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sábado, 27 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19721: Estórias avulsas (95): Evacuado com 'um tiro no cu'... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)



Guiné >  Região de Gabu > Nova Lamego > 15 de junho de 1970 > Foto tirada no nosso Quartel, com o 'ferido', convalescente, amarelinho e magricelas, que, não fora ser vista a vala e os abrigos dos cunhetes de munições, parecia uma estância de férias.

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mais uma pequena  história, bem humorada,  do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70], que nos chegou ontem com a lacónica mensagem: "Já há tempos tive para contar este 'ferimento em combate', lembrei-me agora."




Estórias avulsas > Evacuado com ‘um tiro no cu’ 

por Valdemar Queiroz
Desde criança que sofro com problemas de frúnculos [ou furúnculos, frunchos, fruncos...]. 

Começaram por aparecer em sítios complicados: na dobra das pernas, nas axilas dos braços e na barriga. Os mais complicados, por terem sido dolorosos, foram os na dobra das pernas, que me dificultavam o andar e terem aparecido na idade 8-9 anos. Não me recordo como estes foram tratados, mas tenho grandes cicatrizes por detrás dos joelhos que sinalizam o sofrimento.

Com o tempo, houve um período sem grande ‘erupção cutâneo’, aparecendo apenas o vulgar pelo encravado da barba no pescoço, mas, no meu caso, sempre com necessidade de uma intervenção muito para além da pinça-saca-pelos: cheguei a sacar pelos encravados com mais de três cms.

Na Guiné, também, apareceu um frúnculo, e que frúnculo. Apareceu numa nádega, localizado na parte interior perto do recto. Tentei rebentá-lo espremendo, mas ou por isso ou por outra razão criou uma grande inflamação. Não foi possível tratá-lo com pomadas ou injeções contra inflamações e o oficial médico de Nova Lamego foi de opinião da evacuação para intervenção cirúrgica em Bissau. 

O fur mil enf Edmond,   da minha CART 11,  tratou de toda a papelada e lá fui evacuado em DO 27 para o Hospital Militar de Bissau [HM 241,], com um grande hematoma e 40 graus de febre.

Não me lembro de mais pormenores, só me lembro de, depois da intervenção cirúrgica, acordar na Enfermaria Geral,  rodeado de vários doentes carentes de saber o meu nome, em que sítio foi o ataque e como tinha sido ferido. 

Depois, apareceu um Sargento Enfermeiro a perguntar quem era o Queiroz. "É este aqui que foi evacuado com um tiro no cu", disseram uns que já tinham ‘arranjado’ uma história, daquelas idealizadas à ‘5ª. Rep’[, o Café Bento].

Tive que mudar para o piso superior do Hospital, para uma das Enfermarias de Oficiais e Sargentosk  ficando num quarto com mais quatro doentes, que eram todos Oficiais, um deles tinha a cara toda ferida de estilhaços e outro muito magricelas e já tinham recebido a habitual visita do Spínola.

Uma semana depois, lá regressei a Nova Lamego, com o ‘assunto’ tratado, mas com o aviso do médico cirurgião de que, mais mês menos mês, voltaria a infetar/rebentar outra vez.

E assim aconteceu, o ‘tiro no cu’ deu-me grandes chatices depois de sair da tropa, com infeções, hematomas, rebentamentos, melhoras/pioras durante mais de dois anos, só ficando totalmente curado em Maio de 1973 com uma operação na Clínica St. António, na Amadora.

Ainda agora, quando calha em conversa sobre mortos e feridos na guerra na Guiné, eu comento que, pessoalmente, a não ser ter sido evacuado com um problema dum frúnculo numa nádega, não tive problemas, há sempre alguém que diz: pois, tabém, desculpas de quem foi evacuado com um tiro no cu.

Anexo uma foto tirada no nosso Quartel, em Nova Lamego, com o 'ferido', convalescente, amarelinho e magricelas, que, não fora ser vista a vala e os abrigos dos cunhetes de munições, parecia uma estância de férias.

Valdemar Queiroz
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terça-feira, 23 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19709: Estórias avulsas (94): Coitado do meu primo Lino... ou um regresso às memórias da Páscoa da minha infância (Valdemar Queiroz)



A Casa da minha aavó Maria (que data de 1976)


A casa da minha avó Maria, em ruínas (1994)


Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem do  Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]:


Date: sábado, 20/04/2019 à(s) 01:27
Subject: Coitado do meu primo Lino


Quando chega Páscoa,  lembro-me sempre do meu primo Lino. Coitado do meu primo Lino.

A casa da minha avó Maria ficava à borda da estrada principal. Havia pouco espaço para espalhar rosmaninho e alecrim, no chão, até à estrada, mas o sacristão sabia que a casa da minha avó Maria queria receber a Cruz do Senhor na visita da Páscoa e que lá haveria umas moedas para a côngrua do senhor padre da aldeia.

A minha avó Maria já tinha posto numa pequena salva de prata uma moeda de 25 tostões (2$50) coberta com um paninho bordado. Uma pequena importância guardada para este dia que o meu primo Lino sabia lá se encontrar e antes que o sacristão a recolhesse ele tirou-a e escondeu no bolso do blusão.

O sacristão estranhou não haver nenhuma oferenda e nem sequer moedas na salva de prata e, embora, tivesse um olhar interrogativo para minha avó, permanecemos ajoelhados de olhos cerrados..

Pouco tempo depois, já o meu primo Lino corria para a Loja do tio Pinto, pra comprar lápis de chocolate e uns rebuçados de bonecos da bola. Pagar seis tostões ($60) com uma moeda de 2$50 seria a mesma coisa que agora pagar um café com 20 €, com a diferença que o Lino teria muita dificuldade em ter uma moeda de vinte e cinco tostões para gastar em guloseimas.

O tio Pinto não lhe vendeu nada e disse-lhe que queria falar com a sua avó. O Lino voltou, a correr, a pôr a moeda no mesmo sítio de onde a tirou.

A minha avó Maria nunca percebeu por o sacristão não ter levado a moeda. E eu nunca soube se o tio Pinto chegou a falar com a minha avó.

O meu primo Lino foi paraquedista na FAP e arranjou lá um problema com pena de prisão. Fugiu para as Ilhas Canárias e alistou-se na Legião Espanhola. Já lá está há mais de 50 anos.

Coitado do meu primo Lino, nunca mais soube dele.

Valdemar Queiroz
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vôvô-Zé - As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

segunda-feira, 4 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vovô Zé (1): As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 22 de Fevereiro de 2019, enviou-nos uma bonita história sobre as andorinhas. Conversa entre avô e netos que nos devia sensibilizar a todas a preservar a natureza.


Histórias do vovô Zé

As nossas andorinhas

https://youtu.be/QrrawrmJkOM

Passados mais de setenta invernos, lá vinha de novo mais uma ansiada primavera. Das coisas boas do inverno pouco havia a recordar. Não fora a quadra natalícia, por excelência a dos dias de maior aconchego e afecto familiar, e apenas recordaríamos a chuva teimosa, o frio penetrante e os dias pequeníssimos daquela estação anual.

