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quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23572: Notas de leitura (1484): "Aprendiz de Mágico", de António Mário Leitão: "Um romance autobiográfico surpreendente (...) Ao longo da narrativa aparecem as diferentes facetas profissionais vividas por um farmacêutico que também foi professor, analista clínico, director de um serviço hospitalar, animador cultural, aviador, patrão de alto-mar, instrutor de mergulho e chefe de expedições de aventura, até se converter em escritor compulsivo" (António Trovela)

 «1.  O António] Mário Leitão é um limiano, nascido em 1949,  que toca "sete instrumentos" e tem "muitas vidas". Além de marido, pai e avô, terno, extremoso, babado, é ou foi: 

(i)  fur mil na Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), 1971 a 1973;
 
(ii) membro da nossa Tabanca Grande, o nº 741,  desde 12/4/2017; 

(iii) tem cerca de 4 dezenas de  referências no nosso blogue; 

(iv) licenciado em farmácia pela Universidade do Porto, antigo director técnico da Farmácia Lopes, em Barroselas, Viana do Castelo, hoje  reformado, tendo leccionado também na Escola Superior de Enfermagem de Viana do Castelo ; 

(v) piloto civil (com mais de 300 horas de voo), patrão de alto-mar e instrutor de mergulho;

 (vi) autarca, cidadão empenhado, ambientalista,  dirigente associativo,  com vasta colaboração na imprensa; 

(vii) escritor, membro da Associação de Escritores, Jornalistas e Produtores Culturais de Ponte de Lima, membro da Associação Portuguesa de Escritores, autor dos seguintes livros:

  • "Aprendiz Mágico" (Lisboa,  Astrolábio, 2022, 264 pp.)
  • “Heróis Limianos da Guerra do Ultramar”(Ponta de Lima, ed. autor, 2018, 272 pp.);
  • "História do Dia do Combatente Limiano"  (Ponte de Lina, ed. autor, 2017)
  • "Biodiversidade das Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d´Arcos"  (Ponte de Lima: Lions Clube de Ponte de Lima, 2012, 295 pp. e mais de 500 fotografias).

 Participou ainda no XI volume da obra "Guerra Colonial - a História na primeira pessoa" (QUIDNOVI, 2011 a pág. 18 a 28), com o artigo "A farmácia militar".

Sexta-feira, dia 2/9/2022, às 20h00, vai estar presente na Feira do Livro de Lisboa, Parque Eduardo VII, pavilhões D44, D46, D48, D50, D52, para autografar o seu último livro   "Aprendiz de Mágico",  editada pela Astrolábio / Grupo Editorial Atântico (Prefácio do jornalista e diretor de comunicação Carlos Enes.  Preço de capa: 12 euros | ebook: 5 euros) (*)


2. Texto do poeta limiano António Trovela:

Aprendiz de Mágico,

 por António Trovela

Como diz Carlos Enes no prefácio, a vida do Autor, contada, não se acredita: da escuridão do fundo do mar à claridade celestial que pastoreia as nuvens, o protagonista enfrenta a morte com escandalosa insistência e arrebatador desprendimento.  João Barbosa, escritor limiano, comparou os relatos do “Aprendiz de Mágico” com as aventuras de Dan Brown, mas realçou uma diferença importante: a autobiografia de A. Mário Leitão é verídica!

Não é todos os dias que aparece uma obra a contar as “excentricidades” de alguém que sobreviveu a um grave choque anafilático na infância, que foi salvo de afogamento na adolescência, que foi libertado da forca in extremis, que escapou a um assombroso assalto de indígenas em terra africana, que esteve a morrer por paludismo, enfim… que pertence ao restrito clube dos pilotos sobreviventes de desastres aéreos!

Muitos leitores referem a sua experiência de terem lido o livro de uma assentada, e têm razões para isso: a pequena extensão de cada um dos 44 capítulos e cativação que a leitura provoca. De facto, em determinados momentos surge no leitor a interrogação sobre o que é que virá a seguir!

Esta é uma peça literária que junta a aventura com o humor, ambos polvilhados com adequada dose de lirismo. No prefácio, o livro é descrito como um parque de diversões de géneros literários, onde cabem a biografia, a crónica, o romance fantástico e até qualquer coisa de novela de cavalaria. Não poderá haver melhor definição para este “Aprendiz de Mágico”.

Contudo, há três capítulos verdadeiramente desconcertantes no que respeita ao que é permitido a um ser humano viver na sua passagem por este mundo.

Um deles relata a experiência do furriel miliciano que foi convidado para a mesa do General Luz Cunha, comandante-chefe das Forças Armadas de Angola, meticulosamente relatada.

