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sábado, 16 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23173: Humor de caserna (49): Mensagem, de 13/3/1971, enviado pelo Cap Art Gaspar, cmdt da CART 3330, à Manutenção Militar, c/c ACAP, Com-Chefe, CAOP1 e BCAÇ 2928: "Maior respeito boa vontade Vexa. Verifico todo peixe estragado, ovos com pintos, etc. Ir buscar estes implica risco vida. Ou monto aviário ou entre acordo. Pronto colaborar todo sacrifício. Estou com o pessoal destruído moralmente. Julgo compreendeu." (Ernestino Caniço)

 


88/C/71

Maior respeito boa vontade Vexa. Verifico todo peixe estragado,  ovos com pintos, etc. Ir buscar estes implica risco vida. Ou monto aviário ou entre acordo. Pronto colaborar todo sacrifício. Estou com o pessoal destruído moralmente. Julgo compreendeu. Cap Gaspar


Foto (e legenda): © Ernestino Caniço (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. M
ensagem do nosso camarada Ernestino Caniço:

 (i) ex-Alf Mil Cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/dez 1971;

(ii) hoje médico, aos  77 anos teima em continuar ao serviço dos outros,  de acordo com o seu juramento hipocrático; 

(iii) vive em Tomar, estando reformado do SNS ]


Data: 15 abril 2022 17:25  

Assunto - Major Gaspar

Caros amigos:

Votos de ótima Páscoa.

Face ao citado humor do Major Gaspar (*), ocorreu-me enviar-vos um excerto de uma mensagem dirigida pelo então  Cap Gaspar à Manutenção Militar, em 13mar1971, enquanto Cmdt da CART 3330.

A referida mensagem foi enviada com conhecimento à ACAP (Assuntos Civis e Acção Psicológica), COMCHEFE, CAOP1 e BCAÇ 2928.

Sendo um fragmento de um documento original, aquilatareis vós do seu interesse.

Um abraço,

Ernestino Caniço

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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22987: Fauna e flora (19): O grou-coroado ou "ganga" (em crioulo), uma ave que "matou a malvada" a alguns de nós, em tempo da guerra... Está agora ameaçada de extinção.

 

Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O abastecimento das NT era deficiente, pelo que se recorria aos "produtos naturais" da região, neste caso, à caça de aves como a "ganga" (em crioula) ou "grou-coroado" (em portugês) (*).



Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 >  A "ganga" é uma ave que, quando adulta, atinge um metro de comprimento e tem 1,60 metros de envergadura... Infelizmente, é um alvo fácil para os seus predadores (, incluindo os caçadores humanos)... 

Estima-se que a subpopulação da África ocidental ( B. p. pavonina ) tenha diminuído de 15.000-20.000 indivíduos em 1985 para 15.000 indivíduos em 2004... Para saber mais, ver o portal da   IUCN Red List of Threatened Species > Black Crowned Crane.. 



Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O destacamento não tinha população civil e era defendido por um pelotão da CART 1690. Distava 45 km de Geba. O ataque a Banjara, a 24 de julho de 1968, às 18h00, já aqui foi descrito há 17 anos atrás por A. Marques Lopes.

As instalações que se veem na foto pertenciam à antiga serração do empresário Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira, um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925, dono de modernas serrações mecânicas aqui, em Fá Mandinga e em Bafatá, a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960...

Este destacamento tinha apenas uma coluna de reabastecimento por mês, no máximo, mas chegava a estar mais de 2 meses sem alimentos frescos e sem correio. Não havia população civil, apenas militares. A çaça era um recurso...

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 19. Ilustração de  EA - Ézio Almir) (Com a devida vénia...)


Ganga (crioulo)
Balearica pavonina (Lineu, 1758)
Grou-coroado (português) | N’ghanghu (balanta) | Eghatai (fula)
Comprimento  100 cm | Envergadura 190 cm

Ao contrário das aves apresentadas neste guia, a ganga é rara e localizada. Ocorre nos vales dos principais rios do país, de forma isolada ou em pequenos bandos, frequentando zonas de água doce pouco profunda, incluindo bolanhas. Devido à sua beleza e comportamento é frequentemente capturada e mantida em cativeiro. Está ameaçada de extinção. (**)


Prefácio

Alfredo Simão da Silva
Director-Geral do IBAP

A Guiné-Bissau está entre os dois sítios mais importantes para as aves aquáticas na África Ocidental, recebendo anualmente cerca de um milhão de aves migradoras provenientes da Europa. 

As aves aquáticas migradoras encontram nas zonas intertidais da Guiné-Bissau um ecossistema produtivo e rico em alimento. O Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu, com os seus extensos mangais, é exemplo de um destes ecossistemas, razão pela qual foi reconhecido como sítio Ramsar (zona húmida de importância internacional) e como IBA (área importante para as aves). 

A simbiose e interdependência entre as aves e os recursos marinhos estão patentes no Rio Cacheu, sendo as aves um dos indicadores ecológicos mais importantes que certificam a saúde do ecossistema do mangal neste parque.

A paixão crescente e visível pelas aves na Guiné-Bissau iniciou-se nos anos 1980 com a formação dos primeiros quadros nacionais nesse domínio, apoiada por programas e/ou projectos de conservação da natureza e da biodiversidade. Neste âmbito, a contagem mundial das aves aquáticas começou a ser realizada sistematicamente no país e é acompanhada da constituição paulatina de um banco de dados nacional sobre as aves e o reforço de capacidades. 

