Mostrar mensagens com a etiqueta Sarmento Rodrigues. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Sarmento Rodrigues. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23948: Historiografia da presença portuguesa em África (350): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Comecei em 1917 e estou no final de 1946, li com a maior das surpresas o projeto que o Governador Sarmento Rodrigues pôs à discussão no Conselho de Governo, em torno dos direitos à Saúde da população civilizada, mestiça e indígena procedia-se a um minucioso enquadramento de todos estes direitos no quadro da população guineense, a distribuição gratuita de medicamentos para o sezonismo, o enquadramento da atividade farmacêutica com um rigor e detalhe que nos leva a fazer crer que Sarmento Rodrigues possuía uma lógica desenvolvimentista que ia desde a cultura, o ensino, a eficiência dos serviços da Administração, o extenso rol de iniciativas no campo das infraestruturas, e subitamente este Regulamento a todos os tipos uma inovação no sistema de saúde guineense. Mais uma razão para dizer que Sarmento Rodrigues detinha um pensamento abrangente como nenhum dos seus antecessores, a despeito dos bens recebidos manifestou-se um reformista notável, e daí o percurso que o levou ao Governo e a ficar na História da Guiné como o dirigente político que pôs a antiga Senegâmbia portuguesa no mapa da civilização, com o timbre da língua portuguesa.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

O Governador agora chama-se Manuel Maria Sarmento Rodrigues, é Capitão-Tenente e está a imprimir, de forma gradual, uma nova vitalidade orgânica à colónia, um perfil organizacional, uma dinâmica de desenvolvimento, uma reformulação da política de Saúde. Estamos agora em 10 de dezembro de 1946, o Governador anuncia ao Conselho de Governo que se vai procurar virar a página na política de Saúde, em causa um projeto de Governo sobre assistência médica, com inúmeras referências à organização farmacêutica e à política do medicamento, algo de surpreendente, em termos de investigação nunca vi convenientemente apresentada esta iniciativa que tem a ver com o Estado social e uma lógica manifestamente de vanguarda para o sistema de saúde, numa colónia onde havia leprosaria e um apoio ainda rudimentar ao tratamento da doença do sono e outros males tropicais.

O Governador põe à discussão o projeto, vejamos algumas questões essenciais: direito a assistência médica, cirúrgica, obstétrica e estomatológica gratuitas além daqueles a quem o Regulamento da Saúde da Colónia já as concede, funcionários públicos, militares, contratados e assalariados, aposentados e reformados, nos casos em que os vencimentos e abonos fossem inferiores a 20 mil escudos anuais; quando os vencimentos e abonos fossem superiores a tal montante abria um desconto de 50% sobre os preços mínimos das respetivas tabelas; passavam a ter direito a assistência farmacêutica gratuita pelas farmácias e ambulâncias do Estado para tratamento os indígenas, indigentes, pessoal missionário, assalariados do Estado, praças de pré do Exército e da Armada, internados em estabelecimentos de beneficência e presos detidos nos presídios e cadeias; as farmácias ficavam autorizadas a fornecer gratuitamente medicamentos prescritos pelos médicos veterinários destinados a animais pertencentes ao Estado; especifica-se os requisitos para quem pretendia ser fornecido nas farmácias e ambulâncias, guias ou atestados; os sais de quinina, a atebrina, a plasmoquina e todos os medicamentos específicos do sezonismo são gratuitos quando prescritos para fins profiláticos ao pessoal missionário, às praças de pré do Exército e da Armada, ao pessoal dos ramos da enfermagem, laboratórios e farmácias e respetivas famílias, e os restantes funcionários e pessoas de família terão um desconto de 50% sobre o preço de fatura; a todos os funcionários e pessoas das suas famílias serão concedidos gratuitamente em cada mês para tratamento das crises agudas do sezonismo, quando prescritos pelos médicos e encarregados das ambulâncias do Estado um dos medicamentos que vêm mencionados no Regulamento e a respetivamente dosagem; definem-se os preços dos medicamentos.

Seguiu-se debate, houve quem observasse que havia que fazer a destrinça entre indígena de indigente, quem devia emitir as guias, um dos vogais, o Eng.º Ferreira Chaves, teceu o seguinte comentário: “Pode dar-se o caso de aparecer um ou outro indígena à consulta sem estar doente, mas é sempre uma minoria que não deve prejudicar o direito dos demais. Todos sabem que o indígena da Guiné precisa de assistência médica, a assistência é sempre insuficiente. Não há medicamentos. Fazer os indígenas passar pela Administração é o mesmo que obstar o tratamento imediato. Em Farim, e em toda a parte, nota-se um grande aglomerado de indígenas que procuram médico. Quanto a indigentes, acho bem a exigência da guia, mas ao indígena com aquela desconfiança e inconsciência próprias da sua ignorância, acho que não devia ser exigida tal formalidade da guia”.

Sarmento Rodrigues também emitiu os seus comentários, veja-se o que consta da ata:
“Usando da palavra, diz-se que, tratando-se de comparações com o território estrangeiro vizinho, é deveras lisonjeiro o apreço dado ao sistema adotado na nossa colónia no combate à doença do sono. No combate de todas as doenças, a afluência do indígena tem sido cada vez maior, o que prova a confiança que ele tem no tratamento que lhes é dispensado. Os hospitais estão sempre cheios. É certo que as despesas são muito maiores, mas em comparação os resultados são maiores e a mortalidade diminuirá consideravelmente. Estão em curso muitas obras destinadas à instalação dos diversos ramos dos serviços de saúde”. Mencionou-os, ele próprio ficou surpreendido quando há dias soube da existência de um posto sanitário em Cafine, da Circunscrição de Catió, anseia que a assistência seja maior e melhor. “Nota-se nas crianças indígenas um enfraquecimento ou raquitismo que não sabe explicar a razão, se é devido à falta de tratamento, se deficiência da alimentação”.

A discussão depois incidiu sobre o exercício farmacêutico, a preparação dos medicamentos, o aviamento de receitas e a venda ao público de medicamentos, enquadrou-se a atividade farmacêutica, tanto a pública como a privada, definiu-se o proprietário das farmácias, o diretor técnico, a organização do espaço da farmácia, a obrigatoriedade da existência em todas as farmácias da Farmacopeia Portuguesa, a rotulagem dos medicamentos tanto para uso humano como veterinário. O diploma foi aprovado por unanimidade. Era uma nova era na política de Saúde guineense.

(continua)

Sarmento Rodrigues, foto oficial do Ministro do Ultramar
Farmacêutica Sofia Pombo Guerra (1906-1976), oposicionista do Estado Novo, teve farmácia em Bissau na década de 1950
Pormenor do Hospital Simão Mendes, Bissau
____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Há que procurar entender o salto que se operou com a chegada de Sarmento Rodrigues em 1945 à Guiné, por isso me socorri de valiosos parágrafos retirados de 2 artigos assinados pelo investigador António Duarte Silva acerca do que representou a política deste Governador no contexto de uma nova era colonial, tal como Marcello Caetano a visionou. Destas atas aqui referenciadas se pode ver com clareza os apoios que o Governante pode obter para um trabalho novo e para o inculcamento de um novo espírito civilizacional, daí a categorização com maior amplitude de indígena, assimilado e civilizado, categorização essa que será radicalmente alterada quando explodirem as lutas de libertação.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (3)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato. Vimos, no texto anterior, como o novo Governador, o Capitão Tenente Manuel Sarmento Rodrigues apresentou na sessão extraordinária de 3 de julho de 1945 o seu plano de ação, lendo-o à distância destas quase oito centúrias, ficamos cientes que sabia muito bem ao que vinha, tinha o conhecimento profundo dos dossiês e uma visão para o desenvolvimento da colónia.