A primavera era anunciada com a chegada das andorinhas e o friorento vôvô-Zé, sempre ansioso, passava o tempo a olhar o céu na expectativa de as ver chegar. Ele sabia que todos os anos por volta do dia 20 de Março elas se instalavam no seu espaço, para dar início a mais um admirável ciclo das suas vidas. Para ele, até parecia que, com a chegada das andorinhas, lhe estava garantido mais um ano de vida. Nos últimos anos, talvez devido ao aquecimento global da Terra elas, por vezes, têm vindo mais cedo uns dias. Foi o caso daquele ano em que coincidiu a chegada da primeira andorinha, na última semana de Fevereiro, precisamente com o dia de mais um aniversário do avô Zé.
Mal os netos chegaram para a festa do aniversário, já o avô babado lhes contava a grande novidade:
- Já chegou a primeira andorinha, a exploradora! Acordei cedo a ouvi-la chilrear poisada no fio eléctrico que passa diante da janela do meu quarto. Ela não se calou enquanto não me viu feliz a dar-lhe as boas-vindas.
- E as outras, vôvô-Zé, quando chegam? – Perguntava o pequeno Dudu (de 6 anos). Logo ele a quem o avô costumava levantar várias vezes para, pasmado de curiosidade, espreitar os ninhos.
- Esta apenas vem cá dormir mas não todas as noites. Penso que vai ver se encontra locais disponíveis para os demais familiares. Alguns deles devem ser bem longe daqui. No ano passado, tivemos aqui cinco ninhos com cinco filhotes, excepto um que teve só quatro. Fazendo as contas, vemos que a exploradora vai ter muito que fazer. O que lhe vale é que devem chegar para a ajudar mais duas ou três dentro de poucos dias.


Mais interessada em pormenores, a Kika (de 9 anos), uma excelente aluna na escola primária, parecia querer enriquecer os conhecimentos que já possuía nessa matéria. E questionava:
- Mas, ó vôvô-Zé, assim já devíamos ver mais andorinhas. Onde andam as outras?
- Olha, tenho a certeza absoluta que temos descendentes daqui da nossa Casa dos Aidos, espalhados pelo norte de Portugal. Às vezes penso até que também estão na Galiza. Há já uns anos, fiquei a dormir numa pensão em S. João da Pesqueira e, de manhã, querendo admirar melhor aquela lindíssima paisagem duriense, subi a um ponto alto da povoação, que ficava dentro de uma vinha. Fiquei tão satisfeito que não queiras saber. Um pequeno grupo de andorinhas, a chilrear, fez círculos sobre mim, tal e qual como me costumam fazer aqui no quintal, quando chegam. Fiquei convencido de que elas me conheciam.

Entusiasmados com o tema, seguiram para o alpendre para verem se a andorinha lá estava. Até as gémeas Rita e Carmo, com três anitos apenas, lá seguiam os mesmos passos curiosos.
- Aquele ninho continua destruído. Já não me lembro o que aconteceu – Observou o Dudu.
- Foi devido a um ataque do milhafre. Não foi, vôvô-Zé? Lembrou a Kika.
- Sim, foi num dia em que ouvimos as andorinhas a gritar muito. Lembro-me que o Malhadinho saltou de repente dos meus joelhos e correu para a varanda. Ao segui-lo, ainda vi o milhafre a fugir. Descemos ao alpendre e encontrámos três filhotes novinhos, ainda com as penas pequenas. Haviam caído dois, ali, dentro da gamela do moinho eléctrico e um, aqui, no chão.

Ao ver a muita atenção dos quatro irmãos, filhos da Ana e do Abel, o avô continuou:
- Quando peguei nesses filhotes, os pais choravam e pediam muito para que eu tivesse muito cuidado com eles. Vi que um dos ninhos estava vazio, arranjei-o com as palhas mais finas e mais fofinhas, caídas do seu e coloquei-os lá dentro. E eles, caladitos, lá ficaram muito quietinhos. No ano seguinte, quando as andorinhas haviam chegado, fui vê-las pousadas sobre os arames, antes de decidirem começar a trabalhar. Algumas aproveitaram para me olharem atentamente, talvez para saberem se estava a ficar muito velho ou verem se estava doente. Porém, duas delas fugiram cheios de medo, a gritar devido à minha aproximação e eu afastei-me para não as incomodar. Já no jardim, vejo-me sobrevoado pelas quatro andorinhas que quase me tocaram. Para mim, fiquei com a certeza de que os pais já tinham explicado aos filhos que fora este velhote quem os salvara no ano anterior. Acenei-lhes com um gesto de simpatia e elas lá foram subindo aos esses e a chilrear de satisfação.
- Mas, ó vôvô-Zé, não foram três as que salvaste? – Observou a Kika.
- Sim. É natural que uma tenha morrido. Talvez, aquela que caiu ao chão. Também te digo que muitas não aguentam as grandes viagens que fazem até África. Por outro lado, são muitas as que morrem por comerem mosquitos envenenados por alguns produtos químicos que são espalhados para desinfecção dos campos e para limpeza das ruas. Antigamente só se usavam adubos caseiros e produtos orgânicos, biodegradáveis e bastante seguros.

Entretanto, chegaram as duas netas de Vila do Conde, filhas da Beatriz e do Zé-Tó. Após algum entusiasmo neste reencontro, já se ouve a Inês de 12 anos (uma intelectual em potência), a neta mais velha, a explicar:
- É verdade. Há dias a minha professora esteve a explicar várias coisas sobre esse assunto. Agora, procura-se gananciosamente a reprodução intensiva através de produtos sintéticos que até são nocivos para a saúde e para a natureza. Por sua vez, os nossos governantes, na ânsia de mostrar as ruas e caminhos limpos, também aplicam pesticidas desmesuradamente. Com as chuvas, dá-se o arrastamento desses produtos para os rios e fontes, provocando o seu envenenamento e, também, o desaparecimento dos peixes e de outros seres vivos úteis à natureza.

A irmã Francisca de 10 anos (a super- activa), sempre agarrada à Kika, também ajudou no tema e lembrou que na Casa do Couto, do avô David e da avó Maria José, de Barcelos, também existem ninhos de andorinhas.


Nesta Casa dos Aidos, onde nasceu a avó Gilda, ela lembra-se bem do alpendre com mato para fazer estrume e dos aidos do gado à volta, no rés-do-chão da casa. Talvez devido às moscas ali produzidas, esse tipo de casas de lavoura, sempre tinham ninhos por perto, debaixo das varandas. Agora, que o gado já não existe, nem os matos no alpendre (cimentado), as andorinhas continuam a vir fazer os seus ninhos. Pensamos que isso se deve ao seu sentido de posse, de defesa das suas tradições e da sua afectividade à casa dos seus antepassados. Normalmente, elas são merecedoras da nossa grande admiração e de toda a simpatia. Diz-se, até, que as casas com andorinhas são abençoadas. Muitas dessas casas já não as têm, porque alguém as perseguiu ou mal tratou. Pois, aqui, elas mandam. Sim, elas é que são donas desta casa. Se esta casa tem mais de duzentos anos, imagine-se quantas gerações delas, já cá passaram. E se elas vivem em média cerca de 7 anos, teremos mais de 30 gerações em equiparação, o que, transferido para a nossa média de vida de 70 anos, daria qualquer coisa como 2.100 anos!