Entretanto, fruto deste trabalho, foram sendo publicados a nível nacional, regional e internacional, documentos científicos importantes sobre as aves da Guiné-Bissau. A elaboração do presente guia das aves comuns da Guiné-Bissau, enquadra-se exactamente no espírito da estratégia nacional para as áreas protegidas e a conservação da biodiversidade (2014-2020), designadamente, o pilar estratégico monitorização das áreas protegidas, conhecimento e valoração da biodiversidade e dos serviços dos ecossistemas, e divulgação e sensibilização.

Este livro, dirigido sobretudo às acções de educação ambiental e à formação de jovens quadros no domínio da avifauna, é também um excelente manual de comunicação e de campo útil para outros actores. Este guia vai permitir aos amantes da natureza conhecerem melhor uma boa parte das aves que ocorrem nas áreas protegidas da Guiné-Bissau contribuindo para o reforço do conhecimento das espécies de aves no país.

Efectivamente, este pequeno guia é produto também da recolha e da sistematização de informação realizada desde há alguns anos a esta parte em diversas áreas protegidas. Por outro lado, é também um subsídio concreto para que a Guiné-Bissau possa dispor no futuro de uma publicação científica e mais completa sobre a avifauna. Esta ambição faz parte dos grandes desafios a médio prazo do Departamento de Monitoria e Conservação da Biodiversidade do Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas (IBAP).
 
___________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 9 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22983: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte IV: A morte da ave-real mensageira, que já não canta, no triângulo de vida de Canhánima, Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti! (... "A árvore da vida floriu!")

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22971: (Ex)citações (403): no país onde nascemos, nem as "iscas com elas" eram para todos (Eduardo Estrela, Cacela Velha, Vila Real de Stº António; ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)

1. Mensagem do nosso amigo e camarada Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha,  a jóia da Ria Formosa, cantada por Sophia; um das suas paixões é o teatro amador, mas também comeu, na infância, órfão de pai,  "o pão que o diabo amassou" (*).

Data - 1 dez 2021 23h31

 Data - sexta, 4 fev 2022 , 21:06 
Assunto  - Iscas com elas (*)


Caro amigo camarada e companheiro!

Imagina fins da década de 50,  início da de 60. 

Imagina um puto de 10 ou poucos mais, cujo pai, seu herói como são todos os pais, tinha ficado chateado com a puta da vida e decidido partir.

Na tropa,  tal como hoje, calçava n° 40, mas à época e com a idade atrás referida, esse puto tinha o "privilégio" de calçar sapatos n° 41 ou 42, com jornais na frente interior para não caírem dos pés.

Uma sopa confeccionada com o requinte de dez tostões de ossos comprados no talho e algumas, poucas vezes, iscas normalmente acompanhadas com elas, de modo a melhor lastrar a vasilha digestiva, eram um verdadeiro requinte e um manjar a que infelizmente muitos jovens Portugueses, àquela época, não tinham sequer acesso.

Esse era o País onde ambos nascemos! E esse puto era eu! (**)

Espero que tudo esteja a correr bem com a tua saúde.

Abraço fraterno.

Eduardo

P.S. - Podes publicar no blog com as notas pessoais que achares por bem incluir. 

__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22960: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (31): "Iscas com elas..."

(**) Último poste da série > 5 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22969: (Ex)citações (402): adeus, Fajonquito!... Abandonámos o quartel quando vimos o primeiro macaco-cão "sorridente" (dentes ensanguentados à mostra), a ser arrastado para a cozinha... (Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P22969: (Ex)citações (402): adeus, Fajonquito!... Abandonámos o quartel quando vimos o primeiro macaco-cão "sorridente" (dentes ensanguentados à mostra), a ser arrastado para a cozinha... (Cherno Baldé)


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4740 (1972/73) > O "Pifas", mascote da companhia...

Foto: © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Ninguém, civil ou militar,  português ou guineense, conseguiu até agora,  como o nosso Cherno Baldé,   descrever,  com tanta minúcia, vivacidade, humor, ironia, perspicácia e apreensão em relação ao futuro, o que foi a retração do dispositivo militar português e a ocupação, pacífica,  pelo PAIGC dos nossos aquartelamentos e destacamentosdas NT  e povoações sobre o nosso controlo, na sequência dos acordos  de Argel, de 25 de agosto de 1974, entre o Governo Português e o PAIGC. 

Com os seus 13/14 anos, ele foi uma testemunha, histórica, privilegiada, diremos mesmo única,  do que se passou na sua terra natal, Fajonquito, no dia 1 de setembro de 1974, bem como nas semanas antecedentes e subsequentes.  

Este comentário que ele deixou no Poste P22912,  obriga-nos a reproduzir, em duas ou três postes, já a partir de amanhã, o poste de antologia, P6864 (*), que por ser muito extenso e ter sido publicado há 11 anos e meio atrás, não é conhecido da maior dos nossos leitores.

Voltamos a dizer aqui que a série de que ele é autor,  "Memórias do Chico, menino e moço", já há muito merecia publicação em livro. Oxalá/Inshallah(/Enxalé ainda possa aparecer um patrocinador, individual ou institucional, que aceite custear parte ou a totalidade dos custos de produção editorial de uma obra que é já, em formato digital, no nosso blogue, um grande documento humano. 