Um profundo conhecedor e analista deste período, o investigador António Duarte Silva, deixou-nos parágrafos bem elucidativos do que movia o distinto oficial da Marinha:
“Com o termo da II Guerra Mundial à vista, aguardava-se uma remodelação ministerial e Salazar decidiu convidar Marcello Caetano para uma pasta, tanto mais que este começara a interessar-se por uma carreira política e revelava pretensões reformistas. Rejeitada uma primeira proposta quanto ao Ministério da Justiça, Salazar decidiu oferecer-lhe o Ministério das Colónias, cargo que enalteceu como «vastíssimo campo de ação, envolvendo todas as matérias da administração em relação a uma área enorme». Sugeriu mesmo que no Ultramar estava «o futuro da Nação, o seu grande destino histórico», concordando «ter chegado a altura de começar a mudar de rumo» e adotar uma política favorável à autonomia das colónias. Acrescenta Marcello que aceitou estas condições e, de facto, no exercício de funções como Ministro das Colónias, entre 6 de setembro de 1944 e 4 de fevereiro de 1947, destacar-se-á quer como defensor da renovação política do Estado Novo, quer como convicto africanista. Tinha um programa próprio, embora reconhecesse que a política colonial portuguesa deveria continuar assente nos dois pilares consignados desde 1930 no artigo 2.º do Ato Colonial: por um lado, a missão de colonizar mediante a expansão da “raça branca” e, por outro, a missão de civilizar as populações indígenas. Todavia, entendia que, na conjuntura do final da II Guerra Mundial, esta política de colonizar e de civilizar tinha de evoluir, não só para promover a progressiva autonomia administrativa e o desenvolvimento económico e social das colónias, como também para se acautelar perante a ascensão das forças anticolonialistas, especialmente norte-americanas.

Marcello conhecia a Guiné Portuguesa desde 1935, quando a visitara na qualidade de diretor cultural de um cruzeiro de férias para estudantes, organizado pela Agência Geral das Colónias. A Guiné deixara-lhe «uma recordação muito viva e agradável». Recorda que, ao tentar preparar-se para aquela viagem, não encontrara fontes fidedignas de informação sobre a sua geografia, história, economia, etnografia ou administração, pois era praticamente desconhecida: «daí o espanto com que eu e os meus companheiros de viagem de 1935 vimos o que era e o que podia ser, afinal, a nossa Guiné ao desembarcarmos em Bissau primeiro e depois em Bolama». Por isso, muitos anos depois, em abril de 1969, no início da longa visita que realizou ao Ultramar como Presidente do Conselho, não deixou de recordar aqueles seus primeiros contactos: quer a «imperecível recordação da beleza da terra e da dignidade da gente», quer as tradições combativas de Portugal na Guiné.

A colónia da Guiné iria, pois, ser o primeiro campo de ensaio dos rumos autonomistas e desenvolvimentistas da política portuguesa. Efetivamente, além da referida intenção de a tornar mais conhecida e um território modelar, outras motivações levaram à escolha da Guiné para esse rumo novo na política colonial. Por um lado, vários indícios apontavam para que Bissau e Bolama pudessem ocupar nas redes de transportes marítimos e aéreos após a II Guerra Mundial uma posição destacada de escala internacional e de cruzamento de uma “carreira aérea imperial” ou, ao menos, de ponto de escala dos paquetes que serviam Angola e Moçambique. Por outro lado, pesava um fator de ordem internacional: a circunstância de a Guiné estar rodeada de colónias francesas e inglesas e de se encontrar numa área onde se verificava uma assinalável presença diplomática norte-americana. Eis por que Marcello pretendia apostar na possibilidade de uma «crónica nova da conquista da Guiné para a civilização e para a ciência sempre dentro das conceções tradicionais da política colonial que soube casar a fé e o império: – a necessidade do mando com a fraternidade cristã».

Além da mudança de capital para Bissau, conseguida em 1941, também era necessário remodelar o governo da Guiné, pois o Governador em funções, Capitão de Artilharia Ricardo Vaz Monteiro, empossado a 16 de março de 1941, tinha «14 anos de governo tropical e [estava] já na fase das asneiras frequentes». Marcello Caetano pretendia uma equipa que saneasse a Guiné «do ambiente de depressão e intriga em que constantemente se debatia», e cujos trabalhos, elaborados com uma visão otimista e uma postura construtiva, haveriam de começar «por um exaustivo conhecimento científico das possibilidades da terra e da gente» e prosseguir através de uma «completa ocupação sanitária, educacional e política». Portanto, o perfil desejável apontava para «um oficial da Marinha de Guerra, corporação com tradições tão ligadas à colónia». Esse oficial seria o capitão- -tenente Sarmento Rodrigues. Começava a formar-se, aqui e agora, «uma nova escola de política ultramarina»”.

Parágrafos extraídos do artigo intitulado “Sarmento Rodrigues, a Guiné e o luso-tropicalismo”, publicado na Cultura, Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 25, 2008.

“Nos cerca de três anos e três meses de exercício efetivo, de 1945 a 1948, o governo de Sarmento Rodrigues vai reforçar a administração colonial, tentar associar os guineenses à governação e construir a rede de infraestruturas indispensáveis à política de desenvolvimento. Apesar de, na época, a orientação ter causado «alguma controvérsia», esse triénio, resume Peixoto Correia, produziu «obra de alcance e profundidade, porque a política praticada atendeu às características sociais e étnicas locais e ainda por as realizações haverem afetado todos os setores». Segundo o Vice-Almirante Silva Horta, Sarmento Rodrigues acreditou «sinceramente na doutrina oficial de então», contactou toda a população, proibiu os castigos corporais, promoveu a agricultura, a investigação científica e inúmeras obras, tornando «a Guiné melhor» e pondo-a «no mapa».

A sua política prosseguiu a estratégia (iniciada, antes do «28 de maio» de 1926, pelo Governador Vellez Caroço) de privilegiar as alianças com os muçulmanos (sobretudo fulas) e, por outro lado, expandiu o aparelho administrativo, mediante o preenchimento do quadro de dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços (que também dominavam o sector comercial), envolvendo, progressivamente, «alguns guineenses de cor escura».

De facto, Sarmento Rodrigues restringiu os poderes dos régulos e manifestou-se «intransigentemente» contra o uso das violências em relação ao trabalho dos indígenas, atitude que terá provocado diversas «lamentações, de que os indígenas agora faziam o que queriam». Numa perspetiva de economia política, terá adotado um «populismo agrário», algo romântico, e olhado para a Guiné como se fora «um pomar tropical».


Outra medida significativa foi a aprovação do Diploma dos Cidadãos, como ficou conhecido o Diploma Legislativo n.º 1364, de 7 de outubro de 1946, que reformava o chamado «Diploma dos Assimilados» (Diploma Legislativo n.º 535, de 8 de novembro de 1930), o qual, por sua vez, estabelecera as condições em que os natu¬rais das colónias podiam passar à condição de «assimilados a europeus», definindo, desse modo, um estatuto pessoal, étnico e hereditário, no caso aplicável aos guineenses de origem mas não aos cabo-verdianos (que nunca estiveram sujeitos ao regime de indigenato). Na Guiné, a partir de 1946, passaram, portanto, a distinguir-se relativamente aos «indivíduos de raça negra, ou dela descendentes» apenas duas categorias - os indígenas e os cidadãos (ou «civilizados») -, abolindo aquela terceira categoria de «assimilado». Eram considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que não preenchessem conjuntamente as seguintes quatro condições: a) falar, ler e escrever português; b) dispor de rendimentos suficientes ao sustento familiar; c) ter bom comportamento; d) ter cumprido os deveres militares. As condições de passagem à condição de cidadão português (ou seja, de «civilizado») eram enunciadas pelos artigos 2.º e 3.º, sendo o bilhete de identidade o «o único documento comprovativo da qualidade adquirida de não indígena» (artigo 4.º). A verdade é que este regime só em 1954 seria aplicado em Angola e Moçambique pelo novo «Estatuto dos Indígenas», desenvolvendo a filosofia de assimilação que enformara a revisão constitucional de 1951 e sendo o próprio Sarmento Rodrigues Ministro do Ultramar. O referido Diploma dos Cidadãos, disse-se então, era «o mais importante no género do Império Colonial Português».
Parágrafos retirados do artigo Guiné-Bissau: A causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, publicado nos Cadernos de Estudos Africanos, setembro/outubro de 2006.