Outro descreve, segundo a segundo, o disparo de uma espingarda submarina de pressão-de-ar, cujo arpão de 330 gramas beijou a face do autor e atravessou a sua máscara de mergulho, algures na praia de Vila Chã, em Vila do Conde.

O terceiro testemunho é um hino à vida, pois o Autor deixa escapar o orgulho que sente por ter impedido a consumação de três abortos. Por via disso, confessa jubilosamente, considera-se uma espécie de “pai espiritual” de três seres humanos, concretamente um médico, um professor e um advogado.

Ao longo da narrativa aparecem as diferentes facetas profissionais vividas por um farmacêutico que também foi professor, analista clínico, director de um serviço hospitalar, animador cultural, aviador, patrão de alto-mar, instrutor de mergulho e chefe de expedições de aventura, até se converter em escritor compulsivo.

É plausível que este livro venha a ser objecto de larga divulgação, quiçá global, pois é um romance autobiográfico surpreendente. (**)
________________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 5 de maio de  2022 > Guiné 61/74 - P23232: Agenda cultural (809): "Aprendiz de Mágico" (Lisboa, Astrolábio, 2022, 264 pp.), de António Mário Leitão: sessão de lançamento, sábado, 7 de maio, 17h30, auditório da CM Ponte de Lima


(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23568: Notas de leitura (1482): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IV: as circunstâncias da morte do 2º sargento mecânico auto Rodolfo Valentim Oliveira, em 11/8/1965...

domingo, 8 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23244: Manuscrito(s) (Luís Graça) (213): Memória dos lugares: a rua da tua infância...

 Luís Graça, Candoz, 13 de abril de 2022


Foto (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição  : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1/100. Domingo à tarde!… Um dia, algures na tua infância, começaste a detestar os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Sobretudo nada acontecia, no domingo à tarde. E até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua terra, a que chamarás doravante a tua aldeia.

Só não sabes exatamente quando começaste a detestar os domingos à tarde. De manhã havia a missa, e à tarde jogava-se à bola no campo pelado do largo do convento. Talvez tenha sido num final de verão, depois das vindimas, quando a miudagem ia ao rabisco [1]… E passou a ser desoladora, descarnada, esquálida, a vinha do Senhor, depois da vindima e depois do rabisco 

Seguramente foi algures, no fim da tua infância. No campo pelado da bola. Três paus a servirem de baliza. Uma baliza sem rede. Daí a ideia, tão nostálgica quanto tardia,  desta “viagem na tua terra”,  desta “viagem ao fundo da rua da tua infância”, a rua dos Valados

A infância é, metaforicamente falando,  uma rua. Labiríntica. E, como todas as ruas, tem um começo e tem um fim. E é atravessada por ruelas e becos. E,  como todos os labirintos , tem um fio de Ariadne. Pode ser uma rua mais ou menos comprida, ou até ter uma praça, um largo, um chafariz. Com casas de um lado e do outro. Mas toda a rua tem um princípio e um fim,  tem um cabo, tem um fundo. E a infância também. Ou se calhar não tem, porque se prolonga sob a forma de saudade. Ou nostalgia. Ou memória. Ou do exercício da memória,  como lhe queiras chamar. Ou até da recusa em sair dela, da magia e da segurança da infância. Estás mais inclinado a pensar que as ruas da infância não têm cabo nem fundo nem  fim, são circulares. O que fica na memória é uma espécie de caleidoscópio ou um “puzzle” onde faltam peças. Ou  ainda mais exasperante, no fim, há peças que não encaixam. Há umas a mais, e outras a menos. E, pior, não encontras mais a ponta do fio de Ariadne.

Não sabias quantos números de polícia tinha a tua rua. Pouco mais de meia centena, sessenta e tal, confirmarás mais tarde. Ia do Castelo às Aravessas. Era comprida naquele tempo. A  tua casa era o nº 47. E, talvez por estranha coincidência ou não,  tu tinhas nascido em 1947, no pós-guerra de todas as guerras. A que deveria ser a última, ouvirás muito mais tarde ao teu pai. Não herdaste dele o seu saudável otimismo e a genuína crença na bondade humana. Afinal, nasceste e cresceste em plena guerra fria, dois anos depois de Hiroshima. Ouvirás falar de Hiroshima. Muito mais tarde. E perceber então todo o horror de Hiroshima. E o que era o “mal absoluto”.