A lusofonia só teria  ganhar com isso.  E é mais do que tempo de perdermos  a  mania do "politicamente correto" quando falamos do passado... O fortalecimento da amizade entre os dois povos, e e das relações entre os dois países, só tem a ganhar com a partilha de testemunhos "puros e duros" como o Cherno Baldé, o "Chico de Fanjanquito"... (LG)


2. Comentário de Cherno Baldé  ao poste P22912 (**)


Caros amigos,

De acordo com o plano do Estado-Maior, a entrega do quartel de Fajonquito devia acontecer no dia 02Set74 (*), na realidade esta cerimónia (fúnebre) foi antecipada um dia antes (ver a pesquisa de José Marcelino Martins sobre as companhias que passaram por Fajonquito).

O pequeno grupo (menos de um Pelotão da segunda companhia do BCAÇ 4514/72, comandada pelo Cap Mil Inf Ramiro Filipe Raposo Pedreiro Martins) que restava para a entrega,  estava com os cabelos em pé de tanta pressa para deixar a localidade.

Eu, mais um grupo de crianças (todos rafeiros profissionais) que tinha ido buscar o (seu) café da manhã, fomos dos poucos que tiveram o privilégio de assistir à rápida cerimónia que decorreu na parada, junto ao mastro da bandeira, mas fora dos arames, pois o aqurtelamento, de facto, ja estava sob o controlo dos guerrilheiros, sempre armados, que nos olhavam com aquele olhar felino de homens de mato, como que a dizerem: "Pensam que isto vai continuar, seus malandros?". 

Por algum tempo, talvez 2 ou 3 meses, ainda continuámos a comer bacalhau com arroz e um pouco de batatas dos restos que tinham ficado no depósito de géneros. Abandonámos o quartel quando vimos o primeiro babuino sorridente (dentes ensanguentados à mostra), a ser arrastado para a cozinha.

O PAIGC sabia o que estava a fazer e, para adormecer a desconfiança dos homens grandes fulas, o primeiro bigrupo que entrou na Tabanca era constituido maioritariamente de jovens e simpáticos balantas de Sul com excepçao do homem da segurança (a PIDE do partido) e do Comissário Político que eram naturais da zona e conheciam tudo e todos. Caso fossem mandingas (nossos vizinhos e arqui-rivais), certamente, a recepção não seria a mesma e muitos iriam juntar-se aos que ja estavam do outro lado da fronteira Norte.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974

 
(***) Último poste da série > 4 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22966: (Ex)citações (401): A Suécia... sempre original (José Belo) - Parte II: A cidade de Södertälje, com mais de 70 mil habitantes (,sede de grandes empresas conhecidas como a Scania, a AstraZeneca e a Alfa Laval), vai usar corvos-da-nova-caledónia para recolher as beatas do chão

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22711: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIX: As hortinhas... dos "durões"


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74 > Da Esquerda para a direita os agricultores improváveis: Furriel Machado, 1.º Cabo José Carlos e Alferes Afonso.  



Foto nº 2  >  Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74 > A hortinha do José Carlos, estrategicamente plantada junto aos nossos chuveiros aproveitando a rega automática.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa  (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O ex- furriel mil Joaquim Costa: natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem quase pronto o seu livro de memórias (, a sua história de vida), 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (*)


Parte XIX - AS HORTINHAS... DOS “DUROS” DO CUMBIJÃ


Fartos de arroz com estilhaços e ração de combate, muitos procuravam por todos os meios encontrar suplementos alimentares para aguentar melhor a dureza da guerra.

Muitos recorriam aos familiares da metrópole que lhes enviavam vitaminas, chouriços, alheiras e até maranhos! Chegava já tudo (o que chegava!) estragado, mas não se desperdiçava nada!

Outros, mais à japonesa: Ensina a pescar, não ofereças o peixe... recebiam sementes de couve, tomate, alface, etc, construindo as suas próprias hortinhas.

Talvez devesse ocultar toda esta história que pode afetar, indelevelmente, a reputação destes três duros do Cumbijã, plantando hortinhas em pleno teatro de guerra!!!… A verdade sobre a guerra colonial assim o exige!

A Horta do Machado – Cientificamente perfeita (ou não fosse ele Engenheiro Técnico Agrário). Foram estudadas as correntes de ar, a exposição solar, a humidade da terra bem como o seu PH;

A Horta do Afonso – Toda ela construída tendo por base uma brochura, que lhe enviaram de Miranda do Douro (escrito em Mirandês para ninguém copiar), com o título: Hortofloricultura para principiantes.

A Horta do Zé Carlos – Construída com base no saber popular, passado de pais para filhos, bem como das informações do Borda d’água... em Crioulo.

Reconheço que só provei as alfaces do Afonso. Estas eram colhidas já lavadas, desinfetadas e temperadas, dado a rega diária feita pelos soldados que justificavam o gesto com a falta de latrinas (justificação que também aproveitei!).

Presumo, contudo, que as melhores, tendo em conta o método utilizado, seriam, obviamente, as do Zé Carlos, por ser as que mais se aproximavam do que hoje se designa de agricultura biológica.

Quem passava ao lado destas “picuinhices” (cheguei a escrever “mariquices” que logo apaguei já que hoje é proibido e, bem, utilizar este termo na tropa…) das hortinhas era o Albuquerque que muitas vezes me convidou para comer uma sopinha feita por ele, com muita hortaliça.

Recebia frequentemente sopas instantâneas “Maggi”, enviadas com muita ternura e amor pela sua Mãezinha.