Estamos agora em 20 de setembro de 1946, o Conselho de Governo tem na ordem de dia a apreciação da legislação que estabelece as condições que devem caracterizar os indivíduos naturais da colónia para serem considerados assimilados a europeus. Consta do preâmbulo:
“Sendo da essência orgânica da Nação Portuguesa civilizar as populações indígenas dos domínios ultramarinos, deve encarar-se com verdadeiro júbilo e reconhecimento de todos os progressos verificados neste campo. Por cada novo cidadão responsável que se desprenda do indigenato, é mais um esforço civilizador que se consagra e uma ambição que se preenche. Fiel ao espírito das leis basilares, este diploma garante a conceção de direitos a todos aqueles que os merecem”.
E tipificava-se a condição: são considerados indígenas todos os indivíduos de raça negra (que não estejam abrangidos pelo que dispõe o artigo seguinte para a definição de cidadãos portugueses), não falam, não leem nem escrevem a língua portuguesa, praticam os usos e os costumes do comum da sua raça; são cidadãos portugueses os indivíduos de raça negra que exerçam ou tenham exercido cargo público a que corresponda vencimento de categoria com as habilitações literárias mínimas, faça ou tenha feito parte de órgãos diretivos, de corpos ou corporações administrativas, ser comerciante matriculado, ser proprietário de estabelecimento industrial, possuir como habilitações literárias mínimas o primeiro ciclo dos liceus, ser natural de outra colónia ou território português onde não haja indigenato (era o caso de Cabo Verde). E a lei depois estabelecia as condições em que se podia requerer a qualidade de cidadão.
Sarmento Rodrigues expôs ao Conselho o espírito do diploma:
“Aqui não se trata de agradar, mas sim de educar. E nessas condições não se procura o aplauso de opiniões que não existam, nem se receiam as censuras de quem não sabe criticar. Com a consciência perfeita dos seus deveres, o Governante, o chefe, o civilizado, tem de dar exemplos e indicar os caminhos que devem ser seguidos sem curar de saber se as massas lhe dão um aplauso”. Interveio Mário Lima Wahnon, exaltando a iniciativa, estava convencido de interpretar o sentir de todos os presentes, o Conselho sentia-se honrado dando o incondicional apoio à iniciativa.

Em 8 de fevereiro de 1947, estando reunido o Conselho de Governo, Sarmento Rodrigues recorda a visita do Subsecretário de Estado das Colónias à Guiné. Julgava-se que o Marechal Carmona viria à Guiné, fizera-se representar, a colónia sentia-se agradecida. Mas o Governador entendeu expender um ponto de vista político:
“É tradicional das gentes das colónias quando são, como agora, benévolas para o seu Governador, desculparem-no, atribuindo todas as deficiências às dificuldades e empecilhos postos pelo Terreiro do Paço. É o que tem sucedido comigo. Mas hoje peço-lhes, meus senhores, que atentem na verdade. Tudo o que tem sido feito é devido ao apoio, ao auxílio, aos incitamentos que tenho recebido da metrópole. Tudo o que não está feito ou saiu mal é, sem dúvida, alguma, culpa, insuficiência minha. Quando no fim de 1945 estive na metrópole, obtive tudo, vim cheio de dádivas para a Guiné. O Ministério da Guerra ofereceu-nos um avião Tiger e os 2.000 contos do Fundo de Defesa Militar do Império. O Ministério da Marinha deu-nos todo o material de guerra para armar a Polícia de Segurança Pública, um batelão, boias, e ainda outro material. O Gabinete de Urbanização Colonial esteve durante um longo período a trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, elaborando projetos que nos têm permitido desenvolver as obras que todos conhecem”.

E refere levantamentos topográficos, planos de urbanização, projetos para enfermarias, postos sanitários, escolas, moradias, igrejas, postos administrativos, mercados. Tinham sido melhorados os preços para o amendoim, coconote e óleo de palma. “Mas há mais. A ponte de Ensalmá e o porto de Bissau, as suas velhas e quase imaginárias aspirações tradicionais da Guiné, vão ser realizadas”. Tinha chegado dinheiro para a construção de obras de sanidade e escolas para os indígenas. “Senhores vogais: reunimo-nos hoje aqui para agradecermos, não somos mais do que reconhecidos. E, por isso, sem mais palavras, eu proponho que aprovemos, de pé, uma saudação ao ilustre representante do Governo da Metrópole para que transmita ao Governo Central a que pertence, a certeza da nossa inquebrantável dedicação e lealdade e o nosso grande reconhecimento por todos os benefícios materiais e morais que nos está concedendo”.

(continua)


Sarmento Rodrigues, foto oficial do Ministro do Ultramar
Projeto de adaptação do Palácio do Governo, Guiné-Bissau
Hospital de Cumura, a leprosaria da Guiné
Imagem da vida quotidiana em Bissau, nos dias de hoje
Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Sarmento Rodrigues, então Capitão-Tenente, apresenta-se na sessão extraordinária do Conselho de Governo da colónia com um autêntico programa, sabe o que falta executar, tem uma radiografia das carências, explana sobre tudo o que pretende fazer, desde as obras públicas à disseminação das forças militares por toda a Guiné. Por tudo quanto se pode ler da sua governação e vem espelhado nas atas do Conselho de Governo, sente-se que temos aqui um Governador com um olhar de grande ecrã, mais direitos para os indígenas, melhorias das condições de vidas do funcionalismo que tinha perdido poder de compra com as carestias da guerra, mobilizou o Gabinete de Urbanização Colonial para trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, instituiu uma política de saúde, chegou-se ao apuro de definir a atividade farmacêutica na Guiné e o posicionamento das farmácias, terá sido legislação singular. Não tenho dúvidas que foi este o Governador que deu conformidade à vida institucional da Guiné, um vasto campo onde couberam as obras públicas, o bom relacionamento com a África Ocidental francesa, o aproveitamento das comemorações do quinto centenário das descobertas da Guiné para trazer cientistas de várias matizes à colónia, entre outras iniciativas, enfim, a Guiné deixava de ser um ponto obscuro e desinteressante para ser encarado como uma parcela do Império, ganhara identidade.

Um abraço do
Mário



Atas do Conselho de Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (2)

Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato, ou no caso de hoje o que o novo Governador da Guiné, Capitão-Tenente Sarmento Rodrigues, em 3 de julho 1945, num ambiente de sessão extraordinária, trazia como programa de desenvolvimento para a colónia.

O distinto oficial da Marinha apresenta-se e saúda os conselheiros, e esboça o seu plano de governação, o que ele pretende para fomento do progresso da colónia: “É premissa basilar não estagnar, não haver uma pausa sequer. O ritmo do trabalho, da atividade, tem de ser acelerado. Precisamos, contudo, de ter os elementos para agir: pessoal e material. De uns e outros, há na colónia, e quando eles não bastarem, não se há de hesitar de recorrer aos recursos de fora”.

Fala em estudos e projetos, estão em falta, terão de aparecer, devem convergir os elementos oficiais e os recursos particulares. Traz uma vasta lista de realizações projetadas e para satisfazer num prazo bastante curto. Coloca á frente as obras por acabar e que pretende arrumar: o Palácio do Governador, a Sé, capelas de Catió, Bafatá, Canchungo, Mansoa e Gabu, moradias projetadas para os funcionários de Bissau, o monumento ao esforço da raça e outras tentativas dispersas pela colónia. Havia que instalar o Tribunal Administrativo, o Tribunal da Comarca, cartórios e conservatória; a estatística seria removida para o edifício em construção na Praça do Império, onde se instalaria também um museu, arquivo e biblioteca. “A Guiné precisa de uma biblioteca para nela recolher obras de interesse histórico e de cultura em geral, e de um arquivo onde se guardem os documentos valiosos, os relatórios, os questionários e tudo o mais que possa interessar a futuras investigações e estudos”. Impunha-se restaurar a Colónia Penal Agrícola, era imperioso haver um local onde fossem conservados os condenados ao cumprimento de penas. “Por toda a colónia há imensas obras que se impõem com as sedes dos postos administrativos de Prábis, Cacine, Bedanda, Bambandica, Xitole, Bula, Enxudé, Binar, Enxalé, Pitche, Pirada, Ilha Roxa, Caravela e outros”. Mas havia também as secretarias das administrações e residências de administradores e de secretários. Fala na rede de estradas e nas pontes, há reparações urgentes e não se podia deixar de reconstruir a ponte de Bafatá sobre o Colufe. Não seria para já ligar o norte com o sul da colónia por pontes, ir-se-ia recorrer a jangadas para fazer travessias rápidas em Xitole, Bissau, João Landim, Farim e Barro.