Sabias lá tu o que se passava pelo mundo, largo e profundo… Nem muitos menos onde ficava Hiroshima. Não vinha no mapa-múndi da tua escola. O mundo era a tua rua e pouco mais. A tua aldeia. E tinha princípio, meio e fim. Mais tarde arrancar-se-ão vinhas e pomares, na periferia da tua aldeia. E abrir-se-ão novas ruas. E construir-se-ão prédios altos como na cidade grande. De cimento armado. Com elevador. E mais tarde rotundas. Para parecer a cidade grande. Tudo em nome da ordem e do progresso, e segundo um qualquer plano de urbanização.  Mas essa já não era a tua aldeia, quando a revisitaste.


2/100. Nada acontecia no domingo à tarde… Ao domingo folgavam os corpos, era o dia do Senhor. Por isso era bom que nada acontecesse no domingo à tarde. Nada que te tirasse da pasmaceira dos dias, semanas, meses e anos.

Podias escutar a boa nova do padre vigário, no largo do Convento, ora sombrio ora soalheiro, mas a vida ia, sem alarde, no sentido inexorável dos ponteiros do relógio: “dextrorsum” (que “palavra cara”, aprendê-la-ás, mais tarde,  na escola).

Ou, por palavras,  mais simples, “do berço à cova, donde ninguém escapava”, os novos sucedendo-se aos velhos na fila da morte. “E quem acabava, sua cova tapava”.

Não podias queixar-te do destino (se é que ele já existia nesse tempo, mas já devia existir). E  muito menos dizer que “mais valia a morte que tal sorte”… Felizardo, não sabias ainda o que era a morte. A morte dos  que te eram próximos. A morte à tua volta.  A morte dos corpos, que das almas ainda sabias muito pouco ou nada. Muito menos a morte em massa. Dos alinhados contra os muros, e fuzilados de olhos vendados. Dos esmagados sob os escombros dos bombardeamentos das cidades. Dos empilhados nas carroças da morte nos campos de concentração. Eras filho do pós-guerra. E essa, a guerra, não chegara, felizmente, à tua aldeia. "Da peste, da fome e da guerra... e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine".

Quanto à tua morte, essa,  também não a podias vivenciar. Nem sequer a imaginar. Não tinhas consciência da morte. Não te lembravas sequer de fingir de morto, nem por brincadeira,  dentro de um caixão, a tampa aberta, num velório, com toda a família e vizinhos à tua volta, uns a rir, outros a chorar, outros a contar anedotas ou a comer pevides e tremoços. Ou um pires de arroz doce com delicados desenhos feitos, a dedo, por um fio de canela em pó. Ou a abrir a boca de sono e de enfado. Ou uma velha desdentada, carpideira, a enxotar as moscas da tua cara esverdeada, picada das bexigas, da varíola. Ou o Brutamontes de sobrepeliz branca e cornos negros como os do diabo, a encomendar a tua alma.

Não, não se brincava com a morte, quando eras menino. A não ser nas brincadeiras de guerra (não se dizia brincar mas reinar), no alto do Castelo, nas escadinhas da rua do Cemitério ou no largo do Convento. Nunca querias ser índio, porque tinhas que fingir de morto, um olho aberto, outro fechado. E usar arco e flecha. Os cobóis, esses,  nunca morriam. Eram os heróis gregos dos tempos modernos. Mas nenhum se chamava Ulisses. E tinham revólveres e espingardas. E todos queriam ser o xerife. Tu querias imitar  o Cary Cooper ou o John Wayne que chegarás a ver  no cinema do Clube, um casarão que começava na tua rua e ia até à outra  rua abaixo da tua. (Infelizmente, nada resta do edifício, nem sequer uma placa, foi mais uma vítima do camartelo camarário, e do tsunami que varreu a memória coletiva da tua aldeia.)

Enfim, essa era a vantagem de seres menino e moço e de ainda não teres uma imaginação mórbida nem seres masoquista. Sê-lo-ás mais tarde, ao desejares ser órfão!... Aos onze ou doze anos, quando já fores um ser híbrido, um púbere, uma amostra de gente, mas eleito de Deus. Enfim, tudo fruto das dores do crescimento, dir-te-ão mais tarde, prosaicamente. Mas é quando se deseja ser órfão, que acaba a infância e desaparece a rua onde foste menino. A rua da tua infância. Até então os teus pais eram os teus heróis. E a tua rua era o teu palco de brincadeiras, a extensão da tua casa, o centro do teu pequeno mundo.