Eu ficava maravilhado com aquilo. Aquecia-se a água, com o álcool e algodão do Caetano, deitava-se para dentro do tacho (creio que uma lata) a “mistela” do saco, e, quase por milagre, apareciam couves, cebolas, cenouras... Isto em 1973, nas matas da Guiné! Só de fidalgos!

Ao Albuquerque tenho-lhe uma gratidão enorme, pois que, para além dos convites para jantar e da grande cumplicidade no comando do 1º pelotão, foi quem mais agastado ficou com as pequenas, para ele grandes, injustiças que nestes contextos sempre acontecem, assumindo as dores... e a vergonha alheia. Este homem é grande. Sempre de coluna direita!



Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCAV 8351 (1972/74 >   Os três magníficos furriéis do 1.º pelotão (mais tarde, eu  fui deslocado para o 2.º): Albuquerque (o condutor); Costa (primeiro da esquerda do banco de trás); Azambuja Martins (também no banco de trás) e o meu amigo que frequentou o Colégio Interno das Caldinhas (Santo Tirso) do 4.º pelotão. O jipe pertencia ao BENG  447.

(Continua)
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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!


Guiné >  Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole > Coluna logística: uma viatura civil, transportando cunhetes de granadas e, em cima, pessoal civil. Dizia-se que as nossas GMC, "do tempo da guerra da Coreia", gastavam "100 aos 100"... Não admira, por isso, que o consumo "per capita" mensal, de combustível, fosse de 50 kg numa companhia normal de 160 homens... Em contrapartida, o consumo diário de frescos não ia além dos 500 gramas (15 kg por mês e por homem)...

Foto (e legenda): © Humbero Reis (2006).  Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

 1. Muitos de nós gastámos  uma boa parte da nossa energia juvenil a abastecer-nos uns aos outros... Ainda periquito, participei (eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12), no 2º semestre de 1969, em diversas colunas logísticas, fornecendo-lhes a segurança, de Bambadinca até ao Saltinho (via Mansambo e Xitole, mas também via Galomaro), e fazendo chegar às companhias em quadrícula do Sector L1 os "comes & bebes", mas também os artigos de cantinha, os combustíveis, os lubrificantes, as munições, o fradamento e calçado, os medicamentos, o correio, etc., indispensável à organização, funcionamento e manutenção da máquina de guerra... Chegou-se a ter que fazer em dois dias um percurso de 60 km, com vituras civis e militares que, no tempo das chuvas, ficavam facilmente "atascadas"...

Sabe-se que uma companhia (160 homens, em média) precisava de cerca de 40 toneladas de abastecimentos por mês (880 tonelados ao fim de uma comissão de 22 meses)...  

Discriminam-se a seguir, por tipologia de abastecimento, os respetivos valores por mês (em percentagem do total e em quilogramas) (*)

(i) 38,7 %; víveres (alimentação): 14,5 mil  kg, sendo 12 mil kg de víveres secos, e 2,5 mil kg de víveres frescos:

(ii) 34,7%: artigos de cantina (cerveja, tabaco, higiene, papelaria, etc.): 13 mil kg:

(iii) 21,4%: combustíveis (gasóleo, gasolina, petróleo): 8 mil kg;

(iv) 1,6%: munições:  700 kg;

(v) 1,3%: medicamentos; 500 kg:

(vi) 1,1%:  lubrificantes (óleo para viaturas e armamento, etc.): 500 kg;

(vii) 0,7%: fardamento e calçado: 300 kg;

(viii) 0,5%: correio: 250 kg.

Total= 100% | 37750 kg (a dividir por 160 homens=235,9 kg).

O pormenor do correio é relevante: cada um de nós "consumia" em média, por mês,  c. 1,6 kg de cartas, aerogramas, vales postais, telegramas e encomendas... É (era) obra!... É(era) muito papel. 

Mas também cada homem gastava 3,125 kg de medicamentos... (que na altura, ou pelo menos entre 1962 e 1969, eram de fabrico nacional). Sem esquecer, os 1,9 kg de fardamento e calçado.

Já o consumo "per capital" mensal de munições ia para os 4,375 kg. E o de combustível subia, naturalmente, para os  50 kg, abaixo dos 81,250 kg dos artigos de cantina... e dos 90,6 kg de víveres (3 quilos por dia/homem).

Last but not the least, só tínhamos direito a pouco mais de 500 gramas de víveres frescos por dia (2500 kg mês /160 homens= 15,625 kg / 30 dias= 520 gr por dia / homem). 

Parte destes víveres chegavam por via aérea (o DO-27 que trazia o correio, também largava, com sorte, umas caixas de ovos e pouco mais, não sabendo nós o que a Intendência entendia por "víveres frescos": talvez algumas batatas, cebolas e cenouras, que  o frango e o peixe, esses,  eram congelados, ou em conservas (o peixe), o leite era condensado, os legumes (feijão, grão...) eram secos, o bacalhau liofilizado, o tomate em calda, a fruta enlatada... e a carne de vaca só em dia de anos do capitão ou da companhia... 

PS - Não vejo onde estejam, nestas contas, os materiais de construção (cimento, areia, ferro, chapa, madeira, pregos, etc.). Provavelmente os custos eram imputados ao Batalhão de Engenharia (BENG 447, no caso da Guiné). E, por outro, as necessidades eram variáveis, de companhia para companhia.

(*) Fonte:  adapt. de  Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 281 e 284. Com a devida vénia...
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22702: A nossa guerra em números  (3): mal comidos, mal pagos, mal vestidos...