Em Julho e Agosto, as andorinhas novas sobem para apanhar os ventos marítimos. É o período de preparação/musculação para poderem seguir a grande viagem continental. E à medida que a data de partida se aproxima, elas reúnem, para organizar essa grande viagem colectiva. Primeiramente reúnem aqui a sua família mais chegada, umas 25 ou mais e, depois, umas 80 a 100. Talvez, já com os familiares mais afastados, que vêm descendo do norte. Depois, juntam-se muitas centenas junto da igreja matriz, ocupando extensões enormes de fios eléctricos, durante cerca de dois dias.


O vôvô-Zé ainda acrescentou:
- Já me tenho levantado da cama para vê-las em reunião madrugadora, a planearem a sua longa viagem. É impressionante a sua educação e a disciplina democrática que elas nos mostram. Estão todas sobre os arames da antiga ramada e voltadas para o centro do alpendre. Só se ouve uma a “falar” que, por sua vez, “dá a palavra” a outra e… a outra. Um dia ouço algumas a “avisar” de que está alguém a espreitar. Mas, a chefe deve tê-las acalmado, informando-as de que eu não lhes faria mal algum. Fui buscar a máquina e quando procurava uma boa posição para as fotografar, elas partiram e devem ter suspendido ou terminada a assembleia.
- Mas, ó vôvô-Zé, por que é que elas vão embora, se nós não lhes fazemos nenhum mal?- Lamentava-se o Dudu.
- Porque com o frio do inverno não existem moscas e mosquitos e elas precisam de comer muitos. Por isso, vão para a África passar o nosso inverno e que lá faz muito calor.



Já voltado para os filhos, nora e genros que se juntaram, o vôvô-Zé comentava:
- Em Setembro, podemos continuar a sentir o clima agradável e a ouvir os vários pássaros teimando no prolongamento dos dias felizes do Verão. Porém, quando as andorinhas partem, parece que tudo muda e que já nada é como dantes. Sinto um ligeiro calafrio que se irá acentuar nos meses de inverno e que só me “ressuscitará” a partir de finais de Fevereiro, não por celebrar mais um aniversário mas, isso sim, por ver chegar de novo as nossas andorinhas.
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Nota do editor

Último poste da série de16 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19105: Estórias avulsas (92): Triste memória de guerra (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19105: Estórias avulsas (92): Triste memória de guerra (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)



 

1. Em mensagem do dia 11 de Outubro de 2018, o nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos esta memória da sua passagem por terras da Guiné.




Triste Memória da Guerra

O Luís sentiu o impacto do projéctil que lhe rasgou a carne, com o corpo a sangrar, fez um esforço e rastejou até ao sulco da picada; sem se dar conta da gravidade da lesão, fez um sinal ao Vilaça mostrando o ombro ensanguentado. Mas o Vilaça, percebendo que que o não podia safar do sofrimento, faz dois tiros certeiros sobre os três guerrilheiros que tentavam aproximar-se perigosamente, reduzindo o seu potencial de fogo sobre os companheiros que ficaram mais expostos às balas das armas inimigas. O Luís continua resignado à sua sorte, deitado de costas, sentindo o corpo perder a seiva… começa a ver sombras no ar como se fossem grandes pássaros a desafiá-lo para voar.

Ao olhar na sua direcção, vejo o camuflado encharcado com o sangue que brota do ombro esquerdo e da barriga, Uma saliva espumosa sai-lhe pelos cantos da boca. Olha-me com a certeza de que não escapará desta… no meio do capim silencioso, sente a vida a escapulir-se sem que eu nada possa fazer para a segurar.

A secção do Ventura foi no encalço dos inimigos e conseguiu desalojá-los do esconderijo que nos foi fatal. Terminados os disparos, os socorristas apressam-se a estancar as hemorragias e a tapar as feridas com compressas. O Armindo injecta coagulantes e coraminas nos dois corpos perfurados pelas balas. É uma luta tenaz contra a morte… e começa a ser desesperante o nosso desassossego. As compressas já não conseguem segurar o sangue que se esvai irremediavelmente… até à última gota!

Ainda tive tempo de olhar na direcção do Pintinho… mas só vi os restos mortais dum corpo esfrangalhado, ali encostado ao tronco do cajueiro! E balbuciei:  
“ Não posso esquecer que foram os teus olhos e a tua destreza que me livraram das balas mortíferas. A tua morte foi trágica, o teu espírito brincalhão já não está entre nós… mas lá, onde te encontres, também poderás apanhar galinhas… até que um dia nos encontremos na eternidade, nem que seja para saborear o churrasco que prometeste. Entre as sombras do cajueiro, já não podes olhar em profundidade para dentro da alma dos que se riam como o teu jeito de palhaço. Olho o teu corpo disforme e vejo um vazio incrível dentro do camuflado! Em breve serás devolvido ao pó da terra e os teus pais já não vão poder dar-te mais rebuçados. Só tenho medo que te promovam a herói e te abandonem em qualquer campa desta terra que não é a tua”.

Com esta maneira de movimentar os neurónios, tento arejar a mente dos combatentes desprezados, para que não definhem com o abandono…

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18897: Estórias avulsas (91): "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... Lembranças da praia de Mil Fontes, onde passei as férias de agosto de 1983 a 1999... (Valdemar Queiroz)

domingo, 5 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18897: Estórias avulsas (91): "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... Lembranças da praia de Mil Fontes, onde passei as férias de agosto de 1983 a 1999... (Valdemar Queiroz)


Portugal > Odemira > Vila Nova de Mil Fontes >  Praia  de Mil Fontes > Pertence à freguesia do mesmo nome, concelho de Odemira, distrito de Beja, situando-se na margem norte da foz do rio Mira. Encontra-se inserida no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. (Vd. Wikipédia)


Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Valdemar Queiroz  [ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70):

Data: 3 de agosto de 2018 às 22:09
Assunto: Tempos de Férias


Como estamos em tempos de férias e haver sempre recordações desses tempos, cá vai uma estória passada em Vila Nova de Milfontes.

Passei férias em Milfontes de 1983 a 1999, empre no mês de Agosto.

Em 1983, Vila Nova de Milfontes era uma pequena povoação, só com as ruas principais alcatroadas.  Uma pasmaceira, como os seus habitantes diziam. Havia poucos habitantes e pouca actividade para se arranjar trabalho. Uma pequena actividade piscatória e pouco mais. No verão sempre apareciam alguns banhistas, principalmente os que se dedicavam ao campismo selvagem. Havia dois ou três restaurantes e o mercado tinha poucos produtos para venda. Fora o campismo, acampava-se em todo o lado, modalidade de que eu nunca fui grande amante.

Havia já alguma oferta de casas para aluguer. Alugava-se o mês inteiro, os donos iam viver para anexos ou vice versa, havia anexos com melhores condições que as casas, e ainda nos ofereciam polvos, fruta e batata doce. Havia grande dificuldade em lá chegar, a não ser com carro próprio, só havia uma carreira de manhã e à tarde entre Milfontes - Sines e julgo que para o Cercal.

Para se ter uma ideia da pasmaceira, em Maio de 1983 fui lá para arranjar e marcar alojamento para as férias desse ano e desde quase a entrada da povoação até ao farol no limite e junto à praia apenas me cruzei com duas pessoas.

Mas, partir de 1984 e com a rede de Expressos RN, de Lisboa à Zambujeira do Mar, tudo começou a mudar.