Se algum bebé morria na vizinhança, era logo metido num pequeno caixão branco, com pegas de latão amarelo. A morte vestia-se de branco, naquele tempo. Da cor das asas e dos fatos dos anjinhos e das colchas das procissões, das noivas e das flores da laranjeira. Não havia grandes choros. “Deus o deu, Deus o levou”. Tão simples quanto isso.

Não podes hoje jurar que te lembravas de algum  anjinho, na tua rua. Aliás, era feio jurar, dizia a tua mãe. A memória hoje prega-te partidas, é seletiva, tantos anos depois. Por certo deves ter apanhado no ar bocados de  conversas da tua mãe ou das vizinhas, a bichanar entre elas para que as crianças não ouvissem e não se perturbassem e não fizessem xixi na cama à noite.  A morte perturbava os vivos, que se vestiam de preto quando morria algum adulto. Nunca se falava da morte e dos mortos à mesa. Muito menos dos que lançavam uma corda por cima do barrote da adega e se enforcavam. Nunca se falava da morte e dos mortos à  frente das crianças. Nem da morte nem do sexo. Eram tabu, o sexo, a morte, Deus, a Pátria e a Família.

Mas, se não foi na tua rua, terá sido  na rua abaixo. Ou no largo da Bica. Anjinho não tinha nome próprio,  muito menos sexo, nem morada. Tinha direito apenas a uma cova, pouco funda. E um número em chapa de ferro. Era apenas isso, um  anjinho.  A não ser que a parteira ainda fosse a tempo de o batizar, “in extremis”, e na ausência do padre… Davam-lhe então nome, cristão, que seria o mesmo da próxima criança a nascer, no seio da mesma família, se fosse do mesmo sexo.  Mas deve ter havido algum anjinho na tua rua, que a mortalidade infantil era alta nos anos quarenta e tal do pós-guerra em que nasceste[2].   

Se algum bebé morria,  ou nascia já morto, na tua rua ou na rua abaixo, ou ruelas e travessas perpendiculares, metiam-no logo no caixão branco, de tábuas de pinho,  e levavam-no para o talhão dos anjinhos no cemitério que ficava logo ali, a 100, 200 ou 500 metros. Acompanhado de meninos de sobrepeliz branca.  Não tinha direito a padre, como os suicidas ou os infiéis ou as mulheres públicas. Nem caldeirinha de água benta.  E muito menos a uma lápide tumular com o RIP dos romanos,  o requiescat in pace. E lá ia direitinho, coitadinho, para o “limbo”. Nunca te explicaram o que era o “limbo”: uma nuvem muito grande que funcionava como depósito dos “anjinhos” que não tiveram tempo de ser batizados como cristãos. Por quanto tempo ficavam lá ? Não sabias, nunca te souberam explicar isso, direito. Mas a tua curiosidade também era limitada, naquele tempo.

A rua dos Valados era também a rua do Cemitério. Para ti era a mesma rua, com o mesmo empedrado, não fazias distinção. E era comprida. Ia do Castelo às Aravessas. Para os enterros poderem levar muita gente. Sobretudo os enterros dos ricos. Isto é, dos importantes. Na tua terra confundia-se por vezes os ricos com os que mandavam e eram importantes. Os ricos não precisavam de mandar. Tinham os criados e os feitores que mandavam por eles, em nome deles. E as demais “forças vivas”, que estavam sempre do seu lado. E tinham charretes e cavalos e galgos e podengos para correr atrás nas lebres e das perdizes no Cercal do Alentejo. E mastins para açular os amigos do alheio.  

Aliás,  mandar era uma chatice, um incómodo, uma boldreguice.  Às vezes era precisar calçar as botas de cano alto e  afogar em sangue os que não queriam ser mandados e alçavam a cabeça, como os burros, os machos e os cavalos, quando se lhe punha o cabresto. Era para isso que servia o chicote que deixava o corpo do recalcitrante em carne viva no tempo em que ainda havia escravos. Já não te lembras desses tempos, só dos criados de lavoura e das criadas de servir. 

Que a importância social do habitante da tua aldeia,  media-se,  quando morto, pelo número de acompanhantes do seu féretro e pela riqueza ou grandeza do jazigo da família. Ou pelo número de padres de fora que abrilhantavam as cerimónias fúnebres… E pelo número de vozes no coro que cantavam  o Requiem. Havia vozes lindas no coro da igreja da tua aldeia. E uma delas era a da Branca de Neve, a tua catequista.