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22690: A nossa guerra em números (2): Alimentação, ração de combate, "comes & bebes"... "Diziam as mulheres na minha aldeia que os homens se conquistavam pela boca. Digo eu: As guerras também" (Joaquim Costa, minhoto, dixit)

1. Em bora hora, o Joaquim Costa trouxe à baila o tema da "ração de combate" e os seus deliciosos segredos... 

Diz ele que no seu tempo apareceram umas rações com "umas  latas de chispe e feijoada/tripas que era como fazer uma refeição num restaurante com estrela Michelin" (*). 

E depois acrescenta este apontamento que vale um poema: 

"Depois de 'deitar abaixo' a respetiva ração, chegava o momento mais esperado e importante do dia, o momento do cimbalino (não confundir com o momento coca-cola!)."...

Cimbalino ?!.. Isso mesmo:

"Fechava os olhos e transportava-me para uma esplanada de praia do picadeiro da Póvoa de Varzim, a contemplar o mar... e saboreava, com estilo, o melhor da ração – o comprimido de café."

Confesso que foram momentos que eu perdi no meu tempo (1969/71)... É que sempre detestei a ração de combate nº 20 (só conheci esta)... Mas o português sabe dar a volta ao texto e, fazer entrada para o inferno, uma caminho de volta ao paraíso. Arremata o nosso "Tigre do Cumbijã":

 "Depois, era o clímax com as fumaças do cigarro oferecido por (quase roubado a) o Machado ou o Gouveia. Se fosse numa emboscada noturna, o ritual das fumaças contemplava o retirar do tapa-chamas da G3 com a introdução do cigarro no cano para um gajo não se tornar um alvo fácil de 'tiro ao boneco', por parte do IN."

Ficou tão "viciado" na cafeina, ou no seu substituto (, o tal "comprimidinho"), que hoje ainda confessa: 

"Luís, sem café fico insuportável. Sou capaz de fazer quilómetros para ir aonde servem bom café e fico possesso quando vou a um restaurante caro e me servem uma zurrapa de café." (*).

O poste já deu origem a mais de duas dezenas de comentários. E, se calhar, ainda ficou muito coisa por dizer ou confessar. Vamos recuperar comentários relativos à nossa querida "ração de combate", complementados por   alguns números para a nossa nova série "A nossa guerra em números" (**)... e para a nossa "incultura geral". 

(Mas, afinal, para que é que serve esta m... de informação ?", perguntarão alguns doutores. Utilizo o termo m..., com a sua licença, que é o que alguns dos meus mais próximos, a começar pela mimha cara-metade,  usam quando dizem: "Lá estás tu a chafurdar na m...")


2. Na realidade, houve malta que gramou mais as rações de combate do que outros: um exemplo é a CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã, que andaram muito tempo "abivacados" como os ciganos (please, sem conotação racista)... 

Diz o Joaquim Costa:

"A nossa relação com as rações de combate era muito forte. Não só levávamos com elas nas saídas para o mato, bem como no próprio destacamento que construímos do zero. Pois só tivemos direito a frigorífico a petróleo e a cozinha,  passados uns meses depois de aí [, no Cumbijã, ]nos instalarmos. 

Quem não gostou desta mudança foi o vagomestre Ferreira que abalou do hotel de 5 estrelas de Aldeia Formosa para o parque de campismo selvagem do Cumbijã juntamente com a cozinha."...

Houve, pois,  desgraçados que não souberam, durante alguns períodos da comissão, o que era uma "refeição quente", mesmo que fosse só o caldo com pouca batata e algumas verduras, liofilizadas.., para além do indispensável casqueiro. (E quando não havia farinha, recorria-se á ração de bolacha!...).

3. O Valdemar Queiroz c0nta-nos, com o seu  habitual sentido de humor, como eram as andanças de uma companhia africana (a CART 11), em que as praças, por serem muçulmanas e por lhes fazer mais jeito o patacão, eram "desarranchadas:

(...) As nossas rações de combate de 1969/70 tinha uma lata de leite com chocolate que era uma delicia. Como os nossos soldados fulas eram muçulmanos, e os senhores do 'grande rancho geral' queriam lá saber disso, mal abríamos as caixas havia trocas das latas de carne e a bisnaga de queijo (?), que diziam ser de leite de porca, connosco três furriéis, três cabos e de início o alferes, mais o homem das transmissões, pelas latas de sardinhas.

Normalmente era uma ração de combate de uma refeição, para uma operação de intervenção / segurança com regresso para jantar ou saída após almoço para segurança / emboscada noturna e regresso de manhã para o pequeno almoço. 

Quando era mais de um dia havia rações duplas, mas o normal era levar duas e dois cantis de água, que estupidamente nas primeiras saídas o cabo Rochinha levou um cantil com vinho e ia morrendo de sede. 

Nunca fizemos fogueira para aquecer a lata de carne, que ficaria mais apetitosa e inclusive evitávamos fumar para não sermos detetados à distância. Tínhamos toda a atenção para nunca deixar latas vazias no local da refeição.

Por acaso o nosso vagomestre também se chamava Ferreira e era um tripeiro chapado, que cumpria menos mal as suas funções. Com alguns problemas por, normalmente, só haver um pelotão, os homens especialistas e o capitão no quartel que lhe dava para se "prendar" e ficava descalço com as contas. O 1º. sargento que andava sempre à guerra com ele sabe-se lá porquê, dizia-lhe 'com estas contas qualquer dia o melhor é atirar-se ao Geba'.

