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sábado, 5 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998


Guiné-Bissau > Bafatá > Setembro de 2000 > O filho mais velho do Cherno Baldé e de Geralda Santos Rocha, de seu nome Abduramane Santos Baldé,  "junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em Setembro de 2000. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964"... Hoje formado em engenharia de energias pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Fajonquito > 2006 >  Os quatro filhos de Cherno Baldé e de 
Geralda Santos Rocha. 


Guiné-Bissau > Bissau > s/d > "Minha mulher, Geralda Santos Rocha, natural de Bissau, com quem sou casado desde 1992, período que coincide com a minha passagem por Lisboa (1992/94) para frequência do curso no ISCTE"

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1.  O nosso amigo e colaborador permanente do nosso blogue, Cherno Baldé, formado na antiga União Soviética em Planificação e Gestão Económica (Universidade de Kiev, 1990), com uma pós-gradução no ISCTE-IUL (Lisboa, 1992/94), é uma testemunha privilegiada dos acontecimentos do seu tempo, desde miúdo, quando foi apanhado pela "guerra de libertação" ou guerra colonial, logo em 1964, na sua terra natal, no regulado de Sancorlã.

De 1968 a 1974 viveu em Fajonquito, tendo-se tornado um "cão rafeiro" do quartel local... Afeiçoou-se aos militares portugueses que passaram por aquele arquartelamento da região de Bafatá, sector de Contuboel, perto da fronteira com o Senegal, e que lhe puseram a alcunha de "Chico"... É autor de um notável série, "Memórias do Chico, menino e moço" (de que já publicámos, a partir de 2011, mais de meia centena de postes).  Integra a nossa Tabanca Grande desde 18 de junho de 2009. Tem  255 referências no nosso blogue.

Depois da independência, foi estudar para Bafatá, em 1975 (ciclo preparatório e parte do ensino secundário). Em 1979 vai frequentar o liceu de Bissau, que acaba em 1982. Em 1986 parte como estudante bolseiro para a URSS (Moldávia e Ucrânia). Teria já os seus 26/27 anos (nasceu por volta de 1959/60).

Regressa, com uma licenciatura, ao seu país em 1990, já depois da queda do "muro de Berlim" e a "implosão" da União Soviética. Casa-se em 1992 e faz uma pós-graduação no CEA - Centro de Estudos Africanos /ISCTE, em Lisboa (1992/94). 

Em 1998, está em Bissau, a trabalhar como quadro superior na administração pública, mais exatamente no  Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento. Vive em Brá, no chamado Bairro Militar, com algumas regalias.

No dia 7 de junho de 1998 é apanhado pelo golpe de Estado e a subsequente guerra civil de 1998/99.  É obrigado a deixar a sua casa, no Bairro Militar, e sair de Bissau com a família (ele, a esposa, o filho de 3 anos e uma sobrinha de cinco ), mais a família da irmã da sua esposa, de nome Djenaba, num total de 10 pessoas (3 adultos e 7 crianças),  refugiando-se na sua terra natal, Fajonquito. 

Deixam a casa, em Bissau, no dia 11,  chegam a Safim, procurando desesperadamente por um transporte que os leve para longe da guerra, para Fajonquito. Consegue, através dos seus conhecimentos, uma boleia para Mansoa, a 13 de junho, até apanhar um camião, que o leva ao seu "refúgio", em Fajonquito, aonde chega no dia  seguinte, passando por Bambadinca e Bafatá. Nesta viagem faz também uma "retrospetiva" do seu passado recente (os anos passados em Bafatá, em 1975/79, e depois na URSS, 1986/90).

Em 2001/02, o Cherno viu-se na contingência de ter de emigrar para Portugal, onde trabalhou na construção civil, como simples "trolha" na construção do complexo Alvalade XXI. É sportinguista de coração.

Voltamos a reproduzir, em três partes, as memórias que ele nos mandou, em 16 de setembro de 2010,  desses tempos difíceis, que ele soube enfrentar e superar com coragem, inteligência emocional,  lucidez e sentido de solidariedade (*).


 2. Excerto de mensagem que o Cherno Baldé nos mandou há quase 12 anos atrás:

Data - 16/09/2010, 12:40
Assunto - Recordações da guerra de Bissau

 Estimado amigo e irmão Luís Graça,

Juntamente envio mais um texto fazendo parte das minhas habituais crónicas ou memórias do passado. Mudando um pouco de cenário, desta vez, os acontecimentos retratados são mais recentes e centrados sobre as tribulações de uma pequena família, melhor, do seu desajeitado chefe, no início da guerra de Bissau em 1998. Propositadamente, passei por cima do período que vai dos tempos de estudante em Bafatá, depois Bissau e da passagem pela antiga URSS. Voltarei, mais tarde, a este período se houver interesse. (**)

O presente texto foi por mim escrito em 2000, alguns meses antes de emigrar para Portugal onde participei, em 2001/2002,  na construção do complexo Alvalade XXI (onde se enontra o novo Estádio José Alvalade, como servente de qualquer coisa, na verdade não tinha as qualidades requeridas mas contava com a "cunha" ou  ajuda de uma família Portuguesa com a qual mantínhamos excelentes relações de amizade e estima. 

Os encarregados topavam logo,  com o meu ar intelectual e a falta de jeito. Mandaram-me embora por duas vezes e reentrei outras tantas. Aí reencontrei os meus primos Ucranianos, enfim, foi muito interessante e enriquecedor. (...)

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

PS - A foto mostra o meu filho junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em setembro de 1998. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964.


RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU, 
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998

Parte I -  Bissau, 7-11 de junho de 1998

1º dia,  7 de junho de 1998, domingo: o rebentar do conflito

Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998 (**), ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas,  acompanhados de rajadas de metralhadoras. 

Em casa, apercebemo-nos que se passava coisa séria para justificar tamanho tiroteio. Sentámo-nos à mesa para o pequeno-almoço. Aqueles tiros não nos incomodaram em nada, afinal já tínhamos vivido outros golpes, coisa banal, seriam escaramuças localizadas e algumas mortes mas depois tudo voltava a normalidade.

Pessoalmente, e sem estar informado de nada, já estava do lado dos revoltosos. Podia ser da idade ou simplesmente pela mania das revoluções. Fosse quem fosse, na minha opinião, achava que já era tempo de varrer o regime vigente para instaurar uma nova ordem, inverter a marcha que estava a afundar o país e aprofundar o fosso da desigualdade económica e social entre uma elite parasitária vivendo à custa do Estado e a maioria da população, cada vez mais paupérrima e despojada de recursos e de oportunidades.

Por volta das 8h00, o governo, através do seu ministro da defesa nacional, comunicou pela rádio que um grupo não identificado tinha assaltado o quartel-general (QG) mas que tinha sido rechaçado e que todos ficassem em casa até ordens ao contrário.
 É um golpe de estado, de certeza! – disse para a minha mulher, quase com satisfação.

Entretanto, pediam calma a população enquanto nos quartéis havia uma grande agitação. Todas as estradas de acesso ao centro da cidade estavam bloqueadas, havia confrontos em Santa Luzia (QG), muita agitação nos aquartelamentos de Brá e na Base Aérea, onde tropas do governo tentavam desalojar os revoltosos ou vice-versa.

Seguiu-se uma acalmia de algumas horas e, no início da tarde, houve um ataque ao quartel de Brá com armas ligeiras, sem qualquer efeito especial, pois a situação mantinha-se na mesma, ou seja, de vez em quando ouviam-se tiros de armamento pesado, seguido de um compasso de espera. 

As horas que se seguiram foram de uma grande curiosidade, toda a gente sabia tratar-se de um levantamento militar mas ninguém sabia nada sobre os cabecilhas da revolta.


2º dia, 8 de junho, segunda feira: o início de um calvário que só terminaria um ano depois, com o fim da guerra

A partir do segundo dia, 8 de junho, começaram a circular algumas informações sobre o levantamento. Agrupados a volta do antigo CEMGFA, Brigadeiro Brick-Brack (por sinal, mais um voluntário, chefe de guerra, originário dos países vizinhos, na senda de Abdul Indjai e Companhia), uma parte das tropas e antigos combatentes tinham-se amotinado contra o regime. 

As autoridades continuavam a pedir calma e assegurar que tudo era uma questão de tempo até controlarem a situação. Houve várias tentativas de tomada de assalto ao aquartelamento de Brá mas a situação continuava tensa e incerta.

Com a intensificação dos confrontos fomos avisados pela parte governamental de que devíamos evacuar a zona onde habitávamos, temporariamente, senão arriscávamo-nos a ficar entre dois fogos e sermos alvo de bombardeamentos. 