Ao longo da ruela principal do cemitério velho, alinhavam-se os jazigos de família, em estilos revivalistas. Cobertos de  musgo e líquenes, os jazigos das famílias importantes datavam do virar do século XIX e da 1ª primeira metade do século XX. Parte da história recente da tua aldeia estava lá inscrita nas lápides dos jazigos, desde que se construíra o cemitério na segunda metade do século XIX [3]. E, depois, havia o talhão dos Anjinhos e o dos Combatentes da Grande Guerra, de quem já ninguém se lembrava nada, a não ser o nome de rua de algum coronel de bigode façanhudo, sobrevivente das "campanhas de pacificação" em África ou das trincheiras na Flandres. Anjinhos e antigos combatentes não se misturavam com o povo das catacumbas. Nunca vistes ninguém rezar por eles. Ninguém rezava aos heróis que tinham morrido pela Pátria, e muito menos aos anjinhos que iam parar ao limbo.

Se algum velho morria, os putos da tua rua não davam conta. Os putos só queriam era reinação.  Os filhos, sim, esses é que se preocupavam com os velhos que morriam. Porque passavam, os filhos, a dar um passo em frente na fila da morte. E depois dos filhos, eram os netos. 

Era tudo muito mais simples aos teus  olhos de menino e moço. Simplesmente, deixavam, os velhos,  de estar à janela, o nariz esborrachado contra o vidro embaciado, o olhar vidrado, a respiração rouca. Horas a fio, como as múmias do Egito que nunca viste. Ou então como os bonecos de palha que se punham nos campos de trigo, a servir de espanta-pardais.

Era uma terra, então, de searas de trigo e de vinhas e de moinhos, a tua aldeia, estendendo-se por montes e vales, até às arribas do mar. E todas tinham dono, até as arribas. Só mar, não, porque era livre e selvagem com um potro. Estava tudo cadastrado. Até as Berlengas tinham dono. Com nome registado nas finanças e na conservatória do registo predial.

Ou então ficavam sentados à porta da tasca, os velhos, a fumar a sua beata, entre dedos enrugados, trémulos e amarelecidos. Como o teu avô paterno, Domingos Henriques, natural do Mont’oito. Casou três vezes, teve três famílias, contava-te o teu pai. E “tinha três pinhais e sete fazendas”…

Não te lembras da sua morte. Nem da sua vida. Só das suas muletas de pau, almofadadas na extremidade superior,  e do seu barrete preto onde guardava as beatas e os tostões para o “copo de três”.  E da sua farfalheira. A última vez que o viste, coitado, foi sentado à porta da taberna do Macaco (ou ainda era a do Maneta ?).

Não te lembras de ir ao funeral do teu avô. Nem de alguma vez de ele te ter afagado o rosto. “Ficou entrevado dos resfriados do mar”, dizia o teu pai. Delapidou o património com a “filharada” e os “amigos do petisco”, contar-te-á mais tarde, quando fores mais crescido e tiveres o entendimento das coisas comezinhas da vida. O teu pai resumia muito bem, e com humor negro, a história de vida do seu pai, e teu avô, que do segundo e terceiro casamentos “tivera 11 filhos e um suplente", ou seja, "uma equipa de futebol”.

Aliás, havia poucos velhos na tua aldeia. “Na era de trinta e um, poucos moços, velhos nenhum”. O teu pai nunca esqueceria a morte da mãe, tinha ele dois anos. Morreria jovem,  aos vinte e tal anos, a tua avó. Tuberculosa. “Tísica”, como  então se dizia. Nunca lhe deu um beijo, ao teu pai. Punha-lhe a mão em cima da cabeça, num gesto derradeiro de despedida,  sabendo que iria partir em breve para  a viagem sem retorno. Depois de ter cumprido o seu curto papel na terra, que era parir.

Essa imagem ficou gravada a ferro e fogo na pele da memória do teu pai. De todo improvável, aos dois anos de idade, dirão todavia os psicólogos. Mas tu acreditavas mais no teu pai do que nos psicólogos. Nesse tempo ainda não existiam. Ou, se existiam,  tu nunca tinhas visto nenhum.

Sabias lá tu o que era a doença, a pneumónica, a tuberculose,  a tísica, a morte, a dor lancinante da perda de uma mãe ou de um pai. Ou a tragédia da perda de um filho. E muito menos sabias o que era a sorte. “Até  à morte, dura a sorte”,  assegurava-te o teu pai, sempre com uma “fezada” (o termo era dele)  na “sorte grande”, a lotaria em que ele jogava (ainda não havia o totoloto) e que lhe saía sempre “em branco”… Pelo menos, foi feliz, em vida, o teu pai, contrariando o rifão: “A felicidade é como a sorte grande: só sai aos outros”. (...)

(Excertos)

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[1] Noutras terras, diz-se rebusco, respigo…

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22971: (Ex)citações (403): no país onde nascemos, nem as "iscas com elas" eram para todos (Eduardo Estrela, Cacela Velha, Vila Real de Stº António; ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)

1. Mensagem do nosso amigo e camarada Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha,  a jóia da Ria Formosa, cantada por Sophia; um das suas paixões é o teatro amador, mas também comeu, na infância, órfão de pai,  "o pão que o diabo amassou" (*).

Data - 1 dez 2021 23h31

 Data - sexta, 4 fev 2022 , 21:06 
Assunto  - Iscas com elas (*)


Caro amigo camarada e companheiro!

Imagina fins da década de 50,  início da de 60. 

Imagina um puto de 10 ou poucos mais, cujo pai, seu herói como são todos os pais, tinha ficado chateado com a puta da vida e decidido partir.

Na tropa,  tal como hoje, calçava n° 40, mas à época e com a idade atrás referida, esse puto tinha o "privilégio" de calçar sapatos n° 41 ou 42, com jornais na frente interior para não caírem dos pés.

Uma sopa confeccionada com o requinte de dez tostões de ossos comprados no talho e algumas, poucas vezes, iscas normalmente acompanhadas com elas, de modo a melhor lastrar a vasilha digestiva, eram um verdadeiro requinte e um manjar a que infelizmente muitos jovens Portugueses, àquela época, não tinham sequer acesso.

Esse era o País onde ambos nascemos! E esse puto era eu! (**)

Espero que tudo esteja a correr bem com a tua saúde.

Abraço fraterno.

Eduardo

P.S. - Podes publicar no blog com as notas pessoais que achares por bem incluir. 

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22960: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (31): "Iscas com elas..."

(**) Último poste da série > 5 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22969: (Ex)citações (402): adeus, Fajonquito!... Abandonámos o quartel quando vimos o primeiro macaco-cão "sorridente" (dentes ensanguentados à mostra), a ser arrastado para a cozinha... (Cherno Baldé)

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22896: Notas de leitura (1408): "Aldeia Nova de São Bento: Estórias, Memórias e Gentes", de José Saúde: nota sobre o autor, introdução e sinopse

 


"Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes": capa, badana e contracapa do livro (Edições Colibri, Lisboa, 2021, 299 pp.). 

Sessão de autógrafos, no sábado, dia 15 de janeiro, às 15h00, no Pátio Àrabe da Casa do Alentejo, Rua Portas de Santo Antão, 58, Lisboa. (*)



José Saúde, escritor e jornalista, 
ex-fur mil op esp, CCS/BART 6523 
(Nova Lamego, 1973/74), 
membro da nossa Tabanca Grande, 
com mais de 210 referências no nosso blogue


Autor: José Saúde

José Saúde nasceu em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de Novembro de 1950, todavia, o seu registo oficial de nascimento reporta-se a 23 de Janeiro de 1951. 

Ainda muito jovem, e sem nunca renegar as suas origens, fez da cidade de Beja a sua terra de adoção. Na velha Pax Júlia concluiu o ensino primário e foi aluno da antiga Escola Industrial e Comercial de Beja, agora D. Manuel I, na qual finalizou o Curso Geral de Comércio, ainda que pelo meio tivesse ficado uma passagem pela Escola Comercial Veiga Beirão, em Lisboa. Mais tarde completou o 12º Ano na Escola Diogo Gouveia, antigo Liceu de Beja. 

Desportivamente, iniciou a sua carreira futebolística no Despertar Sporting Clube e aos 16 anos ingressou no Sporting Clube de Portugal, como juvenil. 

Depois dessa experiência enriquecedora em Alvalade, e já como jogador sénior, representou o Desportivo de Beja e o FC Serpa. 

Em 1975, com o serviço militar obrigatório cumprido, foi um dos grandes impulsionadores do reaparecimento do futebol de competição na Aldeia Nova de São Bento ao reativar a atividade no Clube Atlético Aldenovense. 

O jornalismo foi sempre uma das suas grandes paixões. Em 1985 iniciou a sua carreira como jornalista no jornal desportivo bejense “O ÁS”. De agosto de 1989 a janeiro de 2000 assumiu o comando do pelouro desportivo da Rádio Voz da Planície (RVP), em Beja. Coordenou a equipa do desporto da Planície Desportiva da RVP aos domingos; foi o rosto do programa “Estádio” aos sábados e desenvolveu ao largo dos vários anos radiofónicos duas rubricas diárias desportivas de nome Livre Direto.

No ano de 1994 frequentou o Curso de Comunidades Europeas para Profisionales de Medios de Comunicacion no Centro de Documentacion e Formacion Europea de Extremadura, em Badajoz, onde recebeu o Diploma.

A nível nacional foi colaborador do jornal A Bola entre 1990 e 2015. Colaborou, também, com o JN - Jornal de Notícias - no período de 1996 a 2006 na área desportiva.

Em 2006 estreou-se na TV Beja (televisão por internet), sendo responsável pela área desportiva e em agosto de 2008 integrou o Departamento Desportivo do Diário do Alentejo, órgão no qual se mantém.

Em maio de 2009 foi galardoado pela Câmara Municipal de Beja com o Diploma de Medalhas e Insígnias Municipais – Mérito Grau “Prata” – “por ter sido destacado por serviços distintos e altamente meritórios ao Município, e cujo nome está intrinsecamente ligado a Beja” e em junho de 2015 foi distinguido com o Diploma de Sócio Honorário da Associação de Futebol de Beja. 

De entre a sua bibliografia fazem parte as obras:

  • Glórias do Passado, volumes I, 1999 e II, 2006 - relatando a evolução do futebol no século XX na Associação de Futebol de Beja; 
  • AVC Na Primeira Pessoa, 2009; 
  • O Trilho, 2013; 
  • Guiné-Bissau, As Minhas Memórias de Gabu 1973/1974, 2014; 
  • Associação de Futebol de Beja, 90 Anos de Memórias e Relatos, 
  • 2015; AVC Recuperação do Guerreiro da Liberdade; 
  • Do Aldenovense Foot-Ball Club ao Clube Atlético Aldenovense 1923 em 2016; 
  • Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74, em 2019.   


Introdução

por José Saúde


Nasci em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de novembro de 1950 e sou filho de Francisco Saúde e de Ana dos Reis Romeiro, ambos naturais da povoação.

Oriundo de uma família humilde, gente que “comeu o pão que o diabo amassou”, mas cujo princípio familiar passou por me colocarem a estudar num ensino secundário, ensino este que ia para além da então trivial quarta classe, foi, de facto, o literal propósito dos meus saudosos pais, pessoas modestas, mas que oportunamente se identificaram com uma enorme solidez humana que motivou o homem que hoje sou.

Neste contexto, e num desafio permanente às “Memórias da Minha Aldeia”, deixo escrito, neste livro, parte das raízes da minha infância e dalguns pormenores de profissões que marcaram épicas gerações, onde os mestres foram personalidades que inspiraram épocas inesquecíveis, sendo que o seu labor ficará eternamente contemplado. Para além dessas inequívocas lembranças, recordo alguns dos nossos conterrâneos que ficarão perpetuamente expostos numa montra de eloquentes e requintadas individualidades.

Mas, além de tudo o que aqui vos deixo escrito, o que é sempre muito pouco, preocupei-me em investigar temáticas sobre a lenda da origem da nossa Aldeia, do seu Padroeiro São Bento, da Festa das Santas Cruzes, um dos nossos ícones anuais, assim como a envolvência da Procissão, do nosso fabuloso Cante Alentejano, do simbolismo das Santas Cruzes feitas em casas de devotos, enfim, uma panóplia de narrativas avulsas indiscriminadas no tempo e que dão maior força ao tema trabalhado com imensa ternura e resplandecente paixão.

É, ainda, plenamente crível que articule histórias genuínas da nossa terra e, obviamente, dos seus antigos costumes. Recupero, também, parte de narrativas inseridas numa outra obra que em tempos lancei para os escaparates, mas que julgo apresentarem-se determinantes para a composição de recordações do antigamente da comunidade aldeã e que jamais serão esquecidas.

Reconheço que muito mais haveria para expor, admito. Mas, neste planeta da escrita, sempre perplexo, o autor procura, neste caso, dar uma imagem do universo aldeão, embora o faça meticulosamente, sem preconceitos e isento de presumíveis susceptibilidades. Os textos, avulsos, são determinados por capítulos, mas não por ordem cronológica no tempo e nem tão-pouco sequencial no plano alfabético.

Deixo explícito nesta introdução à obra que me propus efectuar, o meu profundo agradecimento ao David Monge da Silva pela sua prestável colaboração, e pelo excelente espólio de memórias da nossa terra que possui e de onde bebi profícuos saberes, bem como ao Francisco Costa, à Constança Joana pela sua enorme disponibilidade de comigo colaborarem, sobretudo na recolha de fotografias e de instrumentos básicos para a construção dalguns dos textos, ao Zé Bica e à minha prima Mariana pelas muitas perguntas que lhes fiz sobre questões de outrora o que implicava, como é óbvio, um conhecimento mais rigoroso dessas eras, principalmente quando a minha perspicaz curiosidade impunha um saber mais sóbrio e literalmente verdadeiro.