Mas como era rancho geral para todos, desde o capitão ao soldado básico, os soldados fulas eram desarranchados, as contas sempre se normalizavam e havia comidinha variada e bem confecionada.

Também havia problemas quando saímos para emboscada noturna com regresso a meio da tarde, como tal levávamos uma ração dupla, chegávamos em cima da hora do almoço e não havia nem rancho nem a ração que já tinha marchado. Em Nova Lamego resolvíamos esse problema com uma saída de visita ao restaurante local. (...)

4. No supracitado livro do ten cor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 379 pp.), há informação interessante sobre a  alimentação, os produtos alimantares, e o seu custo, incluindo as rações de combate (RC 20) e as rações de substituição (RS 30) (vd. pp.286 e ss.).

A ração de combate propriamente dita (RC nº 20) era a que se usava em operações, fora do aquartelamento. A ração de substituição (RS nº 30) tinha mais produtos e podia ser consumida no aquartelamento, "quando não era confeccionada refeição quente" (pág. 290).

Havia havia ainda a Ração de Bolacha (140 gramas, por dia e por homem): substituia o pão quando este não era distribuido com a RC nº 20 ou a RS nº 30.

Cada ração estava pensada, para um homem, para as 24h / três refeições. 

Mas o António. J. Pereira da Costa ainda é do tempo da "ração coletiva" (!)...

(...) Recordo-me das rações colectivas para 5 homens que eram extremamente incómodas porque obrigavam a que todos comessem ao mesmo tempo e as embalagens era maiores do que as 'individuais'. Estas mais flexíveis tinham o inconveniente de serem monótonas. Assim, quem tivesse de fazer uma operação de vários dias comia o mesmo (ou quase) durante esse tempo. 

Os comprimidos de café destinavam-se a criar um sabor idêntico ao que deixava o café (de saco). Os soldados muçulmanos não comiam tudo o fosse e pudesse ser de porco (especialmente chouriço). Creio que o pessoal da Manutenção Militar e os "planeadores" e financeiros nunca se preocuparam com a monotonia da alimentação durante as operações e daí vem o nosso ódio às rações. Se alguma vez as tivessem experimentado duranma te dois ou três dias, podia ser que  as tornassem mais atraentes e variadas. Falta referir que as rações traziam uma folhinha de algo parecido com papel higiénico e que também podia ser usado como guardanapo" (...) (*)

5. Com a crise petrolífera do final do ano de 1973 / início de 1974 (, que nos lixou a todos!), os géneros alimentares escassearam no mercado e/ou subiram de preço. 

Isso teve naturalmente reflexos nos custos do Exército, que além disso viu os custos de transporte acrescidos. E teve implicações no moral da tropa... Houve produtos cujos preços dispararam brutalmente, de 1973 para 1974. Veja-se alguns exemplos de preços de produtos de venda ao público em Lisboa:

Produto / Preço de 1973  (kg, litro ou embalagem) / Subida em 1974 (%)

Arroz / 8$90 / 20%
Azeite / 35$00 / 50%
Batatas / 2$50 / 80%
Bacalhau / 44$00 / 113%
Chouriço / 45$00 / 66%
Frango / 26$00 / 46%

No quadro da pág.290, o autor, Pedro Marquês de Sousa,  certamente, por lapso, não indicou a unidade de medida dos produtos a seguir ao arroz. Para o azeite, por exemplo, deve ser o litro. Quanto ao bacalhau, sabemos que era "liofilizado",  deveria vir em caixas, tal como chouriço... O que importa a destacar é o valor (preço) considerado, pelo exército, nas contas da guerra do ultramar em 1974 (, de acordo com a célebre lista publicada no nosso blogue) (***).

Por exemplo:

Arroz:7$00;
Azeite: 48$00;
Batata: 8$20;
Bacalhau; 167$20;
Chouriço: 64$80;
Frango; 41$80...

Não admira que a malta para o fim da guerra tivesse que se agarrar à RC nº 20 ou RS nº 30 ou à Ração de Bolacha...

De qualquer modo, com a crise petrolífera e a crise económica de finais de 1973/ princípios de 1974, os preços dispararam, tornando-se cada vez complicado alimentar  "o ventre da guerra". Por outro lado, o sabemos o preço por unidade das rações em 18/7/74, em Nova Lamego (CCS/ BART 6523, 1973/74):

Ração de combate nº 20: 43$00 por unidade; havia 680 em stock;
Ração de substituição nº 30: 14$54 por unidade; havia em stock: 250 em stock.

Não há referência à Ração de bolachas... Mas ainda havia farinha (mais de um tonelada) e fermento...

Por norma e por razões de segurança, na Guiné tinha de haver uma reserva de 72 mil Rações de Bolacha, 50 mil da RC nº 20 e 20 mil da RS nº 30... (Cito o Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra de África", pág.292).

6. No fim é  caso para perguntar: "Ó Joaquim, como é que uma tropa, como a nossa, que passava a vida a queixar-se do tacho e do vagomestre e das rações de combate, podia ganhar a guerra ?! Não podia, está visto"...