Agora cá vai a estória. Eu, para ser bem tratado,  tinha por hábito dizer "depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... e quando fui com o meu amigo Fanã beber um medronho a um cafezinho, junto da barbacã do Castelo, disse para o empregado: "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal".

Talvez por usar cabelo curto, bigode e sobrolho carregado o homem serviu-nos
e garantiu: "Wste é do melhor,  bebam outro que este pago eu". Notei que no dia a seguir era olhado/cumprimentado por gente lá da terra, duma maneira diferente..

Ao jantar fui como habitualmente ao mesmo Restaurante / Taberna, no Rossio, que tinha que se ir cedo para arranjar lugar e peixe grelhado. Quando não é o meu espanto,  o empregado, marido da filha do dono da casa, disse que tinha mesa reservada para mim.

Conversa pra lá, conversa pra cá, o empregado disse-me que já tinha concorrido prá Polícia mas por causa da vista foi reprovado (usava uns óculos com lentes fundo de garrafa). "Pois é, por causa da vista",  disse-lhe eu. "Mas o meu capitão é que podia dar um jeitinho",  disse ele. "Espere lá, primeiro não sou capitão e segundo não tenho nada com a Polícia". Ele não desarmou: "Mas é da Guarda Fiscal e quando andam à paisana dizem todos o mesmo para não serem conhecidos".  Retorqui: "É, pá, desculpe mas está a fazer uma grande confusão"...  Paguei e fui dar uma volta.

No outro dia dirigi-me ao Posto da Guarda Fiscal, que ainda funcionava como tal, e expliquei ao Cabo o que se estava a passar. O homem olhou bem para mim: "Pois,  e deixe que lhe diga...parece mesmo!"...
Julgo que o Cabo andou ou mandou dizer a toda a gente que eu não era nada capitão, mas mesmo assim não me safei e durante mais uns bons anos notava que havia alguns homens da terra dizendo uns para os outros: "Lá vem o capitão  que arranja trabalho na Guarda Fiscal".

Boas Férias
Valdemar Queiroz

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sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18893: Estórias avulsas (90): o meu amigo da Cheret que foi substituir um velhinho que tinha sido apanhado à mão mas que acabou por 'fintar' o PAIGC (Virgílio Teixeira)

1. Mensagens de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) [natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já cerca de 7 dezenas de referências no nosso blogue]:

Data: 2 de agosto de 2018 às 17:44
Assunto: CHERET

 Luís, lamento o incómodo das férias, mas eu não me dou sem fazer nada, e não gosto de praia, e não tenho quintas. (...)

Ontem estive aqui na biblioteca [em Vila do Conde] onde passo a maior parte do tempo a escrever, não gosto de estar em casa fechado, e encontrei um amigo de longa data e até já falei dele, há poucos dias.

É um rapaz da minha idade, formado antes de ir para a tropa em Engenharia Electrotécnica, opção de Tecnologias Avançadas, mas diz-me que raramente vai ao computador, e o telemóvel dele é mesmo igual ao meu, o mais simples Nokia do mercado, com teclas.

Veio viver para Vila do Conde, mora agora aqui perto, e vai frequentar a Biblioteca, mas só para ler. É um tarado em leituras, e não precisa nada disto porque é de boas famílias. E diz ele que a sua nova companheira - deve ter tido 10 casamentos e 100 companheiras - vive aqui, e ele mudou-se do Porto para cá, é um do grupo do Café Cenáculo, Campo Lindo, Porto 1961.

Ele é um óptimo rapaz, mas deve ter uma 'panca' qualquer que desconheço. É muito inteligente. Fez a tropa mais ou menos na mesma época que eu, esteve na Trafaria e a especialidade dele, não sei explicar bem, mas era o responsável pela segurança das Transmissões, e vivia num bunker no QG de Santa Luzia. Encriptava e desencriptava, não sei bem. Perguntei-lhe agora finalmente qual era a sua missão na Guiné, estava então no CHERET - perguntei-lhe o que era aquilo e ele também não sabia decifrar o que era, fiz umas pesquisas, incluindo o blogue e lá encontrei.

A 'panca' dele começa logo por aqui. Foi mobilizado para a Guiné, casou-se - a primeira vez - com uma miúda linda e jeitosa, que vim a conhecer na Pensão da Dona Berta em Bissau. 

Em vez de viajar de barco por conta da tropa, e porque tinha posses, foi mesmo na TAP e lá chegou 6 dias antes do navio, que ele nem sabe o nome. Quando chegou ao aeroporto com a mulher, em Lua de Mel, perguntaram para onde ia ficar, ele conhecia vagamente o nome do Grande Hotel e lá deu essa morada, e esteve lá um ou dois dias. Depois passou para a Dona Berta, ficava mesmo na Avenida do Império , Praça da República que ia dar à Parça do Império], ao lado do Bento e da Catedral de Bissau, tinha vistas do 1º andar privilegiadas.

Foi passeando e conhecendo a terra, Bissau diga-se, nunca se dirigiu ao QG, ele andava em Lua de Mel, e o clima queima!

Estive uma ou duas vezes com eles, e depois devo ter ido para a minha terra, ele nem sabe em que mês ou dia foi lá parar, passa-lhe tudo ao largo. E assim os dias foram passando, uma semana, duas etc, estava ele um dia com a mulher, no cais do Porto de Bissau sentado a olhar o mar. Ao lado estava outro militar, já velhinho, a olhar também para o mar a ver se chegava o navio com o seu substituto, pois já deveria ter vindo. E contou ao meu amigo que estava ali sem saber o que fazer pois o gajo que o vinha substituir desaparecera, estava dado como desertor. Mas qual é a função dele ali? Era da CHERET, o homem que ia substituir, Com uma calma ele, o meu amigo, lá disse então: "Sou eu mas nem me lembrava o que tinha de fazer"....

Agora é só para ver o que lhe foi acontecendo, era uma missão em que só poderia andar de avião, não era permitido viajar de estrada nem por rios. Foi parar a Catió numa LDM, e depois despachado para Piche, mais ou menos na altura do desastre do Cheche [, que foi em 6 de fevereiro de 1969], e do grande ataque da guerrilha em Piche.

Depois foi evacuado para o HM 241 em Bissau, para a Psiquiatria em Maio de 69, no mesmo mês e datas onde eu também lá estava mas não nos cruzámos, veio evacuado com outro amigo nosso que também estava na Psiquiatria, chegaram a Lisboa e em vez do Hospital da Estrela foram passar uns dias ao Algarve...

Isto talvez tenha pano para mangas, deve ser um caso interessante. Diz algo
Um Ab,
VT

Data: 2 de agosto de 2018 às 17:44
Assunto: CHERET

Voltando ao tema da CHERET, já sei que se chama... "Chefia do Serviço de Reconhecimento das Transmissões2!

Como escrevi depressa, esqueci algumas coisas. Aqui vai a versão, corrigida, da história:

Um elemento da CHERET, um alferes miliciano, numa coluna, em que não devia ir, foi capturado à mão e levado para os santuários do PAIGC.

Feita a lavagem ao cérebro, eles lá sabiam ou souberam a missão secreta dele, e apertaram o dito coitado Cheret.