Anuncia que em breve virá a Missão Hidrográfica com o propósito de com os seus estudos desvendar os segredos da navegação. Tudo a seu tempo, caso da farolagem e balizagem da colónia. Os portos de cabotagem careciam de melhoramentos, e no próximo ano o novo Governador esperava notícias oficiosas para incrementar obras portuárias. A colónia teria alguns campos de aviação, caso de Fulacunda, Catió e São Domingos.

Não deixou de ter uma palavra sobre a abandonada Bolama: “Temos esperança de que Bolama possa vir a ser uma terra de um futuro animador, pois não se encontra com facilidade local com melhores requisitos para navegação aérea”. E havia a esperança de se poder conseguir que algumas carreiras de paquetes viesses escalar a colónia. Dirigiu uma palavra à política de saúde, iria em breve aparecer o Regulamento dos Serviços de Saúde da Guiné, uma delegação em cada Circunscrição com um médico e um centro de saúde, não se esperavam resultados para breve, escasseavam os recursos para as instalações, faltava pessoal técnico e também porque os encargos resultantes não poderiam ser continuamente suportados. Lembrou o problema das águas, concretamente falou de Bissau: “Temos água captada (4 litros por segundo no mínimo), as canalizações assentes em parte, os materiais adquiridos, os maquinismos prontos, as verbas concedidas. Falta um técnico que não há maneira de vir, para a construção dos depósitos elevados. Mas há de chegar o dia. Os benefícios das águas não devem ser limitados somente a Bissau e Bolama. É preciso estender estes importantes melhoramentos a outros pontos da colónia”. Equaciona o problema da distribuição das águas com a instalação das forças militares, a Guiné tinha ao tempo quatro companhias de infantaria e uma bateria de artilharia, o novo Governador pensava que se devia manter uma companhia em Bolama, outra ou duas em Bissau e a quarta no Gabu, aqui “por várias razões que não é necessário desenvolver” era esta a sua opinião, havia que auscultar a Direção-Geral Militar do Ministério das Colónias.

E expende um ponto de vista civilizacional:
“A distribuição de unidades militares visa não só a segurança como também fins civilizadores.
Sabemos que, durante 2 anos, um milhar de homens, acompanhados de suas famílias, vivem sujeitos à vida militar. Nesses 2 anos pode-se-lhes dar uma educação contínua. Não se pode desprezar essa esplêndida para, ao lado da instrução militar, se lhes ministrarem conhecimentos práticos de artes e ofícios: sapataria, alfaiataria, marcenaria, serralharia, pedreiro, etc. Sobre métodos agrícolas, está em crer que muito também lhes seria de ensinar de útil na mesma ocasião: utilização do gado para as lavras e transportes, com o emprego de arados e carros”
.

Disserta sobre o campo da agropecuária, era suposto no ano seguinte executar-se uma grande obra, a Barragem do Biombo, havia que ser prudente quanto aos métodos da cultura do arroz e da mancarra, já que os indígenas eram possuidores de uma grande experiência. Mas competia às autoridades selecionarem sementes para o arroz. Era sua intenção construir celeiros modernos para o arroz e mancarra em todos os postos.

Foi um discurso longo, o novo Governador trazia entusiasmo, tinha uma boa equipa auxiliar e a promessa de maiores apoios financeiros da metrópole. Por isso, esta sua intervenção em 3 de julho era um discurso que devia calar fundo junto dos “civilizados”, chegar junto das autoridade gentílicas, havia que dar a entender que se vinha com um plano e uma missão ampla para cumprir, e daí se falar também do óleo de palma, da borracha (disse abertamente que vinha aí a crise, não se julgava possível fazer mais do que aproveitar a época transitória, a borracha estava condenada a prazo), da cultura de algodão, da floresta e até da plantação de árvores pelas estradas da colónia. Veremos seguidamente outras iniciativas do novo Governador, caso de naturais da colónia serem considerados assimilados a europeus e a construção de algo que hoje podemos utilizar na expressão de Estado Social, em dado momento vamos ver discutido no Conselho de Governo a política de saúde e, surpreendentemente, o reconhecimento da importância das farmácias na Guiné.

(continua)
Almirante Manuel Sarmento Rodrigues (1899-1979), foi Governador da Guiné em 1945, veio substituir o Major Ricardo Vaz Monteiro
Ponte de Ensalmá, Ilha de Bissau
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23880: Historiografia da presença portuguesa em África (347): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23769: Notas de leitura (1514): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Aqui prossegue, em marcha um tanto lenta, a tentativa de sumarização do miolo da obra que o nosso confrade José Matos teve a gentileza de me enviar. Encetou-se este trabalho com o prólogo e estamos agora no contexto histórico da emergência do nacionalismo guineense, que conduzirá à luta armada iniciada em janeiro de 1963. Convém esclarecer que aqui e acolá introduzo um apontamento histórico da minha lavra, não para distorcer o que há de essencial no livro de Hurley e Matos mas para melhor contextualizar o leitor português. Dou simplesmente o exemplo de ter referido o nome de Fernão Gomes e o seu contrato com a Coroa para melhor se entender que era sua obrigação ir explorando para Sul, tudo fazia parte daquele desígnio a que se chama o Projeto Henriquino, ir descobrindo para Sul até encontrar caminho para o Oriente. Assim se perceberá, creio eu, como aquele ponto da costa ocidental africana tinha significado numa rede comercial, nem de longe nem de perto era uma colónia, a nossa presença estava marcada no litoral e na negociação com régulos com quem se fazia a compra e a venda. O texto parece-me rigoroso, é muito incisivo, trata-se de um volume que não chega a 100 páginas, os autores foram forçados a orientar-se pelo que lhe parece de mais essencial para mais adiante se compreender as atividades da Força Aérea Portuguesa na Guiné.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Na edição anterior procedeu-se a um sumário da introdução, vamos agora entrar no primeiro capítulo que se intitula “O Vento da Mudança”.

Recordam os autores a presença portuguesa nesta região da costa ocidental africana a partir de finais da primeira metade do século XV. Presença limitada a vários pontos de comércio; um rico comerciante, de nome Fernão Gomes, fez contrato com a Coroa, a sua principal obrigação era ir explorando para Sul, fê-lo com êxito; a rede comercial instituída atingia Cabo Verde, Arguim e São Jorge da Mina, prosperou o tráfico negreiro. O monarca português reivindicou a soberania e a exclusividade económica sobre a região, a partir de 1486 acrescentou ao seu título o de “Senhor da Guiné”. Prosseguiram as viagens no reinado do príncipe D. João (futuro D. João II), e depois de se ter chegado à zona do rio Congo, intensificaram-se as viagens até que Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança; preparou-se, então, uma grande expedição para a primeira viagem marítima até o Oriente, o comandante era Vasco da Gama, o ano 1498. Dois anos depois, Pedro Álvares Cabral descobria o Brasil. Iniciava-se um período prodigioso de viagens e comércio. A concorrência estrangeira na costa ocidental era praticamente incontrolável, com a expansão para o Brasil e para o vice-reinado da Índia o comércio africano foi ficando reduzido a uma escala diminuta, durante o período filipino a presença portuguesa ainda ficou mais seriamente afetada por se passar a ter os mesmos adversários que a Espanha.

Com a independência do Brasil, Portugal voltou-se declaradamente para uma presença mais efetiva em África. No caso da colónia da Guiné, a nossa presença era ténue, o clima altamente agressivo, a resistência dos autóctones era ferocíssima. Com as obrigações impostas pela Conferência de Berlim, tiveram início campanhas para subjugar a resistência dos povos locais, considera-se que o território da colónia ficou efetivamente ocupado/pacificado em 1936, depois de uma campanha numa ilha dos Bijagós, que acatou finalmente a soberania portuguesa. E, de facto, começou uma organização administrativa pautada pela criação de infraestruturas, estabelecimento de Circunscrições, uma maior presença de funcionários do quadro da Administração Colonial, criação de bairros para os funcionários, aparecimento de instalações de saúde e poderá considerar-se que com a governação do Comandante Sarmento Rodrigues, que deu largo impulso ao conhecimento da Guiné, e até mesmo trazendo ao território cientistas reputados, a Guiné passou a ter uma posição no mapa, ganhou identidade e chegou ao conhecimento dos portugueses.

Com o aparecimento do Estado Novo, o Império Colonial Português ganhou uma nova moldura jurídica, que vai desde o Acto Colonial até à Concordada com a Santa Sé. O Acto Colonial era bem claro ao definir a função histórica de Portugal em possuir e colonizar domínios ultramarinos e civilizar as respetivas populações indígenas. Realizaram-se exposições, a começar pela Exposição Colonial do Porto até, em plena Segunda Guerra Mundial, a Exposição do Mundo Português, exaltava-se o passado heroico de Portugal e o imutável caráter imperial da nação portuguesa. Em 1960, aproveitando as comemorações do centenário da morte do Infante D. Henrique, falecido cinco séculos antes, voltava-se a uma narrativa nacional, no caso vertente que ia do Minho a Timor, era uma narrativa construída em torno de um país pluricontinental e plurirracial, tudo numa unidade exemplar.

Apercebendo-se dos ventos da mudança, a descolonização estava em curso desde o fim da Segunda Guerra Mundial e Salazar apercebeu-se que a independência da Índia em 1949 iria trazer severas tensões para a sua política externa. Abandonou-se o conceito imperial, deixou-se de falar em colónias, alterou-se a Constituição e apresentou-se ao mundo o ultramar português, as províncias ultramarinas apareciam como politicamente integradas no Estado português. Tanto no interior do regime como nos areópagos internacionais sabia-se que a mudança era puramente cosmética. Salazar não deixava de dizer claramente que o regime não podia sobreviver sem o seu território ultramarino, assim se iniciou uma intensa doutrinação sociopolítica, procurando uma catequização de que este ultramar era um direito adquirido, fazia parte das realizações históricas da Nação. Mas os investimentos no ultramar mantiveram-se no nível baixo, e em 1960 o chamado Portugal europeu caracterizava-se pelo seu maior nível de analfabetismo e o menor rendimento per capita na Europa Ocidental, com níveis altamente preocupantes na mortalidade infantil e nas doenças infetocontagiosas, abaixo de Portugal só a Albânia.

Os autores relatam os acontecimentos da Abrilada, a atividade oposicionista ao regime, o esmagador apoio que a ideia de império/ultramar obtinha junto do Oficialato português. Tanto assim foi que se deu uma rápida mobilização para procurar asfixiar a sublevação em Angola. Houve quem tivesse preconizado que o descontentamento nacionalista africano se iria exprimir em primeiro lugar na Guiné, tal não aconteceu, mas em 1961 o ideal independentista já seguia o seu curso, com apoios firmes na Guiné Conacri e no Senegal. A Guiné atraía poucos capitais, tinha algumas empresas de dimensão média, as suas exportações eram interessantes para o fabrico das oleaginosas e a cultura do arroz permitia que este alimento básico chegasse a Portugal, a Guiné dava sinais de autoabastecimento muito satisfatório no caso do arroz.

Segundo o censo de 1960, a Guiné tinha um pouco mais de meio milhão de habitantes, esmagadoramente era constituída pela população indígena, havia pequenas parcelas de população branca e sírio-libaneses. Apesar da sua insignificância no contexto imperial, o Estado Novo não abdicou de tratar a Guiné como uma província ultramarina, os sinais da descolonização eram por demais evidentes, os franceses já tinham sido expulsos da Indochina, as sublevações na Malásia, Quénia e Argélia não podiam ser iludidas, a Guiné Conacri torna-se independente em 1958, no ano anterior o Gana proclamara a sua independência e a sua política externa era completamente hostil ao espírito colonial, logo na África Subsariana. A questão angolana era prioritária para o Estado Novo, só a partir de 1962, e a um ritmo muito fraco é que Lisboa foi enviando para a Guiné mais efetivos militares.

Os autores dão conta do que foram as tentativas independentistas na Guiné nos anos 1950, referindo a crescente presença do partido dirigido por Amílcar Cabral, nascido na Guiné em 1924, tendo depois vivido em Cabo Verde e tirado o curso de engenheiro agrónomo em Lisboa, seguindo depois como Diretor de Serviços Agrícolas para a Guiné, onde restruturou a Granja do Pessubé e na companhia da mulher procedeu ao recenseamento agrícola, nomeadamente no ano de 1953. Segue-se uma apreciação do contexto internacional que pesou a favor do espírito independentista, o mapa africano alterou-se profundamente e isso deu força a que Cabral propusesse a criação de um partido, ficaria um núcleo ativo no interior da Guiné a preparar a subversão e a canalização de gente para Conacri, ele ficaria na capital com um outro núcleo diretivo, à frente de uma Escola-piloto e conduzindo a sensibilização da opinião pública internacional. Cabral soubera tirar partido das lições dos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959, não havia condições para a subversão urbana, tinha que se ir por outro caminho.
O Governo de Salazar em 1930 junto dos próceres da ditadura nacional, Carmona é o Presidente da República, é o ano do Ato Colonial
Outra imagem do livro “O Santuário Perdido”, reproduz material propagandístico do PAI, a sigla antecessora do PAIGC
Amílcar Cabral a pousar com um grupo de guerrilheiros do PAIGC recentemente regressados de uma ação de formação na China. Nino Vieira está acocorado, é o segundo à esquerda.

(continua)

____________

Notas do editor:

Vd. poste de 28 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23762: Notas de leitura (1513): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23416: Notas de leitura (1462): A lusitanização e o fervor católico na Guiné, um ideário do Estado Novo na publicação “Política de Informação”, por José Júlio Gonçalves, 1963 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
A grande mudança que constituiu a governação de Sarmento Rodrigues, uma verdadeira arrancada nas comunicações, transportes, infraestruturas, urbanização, saúde, educação, etc., também se fez acompanhar de uma preocupação confessional e cultural, os discursos de Sarmento Rodrigues eram perfeitamente claros quanto à necessidade de intensificar o uso da língua portuguesa num processo cultural mais amplo, prismado de "lusitanização". Numa atmosfera imperial, também se era sensível ao facto de a Guiné sofrer todos os impactos de séculos de crescente islamização e aonde o mundo missionário progredira de forma lenta e inconstante, havia que mudar as coisas. É à luz desse ideário que se deve ler, penso eu, o trabalho de compilação elaborado por José Júlio Gonçalves que, reconheça-se, leu cuidadosamente todos os artigos publicados sobre esta matéria religiosa no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Tudo mudou com a independência, a língua portuguesa é a do Estado e as missões são um dos pilares fundamentais nas políticas de saúde e de educação na Guiné-Bissau. São assim as ironias da História...

Um abraço do
Mário



A lusitanização e o fervor católico na Guiné, um ideário do Estado Novo

Beja Santos

José Júlio Gonçalves foi professor extraordinário do então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. O seu livro de ensaios publicado em 1963, “Política de Informação”, inclui um trabalho que o autor publicara anteriormente no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa em 1958 e que aqui vem completar com largas referências a outras colaborações recolhidas no referido Boletim Cultural que permitem ao autor apresentar um quadro da vida confessional da Guiné para, sem ambiguidades, retomar uma política seguida pelo governador Sarmento Rodrigues para reforço da língua e da cultura portuguesa bem como de maior suporte à religião católica na colónia, de modo a travar fundamentalmente os riscos de um islamismo que pudesse vir a constituir um elemento dissolvente da presença portuguesa. Como é sabido, nem a religião islâmica se revelou hostil à presença portuguesa como se mostrou agradada pela aceitação das escolas corânicas, pela crescente construção de mesquitas e do apoio às peregrinações a Meca. Uma luta surda se travou entre vários governadores entre os apoios à escola laica ou à escola de missionários. A missionação na Guiné datava de fresca data, foram os franciscanos que se impuseram e daí a respeitabilidade com que ainda hoje são credenciados. O sistema educativo foi permanentemente frágil e difuso, conheceu crescimento durante o período da guerra colonial graças aos familiares dos militares e deles próprios, investiu-se tarde e más horas no sistema educativo. Este, deploravelmente, continua em bolandas desde a independência.

O trabalho de José Júlio Gonçalves mostra-nos as etnias animistas (Felupes, Baiotes, Banhuns, Papéis, Brames, Balantas e Bijagós), as etnias animistas pouco islamizadas (Manjacos e sub-ramos Balantas), as etnias gradualmente islamizadas (Cassangas, Nalus, Beafadas e Pajadincas), seguem-se as etnias quase completamente islamizadas (predominantemente Fulas e Mandingas) e as minorias constituídas por católicos e por um grupo ainda mais minoritário de protestantes.

Vê-se que o autor leu atentamente a bibliografia da época e que lhe permite dissecar todas as etnias animistas à luz das investigações do tempo. É nas entrelinhas e nas observações que se perceciona qual a mensagem que o autor pretende fazer passar. Predominam as escolas muçulmanas sobre as escolas missionárias. Lembra-se que em meio século de atividade, entre 1900 e 1950, o islamismo obteve na Guiné mais adesões que os cristãos em cinco séculos de evangelização. Apela-se a uma maior eficiência da atuação dos missionários católicos, mas não se hesita em escrever: “Indígena islamizado está perdido para o cristianismo. Os maometanos guineenses têm grande respeito pelos missionários cristãos; não têm mesmo hesitação em mandar os filhos às escolas onde eles lecionam. Mas ao menor intento de catequese, ao mais pequeno sinal de que o espírito da criança se está interessando pela religião dos brancos – logo se ergue uma barreira a isolá-lo e a afastá-lo de tal influência. O missionário bem sabe isso e evita distribuir assim a sua atividade pelas áreas francamente islamizadas”.

E surpreende-nos com a afirmação que é possível catequizar as populações islamizadas, “não se esqueça que o sul de Portugal já foi habitado por muçulmanos que, em boa parte, se fizeram cristãos”. Mas as surpresas não ficam por aqui, o autor alerta para a possibilidade de os brancos se socorrerem de práticas de feitiçaria ou passem a usar amuletos iguais aos dos negros. E não sendo muito claro a quem está a culpabilizar, observa que o islamismo avançava em direção à faixa litoral e que não havia firmeza no binómio Administração – Missões. Sugere uma ocupação missionária que deve não só visar as regiões ainda pagãs como também as dominadas pelas etnias islamizadas.

Falando do protestantismo na Guiné, diz existir uma missão evangélica anglo-americana que tem sede em Bissau e várias filiais e que mantém um dispensário de combate à lepra em Bissorã. É um protestantismo que sabe atuar no campo assistencial e que dispõe de fundos. E deixa um alerta: “Os missionários protestantes não favorecem a nossa política de integração porque não lusitanizam, mas são cuidadosos no trato com as nossas autoridades administrativas”.

Discreteia seguidamente sobre alguns aspetos mais representativos da influência árabe-islâmica na Guiné, especificando a ação dos marabus, mouros, judeus e sírios. Contextualiza a atividade das confrarias muçulmanas (a Qadiria e a Tidjania), citando Teixeira da Mota:
“A confraria dos Qadiria foi fundada no século XII na Mesopotâmia. Na África Ocidental, o movimento está desligado da confraria-mãe e subdividido em confrarias independentes, embora todas subordinadas aos ideias e práticas da ordem Qadiria. Os fiéis aspiram ao aniquilamento do ser perante Deus, para o que se recomendam práticas comparáveis às dos dervixes orientais (…). Na nossa Guiné os principais centros Qadiria são Jabicunda e Bigene, na circunscrição de Bafatá. Parece que a maioria dos Mandingas do nosso território segue a ordem Qadiria. Quanto à confraria Tidjania, diz igualmente Teixeira da Mota que “é de origem relativamente recente (fins do século XVIII) e especificadamente africana, constituindo, além do lado religioso, uma ordem política e em certas épocas também guerreira, nomeadamente sob o afamado Al Hadj Omar, que se serviu dela para combater os Qadiria, cuja influência suplantou no Futa Djalon e Futa Toro. Na Guiné Portuguesa um dos principais centros Tidjania é Ingoré, onde um xerifo prepara numerosos talibés vindos de áreas distantes, inclusive Beafadas. Ao que parece, a maioria dos Fulas segue esta ordem”.

As etnias islamizadas iam exercendo a ação catequística junto dos animo-feiticistas, daí resultando fenómenos como a mandinguização e a fulanização. E o documento de divulgação salta agora para as Artes Plásticas, concluindo que as proibições religiosas na escultura, vedando, por exemplo, a reprodução de figuras animadas, tornavam as Artes Plásticas muito pobres, as grandes exceções era a escultura bijagó e o que restava da escultura nalu.

Em jeito de conclusão, o autor enfatizava a urgência de: dar maior incremento à ação missionária e católica, sugerindo que a catolicização devia ser predominantemente dirigida para as famílias monogâmicas; estudar atentamente os nexos políticos resultantes da peregrinação a Meca, sobretudo naqueles aspetos que mais de perto se prendem (ou possam vir a prender-se) com a nossa soberania nas terras guineenses; combater a difusão do árabe como língua franca e litúrgica da Guiné, incrementando o crioulo e criando mais escolas para difusão do português; vigiar sempre a administração da Justiça – pedra de toque da nossa civilização e que mais vivamente apaixona a mentalidade dos primitivos atuais. Todo o ato injusto conduz à rebelião latente. Daí a necessidade de a justiça europeia nunca dever aparecer inferiorizada em relação aos preceitos corânicos.

Todo este quadro ideológico enunciado por José Júlio Gonçalves se esfumou com as realidades da independência da Guiné-Bissau. A esfera confessional está alterada: o islamismo pouco cresceu, quem cresceu significativamente foi o catolicismo, e ambos os credos, a que se pode adicionar o protestantismo, se relacionam bem, sem querelas. A língua portuguesa, como Amílcar Cabral sempre advogou, foi “roubada” aos portugueses, é língua do Estado, Cabral era firme nesta decisão, o enclave tinha que se distinguir da língua francesa, para não ser engolido. Tal como Teixeira da Mota sugeria, o crioulo é a língua franca dos guineenses e a língua portuguesa lá prossegue aos tombos… sem preocupações de lusitanização. Quanto às missões, florescem, são respeitadas nos domínios da Saúde e da Educação, sobretudo. Em muitos casos, estes missionários são apoiados por organizações não-governamentais de gabarito, que contam com voluntários de excecional qualidade, preparando formadores e pessoal técnico e auxiliar em vários ramos da Saúde.

Imagem referente à Fundação Instituto Social Cristão Pina Ferraz, Missão Católica de Cumura.
Imagem referente à Fundação Instituto Social Cristão Pina Ferraz, Missão Católica de Cumura.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23410: Notas de leitura (1461): "Crónicas Soviéticas", por Osvaldo Lopes da Silva; Rosa de Porcelana Editora, 2021 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21553: Agenda cultural (764): Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Andara desleixado, até que alguém advertiu que a exposição sobre as moranças guineenses estava patente até ao final do ano. Fiquei assombrado com a seleção de imagens, a doação do Arquiteto Fernando Schiappa de Campos parece ter uma dimensão impressionante, foi incansável a registar mais do que as moranças, usos e costumes, museograficamente é um atrativo para os olhos, obriga a refletir e para nós que lá vivemos é uma tremenda sacudidela na nostalgia, percorremos estas atmosferas e até colhemos bonitos sorrisos deste povo que não se ensaia pela belicosidade e que, no entanto, é dos mais afáveis do mundo. Não percam a exposição, até porque com o mesmo bilhete têm acesso ao valiosíssimo património do museu e visita ao esplendoroso jardim botânico.
Quando disse à minha neta que havia lá uma sala de dinossauros, entusiasmada, lá fomos. Depois contarei como foi.

Um abraço do
Mário


Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau,
Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano


Mário Beja Santos

Depois da aula de ginástica, quatro reformados acordaram em ir visitar a exposição sobre as moranças guineenses, supostamente já fechada ao público, descobriu-se que é possível visitá-la no majestoso edifício que foi o Colégio dos Nobres, depois Escola Politécnica e agora Museu Nacional, toca a preparar uma visita-guiada, com antropólogo e tudo. Muito está estudado sobre o habitat guineense. Teixeira da Mota, quando trabalhou como Adjunto do Governador Sarmento Rodrigues, pôs de pé um conjunto de estruturas culturais que marcaram indelevelmente o conhecimento antropológico, etnólogo e etnológico das suas populações. O oficial de Marinha convocava os administradores para produzirem estudos monográficos que vieram a ser publicados no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, as investigações mais curtas e parcelares ficaram dispersas no valioso Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Sobretudo no final da década de 1940, por toda a década de 1950 e também com algum dinamismo ao longo da década seguinte, foram aparecendo trabalhos que deram conta da completa integração da morança do quadro da tabanca, o uso de materiais, a construção permitia espaços sombrios e frescos, as arrecadações, as construções de querentim permitiam a privacidade do agregado familiar, a posição estratégica da mesquita, a produção de adobe, o corte dos cibes, a lógica de pinturas, especialmente na cultura Bijagó. A Junta de Investigações do Ultramar enviou dois arquitetos e um sociólogo no fim da década de 1950 para aprofundar esse conhecimento. É do trabalho dessa missão que esta magnífica exposição revela que o investigador foi acicatado pela curiosidade e cedeu ao feitiço africano. Todas estas imagens falam de um encontro de alguém que seguramente tinha conhecimentos dos locais que visitava, mas foi tão intenso o encontro que o fotógrafo se perdeu de amores. Consta mesmo que o arquiteto Fernando Schiappa de Campos guardou esta revelação até morrer, fora deslumbramento inextinguível.
Para saber mais, quem vai visitar esta exposição pode consultar o seguinte site: https://museus.ulisboa.pt/sites/default/files/Folheto%20Moran%C3%A7as%20site.pdf
Enquanto o grupo espera a chegada do mestre de cerimónias, um tanto à sorrelfa vou até à zona do museu onde se situa o velho Laboratório de Química, que liga com o anfiteatro muitíssimo bem conservado. Nestas balaustradas, os alunos viam professores fazer as experiências que deviam ser comentadas em voz alta, os alunos nesta geral deviam ir pondo questões. Tudo obra do passado, ainda bem que estas relíquias estão primorosamente conservadas. E agora vamos começar a visita propriamente dita.
Aqui ficam as imagens de quem por lá andou e os dois aparelhos fotográficos que pertenceram a Schiappa de Campos. O nome deste arquiteto era muito conhecido, quando andei a pesquisar a história do BNU da Guiné, ele foi chamado a apresentar um projeto para a construção da nova delegação do banco em Bissau, não retive se também fora convidado para apresentar o projeto da delegação de Bafatá, prevista em 1974. Era portanto um conhecedor da Guiné, mas estas imagens não são as de um repórter seduzido, é alguém que entrou na intimidade de diferentes facetas culturais, dir-se-á hoje que procedeu inclusivo, despido de preconceitos, deixando as imagens exprimir formas de resposta àquilo que alguém designou por Babel negra.
Quem visitar a exposição registará que o fotógrafo colheu diferentes imagens deste dançarino Bijagó, ele aparece a remoinhar, aquela ráfia se sacode vertiginosamente, é uma dança que vai afrontar, pode ser um tubarão-martelo, pode ser os espíritos endemoninhados que precisam de ser aplacados pelo vigor do movimento e dos sons. E repare-se como a vida continua na proximidade, aquele toque de quotidiano que nos é dado pelo arco com que o menino brinca.
E temos a luta, um desporto com regras, não é para bater nem massacrar, é para coroar a agilidade, há lutadores com o corpo bem oleado, há quem faça das mãos e da postura o engenho que leva ao desequilíbrio do contendor, veja-se a simetria das posições, até parece que há ali um árbitro que confere as regras da equidade, para ver quem primeiro bate com os costados no chão.
Atenda-se ao pormenor, o que interessa ao fotógrafo é revelar os adornos dentro de uma certa elegância corporal e nada mais, o que prova que não são necessárias braceletes de ouro ou prata, o cordame é mais do que suficiente para decorar e chamar a atenção, em todas as culturas o corpo é vitrina, os adornos são chamariz, é o que dita a imagem.
Temos aqui o transporte de mel, há quem esteja esquecido que foi sempre uma riqueza e produto de troca, há milénios. Há diferenças nas etnias quanto à forma de afugentar as abelhas e retirar os favos preciosos. Como nunca vira este comércio, pensei que se tratasse de uma imagem deslocada, até me pareceu um transporte asiático, mas não, o que está ali é mel e da Guiné.
Temos agora a derradeira fotografia, Schiappa de Campos talvez tenha organizado encenação, uma pose quase de estúdio. Veja-se a seriedade da mulher, o olhar dos dois jovens vai ficar gelificado para a eternidade e aquele sorriso é de quem ama a vida, gostou de acolher o visitante e quer que saibam, para todo o sempre, que tirar uma fotografia é sempre um tiro para a posteridade, como aqui aconteceu, guarda-se a nobreza dos povos e acende-se o rastilho desse feitiço de ver tão belas imagens e ter uma infinita saudade de gente tão acolhedora, tão cruelmente fustigada pelos desatinos do destino.
Não percam esta exposição, é gente que conhecemos e que jamais esquecemos, pelo que a vida nos ensinou.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21550: Agenda cultural (763): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", de José Francisco Nico, 2ª edição, a sair no final de novembro de 2020 (António Mimoso e Carvalho)

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Guiné 671/74 - P21465: Notas de leitura (1315): “Para o bem da Nação: usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1949-1961)”, um artigo de Victor Andrade de Melo na Revista Análise Social de 2017 (1) (Mário Beja Santos)


Gâmbia > Bathurst > 1953 > Comemorações da entronização da Rainha Isabel II, de Inglaterra > Foto da seleção de futebol da Província Portuguesa da Guiné > De pé, da esquerda para a direita, Antero Bubu (Sport Bissau e Benfica; capitão), Douglas (Sport Bissau e Benfica), Armando Lopes (UDIB), Theca (Sport Bissau e Benfica), Epifânio (UDIB) e Nanduco (UDIB); de joelhos, também da esquerda para a direita: Mário Silva (Sport Bissau e Benfica), Miguel Pérola (Sporting Club de Bissau), Júlio Almeida (UDIB), Emílio Sinais (Sport Bissau e Benfica, Joãozinho Burgo ( Sport Bissau e Benfica) e João Coronel (Sport Bissau e Benfica).

No 1º jogo, a seleção da Guiné ganhou à seleção da Gâmbia por 2-0, com golos de Joãozinho Burgo; no 2º jogo, as duas seleções empataram 2-2 (com golos, pela Guiné, de Mário Silva e Joãozinho Burgo). Antiga colónia inglesa, a Gâmbia acedeu à independência em 1965.

Legenda de João Burgo Correia Tavares: vd. livro Noberto Tavares de Carvalho - "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita", Porto, edição de autor, 2011, p. 41.
 
Foto ( e legenda): © Armando Lopes / Nelson Herbert (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se procede a um resumo de um investigador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro com basta bibliografia sobre o desporto na Guiné Portuguesa desde a governação de Sarmento Rodrigues até ao período da Independência. O investigador analisou um conjunto de publicações periódicas guineenses e revela que com Sarmento Rodrigues arrancou uma política de desporto na Guiné, associada a outros movimentos ligados ao lazer e entretenimento. Benfica e Sporting tiveram aqui as suas antenas, um revolucionário como Bobo Keitá jogou nos Balantas de Mansoa; a par disso, a UDIB tinha futebol, recebia muitos grupos caseiros (um deles era o BNU) que faziam desporto ou teatro, organizavam-se bailes e festividades. O que o autor assinala neste texto é a evolução dessa política desportiva à escala caseira e dentro da região, tudo se vai alterar com os novos países independentes, ficará interdita a presença portuguesa em certames desportivos internacionais em qualquer ponto de África, com exceção da África do Sul.

Um abraço do
Mário


Usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1)

Beja Santos

O número 225 da revista Análise Social, de 2017, inclui um artigo de Victor Andrade de Melo intitulado “Para o bem da Nação: usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1949-1961)”. Victor Andrade de Melo é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e encontram-se vários documentos e referências a livros na internete que abonam que o investigador tem manifesto interesse por esta problemática do desporto na Guiné Portuguesa. Veja-se por exemplo o artigo intitulado “A nação em jogo: exporte e guerra colonial na Guiné Portuguesa (1961-1974)”, publicado na revista mexicana Antíteses. Vale por isso a pena cobrir todo este vasto período entre o pós-guerra e a independência.

Estamos em Maio de 1949, no Estádio Sarmento Rodrigues homenageia-se o Governador do mesmo nome, a sua obra introduzia uma nova dinâmica no desenvolvimento da colónia, desde as obras públicas à investigação científica, às instituições de saúde e ao ensino. Sarmento Rodrigues chega à Guiné em 1945, a atividade desportiva já estava a dar os seus primeiros passos, os Balantas de Mansoa tinham sido constituídos no ano anterior. Mas o garboso oficial da Marinha trazia inspiração para o desporto no âmbito colonial. 

Atraído pelas teses do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, pretendeu imprimir ao modelo da sua governação a vertente multirracial, o desporto seria um esplêndido mediador para aproximar colonos e colonizadores. O investigador Victor Andrade de Melo analisou a imprensa periódica neste período, logo O Arauto, lançado em 1943, em Bolama; depois Os Ecos da Guiné, publicados entre 1950 e 1954, também o Bolamense, que vigorou entre 1956 e 1961; e por último o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, que teve publicação ininterrupta entre 1946 e 1973. Sarmento Rodrigues deu orgânica a estas preocupações com o desporto, constituiu mesmo o Conselho de Desportos.

Recorde-se que Bissau ganha nova dimensão neste período expansionista, cresce a administração e a economia, há mais europeus e cabo-verdianos e mais “indígenas” ganharam o estatuto de “civilizados”. Sarmento Rodrigues extinguira em 1946 a categoria de “assimilados” o que na prática somente atenuou a discriminação racial.

Quem diz desporto diz lazeres e entretenimentos. Em Janeiro de 1953 organizou-se uma temporada de touradas em Bissau e escrevia-se em O Arauto: “pela primeira vez vamos apreciar um grupo de forcados indígenas que enfrentará um touro da metrópole a fim de mostrar a sua coragem e a rijeza das pernas para fugir a tempo”. E falou-se muito em portugalidade. 

No ano seguinte chegou a Bissau o ciclista Luís Rosa Marques, que fazia o percurso Luanda-Lisboa. Foi saudado como o “valente português” que contribuía para revigorar as relações entre as diferentes parcelas nacionais. O cinema da UDIB acolhia apresentações teatrais e musicais, o cinema tinha pouca expressão embora os filmes de Charlot fossem muito bem recebidos.

Muitos jovens foram atraídos pela possibilidade dada pela Mocidade Portuguesa. Fundam-se clubes, um Benfica em Bissau, um Sporting em Bafatá, há clubes de curta duração, como o Porto de Bissau. Em 1955, há um novo alento, foi criado um Conselho Provincial de Educação Física, diz Victor de Melo que a decisão começara a ser delineada quando Sarmento Rodrigues era Ministro do Ultramar, mas este conselho provincial só começou a funcionar em 1959.

O futebol foi desde sempre a modalidade mais popular. Sarmento Rodrigues estimulou jogos e torneios de diversas modalidades disputados entre clubes e selecionados os guineenses e de outras colónias, promovidos dentro ou fora da província. O desporto aparecia como forma de construir um sentido de pertença e de identidade com a nação. E dá-se o exemplo da seleção de futebol de Bissau ter ido a Dakar, em Abril de 1952, para disputar o Torneio da África Ocidental, e escreveu-se com apreensão quanto à participação da equipa representativa da colónia: “A seleção da Guiné não está à altura de representar condignamente desporto da província num torneio internacional”

O relato da final do Torneio Internacional de Páscoa – realizado em Bissau, em 1953, contando com equipas de Dakar, Conacri e Bathurst, deu conta de um jogo tenso entre a seleção da casa e do Senegal. Um cronista escreveu o seguinte: 

“Vibrava ali mais do que a fé desportiva: era o patriotismo ardente de todos nós em um único desejo em todos os corações e enquanto os jogadores se movimentavam heroicamente para honrar as nobres tradições do povo batalhador, a Bandeira verde-rubra drapejava lá no alto como a querer incutir-lhes mais confiança e a indicar o caminho da fé e o grito dos séculos – para frente rapazes de Portugal”.


Noutros relatos não se esconde a rivalidade nos jogos entre Cabo Verde e a Guiné, as razões são sobejamente conhecidas. Outras visitas marcaram acontecimentos entusiasmantes, como a vinda, em Fevereiro de 1958, da Académica de Coimbra, escreveu-se em O Arauto: “A Académica de Coimbra veio pôr em alvoroço todos os corações portugueses que aqui vibram e palpitam quando tocados pela magia dos grandes ideais”

Em 1958, pela primeira vez, tomaram parte na Taça de Portugal agremiações das colónias, o Ferroviário de Angola e o Desportivo de Lourenço Marques. O período da harmonia possível entre países descolonizadores e descolonizados está a chegar ao fim. Em Novembro de 1959, a seleção provincial participou nas eliminatórias para escolher as equipas que disputariam a fase final da Taça de Ouro Kwame Nkrumah, promovida pelo Gana recém-independente. O quadrangular foi disputado com equipas de Cabo Verde, da Gâmbia e do Senegal.

À guisa de conclusão quanto a esse período, observa o autor que a Guiné em meados dos anos 1940 estava bastante distante, no âmbito desportivo, do que ocorria em outras colónias portuguesas, daí o esforço para uma maior estruturação do desporto e em diferentes modalidades. E conclui deste modo:

“A participação de equipas da Guiné em desafios internacionais, a vinda de equipas da metrópole e a ida de jogadores para Portugal continental foram ocorrências mobilizadas para exaltar as supostas contribuições do colonizador para o progresso e civilização da província. Essas ocasiões, contudo, também acentuaram algumas contradições e ambiguidades, na medida que expunham a falta de estrutura da colónia, acirravam o conflito entre colónias portuguesas (no caso dos encontros com Cabo Verde) e permitiam contactos com povos que já estavam entabulando processos de independência.
O envolvimento com a prática desportiva, portanto, já prenunciava uma dimensão que ria crescer na década de 1960: seria tanto mobilizada pelos que desejam manter a ordem colonial quanto pelos que desejam a libertação da Guiné”
.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de outubro de 2020 > Guiné 671/74 - P21445: Notas de leitura (1314): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2020 - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (2) (Mário Beja Santos)