Ao que o Joaquim, minhoto (e maroto), respondeu, muito sabiamente:

"Diziam as mulheres na minha aldeia que os homens se conquistavam pela boca. Digo eu: As guerras também!!!" (*)


(***) Vd. poste de  6 de fevereiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20626: (Ex)citações (362): O ventre e o patacão da guerra, segundo duas preciosas listas de junho de 1974, guardadas pelo Zé Saúde... Cada um de nós tinha direito a um "per diem" de 24$50 para comer, o equivalente na época a um dúzia de ovos da Intendência (, a preços de hoje, 4,10 euros)

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22682: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVIII: A ração de combate


Foto nº 2


Foto nº 1 > 
Ração de combate tipo E n.º 20. (Na parte de baixo lê-se: "Não deite fora o saco exterior. Servir-lhe-á para guardar os alimentos ainda não utilizados").

Foto nº 2 >  A ração de combate tipo E nº 20 continha; 1 tubo de leite condensado, 1 lata de atum, 1 lata de sardinhas, 2 latas de carne/carne com feijão /tripas, 1 lata pequena de compota, 1 lata de fruta em calda / sumo de fruta, 1 torrão nougat (amendoim). 1 pastilha de sal, uma saqueta de café instantãneo / comprimido e duas bolachas.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 3 >  Ração individual de combate ( Individual comba ration / Ration individuelle de combat... NATO approved.  Era utilizada pelas nossas Forças Armadas em 2011. Foto de José Marcelino Martins (2011), com a devida vénia (*)




O ex- furriel mil Joaquim Costa: natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem quase pronto o seu livro de memórias (, a sua história de vida), 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (**)

Parte XVIII - A Ração de  Combate


A maior parte das nossas refeições,  ao longo dos quase dois anos de Guiné,  foram Ração de Combate.

Convenhamos que eram mais saborosas e nutritivas do que o arroz com estilhaços (arroz com minúsculos bocados de carne), à moda do vago mestre Ferreira.


O arroz com estilhaços, à moda do Furriel Vago Mestre Ferreira, fez-me lembrar as noites passadas na mítica tasca em Famalicão (Vai ou Racha) cujo proprietário era um benfiquista doente, pai do extraordinário jogador de futebol dos lampiões, Vítor Paneira.

Nesta tasca entre as muitas especialidades destacavam-se os bolinhos de bacalhau preparados pela sua simpática e esmerada esposa. Uma certa noite, já bem bebidos, ao comer um dos bolinhos de bacalhau, viro-me para o Vai ou Racha (,era assim como o tratávamos) e digo-lhe: 
− Ó Sr. Vai ou Racha! Este bolinho de bacalhau está cheio de espinhas! 

Resposta pronta do homem: 

− Como assim,  se estes só levaram batatas?!

Assim nos respondia o Vago Mestre Ferreira quando reclamavamos que a carne era pouca: 
−Como assim  −  retorquia  ele  − se  só coloquei arroz na panela?!

As rações de combate,  tipo E (Fotos nº 1 e 2), tinham várias nuances, diferindo de remessa para remessa. A remessa que me ficou na memória era composta por:

  • uma lata de conserva (geralmente sardinha/cavala?);
  • uma lata com carne;
  • uma lata de leite;
  • um sumo;
  • uma pequena lata de queijo e/ou marmelada;
  • uma bisnaga (espécie de pasta de dentes) de leite condensado;
  • um pacote de bolachas;
  • e, imaginem!, um comprimido de café para desfazer na boca.

Eu, como era alérgico ao leite (por alguma razão o querem tirar da roda dos alimentos), cedia ou trocava com outro camarada por um  sumo e despachava o leite condensado que me sabia ao óleo fígado de bacalhau que me deram na escola primária (a disputa pela minha bisnaga era dura e compreendia quase todo o pelotão). Metia-me impressão a forma como “mamavam” aquela coisa.

Mais tarde surgem umas latas de chispe e feijoada/tripas que era como fazer uma refeição num restaurante com estrela Michelin.

Sempre que aparecia o chispe e a feijoada, tinhamos problemas com o furriel enfermeiro porque lhe gastávamos todo o algodão e álcool para aquecer a iguaria.

Depois de “deitar abaixo” a respetiva ração, chegava o momento mais esperado e importante do dia, o momento do cimbalino (não confundir com o momento coca-cola!).

Fechava os olhos e transportava-me para uma esplanada de praia do picadeiro da Póvoa de Varzim, a contemplar o mar... e saboreava, com estilo, o melhor da ração – o comprimido de café.

Depois, era o clímax com as fumaças do cigarro oferecido (quase roubado) pelo Machado ou pelo Gouveia. Se fosse numa emboscada noturna, o ritual das fumaças contemplava o retirar do tapa chamas da G3 com a introdução do cigarro no cano para um gajo se tornar  um alvo fácil  de "tiro ao boneco”, por parte do IN.

Por uma questão de curiosidade,  fiz uma pesquisa sobre as rações de combate utilizadas hoje nas nossa forças armadas e fiquei com água na boca (Foto nº 3):

Pois, as rações com certificação NATO e utilizadas hoje (pelo m,enos, em 2011) pelas nossas forças armadas, incluiam as seguintes iguarias:
  • Pequeno almoço: Cacau com açúcar, 18 gramas; leite em pó, 15 gramas; bolacha doce, 125 gramas; geleia de fruta, 2 embalagens de 20 gramas cada;
  • Almoço: Jardineira de feijão, 145 gramas; paté de fígado, 65 gramas; doce de maçã, 50 gramas;
  • Jantar: Massa Bolonhesa, 400 gramas; sardinhas em óleo, 115 gramas;
  • Complementos alimentares: Bolachas de água e sal, 2 embalagens de 120 gramas; sumo de fruta em pó, 2 carteiras de 20 gramas; açúcar, 2 pacotes de 10 gramas; sal, pacotes de um grama; chocolate, 2 barras de 25 gramas; chiclete, 2 unidades; caramelos, 4 rebuçados;
  • Complementos não alimentares: Comprimidos purificadores de água, 4 unidades; pastilhas inflamáveis, 6 unidades; dispositivo de aquecimento, uma chapa moldável; carteira de fósforos; talheres de plástico; saco para lixo.
Mesmo assim, reconhecendo as significativas melhorias, não trocava estas nutritivas rações de combate pelas do meu tempo. A esta ração “modernaça” falta-lhe o essencial: O cimbalino!…