Ele,  pelos vistos,  embrulhou bem os gajos do PAIGC, trocou-lhes as voltas, pelo que passado pouco tempo todas as comunicações e transmissões do PAIGC eram interceptadas pelas nossas tropas, por qualquer um, não precisavam de ajuda para desencriptar, não sei se é este o termo.

Daí a proibição deste pessoal deslocar-se a pé ou em coluna por terra ou via marítima, só mesmo aérea.

Pelos vistos,  mais tarde a este colega meu [, que enconteri em Bissau e me contou esta história,]  andou sempre em todos os meios menos avião. Ele era tão 'apanhado'  que nem sequer andava de arma, explicou que era muito pesada, não sei o que aconteceu, tenho de explorar bem isto. Mas só o faço se isto tiver algum interesse bloguístico e não sei se ele quer contar mais, mas posso sempre pressionar.

Além de vários problemas na vida dele, e sempre foi professor universitário, com as sucessivas mudanças de mulheres, um filho dele acabou por se suicidar. Quando me contou, nem sabia o que dizer.

Esta função para mim era desconhecida, são aqueles que estão fechados a 7 chaves.

Um Ab, e boas férias, de vez em quando vou chateando para acalmar.
Virgilio Teixeira


2. Comentário do editor LG:

Virgílio, como deves imaginar, nos meses de verão (julho e agosto), em que o pessoal vai a "banhos", o blogue anda muito mais calma, tanto em termos de postes publicados como de acessos e comentários. Pelo que histórias como aquela que  acabas de contar, serão sempre bem vindas... Não precisas de identificar o camarasda, mas dá mais detalhes, se possível, para a a história ser credível: poe exemplo, como é que o 'velhinho'  do PAIGC, depois de ter sido apangado à mão e depois de os ter 'fintado' ?  Deve haver registos de um alferes miliiciano, para mais da arma de transmissões, apanhado à unha pelo PAIGC... Vê zse sabes exatamente quando e onde...

Vou comer uma sardinhada com uns amigos, como uma por ti e bebo um copo à tua saúde (e à saúde do teu amigo, agora reencontrado). Aqui, na Lourinhã, podias vir à praia e ficar na biblioteca, a ler e a escrever... Sobre a aguardente DOC da Lourinhã, tens aqui os  sítios dos pordutores: só há dois, a Adega Coperativa da Lourinhã e a Quinta do Rol... Os preços são variáveis (e altos demais para a minha carteira...) mas o produto é excelente, garanto-te: 

"Durante mais de duzentos anos, as casas produtoras dos melhores Vinhos do Porto beneficiaram da Aguardente de Lourinhã para produzir os seus afamados vinhos licorosos. Nos últimos trinta anos com o apoio científico da Estação Vitivinícola Nacional sediada em Dois Portos foi testada e confirmada a sua superior qualidade, a qual apenas encontra paralelo, a nível europeu nas aguardentes francesas das regiões do Cognac e do  Armagnac".

Há uma confraria que faz a promoção deste produto, e de que faz parte a minha mulher: a Colegiada de Nossa Senhora da Anunciação da Lourinhã... Eu vou aos jantares e festas deles (e delas), e vou aprendendo alguma coisa com estes "confrades"...
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segunda-feira, 2 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18803: Estórias avulsas (89): A noite mais longa da recruta… e não só (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG do STM/QG/CTIG)

1. Em mensagem do dia 17 de Junho de 2018, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), revive os tempos inglórios da sua Recruta do CSM na Escola Prática de Cavalaria de Santarém.


A noite mais longa da recruta… e não só

Carlos Pinheiro

Tínhamos assentado praça no dia 10 de Outubro de 1967 na EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, em conformidade com a Lei do Serviço Militar Obrigatório.
O país estava em guerra em três teatros de operações, envolvendo todos os meios humanos e materiais possíveis, Angola, Moçambique e Guiné. Mas também tinha tropas destacadas em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e até em Macau e em Timor, tudo isto depois do desastre da Índia, pelo que o destino da juventude daquele tempo estava traçado.

Na noite desse dia 10, depois de nos terem sido indicadas as instalações, nomeadamente a caserna com sessenta camas, mais uma do plantão, dois chuveiros, duas sanitas e meia dúzia de lavatórios, e de nos ter sido fornecido o fardamento, depois de termos ido ao refeitório tomar a 3.ª refeição, fomos a esse mesmo refeitório passar uma parte importante do serão para aprendermos o que era a tropa. Foi uma conversa aberta e franca onde ficámos a saber, minimamente, quem é que mandava e quem é que tinha que obedecer. Ficámos a saber também que o porta-voz do Comando do Grupo de Esquadrões era o Tenente Sentieiro que ali fez todas as apresentações.

- Ficámos saber que só podíamos sair do Quartel depois de sabermos bem todos os distintivos dos vários postos da hierarquia militar para evitar que fossemos fazer continência ao porteiro do Hotel Abidis, que tinha uma farda parecida com a de um Marechal.

- Ficámos a saber que aquela coisa, onde estávamos a depositar a cinza e as beatas dos cigarros – naquele tempo podia-se fumar em todo o lado – a servir de cinzeiro, de manhã, ao pequeno-almoço, era, como se fosse, uma chávena de Vista Alegre para o café com leite e ao almoço era, como se fosse, um copo de cristal para o vinho, para a água ou para a água com algum vinho.

- Ficámos a saber que tínhamos que comer pão duro todos os dias porque, apesar da Escola receber todos os dias pão fresco da Manutenção Militar do Entroncamento, havia sempre dois dias de pão de reserva para evitar qualquer imprevisto que prejudicasse o nosso direito ao “casqueiro” diário.

- Ficámos ali a saber que passávamos a ser um número e mais nada. Mas foi útil essa conversa.

Logo no dia 11, pela manhãzinha, pela fresca, formámos na parada e marchámos para a terraplanagem, no quartel Sede, onde começámos a tomar contacto com a vala, com as barreiras, com a ponte interrompida, com o galho, com o pórtico, com o slide, e acima de tudo com a lama constante e em todo o lado da tal terraplanagem.

Durante a recruta tivemos de tudo um pouco. Muitas instruções nocturnas pelo Monte do Zé Morto, pelas Ómnias, deslocações diárias pelos arredores da cidade, sempre a marchar com a cadência militar, fosse a subir a Calçada do Monte, fosse a caminho da Carreira de Tiro, fosse a caminho da Escola, a caminho do Campo da Feira, fosse para onde fosse.

Logo no terceiro dia de tropa, uma quinta-feira dia 13, fomos confrontados com uma situação tão inesperada como impensável. Estávamos, como disse, no terceiro dia de tropa. Tínhamos regressado da terraplanagem e tínhamos dez minutos para tomar banho, fazer a barba, fazer a cama e apresentarmo-nos impecavelmente fardados na Parada, mesmo que enlameados mas com as botas devidamente engraxadas e a luzir e os talabartes também a brilhar. Nesse entretanto, eis que um camarada nosso, que terá conseguido tomar banho, ao fardar-se em cima da cama terá dito, mais ou menos isto:
- Eh malta, ninguém faz as camas, não temos tempo, não somos escravos.

Só que na Caserna estava um Cabo Miliciano, de Sargento de Dia, que trocou algumas palavras, mais ou menos azedas, com o tal instruendo. Mas tudo acabou, melhor ou pior, todos nos apresentámos na formatura dentro dos tais 10 minutos. Então, o Oficial porta-voz, dirigindo-se às forças em parada, ordenou que o tal instruendo saísse da formatura e acompanhasse o Sargento da Guarda. E o nosso camarada lá foi e esteve preso até Domingo, em prisão particular, tendo na segunda-feira saído à Ordem a sua detenção durante 18 dias, o que lhe deu 54 dias de dispensas cortadas e assim impedido de ir a casa durante esse período. Mas esse nosso camarada aproveitou o tempo de semiclausura e preparou-se para ir fazer duas cadeiras que lhe faltavam, dum bacharelato, num Instituto qualquer em Lisboa. E fez as cadeiras e passou para o COM. Mais tarde foi parar à Guiné, como eu fui, como foi o tal Cabo Miliciano e também o porta-voz. Penso que nunca nos encontrámos todos na Guiné mas eu encontrei, separadamente, o nosso camarada, já como Alferes Miliciano e o referido Cabo Miliciano, já como Furriel. Coisas da vida militar daqueles tempos.

Não foi só a última noite da recruta que foi longa, como lá mais para a frente referirei, mas ali tudo era longo. Os dias, as marchas, as noites, as instruções, especialmente na terraplanagem, as noites a engraxar as botas de sair e os talabartes para as revistas, sempre longas e rigorosas, o rigor da disciplina, a espera pelo fim-de-semana quando havia e só esse é que era sempre curto. A Cavalaria não era melhor nem pior do que as outras armas. Era diferente.

Um dia ao subirmos a Calçada do Monte, a descer ia o Major Duarte Silva, Director da Instrução, a conduzir o seu jeep Austin e porque o nosso Comandante de Pelotão não mandou olhar à esquerda, tivemos um fim-de-semana diferente. Ordem unida no sábado das 10 às 12 e das 15 às 17 e no domingo o calendário repetiu-se.

Foi durante a recruta que aconteceu a tragédia das grandes inundações da grande Lisboa, concretamente no dia 25 de Novembro de 1967, onde morreram largas centenas de pessoas e ficaram desalojados alguns milhares. Não tivemos intervenção directa nesta tragédia, mas muitos dos nossos camaradas que viviam na zona de Alverca, Carregado e Vila Franca, foram atingidos pela tragédia e chegaram com atrasos significativos naquele princípio de semana e contaram-nos episódios terríveis.
Nesse fim-de-semana, a Especialidade de Atiradores de Cavalaria, que tinha entrada no 3.º Turno, estava na semana de campo e também sofreu as consequências daquela intempérie.

Também fizemos a nossa semana de campo com tempo horrível. Na primeira noite a água chegou a congelar nos cantis que tínhamos à cintura. Nunca montámos tenda porque o “inimigo” estava por ali. Passámos frio, mas frio a sério, tudo para lá da Chamusca. Sempre a pé, a marchar, a andar e até a correr.
Mas algo de diferente parecia estar guardado para o fim da recruta, e estava mesmo.

Foi na última noite. No outro dia era o Juramento de Bandeira, mas o meu pelotão teve que cumprir nessa noite mais uma instrução nocturna visto que tinha faltado, com a devida autorização, a uma dessas instruções, dias antes quando nos juntámos, com o Comandante do pelotão, o Aspirante Maciel, para festejarmos o aproximar do final da recruta. E as contas tinham que se acertar. Não podia haver um pelotão beneficiado e não fazer aquela instrução que estava no calendário. E nós fizemos. O pior foi o resto.
A instrução correu bem dentro das normas estabelecidas e regressámos ao Destacamento da EPC, o nosso Quartel, já depois da uma da madrugada. Estava tudo em silêncio e nós respeitámos todos que estavam a descansar. Porém, quando chegámos ao nosso “quarto particular” com 60 camas – dois pelotões – e nos preparávamos para descansar, verificámos que as nossas camas estavam todas armadilhadas, à espanhola, trabalho efectuado certamente pelos camaradas do outro pelotão.

O meu pelotão no campo, mais propriamente nas Ómnias
Foto de autor desconhecido – Direitos reservados

Começou então a barafunda. Cabeçalho para ali, cabeçalho para acolá, alguns iam-se abrindo e espalhando a palha pelo chão, mas eis quando um desses cabeçalhos bate num pequeno vaso de flores que havia por cima da cama do Plantão, e o tal vaso partiu-se. Foi uma chatice. O Plantão levantou-se, fardou-se e desceu as escadas e foi participar o sucedido ao Oficial de Dia. Passado pouco tempo, com a confusão a complicar-se, já com colchões a voarem e a palha a espalhar-se cada vez mais pelo chão da caserna, entra o Oficial de Dia que ordenou que os responsáveis se apresentassem imediatamente na Parada. A barafunda acabou, mas ninguém se mexia para se apresentar na Parada. Então, três voluntários encheram-se de coragem e lá foram. Mas o Oficial exigiu que eles fossem buscar os outros responsáveis, porque aquilo que viu não era “trabalho” só de três instruendos. E assim, dos tais sessenta, viemos trinta e seis em cuecas, uns descalços, outros em botas e foi-nos tirado o número para não haver mais confusões. Voltámos à caserna e lá limpámos, impecavelmente, aquilo que parecia um palheiro mal organizado. Quando nos deitámos já seriam mais de quatro da matina e a Alvorada tocou à hora regimental.

O dia começou como habitualmente com a formatura geral, a toque de caixa, para o pequeno-almoço e de seguida subimos à caserna para nos barbearmos e fazermos a higiene pessoal possível, visto que só havia dois chuveiros para sessenta homens e o tempo estava cronometrado como acontecia todos os dias.

Aula técnica na Parada do Destacamento da EPC com o Comandante do Pelotão, Aspirante Maciel, a supervisionar os resultados

Mas à hora marcada, lá estávamos devidamente fardados e equipados na Parada, com os talabartes e as botas a brilhar, com o grande capacete na cabeça e a companheira Mauser à mão, a aguardar ordens.
E então, o Porta-voz do Comando do Grupo dos dois Esquadrões – trezentos e sessenta homens – lá deu os avisos da praxe, salientando e passo a citar de memória “que este era o dia mais solene da vossa vida militar pelo que estão autorizados a ir almoçar fora com a família, com as noivas, as mulheres ou as namoradas, à excepção daqueles trinta e seis “gabirus” que ficam detidos até novas ordens”.

Era tudo apurado. O do meio calçava 35 e andou em sapatilhas a recruta toda porque não havia botas para ele. Mas foi apurado

Nós, os tais trinta e seis, ficámos detidos – detenção particular – naquele dia e mais dois dias para não esquecermos onde nos tínhamos metido.
Entretanto, o pior estava para vir. Fomos de férias, por volta das vésperas do Natal desse ano de 1967, e regressámos no dia 4 de Janeiro de 1968, para sabermos a especialidade que nos caberia em sorte e a Unidade para onde iríamos. Mas de facto o pior estava para vir. Nesse dia soubemos que a maior parte da malta – 201 em 360 - chumbou no CSM e passou para o Contingente Geral. E eu fui um deles.

Mais tarde, já na Guiné, no ano de 1970, em data que não posso precisar, mas de certeza ainda no 1.º semestre, encontrei no Cais o Capitão Carvalho de Andrade que tinha sido Comandante do Grupo de Esquadrões na minha recruta em Santarém em 1967. Conheci-o à distância, e com a devida vénia prestei-lhe a continência a que ele correspondeu e disse-me que lhe parecia que me conhecia de qualquer lado. Respondi-lhe que também o conhecia, mas sabia de onde era. Então ele perguntou-me de imediato – estava a ver as minhas divisas de Cabo – se eu tinha sido um dos lixados do 4.º Turno de 67 de Santarém. Claro que lhe respondi que sim, que tinha sido um dos 201 que tinham chumbado. Então, com o vagar que havia, pois estávamos à espera dum barco que nunca mais chegava, penso que era o Carvalho Araújo, disse-me que tudo aquilo aconteceu porque terá havido um erro na classificação das pautas de tiro e o Comandante, porque o Tiro dependia da Direcção de Arma de Infantaria, não quis pedir a revisão das provas pelo que os chumbos calharam quase todos a Santarém onde só estavam 360 instruendos, ao passo que no CISM em Tavira e no RI5 nas Caldas da Rainha estariam cerca de 1200, em cada lado, e onde os chumbos não teriam chegado às duas dezenas. Era a tropa a funcionar no seu melhor.

Porque as conversas são como as cerejas, aproveito para recordar que o Capitão Carvalho de Andrade que acima referi, morreu na Guiné em 25 de Julho de 1970, num desastre do helicóptero, que vinha a voar em linha – eram três helis - e que caiu no Rio Mansoa devido a um tornado. Naquele helicóptero vinham quatro Deputados à Assembleia Nacional - Dr. James Pinto Bull, Dr. José Pedro Pinto Leite, Dr. Leonardo Coimbra e José Vicente de Abreu que também morreram nesse acidente assim como a tripulação do Heli.
As buscas duraram vários dias, com trabalho exaustivo de forças da Marinha, e só foram recuperados dois corpos, sendo um do Dr. Leonardo Coimbra e o outro do Capitão de Cavalaria Carvalho de Andrade, cujo corpo esteve em câmara ardente passados uns dias na Sé de Bissau, onde eu tive oportunidade de lhe prestar as minhas últimas homenagens.

Três dias depois da tragédia do Heli, em 28 de Julho de 1970, morre Salazar, e as atenções da Comunicação Social, apesar de nunca terem sido muito activas, porque a censura escondia tudo e mais alguma coisa que se referisse à guerra, aos mortos e aos acidentes, mesmo assim passam para segundo plano o impacto com o desastre da Guiné e creio que foi mais um assunto que caiu no esquecimento.

Para terminar, eu que só queria contar a história da noite mais longa da minha recruta, acabei por me esticar desde o 4.º trimestre de 1967 até ao último de 1970. Aliás, sempre foram mais de 38 meses de tropa, dos quais mais de 25 na Guiné.

As minhas desculpas a quem teve a coragem e a paciência suficientes para ler todo este escrito. Obrigado.

Carlos Pinheiro
16.06.18
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18026: Estórias avulsas (88): Recordações da minha passagem por terras da Guiné, vaca morta junto ao arame farpado (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18026: Estórias avulsas (88): Recordações da minha passagem por terras da Guiné, vaca morta junto ao arame farpado (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)

Camajabá, 1968 - Abel Santos junto ao memorial à CCAÇ 1418/BCAÇ 1856


 

1. Em mensagem do dia 20 de Novembro de 2017, o nosso camarada Abel Santos, (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos esta memória da sua passagem por terras da Guiné, mais propriamente por Camajabá.




Recordações da minha passagem por terras da Guiné Portuguesa

Depois de uma imensa actividade operacional na zona Leste 1 - Nova Lamego, a qual calcorreamos de Norte a Sul, Leste a Oeste, a CART 1742, a partir de 23 de Abril de 1968, foi deslocada para Buruntuma, ficando com a responsabilidade da vigilância do subsector de Camajabá e Ponte do rio Caiúm.

De Camajabá guardo algumas recordações, umas boas outras menos boas.
Estando eu a chegar ao aquartelamento, ido da Ponte Caiúm onde passei um mês destacado, surge um convite do responsável do subsector, Furriel Miliciano Amaro, do qual guardo gratas recordações, para gerir o depósito de géneros, mas com uma condição, fazer um reforço por semana, o que aceitei de imediato.

Foi uma experiência enriquecedora para mim, pois teria de saber dosear os géneros disponíveis para alimentação dos meus camaradas, tinha uma outra responsabilidade acrescida, que se baseava no apoio à população, em Camajabá havia um pelotão de milícia, homens recrutados na própria tabanca, e treinados pela tropa Portuguesa, aos quais éramos obrigados a fornecer os géneros alimentícios para sua alimentação. Este contacto directo com a população levou-me a perceber o que aquela gente pretendia, e não era a guerra, sentiam segurança junto da tropa, trabalhavam as suas terras, semeando e colhendo o fruto do seu trabalho, mas também sabiam que de um momento para o outro podiam ficar sem nada, sendo surripiado o esforço do seu trabalho, por aqueles que se diziam seus defensores.

Localização da Camajabá, estrada Buruntuma-Piche

Recordo um facto do qual fui protagonista, acontece que um dia os géneros alimentícios já eram escassos, a refeição do jantar era bianda (arroz) com salsicha, mas insuficiente para alimentar os meus camaradas, que todos os dias tinham serviços a desempenhar, como a ida à água e à lenha, e patrulhar a área envolvente ao destacamento. Eu e o furriel Amaro achámos por bem comprar na tabanca frangos para complemento do jantar, que depois de assados na brasa pelo cozinheiro Silva, foram degustados pela malta, e eu como responsável da cantina, ofereci meio barril de vinho que desapareceu pelas gargantas sequiosas, ainda hoje alguns camaradas me recordam esse dia.

Mas nessa noite fiz reforço como estava combinado, e lá fui cumprir o meu dever de militar para o posto de vigia que me estava destinado, e aqui é que foram elas, eu que já estava um pouco toldado pelo néctar do barril, ouvi barulho junto ao arame farpado e, não estou com meias medidas, faço fogo gritando ao mesmo tempo: "são eles, são eles", provocando o caos no destacamento.

Camajabá, 1968 - Abel Santos, de cócoras, com o Cabo Costa, filtrando água

De manhã, quando acordo, reparo que estou todo enlameado, não me lembrando do que tinha acontecido, mas fui logo informado que o inimigo era, “tinha sido”, uma vaca. Eu retorqui: "Ainda bem, pois o almoço vai ser melhorado, bifes com batata frita, com um copo de vinho para cada um".

Escusado será dizer que a tropa milícia também teve direito à metade do animal, cuja morte veio mesmo na altura ideal, devido à escassez de géneros.
Esta é uma das muitas peripécias passadas aquando da minha passagem por terras de África.

Um abraço para todos os combatentes.
Abel Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17030: Estórias avulsas (87): Tudo começou a 9 de Janeiro de 1967 (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17030: Estórias avulsas (87): Tudo começou a 9 de Janeiro de 1967 (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)

GACA 3 - Companhia de Instrução


1. Em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2017, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) fala-nos do seu começo nas fileiras no Exército Português.


Tudo começou a 9 de Janeiro de 1967 

A cidade de Espinho era detentora de uma unidade militar denominada Grupo de Artilharia Contra Aeronaves, (GACA3) unidade na qual me apresentei para começar a cumprir o serviço militar, ficando adstrito à 1.ª companhia.

Na minha passagem pelo GACA3, ficou na minha memória um episódio entre mim e um Tenente,  por uma suposta falta de respeito, segundo ele por não fazer a continência que lhe era devida, onde mostrou todo o "poder" dos galões que usava, obrigando-me a fazer flexões sobre uma poça de água, ficando eu todo encharcado, pois chovia imenso nesse dia, e sem farda para continuar a instrução já que tinha utilizado a outra durante a manhã, que estava molhada e a secar. O dito oficial ainda não estava satisfeito com o castigo aplicado e, vai daí cortou-me o fim-de-semana, o que me provocou uma certa revolta interior.

Mas, com atitude deste oficial, comecei a aprender o que era a imposição do serviço militar obrigatório e tudo o que lhe estava subjacente, porque queiramos ou não, havia oficiais naquela época que abusavam da patente para enxovalhar e espezinhar o seu semelhante, dando assim prazer ao seu ego.

 Abel Santos no GACA 3, é o terceiro a partir da direita na fila de baixo.

Abel Santos no RAP 2, é o primeiro à direita.

Passado o tempo de recruta, fui colocado no Regimento de Artilharia Pesada 2, ao tempo sediado em Vila Nova de Gaia, onde me apresentei a 28 de Abril de 1967, para me especializar em atirador, sendo colocado na 3.ª companhia - 3.º pelotão.

Durante o tempo passado no RAP2 analisei que as chefias tinham uma postura diferente em relação aos seus subordinados, em relação ao que se passou comigo no GACA3, talvez por serem milicianos, ou tinham mandado às malvas a educação nacionalista. O que sei, é que souberam reunir à sua volta aqueles rapazes incutindo nas suas mentes o sentido da amizade e solidariedade, construindo assim uma família de grande fervor castrense.

O Batalhão que estava a ser formado, do qual não me recordo do número, foi mobilizado para Angola, tendo eu ficado no RAP2, e adstrito à Companhia de Comandos e Serviços (CCS) até ser mobilizado para a Guiné. Apesar da instrução ministrada durante a especialidade ser dura, não dando tréguas ao pessoal, mas que aproveitei ao máximo, pois mais tarde usufrui dessa preparação na frente de combate.

No dia 20 de Junho de 1967 estando eu na formatura para o almoço, o comandante da CCS, Tenente Campos, convocou-me para uma reunião no seu gabinete pelas 14 horas, o que me levou a ficar desconfiado que algo se estava a passar, e coloquei a pergunta; estou mobilizado? Respondendo com um gesto de cabeça que sim, e após insistência minha me diz que o meu destino era a Guiné.

A cidade de Penafiel no distrito do Porto era ao tempo detentora de uma unidade militar denominada Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, (RAL5) na qual me apresentei, ido do RAP2, no dia 21 de Junho de 1967, sendo colocado na CART 1742 “ Os Panteras” sob o comando do saudoso capitão Álvaro Lereno Cohen.

 Antigo RAL 5 de Penafiel

Chegado a Penafiel, a CART já lá não se encontrava, estando a aguardar embarque no Regimento de Infantaria n.º 6 na cidade do Porto, para onde me dirigi, apresentando-me a 22 de Junho, sendo incorporado no 4.º grupo de combate - 3.ª secção do Alferes Magalhães.

Caros camaradas, assim foi o meu começo nas fileiras do Exército Português, ao qual ainda hoje me orgulho de ter pertencido.

Abel Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16643: Estórias avulsas (86): O velho problema da falta de meios nas Transmissões (José Luís Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista, 2ª CCAV/BCAV 8320/73, Olossato, 1974)

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16643: Estórias avulsas (86): O velho problema da falta de meios nas Transmissões (José Luís Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista, 2ª CCAV/BCAV 8320/73, Olossato, 1974)

Chegada de correio ao Olossato
Foto: © José Luís Gonçalves


1. Mensagem do nosso camarada José Luís Gonçalves (ex-Soldado Radiotelegrafista da 2.ª CCAV/BCAV 8320/73, Olossato, 1974), com data de 23 de Outubro de 2016:

Boa tarde meu caro Carlos Vinhal.

Só agora estou a responder, ao teu convite, porque muito embora acompanhe o blogue no Facebook, não tenho muito tempo livre. Posso aos poucos contar alguns episódios que se passaram durante o tempo que estivemos no Olossato e quando depois ficamos aquartelados na Amura.

Como deve ser do conhecimento de todos que na altura estavam ligados às transmissões, principalmente os radiotelegrafistas e os operadores de cripto, foram meses em que todos os dias recebíamos mensagens extensas a comunicar deserções de elementos de milícias, com armas e fardamento, para não falar das outras mensagens com ordens e outros assuntos.

No Olossato só tínhamos a trabalhar o rádio "STORNO" e os "Bananas" que utilizávamos para comunicar com os helis e as avionetas que nos levavam o correio da Metrópole.

Os outros radiotelefones Racal, e um da marca Marconi, que tinha uma série de relés, e que nunca conseguimos saber como funcionava, estavam avariados. Por isso não tínhamos hipóteses de utilizar telegrafia, porque só me lembro de ter visto um "AN-GRC9" em Bissorã, quando numa deslocação em serviço à CCS do Batalhão, para receber ordens de como devíamos preparar a entrega do nosso material de transmissões antes de fazermos a transferência do aquartelamento para o PAIGC.

Bom, isto tudo serve para contar um pequeno incidente que aconteceu no nosso posto de rádio.

O nosso furriel de transmissões, sportinguista dos quatro costados, quando saiu do avião deve ter tido um choque de calor que lhe deve ter "toldado" um pouco o juízo, e, apesar de ter conhecimento de que os Racal estavam avariados, vinha invariavelmente altas horas da noite, quando não tínhamos operador de serviço, (por não termos rádio), e começava a chamar por Bissorã em altos berros.
Até que um dia, aliás uma noite, fomos acordar o nosso Capitão para pôr fim àquele abuso.
O furriel acabou por ser enviado para Bissorã e nós ficamos sem chefe de transmissões na companhia.

Junto vou enviar uma foto, da chegada de uma avioneta, à nossa pista, onde estou eu e dois radiotelefonistas com os famosos "Bananas (AVP1)" a tiracolo.

Um grande abraço. e prometo não demorar a contar outra história.
José Luís da Silva Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16183: Estórias avulsas (85): "Naja nigricollis" emboscada no Xime na cama de um furriel… teve um fim triste e dramático (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp /Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16183: Estórias avulsas (85): "Naja nigricollis" emboscada no Xime na cama de um furriel… teve um fim triste e dramático (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp /Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)



Mensagem de Jorge Araújo, com data de 23 de maio último: 

Caros camaradas

Eis mais uma narrativa histórica para alinhamento da sua publicação no Blogue da Tabanca Grande

Trata-se de um episódio mui sui generis da campanha africana da CART 3494, no Xime, que resultou de nova visita ao baú de memórias… que dá a ideia de não se esgotar.

Um abraço.

Jorge Araújo.


















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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de fevereiro de  2016 > Guiné 63/74 - P15695: Estórias avulsas (84): A minha primeira missão (Abel Santos, ex-Soldado Atirador da CART 1742)