Oh, pá! Não, já não estava assim tão satisfeito com esta decisão que nos afastava das nossas casas. Era, de facto, o início do nosso calvário que só terminaria com o fim da guerra, um ano depois.

O meu irmão mais velho convocou uma reunião de emergência para nos informar que os membros da nossa família, enquadrados por ele, deviam afastar-se um pouco, mais a leste nos confins do Bairro militar, eu deveria ficar para cuidar da casa. Não houve contestação e assim, sem preparação adequada, as mulheres, pegando naquilo que podiam mais as crianças, rapidamente, seguiram para cima, a leste do Bairro, onde ficariam ao abrigo da artilharia que estava a visar a nossa zona.

Esta forma simplista e confiante de pensar que tudo se resolveria rapidamente revelou-se depois muito prejudicial, pois, o que se previa ser para algumas horas viria a durar mais de um ano, e passo a passo seriamos obrigados a seguir para mais longe, longe e longe, e finalmente seria o refúgio.


3º dia, 9 de junho, terça feira: saída da família do Bairro Militar para o Bairro da Ajuda

No terceiro dia, 9 de Junho, o meu irmão comunicou-me a sua decisão de sair de Bissau e partir para Fajonquito, nossa aldeia natal, onde iria esperar pelo desfecho da guerra em que se tinha transformado o levantamento de alguns dissidentes do regime. 

Sem saber que decisão tomar, acompanhei o meu irmão e um grupo de pessoas que tinham decidido sair de Bissau. Mandei a minha esposa e filho juntar-se à sua irmã mais velha, Djenaba, no Bairro de Ajuda, na esperança de que talvez aquilo terminava em breve. Eu fiquei em Brá, na nossa casa. Entretanto, comecei a pôr em marcha um dos princípios de Amílcar Cabral ou seja, esperar o melhor, preparar-se para o pior.

Com o dinheiro que tinha, fui comprar alguns mantimentos pois calculava que dentro em breve podia não haver nada para vender ou comprar. No mercado alguns cacifos estavam abertos, as pessoas estavam agrupadas à volta de aparelhos de rádio ouvindo as poucas informações que a RTP fornecia e comentavam os últimos acontecimentos que circulavam de boca em boca. 

Foi aí que ouvi alguém dizer que os amotinados estavam a receber reforços de outros aquartelamentos do interior e que muitos jovens estavam a aderir às fileiras dos revoltosos. A proporção que o problema estava a ganhar e a perspectiva de que o conflito poderia arrastar-se por muito tempo, desanimou-me muito.

Voltei para casa, abri o rádio para acompanhar a RTP, única rádio em funcionamento, que tentava conseguir informações sobre as razões do motim e os nomes dos cabecilhas. Tornou-se evidente que a situação no terreno não era tão favorável aos governamentais como faziam crer pela rádio nacional. Passei a noite em claro pois, os tiros eram esporádicos mas repetitivos.


4º dia,  10 de junho, quarta-feira: relembrando o pesadelo de Kiev, em 1990 ("Matem o macaco preto!")

Na manhã do quarto dia de conflito, 10 de junho, sai de casa, atravessei a estrada principal do Bairro militar, tendo reparado que a estrada estava bloqueada e vigiada por tropas governamentais e que não havia circulação de viaturas. 

Para chegar ao Bairro de Ajuda, onde se encontravam minha esposa e filho, a única maneira era atravessar a bolanha a pé, lá para os lados de “Manel Iagu”. Foi para onde segui. Estava absorto nos pensamentos que se afluíam a minha mente de forma desordenada.

Lembrei-me dos tempos de estudante em Kiev e, da tensão permanente em que vivíamos, atravessando as ruas, com medo da agressão dos jovens locais que não perdiam uma única oportunidade para nos maltratar, física e verbalmente. 

Por várias vezes, tinha sido alvo de agressões violentas, não propriamente por racismo, penso eu, mas porque estavam naquela idade quando se sente a necessidade de assumir riscos e desafiar o "status quo". Pese embora a nossa precária situação, não dávamos o braço a torcer. Uma vez, traído pelo embaciamento dos meus óculos devido ao frio, tinha entrado, sem dar conta, no meio de um bando de jovens, alguns dos quais tinham o dobro do meu peso e mediam perto de dois metros de altura numa zona considerada perigosa para os estrangeiros.

De repente senti que alguém me segurava por trás, impedindo-me de avançar. Estava com medo, mas nem por isso vacilei, virei-me para enfrentar quem quer que fosse. Os homens presentes diziam: "Matem o macaco preto!"... 

As mulheres, sempre mais humanas, gritaram-me para que fugisse. Eram muitos, aguentei por algum tempo mas depois tive mesmo que fugir debaixo das pedradas e insultos daqueles jovens ainda na idade da inocência, desprovidos de sentimentos de piedade e de amor ao próximo. 

Na briga, tinha perdido os óculos, as compras e parte das minhas vestes. As costelas, doridas, deixavam entrar o frio por todos os lados em pleno inverno russo. Consegui arrastar-me andrajoso, sob o olhar curioso dos transeuntes, até a residência dos estudantes. Não queria que os colegas soubessem, mas os sinais no corpo eram por demais evidentes, tinha levado uma sova a valer. Estávamos em 1990 e a União Soviética tinha entrado na sua fase irreversível de Perestroika e nunca voltaria a ser a mesma dantes. O perigo espreitava de todos os cantos.


“Minha Rosa - Diminga” ou a luz brilhante de um horizonte inacessível

No momento, nesse dia 10 de junho de 1998, também estava com medo. Um medo indefinível e amplo que acariciava todo o meu corpo e apresentava-se no horizonte da minha vida que ainda agora começava a florir. 

A minha situação profissional e familiar era estável, podia-se mesmo dizer boa, em comparação com a grande maioria, tinha a família que ambicionava e era director numa instituição pública ligada à manutenção das rodovias, ganhando relativamente bem.

No caminho, ainda se ouvia o ribombar dos obuses a partir da base aérea. O ruído atravessava toda a cidade para se perder nas águas do rio Geba. E cada vez que isso acontecia, instintivamente, curvava-me todo para a frente como se quisesse evitar que algo invisível me cortasse ao meio. À minha frente seguia o vulto de uma mulher que, também, fazia a mesma ginástica rítmica. Durante a marcha, caíamos e levantávamo-nos juntos sem parar, ao ritmo dos disparos, ela à frente e eu atrás.

Apesar do medo e da urgência do momento, acabei por fixar o meu olhar nela de forma insistente. Havia qualquer coisa de invulgar na sua forma de andar. Sobretudo, tinha reparado no movimento ondulatório das suas ancas. 

Porque é que insistentemente o meu olhar vai para as nádegas das mulheres? Não sei, ninguém me ensinou, deve ser hereditário. Fixei o meu olhar nas nádegas. Havia uma harmonia incrível de movimentos que me embalava e me cativava, que iniciava nos seus pés bem firmes no chão e subia, subia até as tranças dos cabelos levemente amarrados por detrás da cabeça felina. Ela possuía um corpo bem consistente, cheio e flexível que combinava com a dança frenética de subidas e descidas ondulatórias das nádegas –“unata defata ko iarta beréberé!” (1).

Era estranho, os habitantes de Bissau viviam sob o choque de uma brutal guerra de quartéis, por enquanto, e eu devia pensar em coisas sérias, ia encontrar-me com a minha família e devia pensar numa forma de os tirar de lá. O meu irmão já tinha saído e toda a cidade estava em fuga. Eu não, estava ali colado atrás de umas nádegas que não conhecia de lado algum mas que me atraíam como as flores atraem as abelhas.

Impávido e feliz por aquele momento divino de contemplação, já não andava, corria, corria atrás daquela figura que parecia uma luz brilhante no horizonte inacessível da minha vida povoada de cenários de guerras. Sim, uma luz como a lua cheia numa noite escura que brilha mas não ofusca a vista, visão celestial. Corria como um sonâmbulo com as mãos em concha estendidas para a frente, num gesto ridículo e egoísta de não deixar cair nenhuma gota daquele mel doce da minha alucinação.

Julgo que caminhámos três quilómetros.
 Ou foram sete? Não sei dizer. Aquele cenário não me era estranho de todo. Onde o teria visto ou vivido? Ah! Sim, foi no caminho de fuga entre Berécolon e a fronteira do Senegal, ainda criança na inesquecível noite do ataque dos eternos terroristas da nossa terra em 1964. 

Não, é o filme de Flora Gomes, Mortu Nega.. Estamos a caminhar com o grupo de guerrilheiros que vai reforçar a frente destroçada pelos bombardeamentos da aviação inimiga. Atravessamos a lala a correr, curvados para a frente e agora embrenhamo-nos na floresta. “Cuidado com as minas!”, é o Capitão Mamadú que, à frente da coluna, de silhueta imponente, nos ordena: “Coloquem os pés em cima das minhas pegadas, e deitem-se no chão ao menor ruído!”. 

Parece imune ao perigo que nos espreita do ar e da terra, este rapaz valente. Ainda nos avisa: “Vamos acelerar o passo e, se ouvirem o roncar de um helicóptero, dispersem-se e coloquem-se debaixo do primeiro arbusto, se não houver arbustos, então transformem-se em baga-bagas dobrando o corpo em dois!”.
 Hé, badjuda, kuma ki´u nomi? – pergunta a mulher grande à miúda a minha frente.
 Amí tchoma Diminga, Diminga de Bithame.

A velha, sorrindo insiste:
N´hundê ku-na bai ?
N´na bai djubi nh´ome k´stá na frénti – responde esta.

É isso, é a Diminga que está a minha frente. Chegamos à travessia d´água. A menina pára e vira-se para mim olhando, pela primeira vez, e cruza-se com o vazio dos meus olhos de sonâmbulo, fixos nas suas ancas largas e apercebe-se, num relance, da enormidade do desejo que me aflige. Ou não se apercebe? Pega na minha mão para ajudar-me a atravessar a água lamacenta. Sem perder tempo, aproveito o momento e a mão estendida para abraçar o seu corpo inteiramente e adormecer feito criança.
 Já cheguei! – diz ela.

Não compreendo. Como pode ela chegar se eu ainda nem comecei a andar embalado no seu peito macio, pensei comigo.
 Já cheguei a minha casa, agora podes continuar o teu caminho!  repetiu ela.
Aproveitando a abertura do seu sorriso, balbuciante, perguntei:
Kuma kí´ú nomi?
 Nha nomi´i Rosa – respondeu, baixando o seu rosto para fugir do meu olhar prenhe de angústias. 

Sem delongas, virou-se e seguiu seu caminho bambaleando levemente aquelas nádegas da minha perdição. “Rosa, chamam-te Rosa minha preta formosa, e na tua negrura, teus dentes se mostram sorrindo, teu corpo baloiça, caminhas dançando, lasciva e ridente, vais cheia de vida, vais cheia de esperança, em teu corpo correndo a seiva da vida, tuas carnes gritando e teus lábios sorrindo” (2).

Esquecido do mundo e da guerra, fiquei especado no chão a olhar infinitamente como se aquela imagem que se perdia lá longe levava também consigo o fim da minha atribulada existência de combatente do nada num mundo em constante mutação e de fugas para a frente. Lutas de libertação e/ou de apropriação, as aldeias queimadas e os campos abandonados, o fardo das regras e religiões que chegaram com o mundo novo, tudo, temperado no inevitável processo de esvaziamento da alma, a globalização, o gesto ridículo do mimetismo cultural, golpes e contra golpes, programas de ajustamento, crises financeiras…

Ela não disse se era de Bitháme. Será que isso interessa? Também não tinha perguntado. Cheguei ao Bairro d´Ajuda sem saber se tinha caminhado ou voado com as asas que a visão daquela Rosa-Diminga me tinha incorporado. 

Em casa da Djenaba, minha cunhada, reinava uma calma aparente pois, estando o marido fora, ela sozinha estava desorientada. Fazia e desfazia bagagens sem saber o que levar e o que deixar. Disse-lhes que devíamos fazer o que toda a gente estava a fazer, ou seja, sair para fora da cidade. Pegar o mínimo essencial, isto é, uma garrafa de água em cada mão.
 Não!  disse-me prontamente Vamos esperar até amanhã.

Mais tarde soube que afinal ela não se tinha decidido a sair porque os seus vizinhos ainda não o tinham feito. Voltei para casa. Os tiros tinham cessado. Àquela hora da noite, já não havia nenhum movimento nas ruas do Bairro Militar e certamente as casas também encontravam-se vazias. A noite foi silenciosa, longa e tensa. Eu, a tentar dormir, os ratos a explorar regiões antes proibidas na casa deserta, lá fora as BM (“baevie machine” - que literalmente significa máquinas de guerra em russo) a cuspir fogo de Estaline.


5º dia, 11 de junho,  quinta-feira: a guerra civil em marcha

Na manhã do dia seguinte ainda continuaram os tiros dos obuses. Dirigi-me ao mercado. Ainda havia gente aglomerada em alguns pontos tentando encontrar alguma coisa para provisão da casa ou do caminho. 

Todavia, o cenário de vaivém tinha dado lugar a uma única e longa fila de saída para fora da cidade. Depois do falhanço, um dia antes, da tentativa encetada por uma comissão "ad-hoc" de algumas pessoas de boa vontade de fazer sentar as duas partes na mesa de negociações, ficou claro para toda a gente que o conflito iria durar, transformando-se em guerra civil. 

O Comandante em Chefe não admitia negociar com um grupo de bandidos. Os primeiros contingentes de tropas dos aliados do Norte e do Sul já estavam a desembarcar no porto. Era uma situação insustentável. O fluxo das pessoas a caminho do refúgio era cada vez maior.

(Continua)
__________

Notas do autor:

(1) “Não pila, não cozinha mas come do melhor “– Uma elegia masculina dedicada ao balanço ondulatório das nádegas da mulher africana, na lingua Fula.

(2) Amilcar Cabral (1924-1973), antologia poética.


3. Comentário do editor LG:

Os portugueses, felizmente, não sabem o que é uma guerra civil desde os anos de 1830 (lutas entre liberais e absolutistas, 1828-1834) nem o que é a invasão do solo pátrio por tropas estrangeiras desde as invasões napoleónicas (1807-1810)...

Podemos, no entanto, tentar pôr-nos na pele dos nossos amigos guineenses, o Cherno Baldé e família, o Pepito e família, o Patrício Ribeiro e outros, que estavam lá, em 7 de Junho de 1998, quando a Junta Militar de Ansumane Mané tentou derrubar 'Nino' Vieira (o que viria a acontecer quase um ano depois, em maio de 1999, após um conflito sangrento, que incendiou todo o país e que levou muitos guineenses ao exílio  (caso do Pepito e da Isabel Levy,  por exemplo, que foram viver para Cabo Verde  durante cerca de um ano)ou a ref+ugio da terra natal (como foi o caso do Cherno Baldé e família).

É um período da história recente da Guiné-Bissau mal conhecido dos antigos combatentes portugueses que fizeram a guerra colonial... Nessa altura (1998/99) andávamos distraídos com outras coisas e, se calhar, tínhamos pouca pachorra para sequer ouvir e entender os eternos problemas dos nossos pobres amigos  guineenses... Além disso, Lisboa estava em festa, com a Expo 98, que decorreria entre maio e setembro de 1998...

O Cherno dá a verdadeira dimensão, humana, ao conflito político-militar que levaria à queda de um regime, à invasão do país de tropas estrangeiras (Senegal e Guiné-Conacri), à desertificação e pilhagem de Bissau, à miséria, fome e pobreza,  enfim, ao agravamento, ainda mais brutal, das condições de vida dos guineenses... No final, o conflito saldou-se por alguns milhares de mortos e a duas ou três centenas de milhares de refugiados,

No caso do Cherno, era preciso pôr a família a salvo, numa viagem de mais de uma semana, de sobressaltos, de Bissau a Fajonquito (menos de 200 km), passando por Nhacra, Mansoa, Bambadinca e Bafatá... Tinha o seu filho mais velho três anos...

Obrigado, Cherno, é mais um depoimento comovente mas ao mesmo atravessado por surpreendentes reflexões filosóficas e éticas sobre a condição humana...  

PS - As marcas deste grave conflito político-militar ainda hoje são visíveis, nomeadamente em Bissau. Veja-se aqui uma reportagem (com vídeo) feita em 7 de junho de 2019 pela DW - Deutsche Well, da autoria do jornalista Braima Darame ( "Guerra de 7 junho deixou Guiné-Bissau frustrada e a culpa é dos políticos".
____________

Notas  do editor:

(*) Vd. poste de 17 de setembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)

(**) Trata-se de 7 de Junho de 1998 e não 1997, como por lapso escreveu o autor. Foi o início da longa e sangrenta guerra civil na Guiné-Bissau. Nesse dia de domingo, 7 de Junho de 1998, um grupo de militares, liderado formado pelo brigadeiro Ansumane Mané (antigo chefe do Estado-Maior) fez um golpe de Estado com vista à queda do presidente 'Nino' Vieira. As tropas militares rebeldes entraram em confronto com as forças presidenciais, que serão ajudadas pelo Senegal e pela Guiné-Conacri.

Este conflito vai provocar centenas de mortos e milhares de refugiados guineenses, não só em Bissau como noutras localidades, que se espalharam pelo interior e por diversos países (incluindo Portugal).

Haverá uma primeira tentativa de acordo nos dias 25 e 26 de julho de 1998, altura em foi celebrado o "Memorando de Entendimento", um documento que, em 25 de agosto, viria a dar lugar ao cessar-fogo. As delegações do Governo da Guiné-Bissau e a Junta Militar, de Ansumane Mané, concordam em fazer um trégua. 

 No entanto, as coisas iriam complicar-se... A guerra civil prolongar-se-ia por mais quase um ano, com lutas pela conquista do território e expulsão das tropas estrangeiras, aliadas de 'Nino' Vieira. 

A maior parte da Guiné-Bissau acaba por ficar sob o domínio das forças revoltosas. 'Nino' Vieira acaba por aceitar um cessar-fogo em 7 de maio de 1999. Refugia.se na embaixada portuguesa durante um mês, seguindo depois para um exílio de seis anos  em Portugal (na sua residência em Gaia, arredores do Porto).

Fonte: Adaptado de Nino Vieira. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-09-17].Disponível em http://www.infopedia.pt/$nino-vieira.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22858: Homenagem da Tabanca Grande ao Jorge Cabral (1944-2021), ex-alf mil at art, cmd, Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá e Missira, mai 1969 / ago 1971) - Parte I: "Alfero Cabral", uma genial criação literária, um "alter ego" do autor, usado como arma de irrisão contra o absurdo da guerra (Luís Graça)


Foto nº 1  > O nosso "alfero Cabral" passou por todos os ramos das Forças Armadas: a... Marinha...


Foto nº 2 > O nosso "alfero Cabral" no Exército...


Foto  nº 3 > O nosso "alfero Cabral" na Força Aérea...


Foto nº 4 > O O nosso "alfero Cabral" na Milícia...

Lisboa > Belém > 10 de junho de 2016 > "Foto com o ex-alferes de artilharia dr. Jorge Almeida Cabral e Maldu Jaló, natural de Catió,  e que combateu comigo no sul da Guiné, fazendo parte da Milicia do João Bacar"...

Fotos do Mário Fitas (ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67).

Fotos (e legendas): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa > Belém > 10 de junho de 2009, Dia de Portugal > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto, Jorge Cabral deliciosamente "cercado" pelas camaradas da Polícia do Exército (PE).

Foto: © Mário Fitas (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa >  XXVI Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes do Ultramar >  Belém > 10 de junho de 2019 > Da esquerda para a direita: Luís Graça, Francisco Silva, Humberto Reis, J. L. Vacas de Carvalho e Jorge Cabral


Lisboa >  XXVI Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes do Ultramar >  Belém > 10 de junho de 2019 > Jorge Cabral e Juvenal Amado

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa, Belém, Forte do Bom Sucesso > 10 de Junho de 2009 > Mini-encontro do pessoal da Tabanca Grande Ei-lo, o mais desalinhado, quiçá o mais pacifista dos Homens Grandes da nossa Tabanca Grande, o autor das saborisíssimas "estórias cabralianas, já então à procra de um editor, o Cabral mais Cabral da Guiné, o Jorge Cabral ele mesmo... Com o seu inseparável cachimbo... Não perde um 10 de Junho desde que deixou as terras de Fá, Missirá, Bambadinca... Nostalgias...  (Em segundo plano, o J. L. Vacas de Carvalho, seu contemporâneo em Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

Montemor-O-Novo > Ameira > Hotel da Ameira > I Encontro Nacional da Tabanca Grande > 14 de Outubro de 2006 > Um momento de fraternidade, pensa (e sente) o Jorge Cabral, em primeiro plano, tendo à sua direita o nosso baladeiro de Bambadinca (1969/71), e hoje fadista amador, o Zé Luís Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler 2206.

De pé, afinando as gargantas ou cantando ao desafio, outras duas grandes aves canoras: o Fernando Calado e o Manuel Lema Santos, o exército e a marinha de braço dado... O fotógrafo que estava de serviço apanhou o flagrante, era o David Guimarães, radiante, felicíssimo...

Foto: © David Guimarães (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


“Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum” (*)

por Luís Graça

Agora que o Jorge Cabral partiu na "barca de Caronte" (**), este livro vamos guardá-lo com enorme saudade e relê-lo, talvez com outros olhos. 

O prefácio que lhe escrevi ( "o charne discreto da humanidade ou a arma da irrisão contra o absurdo da guerra") (*) , continua atualíssimo e estou só a revê-lo aqui e ali. 

“Cabral só há um, o de Missirá, e mais nenhum” continuará a ser o subtítulo, não explíicito deste livro, algo de saudavelmente provocador, mesmo que que não seja imediatamente percetível, para o leitor de hoje, a referência ao antropónimo Cabral e ao topónimo Missirá…

Missirá ficava na “portuguesíssima província” da Guiné, “muito longe do Vietname”, hoje República da Guiné-Bissau, país independente, de língua oficial portuguesa. E Cabral não era o Amílcar, o senhor engenheiro, de origemcabo-verdiano, mas nascido na Guiné,  e líder de um movimento nacionalista que combatia os “tugas”, e considerado hoje o fundador do novo país lusófono que se chama Guiné-Bissau, mas o “alfero Cabral”, um personagem literário criado como um “alter ego” por Jorge Cabral…

Tal como muitos jovens da sua geração, o autor foi chamado para a tropa, ainda antes de acabar o seu curso de direito, e fez o caminho do calvário de muitos outros portugueses, milicianos ou do recrutamento geral (, sem esquecer os militares do quadro), acabando mobilizado para a então “guerra do ultramar”. (Estamos a falar do tempo em que o serviço militar era obrigatório e havia, desde 1961, uma guerra em três frentes, a milhares de quilómetros de casa.)

Alferes miliciano, “atirador de artilharia”, com passagem por Mafra e Vendas Novas, tinha nascido numa família de militares (, segundo creio), sob uma frondosa árvore genealógica que já dera à Pátria “muitos Cabrais e que tais” (, ironizava ele). 

Não desertou como outros “meninos das Avenidas Novas”: foi comandar o Pelotão de Caçadores Nativos, nº 63, dividindo a sua comissão,  entre 1969 e 1971, em dois destacamentos, Fá Mandinga e Missirá,  no Leste da Guiné, região de Bafatá, Sector L1, Bambadinca. Foi, pois, meu vizinho e contemporâneo, e inclusive fizemos operações juntos.

No regresso à Pátria, foi advogado e docente universitário E, nomeadamente, dedicou uma vida à formação de técnicos superiores de serviço social, uma profissão largamente feminina (, ainda hoje). 

E continuou a ser do “contra” mas… “sempre discreto”. Um dia, em dezembro de 2005, apresentou-se à Tabanca Grande, à “tertúlia” criada à volta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, nestes termos singelos, muito reveladores da sua maneira de ser, estar e escrever:

“Através do blogue, recordo. E sinto. Vejo os rostos dos camaradas, oiço os sorrisos das crianças, e até, calcula, consigo admirar de novo os belos seios das bajudas. Peço permissão para pertencer à Tertúlia, oferecendo o ‘pícaro’ de alguns episódios que vivi.”

Foi o início da série “Estórias cabralianas”, seguramente uma das mais populares que tivemos o privilégio de publicar no blogue, e que foi muito bem acolhida pela crítica literária de então… Cite-se, por exemplo, o nosso saudoso Torcato Mendonça (1944-2021): 

“Só tu, meu caro Jorge, me embacias os óculos com o cloreto de sódio que me saíram dos olhos e molharam os ditos”…

E, de facto, ninguém melhor do que o “alfero Cabral” para nos fazer (sor)rir, ao descrever, em traço grosso, numa frase, numa linha, num parágrafo, numa legenda, uma situação-limite, uma fantasmagórica personagem de carne e osso, um hilariante ambiente de caserna, um garboso chefe militar da “tropa-macaca”, um episódio grotesco mas sempre humaníssimo da nossa (co) vivência na guerra, enfim, uma cena rocambolesca, pícara, brejeira, relativamente à nossa passagem pela Guiné “em defesa da soberania portuguesa”.

Eu, que fui seu contemporâneo e camarada de armas, passei depois a ser fã das suas “short stories”, os seus micro-contos, as “estórias cabralianas”, para mais sabendo que ninguém podia invejar o lugar de comandante deste tipo de destacamentos, isolados, na “linha de fronteira da guerra”, na terra de ninguém, guarnecido por pelotões de caçadores nativos, mais uns tantos “milícias” locais, com a família às costas, os cães e os tarecos, e mais meia dúzia de graduados e especialistas de origem metropolitano, à beira do abismo, esquecidos e abandonados...

Intrinsecamente do “contra” e “antimilitarista” (ou não tivesse sido ele também um “menino da Luz”, uma "rata" do Colégio Militar do ano de 1955), o criador das “estórias cabralianas” não tem qualquer propósito panfletário de denunciar a “guerra colonial”, pôr em causa a gloriosa tradição da “honra & glória” dos nossos africanistas, ou sequer de “ofender a instituição militar”, tão apenas o de manifestar a saudável loucura, própria dos seres humanos que são “condenados” ou “postos à prova” em situações-limite, face à morte, o sofrimento, as privações, o absurdo, o “non-sense”, a irrisão de uma guerra de fim de império... E aquela guerra, naquele espaço e tempo, tinha tudo isso.

Mas as “estórias cabralianas” são, também, um hino à idiossincrasia (lusitana e africana), à plasticidade comportamental dos nossos soldados, à enorme capacidade de resistência, de resiliência, de imaginação e de adaptação da nossa gente...

O Jorge Cabral que, quanto estudante universitário, leu o Ionesco e conhecia o teatro do absurdo, não coloca o seu “alter ego” na situação, confortável, do marionetista... Ele faz parte, de alma e coração, da peça, dos adereços, do cenário, do texto e do contexto… Ele expõe-se, como ninguém

Devo dizer que Jorge Cabral foi o mais “paisano” dos militares que eu conheci na Guiné. Em Fá Mandinga e depois em Missirá, e sempre que ia a Bambadinca, não se limitava a ser um heterodoxo “tuga”, representante da tropa, oficial miliciano, ator e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, régulo, chefe de tabanca, conselheiro, psicólogo, ‘amigo do turra’, poeta, socioantropólogo, feiticeiro, ‘cherno’ (catequista), ‘mauro’ (padre), ‘médico (com a difícil especialidade de ‘obstetra e ginecologista’, “consertador de catotas”), sexólogo, advogado e não sei que mais. 

À força de ser propalada e levada pelo vento, de bolanha em bolanha, a histórica e temível frase “Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum” terá tido um efeito “contrassubversivo” e até “perturbador” nas “hostes do PAIGC”… Ao reivindicar ser ele "o único e legítimo Cabral", punha em xeque, o outro, o de Conacri, o "usurpador", que defendia os seus pergaminhos de Kalashnikov na mão…

Chegou por certo aos ouvidos do temível Corca Só, o chefe da 'barraca' de Madina / Belel, a sul do Morés, a tal ponto que no tempo do "alfero Cabral” não mais voltou a meter-se com a malta de Missirá…

Em Missirá, um destacamento mais exposto às morteiradas, canhoadas e roquetadas do IN (abreviatura de inimigo) do que Fá Mandinga, contava-se que o "alfero Cabral”, mais do que temido, passara a ser "respeitado" (e quiçá "venerado") pelos “camaradas do PAIGC”, desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los: “Vocês não fujam, não tenham medo!!!... Sou o Cabral!!!”...

Eis, pois, um verdadeiro Lawrence, não das Arábias, mas do Cuor,  das terras do Cuor, na Guiné!... Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente ‘cafrealizado’ ou ‘apanhado do clima’.

O “alfero Cabral”, sua genial criação literária, nunca acentua o lado do “bestiário da guerra” que há no Homo Sapiens Sapiens, mas sim o da sua humaníssima, frágil, quase tocante, condição de primata, de primus inter pares na ordem zoológica do mundo... O único animal que, afinal, consegue esta dupla proeza: (i) ser capaz de rir-se de si próprio; e (ii) e mostrar, pelo outro, compaixão (no seu sentido etimológico cum + passio: sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor… e prazer).

O seu sentido de humor é muito próprio: nu, de tanga (uma toalha à volta cintura), e de G3 às costas, é uma figura impagável, que nos acompanha, de princípio ao fim, fazendo destas “short stories” pérolas literárias, que só podiam ser fruto de um espírito aberto, fraterno, pacifista, sadio, maroto, provocador, lúcido, irreverente, desconcertante, descomplexado.

A par da imensa tragédia que provocou (com perdas e danos, materiais e simbólicos, irreparáveis), a guerra da Guiné foi também palco (hilariante) de muitas peças do Teatro do Absurdo (envolvendo as NT, o IN, os nossos oficiais superiores, o “Caco Baldé”, os nossos camaradas, de diferentes cores e feitios, a população local e, claro, as "bajudas")...

Por outro lado, Jorge Cabral é um dos poucos que tem o engenho e a arte de nos conseguir falar (e, sobretudo, enternecer e comover), com um subtil toque de humor, de maneira descomplexada, das nossas relações com as mulheres locais, sem nunca cair na “ordinarice de caserna”…

Veja-se, por exemplo, essa fabulosa estória, da primeira vez que veio passar férias à Metrópole, em janeiro de 1970, a compra, num grande armazém de Lisboa (, takvez o Grandela), de trinta e oito sutiães de todos os tamanhos e cores, e que ele levou consigo, na bagagem, de regresso a Fá Mandinga, para oferecer às suas queridas bajudas. Mas não se pense, malevolamente, que ele tinha um harém: simplesmente organizou “a festa do corpinho, para a alegria das bajudas, que envergaram o seu primeiro sutiã”…

À laia de conclusão e incentivo para a leitura, acrescentarei este excerto de uma mensagem que em tempos lhe dirigi e que não perdeu nem acuidade nem atualidade, depois agora que ele partiu na barca de Caronte:

“Só tu, meu querido Jorge, consegues pôr a malta e o resto a tropa a fazer... o pino!...Tu és a subversão total, o iconoclasta, o bombista-suicida, o terrorista intelectual, o humorista-mor e outras figuras que tais, que em muito contribuíram para o fim do nosso longo, vasto e glorioso Império... 

O teu humor é(era) subversivo, corrosivo, demolidor... Depois de te ler, um homem, um ‘tuga’, já não é mais o mesmo... Tu devias ir a tribunal militar, porque tu tiras a ‘tusa’... a qualquer combatente... Depois de te ler, quem é o combatente (até mesmo o de Alá!) que se sentirá com ‘tomates’ para ir combater na guerra, nas próximas ‘guerras santas’ que se avizinham?!”...

Luís Graça, editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (*)

 [Na altura, em outubro de 2020, o Jorge Cabral manifestou-me o seu agrado e apreço pelo prefácio que lhe escrevi, mas, modesto como era, disse-me que não merecia tantos... adjetivos!]


Escreveu o seu filho, Pedro Almeida Cabral, em 28 do corrente, na sua página do Facebook:


Jorge Almeida Cabral, 1944-2021. Jorge Almeida Cabral

O meu querido e adorado pai faleceu hoje de manhã, em paz e ao meu lado, vítima de um cancro de pulmão raro e agressivo. Como sei que muitos o admiravam, deixarei, quando souber, os detalhes das cerimónias fúnebres.

Esta fotografia, de que gosto particularmente, é dele em Moscovo, no verão de 2019, a jantar comigo num restaurante da moda. Está com a típica expressão a dizer que eu sou maluco (uma das suas frases preferidas), acompanhado do seu inseparável cachimbo.
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Notas do editor:

(*) Adapt. do prefácio de Luís Graça ao livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22775: O meu sapatinho de Natal (2): E eu ainda não era eu: conto de José Teixeira



Lourinhã > Praia da Areia Branca > 6 de junho de 2019 > A duna em flor...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Belíssimo conto que o Zé Teixeira mandou ao nosso editor LG e à Alice, no passado dia 12 de novembro, "neste tempo de festa da vossa Clarinha" (que fez dois anos, celebrados no Funchal)... Resposta do LG:

"Belíssimo conto, Zé, o que mandaste, a mim e à Alice, no passado dia 12 de novembro, 'neste tempo de festa da vossa Clarinha' (que fez dois anos, celebrados no Funchal)...

Embora não fosse essa a tua intenção como autor, o editor LG fez questão de o partilhar com os amigos e camaradas da Guiné, na certeza de que o vão ler e apreciar. Obrigado, Zé, em meu nome e da Alice, avós da Clarinha. E quando ela for maiorzinha, prometo lê-lo, em voz alta. Ficará a saber então que tem mais um "tio-avô" com grande sensibilidade humana e não menor talento, capaz de escrever um conto como este, tão cheio de ternura e tão "natalício". Um balaio cheio das melhores coisas da vida e do mundo, para ti, esposa, filhos e netos, coisas que não têm peso nem medida: saúde, paz, amor, esperança...Um abraço fraterno, Luís".


 
Conto: E eu ainda não era eu…


por José Teixeira

[ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá Empada , 1968/70; fundador e um dos régulos da Tabanca de Matosinhos; "senador" da Tabanca Grande, tem mais de 360 referências no nosso blogue]

 

Fui gerada antes de existir, em sonhos de amor, espelhados num berço de oiro fino, talhado a quente pelos meus pais, em noites de luar.

Caminhavam pela praia de Matosinhos fora, em passada suave, para não assustarem a leve brisa outonal que esvoaçava pelo ar e lhes roçava a face com carinho, alimentando o doce sonho que emergia dentro dos seus corações, vigiados por milhares de gaivotas em descanso, mais a norte, junto ao belo edifício do Terminal de Passageiros, enquanto outras esvoaçavam sobre as suas cabeças numa deleitável dança, animada por melodiosos cantos de acasalamento.

De mãos unidas pelos dedos firmemente entrelaçados, deixavam-se embalar pela música das ondas, que ajoelhavam a seus pés cobrindo-os de beijos, e sem querer lhes perturbavam a linha de pensamento que os unia, ao mesmo tempo que deixavam as doces gargalhadas de prazer e felicidade ecoar no espaço sideral que os envolvia.

Milhões de lâmpadas celestes projetavam tímidos raios de luz, deambulando pelo cosmos às escondidas da lua em fase de quarto crescente, até se cruzarem com aqueles olhos que irradiavam centelhas de felicidade. Retiravam-se, então, intimidados com o brilho que saltava alegremente daqueles olhares, como os raios do néon do mais belo reclame sobre o dom da vida.

Sonhavam o meu futuro num livro aberto cujas páginas estavam virgens. Imaginavam-me sentada na areia a escrevê-lo com tinta indelével da água azul do mar que lhe beijava os pés. E eu ainda não era eu. Eu era apenas o sonho que comandava as suas vidas. Era a estrela que brilhava no horizonte sem idade, caminhando ao encontro da luz da humanidade, trazendo na bagagem mil coisas belas. As mais belas que o mundo pode ter, para os encantar.

Por vezes, surgiam pequenas nuvens que escondiam o luar e as estrelas lá no alto dos céus e eu, que ainda não era eu, ficava triste. Tão triste como eles. Fantasmas cavalgando incertezas. Sombras agoireiras sobre o meu futuro, logo dissipadas pela esperança do amor que os unia e pela fé que transforma montanhas.

De repente, num estremecimento, que eles recordam a cada momento, deram corda à paixão que os unia, recolheram-se nas rochas plantadas na praia e eu nasci do mais belo ato de amor que o Planeta Terra conheceu. Cheguei transportada aos ombros, pelos ventos da ternura que os unia. Ousei bater, de mansinho, à porta da vida, e entrei sem pedir licença, na certeza de que seria bem-vinda e escondi-me silenciosamente no ventre de minha mãe. Estavam entrelaçados numa conversa animada e não deram pela minha chegada. Os gestos de carinho e afeto, que partilhavam entre si foram para mim o feliz prenúncio de que era ansiosamente desejada e senti-me uma felizarda por ter uns pais que se amavam tão profundamente.

E continuavam a sonhar. Acalentavam o sonho da minha vinda e eu estava no meio deles. Ainda pensei em transmitir-lhes um sinal. Talvez um pequeno enjoo à minha querida hospedeira, mas decidi acompanhá-los no sonho. Que sublime sonho!

Um belo dia, a minha mãe, notando a falta dos sinais da sua feminilidade, deduziu que eu tinha ousado aflorar dentro de si e guardou em silencioso anseio um sinal mais concludente da minha presença.

Durou pouco tempo o seu silêncio. A sua expectante alegria foi tão intensa que meu pai deduziu que algo de bom estava para acontecer. Também ele sonhava poder acolher-me nos seus braços, sem saber que eu já estava bem escondidinha no coração de minha mãe. Um terno e profundo abraço, que só os verdadeiros amantes sabem dar e saborear, foi a forma que a minha mãe encontrou para lhe transmitir a sua ansiedade. Senti-os a correr à procura de uma médica amiga, a Suzana, que confirmou a minha chegada.

Só sei que meu pai ficou tão “tonto” com a notícia que escreveu um lindo poema, que guardo como o primeiro e o mais belo presente que recebi, e o dedicou à minha mãe.



Estrela que brilhas no horizonte sem idade,
Ousaste bater à porta da vida,
De mansinho,
E entrar suavemente,
Caminhando ao encontro da luz da humanidade.

Trazes na bagagem mil coisas belas
As mais belas que o cosmos tem
Para nos encantar.
Serás sol ao amanhecer,
Lua cheia ao anoitecer.

Vem, meu bem,
Nosso caminho alumiar
Com o teu sorriso de bonança.
Flor em botão,
Rosa ou cravo, não importa,
Tu nasceste antes de ti
Em sonhos de amor,
Espelhados em berço de oiro,
Carregado de esperança.

Tu recebeste o sopro da vida
Em ninho de amor-perfeito.
Tu projetas amor em teu redor
O amor que nasceu contigo.
Tu levas amor a quem te ama,
Tu enriqueces de amor quem te protege,
Tu acolhes o amor puro
Do amor que te gerou,
Porque tu és amor,
Tu és o amor da nossa vida.



E assim se iniciou a minha aventura neste mundo. Convidaram os meus avós para virem, no domingo seguinte, almoçar cá a casa. Nesse dia, foram à florista comprar as mais belas flores e coloriram as janelas, mesas e prateleiras da casa. Puseram sobre a mais rica toalha de mesa o faustoso serviço de jantar, oferecido como prenda de casamento pelos meus tios Zeca e Linda. A minha mãe aprimorou um cabritinho assado no forno para dar um prazer ao meu avô, enquanto o meu pai, que não é adepto de doçuras, preparava uma salada de fruta com todos os ingredientes, para a sobremesa.

Era meio-dia quando os convidados, que até parece terem combinado a hora de chegada, o que não creio ser verdade, apareceram, felizes e contentes por poderem partilhar em comum um dia de convívio com os seus filhos. Creio que a minha avó Sofia já suspeitava, e tanto assim que trazia um belo ramo de rosas brancas para oferecer à filha querida.

Quando os meus pais lhes abriram a porta da rua, os acolheram de sorriso aberto e eles descobriram a pulcritude que transpirava no interior da casa, foi-lhes fácil deduzir que havia felizes novidades para contar. Não foram precisas palavras para anunciar que eu tinha chegado.

Uniram-se, os seis, comigo no meio, num abraço do tamanho do universo para festejar a minha vinda a este mundo. A felicidade que transbordou dos seus corações encheu o meu ego. Ah! Como eu gostava de ter perninhas, por mais frágeis que fossem, para poder expressar em pulinhos de alegria a felicidade que se apossou de mim, ao sentir-me assim bem-vinda! Mas eu era apenas um pequenino botão!

Ali mesmo andei de colo em colo. Fui elevada aos píncaros do céu pela minha mãe. Senti os abraços repartidos, os sorrisos espelhados da alegria que os animava. Os mil conselhos que as queridas avozinhas teimavam em dar à minha mãe foram guardados em livro de oiro. Todos eram precisos. Bem! Todos não. Alguns, já tinham barbas brancas como as do avô Tomás, outros, eram tão lógicos e de senso comum, que minha mãe apenas dava um sorriso de aceitação e os enviava para a pasta do esquecimento que acauteladamente trazia consigo desde o momento em que sentira minha chegada.

O meu avô paterno ficou tão comovido que pegou na mão da minha mãe, encostou-a ao coração e deixou cair uma lágrima de felicidade pela minha chegada, mas a minha avó, logo recolheu a lágrima num lenço de papel cor-de-rosa e pediu para chamarem o INEM. Foi tamanha a confusão que até eu fiquei assustada. Minha avó só gritava: "Chamem o INEM! Chamem o INEM!"

O meu avô, com a sua voz grossa, disse: "Qual INEM qual carapuça! Então não posso deitar uma lagrimazita de comoção que já estou doente?! Não te preocupes mulher, que o meu coração está forte e sobretudo feliz por saber que vou ser avô. Descansem e desfrutem este momento, tanto quanto eu!"

Fiquei então a saber que o meu avô sofria do coração, mas afinal estava apenas comovido e logo passou o susto, para eles e para mim, que ainda não estava preparada para estas coisas.

Estranhamente, os meus pais ainda não me tinham dado um nome. Fora tão curto o tempo, desde o momento em que me geraram, que nem se tinham lembrado de um nome para mim. Talvez se tivessem lembrado: creio que minha mãe tinha pensado em Constança e o meu pai sempre gostou do nome Gabriel; mas para quê pensar num nome para mim se nem sequer sabiam se eu era rapaz ou rapariga?! Nem eu sabia!

O mais importante para eles, segundo deduzi das suas palavras e pensamentos, era criarem as condições ideais para eu ser bem recebida. Meus avôs é que não descansaram e logo se puseram numa disputa acesa, perante o gáudio dos meus pais, pelo interesse demonstrado em me batizarem. No prolongado almoço que se seguiu, em que eu fui o centro das atenções, ouvi chamarem-me Miguelito, Dani, Tecas, sei lá! Tantos nomes me deram que já me esqueci, mas nada ficou decidido.

Talvez Constança! …Talvez Gabriel ou Rafael…talvez Tomás em honra do meu avô paterno… defendiam os meus pais, com afinco.

E assim passámos um belo dia!

A meio da tarde, bem comidos e bem bebidos, fizerem um tchim! tchim! à minha saúde e à minha mãe, como portadora do tesouro mais querido da vida deles, e eu senti-me um pequeno príncipe no reino que eles estavam a construir, de sonho e de esperança.

Agora já sei que era uma princesa e me vou chamar Constança.

Despediram-se com abraços e beijos e muitos desejos de felicidades para a minha mãe e para mim. O meu pai até se deixou envolver por algum ciúme que logo desapareceu na ternura de um beijo que minha mãe lhe deu.

Meus pais, mal fecharam a porta da rua, entrelaçaram-se um no outro e deram-me muitos beijinhos. Estavam tão felizes e eu sentia-me tão bem no meio deles! Viver deve ser uma coisa fantástica!

Depois, muita coisa boa me aconteceu...

A minha mãe trata-me com mil cuidados. Até já aprendi com ela a gostar de música! Sempre que está em casa a descansar, porque eu estou a crescer e devo pesar muito na sua barriguinha, ela deita-se a ouvir música e eu deleito-me com ela. Ficamos as duas muito quietinhas em silêncio. Bem, eu porto-me mal, porque já tenho o prazer de brincar e de lhe fazer cócegas. Aproveito os momentos em que ela está deitada, para brincar com os pés, mas ela parece gostar e vai logo pôr a mãozinha dela por cima. Até chama o meu pai para ele sentir o meu pé a fazer-lhe cócegas. E riem-se muito!... É tanta a sua alegria que até eu rio de prazer.

Sei que já tenho um bercinho junto do leito onde meus pais descansam, para quando eu sair da barriga da minha mãe, dormir aconchegada ao lado deles. Passam a noite abraçados um no outro. O meu pai ressona um pouco, mas não me incomoda. A minha mãe é que por vezes acorda e ficamos as duas sonhar o meu futuro. 

Vou ter muitas bonecas e outros brinquedos. Depois vou para a escolinha brincar com outros meninos e meninas e vou ter uma bicicleta oferecida pelo meu tio Zeca. Eu vou ser uma mulher alta como a minha mãe e tão bonita como ela. Não! Acho que minha mãe será sempre mais bonita que eu. Mas serei uma boa estudante e vou aprender a tocar piano como ela. Parece que o meu pai gostava que eu aprendesse a nadar. Ele ainda não mo disse, porque quem fala comigo é a minha mãe. Ela fala-me muito do meu pai e do amor que os une. O amor deve ser uma coisa muito boa, porque foi no amor que eles me geraram e, segundo ela diz, eu vim alimentar esse amor. Como eu me sinto feliz e orgulhosa!

Agora que sinto a quentura do tempo de verão a enlaçar-me e a convidar-me a ir ao encontro do mundo que me espera de braços abertos, com sorrisos acolhedores e corações cantando de júbilo, é tempo de aceitar o desafio para sair do cantinho acolhedor que minha mãe construiu dentro do seu coração e partir para a vida, levando comigo uma vontade tremenda de construir um mundo novo, de mão dada com todas as pessoas de boa vontade.

José Teixeira
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Nota do editor:

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22651: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IX: Bissau e Contuboel. Consulta de psiquiatria. Poema "O Menino de Sua Mãe". Nascimento do primeiro filho. Exame em Bafatá de militares sem a instrução primária. Sedução da senhora professora, cabo-verdiana... (Set - dez 1966)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 16 de Dezembro de 2009 > O João Graça, médico (, hoje psiquiatra e psicooncologista)  e músico, posando ao lado do dignitário Braima Sissé. Por cima deste, a foto emoldurada de Fodé Irama Sissé, um importante letrado e membro da confraria quadriyya [, islamismo sunita, seguido pela maior parte dos mandingas da Guiné; tem o seu centro de influência em Jabicunda, a sul de Contuboel; a outra confraria tidjanya, é seguida pela maior parte dos fulas].

O Braima Sissé foi apresentado ao João Graça como sendo um estudioso corânico, filho de uma importante personalidade da região, amigo dos portugueses na época colonial [, presume-se que fosse o próprio Fodé Irama Sissé].

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

(Continuação)


Bissau, 20 de Setembro de 1966


A Otília embarcou hoje para Lisboa. Viemos de cima, do mato, há três dias. Seguiu há pouco num avião militar, com uma bar­riga enorme de quase sete meses. Deve nascer o pimpolho em fins de Novembro, princípios de Dezembro. Vou ficar em Bissau durante mais uns tempos para me tratar, que não consegui aguentar-ne nas canetas psicológicas.

Bissau, 26 de Setembro de 1966

Poema para minha Mãe, que faz hoje quarenta e sete anos de vida:

“O MENINO DE SUA MÃE”

- Mãe, que é do teu menino,
Tão breve,
Brincando no caminho,
Em corridas de pé leve,
Guindando as poças da chuva,
Que caía em desatino
E logo estiava num instantinho?
- Que será feito do arco e do pião
E da fieira que se apertava no bojo como uma luva
Que o teu menino, à mão, zunindo, o lançava,
E da Lua clara que nem lampião,
Que, vagarosa, no céu viajava?

- Onde o marulho do mar
Que aquietava o teu menino,
E dos barcos de papel
Nas valetas rasas de água a cirandar?
Que lhe destinaram do destino
De flores e mel
Que lhe afian­çaste outrora?
E da Paz das noites benditas,
Do Deus em que ainda acreditas
E que o teu menino foi esquecendo,
Não O compreendendo
Por desdita agora?

- Onde o berço
Em que o embalavas,
E das preces da hora do deitar
- Nunca o terço! 
-
(Com Deus me deito, com Deus me levanto...)
E dos casos que lhe con­tavas,
E das cantigas soando a mar
(Assim era o teu canto!)
Que devagarinho en­toavas
Para teu menino nanar?
- Dize-me, Mãe, onde morreste
O teu menino?, em que desvão o escondeste
Para o ir procurar?

- Sabes, Mãe, o teu menino está tão di­ferente:
Velho e absorto
E sobretudo tão ausente
(Dir-se-ia quase morto)...
O teu menino
Já não salta ao eixo
Rebaldeixo
No adro paroquial,
Nem no ci­mento da Avenida...
Nem tão-pouco joga (o que é o destino),
O seu pião de fieira colo­rida,
Que há tanto tempo se rachou...
E o arco de ferro forjado,
Com a sa­pata feita do mesmo metal,
Foram-se enferrujando num recanto
Da encantada casa-de-trás...
Depressa 
- o tempo foge -,
O teu menino tornou-se rapaz
E dá a viva ideia de que é hoje
Uma visão alucinada de soldado...

Onde já lá vão as guer­reias
Tra­vadas na Canada da Sabina
Em que havia muita pedrada,
Baba e ranho, alarido e arengada,
Chegando o sangue a esguichar das veias?...

Ficava a Canada quase em frente
Da casa de madrinha Rufina,
Que um dia se despediu da gente
E se foi para a Amé­rica no voo da carreira...
Tudo então se passava entre o rapazio:
Os de Cima e os de Baixo, que, cheios de brio,
Defendiam à tapona e à porrada
A rigorosa fron­teira
Que separava os de cada lado da Canada...

Entre­tanto toda a vida se en­rodi­lhou,
E ela tem agora um travo a puro fel...
Só da noite mais noite é te­cido o teu menino,
Vive ainda em maior escuridão que o destino,
Que se não cum­priu e ficou em ruínas
- São as nossas sinas 
-
Mas nunca se há-de ele es­quecer
Que um dia que já não existe
De teres prometido ao teu menino
(Ele não se lem­bra agora se já então era triste),
Embarcado em seu batel de ilusão
E de papel,
O tal des­tino
Que, como vara de condão,
O haveria de transmu­dar em flores e mel...
Todavia, cá dentro, ele perma­neceu e continua refém...
Há-de ser resgatado, quem sabe, na Banda do Além...

A tua bênção me cubra, minha Mãe!


Bissau, 27 de Setembro de 1966

Aqui estou há mais de uma semana em trata­mento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa película de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiro de Walter e de G3. Faziam barulho, mééé, e eu não su­portava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G3. Mas eu pagava o prejuízo aos seus donos. Se era alta noite, gri­tava pelo cozinheiro e seus ajudan­tes e mandava que esquarte­jassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Chamava depois os indígenas, seus do­nos, logo de manhã ao quartel, per­guntava-lhes o preço dos ani­mais e pagava o que me pediam. Matava gatos também, mas esses ti­nham sete fô­legos e levavam muito tempo a morrer: esper­nea­vam e miavam de tal ma­neira, que quase me en­doideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria com cavalo mari­nho que dei num furriel. Mandei a Otí­lia para casa de um comerciante cuja mulher convivia por vezes com a minha, pre­tex­tando-lhe que queria ter uma conversa em particular com um militar. 

Foi a gota de água que fez com que o médico da com­pa­nhia me vi­es­se a sugerir, com muito bons modos, que, quando fosse a Bissau levar a Otília, ficasse por lá, a fim de des­cansar. Estava com o meu grupo de com­bate em Sonaco há mais de um mês. Ali era o re­pouso do guerreiro. Tinha um cachorro lindo, arra­çado de setter. Andava um dia a passear, ao lusco-fusco, na rua com­prida de So­naco, quando ouço atrás de mim o jipe da patrulha. Não deram por mim, que an­dava na berma. Só enxergaram o cachorro, que vinha no meio do caminho. E ouço então o furriel a dizer para o con­dutor: "Mata o cão do nosso alferes. " Não foi pre­ciso mais nada. Denunciei a minha pre­sença e ordenei-lhe que se apre­sen­tasse no quartel imediatamente. Obedeceu. Depois levei-o até à minha palhota. E foi en­tão que lhe toquei a pavana com o ca­valo marinho. Mas, não há dúvida, os medica­mentos que estou to­mando estão produzindo bom efeito. Já vou exercendo autocrí­tica sobre os meus actos passa­dos.


Bissau, 5 de Outubro de 1966

ALMA DOLENTE

A tristeza das coisas ao sol poente,
Falando, muda, numa voz precisa,
Escuta-a quem tem a alma dolente
E a dor de uma ânsia que se eterniza.

O Universo absoluto é uma ferida,
Lateja, arde, geme, sem compasso...
Dói tudo no silêncio, e a própria vida
Escorre vagarosa em gotas de cansaço...

Oh negrume tropical, noite africana,
Oh escuridão do medo em cada esquina
Com a vida enforcada em pó e lama,

Arranca do ventre tuas vinganças
E este ódio que as almas assassina
E deixa o Sol brincar com as crianças...


Contuboel, 7 de Outubro de 1966

O Dakota militar, vindo de Bissau, fez-se à pista térrea de Bafatá. Mas, quando tocou no solo, foi-se desviando para o mato, meio desasado. Parou a tempo de não haver desgraça. Tinha rebentado um pneu de uma das rodas do trem de aterragem. 

Como era dia de santo correio, estavam um jipe e um Unimog da minha companhia no aeródromo e assim aproveitei a boleia e vim logo para casa, que já tinha saudades dos meus cães e dos serões ouvindo a Voz da Liberdade e das tertúlias poéticas, em que lia, em voz alta, para um grupinho muito restrito, os versos da Praça da Canção, de Manuel Alegre, e também da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, que, por tal facto, teve de responder em tribunal, tendo a obra sido apreendida. Mandou-ma um elemento do Movimento Nacional Feminino, quando aqui esteve uma delegação de três meninas universitárias. Pedi-a no gozo. Nunca julgava que, ao fim de um mês, tivesse nas mãos uma obra proibida pela PIDE, enviada por quem foi.

[Imagem à esquerda: Capa da 1ª edição da "Poesia Portuguesa Erótica e Satírica", Lisboa, Afrodite,  organizada em 1965 por Natália Correia (1923-1993), com ilustrações de Cruzeiro Seixas (1920-2020). O atrevimento da açoriana, também de São Miguel, valeu-lhe, em 1970, a condenação a 90 de prisão correccional, no Tribunal da Boa Hira, com pena suspensa por 3 anos, por ofensa aos bons costumes. Editor e autores também foram condenados. Lembro-me. nos meus 18 anos,  da corrida à 1ª edição, de 1965,  que rapidamente se esgotou antes de ser apreendida pela PIDE. Cortesia de Livraria Trindade]. 


Contuboel, 10 de Outubro de 1966

Chegou há semanas, estava ainda em tratamento em Bissau, uma ordem do comando-chefe, via batalhão de Bafatá, destinada a todas as unidades do mato, sobretudo àquelas prestes a partir, avisando que os soldados que não sabem ler nem escrever terão de embarcar da Guiné pelo menos com o exame do primeiro grau, ou seja, a terceira classe da instrução primária; caso contrário, quando chegarem à Metrópole, não poderão ser desmobilizados e ficarão nas respectivas unidades até concluírem aquele exame. 
O mesmo acontecerá àqueles que, tendo embora o exame do primeiro grau, saírem daqui sem o diploma do exame da quarta classe. 

É uma ordem injusta, não por ela em si nem pelo seu alcance, mas pelo facto de estarmos a pouco mais de três meses do regresso e não haver tempo suficiente nem condições psicológicas para uma intensiva preparação escolar dos soldados em tamanho estado de indigência cultural. 

Por outro lado, também não se percebe muito bem o súbito interesse das hierarquias militares pelos seus homens analfabetos e pelos outros que só têm a terceira classe. Deve ser para dar alimento às estatísticas. O capitão pôs logo mãos à obra, isto é, nomeou alguns voluntários e já se começou há tempos a dar escola. Dois furriéis milicianos e um alferes (eu próprio, que me juntei há pouco), iniciaram então a tarefa de mestre-escola. 

Garanto que toda a gente irá embarcar com o seu diploma na mão, custe o que custar. Por desmobilizar é que não ficam, não senhor. Era o que faltava, depois de uma comissão desta natureza, permanecerem os pobres coitados retidos no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, até completarem os estudos. Os alunos são em número de dez: seis que não enxergam uma letra e os outros quatro pouco mais sabem, pois têm um primeiro grau muito atrasado e esquecido.


Contuboel, 23 de Novembro de 1966

Estava sentado no estabelecimento do comerciante português, lendo O Arauto, o pasquim da província, e fumando intensivamente cigarro atrás de cigarro, quando chega o nosso capitão com um papel numa das mãos. Era um telegrama que tinha vindo via rádio, anunciando-me que era pai. Fiquei néscio e sucinto. Pai! E escrevi, num aerograma amarelo, um poema ao meu filho José Manuel, a primeira missiva que recebe na vida, que ainda agora principiou...


Bafatá, 12 de Dezembro de 1966

Exame dos alunos da Companhia de Caçadores 800. Cometi um acto sacrílego, mas não havia outra escapatória. Sacrilégio maior seria deixar que estes homens ficassem na tropa mais alguns meses, ou um ano, sei lá bem, depois de terem sofrido o que sofreram nesta guerrilha diabólica de nervos e do resto, que foi ainda pior. 

Falei com a senhora professora, uma cabo-verdiana lindíssima, de fazer refrear a respiração. Disse-lhe da minha justiça e das minhas intenções. Ela, com o seu brio profissional à flor da pele sedosa:

- Não, senhor alferes, não posso consentir numa palhaçada dessa natureza, pelo amor de Deus. 

Principiei a seduzi-la e ela foi caindo de tal modo na esparrela, que, quando a convidei a sair da sala de exame, obedeceu, sem pestanejar. Depois. Olha, depois! Depois, encarreguei-me eu próprio de fazer o exame escrito, com caligrafia de principiante, a condizer, dos seis semi-analfabetos, que o tempo de aprendizagem e a disposição de ensinar foram mesmo muito escassos, enquanto os meus camaradas se incumbiram dos restantes. 

No fim, ficaram todos aprovados e a professora, ao entrar na sala após ter sido avisada de que terminara a prova para lhe entregarmos as respostas, lançou-me uns olhos tão doces, que me deu vontade de lhe tomar lições de qualquer disciplina.

Contuboel, 25 de Dezembro de 1966

Uma noite de Natal já com um grão de esperança no seu ventre e outro bem pesado na asa. Daqui a menos de um mês, vamos de abalada. Até parece mentira. As cruzinhas estão chegando ao fim. (**)

(Continua)