(Continua )
_________


(**) Último poste da série > 11  de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22621: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVII: a minha "bigodaça”... que tanto incomodou os senhores da guerra

domingo, 21 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22024: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (25): Curso, gratuito, "online", sobre "Iniciação à Prova de Vinhos": promovido pelo Turismo de Portugal, com a duração de 2,5 horas ... mas tem de ser feito até ao fim deste mês


Guiné-Bissau > Região de Gabu  > Ponte Caium > Ao lado de um memorial aos mortos do 3º Gr Comb da CCAÇ 3546 (1972/74) ,  ainda existia em 2010, no tabuleiro da ponte, esta base de um nicho com a inscrição "Nem só de pão vive o homem. [Guiné] 72-74".

Foto (e legenda): © Eduardo Campos (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/BCAÇ 1933 > Novembro de 1968 > O alf mil SAM Virgílio Teixeira (o segundo a contar da esquerda), a ajudar a descarregar garrafões de vinho, alguns dos quais têm o rótulo do Cartaxo (presumivelmente, da Adega Cooperativa do Cartaxo).

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Nem só de pão vive o homem... Também precisa de poesia para viver (e hoje, 21 de março, até é o Dia Mundial da Poesia, um dia que   foi criado, em 1999, na 30.ª Conferência Geral da UNESCO; também é Dia Internacional das Florestas...). 

Mas não vamos falar de poesia, mas de vinho, se bem que um bom vinho seja "poesia engarrafada":  "wine is bottled poetry" [a autoria da metáfora é a tribuída a um poeta, que não era francês nem português, mas  da terra do "Scotch", Robert Louis Stevenson (1850-1894), o  conhecido autor de "A Ilha do Tesouro":  quem não o leu na adolescência ? É uma obra da literatura universal que faz parte do plano nacional de leitura, 7º ano].

Hoje o que vos "oferecenos" não é nenhum prato "especial, anti-covid", é a oportunidade de fazer, de borla, um curso de "Iniciação à prova de vinhos", disponível aqui na  plataforma Nau.


2. O que é a NAU? ...

“NAU – Ensino e Formação Online para Grandes Audiências” é um projeto online, pioneiro a nível nacional, de suporte ao ensino e formação, dirigido a grandes audiências.

(...) "É um serviço desenvolvido e gerido pela Unidade FCCN da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que permite a criação de cursos em formato MOOC (Massive Open Online Course), ou seja, cursos abertos e acessíveis a todos, produzidos por entidades reconhecidas e relevantes na sociedade, que contam com a participação de milhares de pessoas."

Integra-se na missão (nacional) de promover: (i) o desenvolvimento digital, (ii) a inclusão e a literacia digitais, (iii) a educação e (iv) qualificação da população ativa.


3. Mas vamos ao curso, que o tempo escasseia:

(i) promovido pelo Turismo de Portugal; 
(ii) é gratuito; 
(iii) tem uma carga horária de duas horas e meia; 
(iv) termina no fim deste mês; 
(v) tem avaliação e certificado de aproveitamento (respostas certas a mais de 50% do teste final); e
 (vi) é um dos cursos da plataforma NAU com maior número de matriculados (já cerca de seis mil).

Público-Alvo

Iniciação à Prova dos Vinhos é um curso promovido pelo Turismo de Portugal direcionado para profissionais do setor, estudantes e o público em geral que tenham interesse em conhecer mais sobre esta área.

Objetivos de Aprendizagem

Após a realização deste curso o formando deve ser capaz de:

1 - Descrever as etapas metodológicas do exercício de degustação;
2 - Selecionar o copo ideal e organizar a sala de prova;
3 - Explicar os principais fatores que contribuem para a correta avaliação da cor do vinho;
4 - Descrever o que são vinhos cristalinos, límpidos e turvos, estabilidade biológica;
5 - Executar os principais métodos no exame olfativo e gustativo;
6 - Descrever Potencial de persistência aromática, adstringência, causticidade e efervescência;
7 - Descrever e explicar a consistência do vinho;
8 - Aplicar a correta adequação do vinho à iguaria.

Atividades

Neste curso, o promotor pretende ir muito mais além do "gosto ou não gosto", ou do
“sou como o Jacinto, tanto faz branco como tinto”, 
conseguindo dar resposta a perguntas como:

  • Que estilo de vinho?
  • Apresenta a tipicidade do seu terroir e da sua casta?
  • Estará no momento ótimo para ser servido?
  • Como devo servi-lo?
  • A que temperatura?
  • Decantar?
  • Com que copo?
  • Será adequado ao gosto das pessoas a quem se destina?
  • Será adequado à iguaria ou ao momento?
 Fonte: Excertos de: Nau - Sempre a Aprender > Curso de Iniciação à Prova de Vinhos (com  a devida vénia...)

Para saber tudo sobre o curso, clicar aqui:

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste: