no âmbito da manobra militar, abriam-se três alternativas: redução da área a defender com vista à economia de forças; conservação do atual dispositivo sem qualquer reforço à luz de um espírito de defesa a todo o custo; e reforço do teatro de operações em meios, em ordem a manter a superioridade sobre o inimigo no quadro da manobra atual. 

Nesse mesmo dia Spínola escreve ao Ministro do Ultramar: “o governador apenas pode informar o Governo central sobre a gravidade do momento, em ordem a que as medidas adequadas sejam tomadas por quem tem competência para as adotar, nada mais restava fazer do que aguardar serenamente o desfecho que prevemos, o colapso militar"

Em Junho, poucos dias depois do ataque a Gadamael, Costa Gomes deslocou-se a Bissau. O centro das discussões passa pela adaptação do conceito de manobra. Spínola declara a necessidade do recuo de “muitas das guarnições de fronteira para posições previamente selecionadas mais no interior que, pelo seu menor número e adequada localização, minimizem os riscos a que atualmente estão expostas e permitam obviar quando possível à situação crítica que a escalada do inimigo nos criou”

Costa Gomes concorda com a análise de Spínola, a manutenção do dispositivo só seria possível com volumosos meios adicionais, absolutamente impossível de os fornecer. Anos mais tarde, numa fase litigiosa com Costa Gomes, Spínola dirá que foi este quem fizera semelhante proposta, o que é falso.

Mas Spínola acabaria por mudar de ideias, opondo-se à retração do dispositivo militar, pelo menos enquanto essa retração não fosse acompanhada de um reforço substancial dos meios à sua disposição. Volta a queixar-se amargamente ao Ministro do Ultramar, diz-lhe sem rebuço que a guerra na Guiné exigia medidas que iam frontalmente contra a linha política a que ele se considerava vinculado, a seu tempo propusera soluções para o problema da Guiné que tinham sido rejeitadas: 

“Agudiza-se o problema da minha substituição que peço a Vossa Excelência seja considerada a tempo de possibilitar a alteração do dispositivo militar que é mister fazer”.

E Luís Nuno Rodrigues finaliza dizendo que perante a impossibilidade na solução política e face a um cenário de eventual repetição da situação de Goa em 1961, Spínola decidia abandonar as suas funções na Guiné. Chegou a Lisboa em 6 de Agosto de 1973, e comunicou a sua decisão a Caetano: “Senhor Presidente do Conselho, venho dizer-lhe que regressei de vez”.

Um talentoso General, Bethencourt Rodrigues, aceita, depois de muito rogo de Caetano, substitui Spínola. Na aparência, a guerrilha não ganha intensidade, o PAIGC tinha preparado nova ofensiva para Maio de 1974, novamente no Norte. A situação política em Portugal decompunha-se no início do ano, Caetano, em desespero, procura negociações à revelia da sua matriz ideológica. É tarde, muito tarde, os militares, sobretudo aqueles que conheciam a Guiné, sabem que já não há solução militar possível para a Guiné e para Moçambique. Tudo acabará num quase sereno golpe militar, no Largo do Carmo, em meados da tarde de 25 de Abril, Caetano entrega simbolicamente a Spínola.
A descolonização vai começar.
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Nota do editor

Poste anterior de 12 de Fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15738: Notas de leitura (807): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15444: Notas de leitura (782): “Radiografia Militar”, por Manuel Barão da Cunha, Âncora Editora, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Em 1975, a apreensão do livro deu brado, discutiu-se calorosamente a liberdade de expressão. 40 anos depois, Barão da Cunha reformula a estrutura da obra, adiciona-lhe depoimentos, aclara conversas, introduz novos testemunhos.
Sugiro que estejam atentos ao que refere sobre a Guiné, obteve do dirigente máximo da PIDE em Bissau, Fragoso Allas, um depoimento onde este procura esclarecer o teor da conversa entre Senghor e Spínola. Fica indiciado que em Julho de 1973, no exato momento em que o PAIGC vivia uma euforia político-militar, Costa Gomes sugere-lhe uma intervenção junto de Nino Vieira, e Spínola terá comentado: "Agora? É tarde".
Uma longa viagem nas memórias de um coronel da cavalaria que recorda com imensa saudade o ideal de camaradagem e o espírito de corpo instilados na corporação, nos longínquos anos da década de 1950.

Um abraço do
Mário


Radiografia Militar, por Manuel Barão da Cunha

Beja Santos

A “Radiografia Militar” surgiu em 1975 e foi motivo de larga polémica por um sindicato se ter oposto à sua impressão. O Coronel Manuel Barão da Cunha voltou 40 anos depois aos motivos que o levaram a escrever esta série de reflexões sobre o MFA, os valores democráticos, o desenvolvimento e a descolonização e juntou-lhe novas achegas com comentários que foram produzidos até 2014: “Radiografia Militar”, por Manuel Barão da Cunha, Âncora Editora, 2015. Há diferentes secções que a obra contempla: as memórias do Cadete da Escola do Exército, onde se refletem o espírito de corpo, avultam amizades, a nobreza da camaradagem, críticas à pesporrência e vanidades de certos quadros militares, etc; as comissões em Angola e na Guiné, entremeadas de meditações em que o oficial de cavalaria passa a duvidar da natureza da guerra, como disse expressamente: “Depois a guerra foi perdendo a heroicidade, a motivação; foi-se banalizando. As pessoas foram-se cansando. Guiné; Moçambique… Partidas; chegadas… A guerra cansa; tudo cansa… os jornais falam de outras guerras e de futebol! Entretanto, há cidadãos que não fazem a guerra. Uns buscam o exílio, outros têm padrinhos (…) A Academia Militar qualquer dia tem mais professores do que alunos”.

Procura entender os movimentos sinuosos e ziguezagueantes do MFA, fala-nos demoradamente sobre Otelo, as divisões nas Forças Armadas, recolhe depoimentos, esboça o perfil de certos políticos, chega ao 11 de Março, continua a pensar, como outros, que foi uma armadilha montada pelo KGB; o seu livro apreendido deu-lhe matéria para discretear sobre a liberdade de informação, regressa ao passado para nos dar impressões sobre os cursos do Instituto de Altos Estudos Militares e não esconde um certo desprezo pelos oficiais do Estado-Maior, e de novo voltamos à formação militar, à intrusão da Legião Portuguesa e da Brigada Naval na esfera militar.

E assim chegamos à descolonização, aqui disparam críticas em diferentes direções, denuncia alguns dos erros maiores do colonialismo e enumera situações que dão conta da precipitação da saída de Angola, é nesse contexto que igualmente volta ao passado para nos descrever o seu desempenho e dos seus homens na Operação Viriato, dando-nos igualmente um quadro da impossibilidade de se defender o Estado da Índia, uma situação politicamente desastrada que os militares nunca esqueceram.

Segue-se a narrativa da sua comissão na Guiné, no regulado da Pachana, em primeiro lugar, vêm ao de cima novos desencantos com o comportamento da hierarquia; e por último assenta a sua lente sobre a guerra em Moçambique.

Assim chegámos ao depois e onde se interpretam o curso da guerra, o que se podia ter feito para evitar calamidades de parte a parte. Barão da Cunha colhe o depoimento do Inspetor-Adjunto Fragoso Allas, o dirigente máximo da PIDE na Guiné levado por Spínola. Fragoso Allas dá-nos a sua versão sobre os encontros de Spínola com as autoridades senegalesas, tem todo o interesse ouvir o que ele diz:
“O General Spínola, eu e o Embaixador João Nunes Barata, então alferes miliciano e seu secretário, fomos duas vezes a Cap Sikiring, no Senegal.
A primeira reunião, em 27 de Abril de 1972, foi com o Ministro da Informação do Senegal. Foi uma reunião preparatória com vista ao futuro encontro com o Presidente Senghor.
O ministro referiu: “(…) O facto do Senegal ter bastantes afinidades com Portugal e existirem na cultura senegalesa vincados casos de lusitanidade (…) ao povo guineense competia decidir o seu destino, mas também pensava que a Guiné deveria manter os seus laços de afinidade com Portugal, como o Senegal mantivera com a França (…)”.

A segunda vez, em 18 de Maio de 1972, foi com o próprio Presidente Senghor, na mesma localidade. O encontro iniciou-se cerca das 9h30. Após os preliminares, Senghor referiu-se em termos elogiosos à política em curso na Guiné e deu a entender que preferia ter-nos como vizinhos do que a Sekou Touré e que, entre africanos, o facto de nos conseguirmos sentar à mesma mesa para dirimir pontos de vista opostos, era meio caminho andado para a sua resolução. O resto viria depois, no espaço de um decénio, provavelmente.
Pareceu-me que ele (Senghor) estava convencido que Marcello Caetano era influenciado por militares no sentido de a guerra continuar. Manifestou “o desejo do Senegal ajudar Portugal a resolver o seu problema ultramarino, servindo de intermediário na busca de uma solução”.

O General Spínola referiu que “uma forma regionalista de inspiração federativa seria, a seu ver, talvez a que melhor correspondia às exigências do presente, ocupando o lugar de esquemas políticos rígidos que não servem os interesses de Portugal nem os do povo africano da Guiné”. E que “a solução do problema ultramarino português reside numa política de africanização nos moldes já definidos, preparando as populações para participarem a todos os níveis na administração da sua terra”.

E o diálogo prossegue, Spínola e Senghor parecem sintonizar-se. Senghor admite que haja a necessidade de um período de autonomia interna de, pelo menos 10 anos. Mais adiante, no seu depoimento, Fragoso Allas mostra-se reticente a que tenha havido uma terceira reunião, como alguns investigadores sugerem. Nunca enviara a Spínola, então em férias no Luso, qualquer mensagem dizendo que Amílcar Cabral estava na disposição de ir a Bissau, tal mensagem foi de Alpoim Calvão. Mais adiante, Fragoso Allas refere o seu encontro em 8 de Julho de 1973 com o General Costa Gomes, em Bissau. Costa Gomes ter-lhe-á dito que o Governo central estava disposto a contactar o PAIGC, pelo que queria saber se ele tinha contactos válidos de cúpula. Allas respondeu que, após a morte de Amílcar Cabral não tinha. Mas poderia contactar Nino Vieira, embora levasse tempo. E adianta: “Sabíamos que grande parte dos guerrilheiros já não queria combater e que queriam apresentar-se mediante condições, sendo este o único trunfo que tínhamos, levando em consideração que a ONU já havia decido reconhecer o PAIGC como único representante da Guiné… Costa Gomes disse-me para fazer o que pudesse… No primeiro despacho que tive com o governador, referi-lhe a conversa, mas ele limitou-se a comentar: “Agora? É tarde”.

O livro prossegue com nova diversidade de depoimentos. É uma longa viagem de memórias, parece que o Coronel Barão da Cunha quer que cada um de nós tire ilações em função do manancial de dados que nos oferece.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15425: Notas de leitura (781): A "Guiné do Cabo Verde" (1578-1684), por José da Silva Horta, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14153: Recordações de uma ida à Feira da Ladra: 10 de Junho (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Foi escassa a safra, ainda encontrei uma revista ultranacionalista chamada Resistir editada em francês para os nostálgicos da França de Vichy e que trazia mera propaganda turística.
Achei curioso este princípio do federalismo africano do final dos anos de 1950 em que Amílcar Cabral encontrou as raízes par a unidade Guiné-Cabo Verde, é esta uma das interpretações possíveis para aquela associação que se sabia de antemão condenado ao malogro.
Foram várias as tentativas de associações de países, como é sabido, tirando a Tanzânia, tudo caiu no charco. E Ahmed Sékou Turé foi uma peça essencial no apoio ao PAIGC, é dado que ninguém ignora.

Um abraço do
Mário


No rescaldo de uma ida à Feira da Ladra, em 10 de Janeiro

Beja Santos

Naquela manhã ensoleirada, sem uma aragem na pouca friagem daquela arquitetura maciça onde não chega o sol, numa das faces no mosteiro de S. Vicente, iniciei as hostilidades por uma incursão a fotografias e papéis avulsos. Nada de deslumbrante, a não ser uma fotografia onde Sequeira e Costa está ao piano acompanhado o violinista Vasco Barbosa, os dois de casaca e bem compenetrados no seu míster, foram companheiros de muita música que tenha ouvido ao longo da vida, ainda há três anos me embeveci com Sequeira Costa, já não é criança, num concerto portentoso no Palácio de Queluz, no festival de música de Sintra.

Só mais à frente é que me chegou a Guiné e colaterais. Primeiro, uma radiografia do ensino, saúde e assistência e atividade missionária da Guiné ao nível de 1968, dados informativos da Agência Geral do Ultramar. Não vale a pena reproduzir as fotografias, todas elas são sobejamente conhecidas, desde o Museu e Biblioteca de Bissau até à Sé Catedral. Ficamos a saber que em 1883 havia já professores oficiais em Bolama, Bissau, Cacheu, Buba, Geba e Farim, e que em 1890 foi publicado o primeiro Regulamento Escolar da Província, tornando-se o ensino primário obrigatório para as crianças de ambos os sexos, dos 7 aos 15 anos de idade. Depois desta informação e todo o seu caráter ilusionista, ficamos igualmente a saber que nos números relativos a 1966/67 haveria 105 escolas primárias com 280 professores e 12 mil alunos, mais 52 postos escolares, com 64 professores. Fazia parte do ensino primário, embora estranho ao plano oficial, 276 escolas muçulmanas.

O liceu Honório Barreto surgiu em 1958 e no ano letivo de 1966/67 teve 417 alunos, lecionados por 21 professores. Passando para a saúde e assistência, a rede sanitária da época incluía o hospital de Bissau, três hospitais regionais (Bolama, Teixeira Pinto e Bafatá), seis hospitais rurais, dez delegacias de saúde, cinquenta e três postos sanitários, dez maternidades regionais e doze maternidades rurais. Concentrava-se no Hospital Central de Bissau a gama dos serviços de medicina com praticamente todas as especialidades. Fazem-se referências igualmente ao combate à tuberculose, às tripanossomíases, à doença do sono. Quanto à atividade missionária, a prefeitura apostólica de Bissau tinha três arciprestados em Bissau, Cumura e Bafatá, confiados, respetivamente, aos missionários franciscanos portugueses, padres franciscanos da província de Veneza e missionários do Instituto das Missões Estrangeiras de Milão. Nota curiosa é o que se diz sobre o Islamismo: “A dispersão do Islamismo encontra-se ligada ao sistema de confrarias (na Guiné Portuguesa, a dos Cadiriya e a dos Tidjaniya) derivados do ritmo malequita. As confrarias são dirigidas por grão-mestres (cheiques) que detêm a emanação de santidade (baraca), sendo muito hierarquizadas. À volta delas gravitam os operadores de milagres, curandeiros, místicos ou iluminados). A nova mesquita de Bissau foi inaugurada em Abril de 1966, está situada no bairro do Cupelon".

O segundo achado da manhã intitula-se “Mohammed V, Ferhat Abbas e Séku Turé” escrito por Jean Lacouture, figura prominente do jornalismo francês dos últimos 40 anos do século XX, Editorial Início, sem data. Como é óbvio, não vamos falar nem de Marrocos nem da Argélia, mas Lacouture descreve de forma muito impressiva a ascensão de Ahmed Sékou Turé, a implantação do RDA (Rassemblement Democratique Africain) e a tese federalista a que seguramente Amílcar Cabral não foi insensível, a industrialização acelerada da Guiné Francesa graças aos seus recursos em ferro e bauxite. Sékou provinha da etnia dos malinké, etnia de conquistadores, nasceu na linha de junção da África da savana e da África das florestas. Foi graças ao sindicalismo que ganhou proeminência. Desde cedo que perfilhou teses nacionalistas e sentiu a tentação pelo socialismo e a revolução. Lacouture disseca a personalidade do líder guineense, releva os seus aspetos mais paradoxais de um dirigente que parecia animando em pertencer a uma grande comunidade franco-africana que imprevistamente deu sinais claros de querer a independência de Conacri sem quaisquer ligações políticas a Paris. Em 1958, ele é já líder absoluto e liquidou toda a oposição interna, diz para o exterior que é um mero porta-voz do Bureau Político, o que era uma pura ficção. Jogou até ao fim a cartada dúplice da ameaça franco-africana e da independência pura e simples da Guiné Conacri.

O general De Gaulle apercebeu-se de que Sékou queria a independência e negava-se a fazer parte da aliança franco-africana. E dá instruções terminantes para que os quadros da administração retirem na manhã do dia seguinte de Conacri, sem apelo nem agravo. Assim irá acontecer, em pouquíssimo tempo as autoridades francesas deixam o país sem investimento e sem quadros: era a consequência do “não” à França. Vai seguir-se um período de aproximação e repulsa em que por várias vezes se esteve à beira de concluir acordos de cooperação com maior interesse para a Guiné, mas Sékou eleva a parada, pede demasiado e Paris desinteressa-se. Todo o ano de 1959 será um período de rancores, intrigas e promessas de parte a parte. Nos seus discursos, Sékou passa a acusar a França de ter sufocado a cultura negra, de ter preferido ensinar aos jovens africanos Lamartine e Corneille e impedir a formação de uma elite intelectual, o que levou ao caos inicial da administração civil. O ano de 1960 marcará o afastamento, Sékou entrara na onda anticolonial, será nesse ano que receberá em Conacri Amílcar Cabral, pelo PAIGC, e Mário Pinto de Andrade, do MPLA. E na conclusão do seu ensaio, Lacouture interroga: “No afastamento em que está hoje Sékou em relação à França, qual é a nossa parte de responsabilidade? Ele está demasiado ligado à França da Frente Popular para poder render justiça ao fenómeno De Gaulle e para não ser repudiado por ele. Mas que fez verdadeiramente a França de Esquerda – tão hábil em manter abertas as vias do lado vietnamita ou norte-africano – para libertar Sékou do isolamento que pesou extraordinariamente na história dos últimos meses. Enquanto a França de Jaurès não sabe sobrepor-se à de Poincaré, a descolonização corre o risco de se tornar uma perda desolado e irreparável”.

Isto foi escrito em Abril de 1961, o ditador de Conacri sente-se tentado pelos apoios de Moscovo e companhia, isto enquanto a economia do país se afunda. A ver se descubro outro livro que nos dê a visão senegalesa, Senghor viu sempre com suspeita Sékou, irá lutar vários anos para apoiar forças multipartidárias nacionalistas guineenses, do lado da Guiné Portuguesa, cortará cedo relações com Portugal mas tentará manter o diálogo com as autoridades de Lisboa por muito tempo. Senghor era anticomunista e temia ficar rodeado de democracias populares. Como veio a acontecer.

Estas foram as leituras decorrentes da manhã de 10 de Junho.
Guardo sempre a esperança de que tenho novas descobertas a fazer num sábado desses que se avizinham.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13963: Recordações de uma ida à Feira da Ladra: 15 de Novembro (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13768: Notas de leitura (643): General Spínola ao Diário de Lisboa, em 9 de setembro de 1972: Não há que temer a autodeterminação (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Esta entrevista fazia parte de um projeto pessoal em que Spínola buscava apoios junto de oposicionistas do regime. Não foi à toa que pediu apoio a Ruella Ramos para deslocar um repórter à Guiné.
Spínola visa negociações, o seu cordial entendimento com Caetano caminha para a maré-baixa, é a partir de agora que a correspondência entre os dois ganha tons patéticos.
Esta entrevista foi alvo de reparos pessoais de Caetano. Spínola abriga-se em fórmulas que de há muito vem defendendo mas não se coíbe de falar na autodeterminação, fala da perda de apoios do PAIGC e insinua até que há chefes que querem depor as armas. Importa não esquecer que à data desta entrevista já está em marcha um processo de consulta popular para se aprovar uma constituição para a Guiné-Bissau, seguida da declaração unilateral da independência. Havia que jogar com todos os trunfos, para contrariar esse desenlace.
Assim se entende melhor o núcleo desta entrevista.

Um abraço do
Mário


Spínola ao Diário de Lisboa, em 9 de setembro de 1972: 
Não há que temer a autodeterminação

Beja Santos

Na sequência de um conjunto de reportagens publicadas no mês de agosto de 1972, no Diário de Lisboa, assinadas pelo jornalista Avelino Rodrigues, cuja recensão está feita no blogue, em 9 de setembro o enviado especial do então vespertino da rua Luz Soriano entrevista o governador e comandante-chefe. Para se entenderem bem as respostas de Spínola, talvez seja útil dar o pano de fundo. Estamos em 1972, decorre com sucesso a reocupação do Cantanhez, Spínola encontra-se com Senghor, as relações com Marcello Caetano tendem a esfriar, esta entrevista, saber-se-á mais tarde, quando se publicar a correspondência entre os dois, foi censurada pelo próprio presidente do Conselho de Ministros, Spínola reagiu, Caetano irá redarguir que é muito tarde para se voltar a discutir a forma federal em que ele acreditara no passado.

Seguramente que o jornalista e o mediático militar se entenderam na perfeição para que a estrutura da entrevista fosse caminhando desde o inócuo para o explosivo, desde o consensual até ao polémico. Com efeito, Avelino Rodrigues começar por perguntar a Spínola se não existe uma militarização de funções civis na medida em que as forças armadas estão cada vez mais investidas na promoção agrária, cultural e assistencial, havia cada vez mais médicos, militares e familiares na cobertura sanitária das populações, no ensino liceal e até no fomento agrário. Spínola responde com serenidade, são missões de paz, o que interessa às Forças Armadas é captar a total participação dos guinéus, estimular a civilização civil. Mudando de registo, o jornalista pergunta a Spínola se se poderá dizer que as Forças Armadas dominam a maioria do território e controlam a maioria da população. Spínola chama a si os méritos da situação, tudo está a evoluir melhor desde 1968, no plano militar conseguiu-se um pleno aproveitamento do apoio da população, é por isso que está em curso uma revolução social que tirou argumentos ao inimigo, este está enfraquecido, o PAIGC foi desarmado pelo plano de desenvolvimento económico e social.

Sobe a temperatura das perguntas, vai falar-se de democracia, o que o jornalista viu foi a criação de estruturas democráticas, o Congresso do Povo é uma estrutura democrática. Com cuidado, Spínola responde: “Talvez seja racionalmente democrata, uma vez que baseei a essência das minhas convicções no conceito lapidar de que a soberania reside na Nação (…) É o que temos tentado fazer na Guiné, ao instituirmos um sistema de Governo baseado na vontade do povo”.

Nova inflexão, desta vez para a africanização dos quadros guineenses, Spínola já tinha afirmado que a africanização no Exército era um processo irreversível. Spínola não hesita na resposta, caminha-se para uma Guiné administrada por guinéus sob bandeira portuguesa. E arreda completamente o perigo de uma guerra sem controlo entre a Força Africana e o PAIGC: “Os africanos da Guiné sabem bem o que querem, o que elimina qualquer hipótese, mesmo remota, de descontrolo". A pergunta seguinte vem cheia de picante: “Afirma-se que vários grupos de guerrilheiros têm querido encontrar-se com V. Exa. É isto verdade?”. E Spínola, com blandicia, como se fosse detentor de uma posição estratégica firmíssima, responde que havia tentativas de aproximação no sentido de serem obtidas garantias quanto ao regresso de grupos de guerrilha em bloco ou de chefes individualmente, era gente que se propunha colaborar com o projeto “Por uma Guiné Melhor”. Assim se lançava a dúvida nas hostes do PAIGC e se explicava a pequenez dos resultados: “Todavia, o rígido controlo do inimigo sobre os seus elementos, a ação dos quadros estrangeiros e até, pois há que o reconhecer, certa desconfiança em relação a garantias de continuidade e à sinceridade dos nossos propósitos são razões que não têm levado à não concretização de algumas dessas tentativas”. Fala-se dos massacrados de 20 de abril de 1970, na estrada Pelundo – Jolmete, e Spínola responde: “Morreram como heróis, no sublime missão de paz pelo futuro do País e da Guiné”.

E entra-se no mais escaldante da entrevista, a autodeterminação da Guiné, e Spínola é categórico: “Não há que temer a autodeterminação mas, antes, que construir sobre ela a autêntica unidade nacional; e, no caso particular da Guiné, a política que vimos prosseguindo a esta luz, vem-se afirmando pela continuidade de Portugal em África”. Então o jornalista questiona-o sobre a livre opção dos guineenses, será que Spínola aceitaria a forma plebiscitária? E Spínola responde que aceita o conceito universal de “livre opção dos povos”, mas que no caso da Guiné esta constitui parte integrante de uma nação independente, não era necessário qualquer plebiscito já que a esmagadora maioria dos guinéus dera a sua adesão à política da administração portuguesa. E de novo perguntado se sentiria desgosto se essa Guiné autodeterminada se orientasse no sentido da independência, mesmo ficado ligada a Portugal, Spínola responde que sim, já que tem procurado construir uma Guiné autodeterminada dentro do contexto do Portugal renovado.

Por fim, aborda-se o problema da liberdade de expressão e o jornalista pergunta-lhe se Spínola estaria disposto a aceitar uma imprensa livre em Bissau do mesmo modo que aceitava a liberdade de expressão nos Congressos do Povo. Com subtileza, Spínola torneia a questão, fala na verdade absoluta e que ninguém pode arrogar-se detentor da verdade, a imprensa livre prossupõe uma ética muito sólida, haveria que caminhar progressivamente no sentido de uma imprensa livre, responsável e consciente da sua função social.

Tudo vai mudar radicalmente depois desta entrevista. Após as férias no Luso, Spínola é confrontado com a total relutância de Caetano em negociações com Amílcar Cabral. Começa o afastamento. Amílcar Cabral está no auge das suas potencialidades, o seu reconhecimento internacional é indesmentível, anuncia que se prepara uma assembleia para aprovar uma constituição e a independência unilateral. A guerrilha está intensificada. A URSS fornece os temíveis mísseis terra-ar. Cabral é assassinado em Conacri, entrou-se num novo patamar da guerra, a partir de maio de 1973. Toda a argumentação de Spínola cai por terra quando é decidido reduzir o número de destacamentos e de população protegida, fala-se num recuo que deixa uma grande porção das fronteiras totalmente permeáveis, não há equipamento que contrarie os morteiros 120. Então Spínola desiste e deixa a Guiné.

A Fundação Mário Soares dá acesso ao Diário de Lisboa, todo ele está digitalizado e o leitor interessado pode encontrar aqui esta entrevista de 9 de setembro cujo grau de censura se ignora, talvez seja necessário consultar a documentação de Marcello Caetano para se saber a fraseologia que os pôs em confronto, o idílio Spínola-Caetano já esmorecera.


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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13747: Notas de leitura (642): “Libertação Nacional - Manual Político do P.A.I.G.C.”, com intervenções de Amílcar Cabral, Edições Maria da Fonte, 1974 (Mário Beja Santos)