A todos os meus conterrâneos um bem-haja! (**)

José Saúde

Sinopse

(...) "Ao ler estas deliciosas crónicas regresso de imediato à minha infância e adolescência, a um tempo de felicidade em que todos os nossos familiares e amigos estavam connosco para nos ajudar a crescer e descobrir, sem sobressaltos, o mundo e a vida.

(...) Tudo hoje é diferente. O passado apenas subsiste na minha memória, nas minhas recordações. Somos as nossas memórias. Somos quem fomos. É a nossa história que nos caracteriza e define.

(...) Eu e o Zé Saúde vivemos a nossa infância e juventude nas décadas de 50 e 60, conhecemos a nossa aldeia com a sua população máxima, e acompanhámos o seu progressivo decréscimo.

(...) As memórias que nos são trazidas nesta obra situam-se, sobretudo, nestas duas décadas, trazem-nos personagens, profissões, modos de vida, relações sociais e formas de convívio que não voltarão mais. Há que ler atentamente para que os mais idosos recordem as suas vivências e os mais novos conheçam um pouco do que foi a vida dos seus pais e avós. Este livro é serviço público." (...)




(...) Esta é a décima obra de José Saúde que apresenta este livro como “uma obra que cruza gerações e onde explanei-o temáticas diversificadas. Aliás, nesta obra, que se estende pelas suas 299 páginas, relato a origem da localidade e os povos que lhe deram o nome em plena guerra da Restauração de 1640 (que durou 60 anos) aquando a dinastia dos Filipes se apoderou no nosso reino, das suas festividades mais marcantes (Festa do Círio e das Santas Cruzes, nomeadamente), assim como da sua originalidade, ou a forma que a história as relata, a antiga feira anual, em setembro (1, 2 e 3), gentes que marcaram a localidade, as antigas profissões, de pessoas simples que ficarão memorizadas na terra.”

José Saúde aborda também “os costumes da aldeia, as virtualidades dos mestres, o início do seu futebol, 1923 e o seu processo evolutivo, enfim, um conjunto de situações que nos leva a viajar no tempo, onde ressalta o êxodo rural para os grandes centros populacionais, Lisboa e os seus arredores assumindo-se como ponto fulcral, as “carradas” de famílias que diariamente deixavam a terra que os vira nascer em procura de uma vida melhor, da emigração, conterrâneos que partiam a salto para países que lhe proporcionavam um futuro mais risonho, o contrabando, ou do uivar dos lobos, as lutas politicas dos trabalhadores rurais” (...)

O autor destaca ainda “o Cante Alentejano elevado ao ponto mais alto, Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) a 27 de novembro de 2014 numa reunião do Comité em Paris, os jogos da minha infância, os amigos, as conversas dos mais velhos, mulheres e homens sábios que profetizavam o tempo e as culturas no campo, os petiscos, o tempo da miséria, o tempo das crianças com os pés descalços, enfim, um quase interminável número de circunstância a que propus e deixarei escrito para o meu povo.” (...)


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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22892: Agenda cultural (795): Convite para sessão de autógrafos do meu livro "Aldeia Nova de São Bento: memórias, estórias e gentes", sábado, dia 15, às 15h00, no pátio árabe da Casa do Alentejo (José Saúde)

(**) Último poste da série > 10 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22893: Notas de leitura (1407): Um livro que é "serviço público": "Aldeia Nova de São Bento: Memórias, Estórias e Gentes", José Saúde, Edições Colibri, 2021 (Prefácio de David Monge da Silva)

sábado, 27 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22757: Agenda cultural (790): Camarada, se vives em Lisboa ou na Grande Lisboa, leva amanhá o(s) teu(s) neto(s) à Maratona de Robertos, no Museu da Marioneta... Eu levo a minha neta, que acabou de fazer dois anos..... (Luís Graça)

Teatro Dom Roberto, Porto. Com a devida vénia...


1. Ólh'óó Rrrrrrroberrrrto!!!
Maratona de Robertos


Lisboa, Bairro da Madragoa, Comvento das Bernardas
Endereço: Rua da Esperança 146, 1200-660 Lisboa

Domingo, 28 Novembro de 2021 |
Sessões contínuas :  das 11h00 às 18h00 | Aconselhado a famílias |
Entrada Livre! 

No dia 28 de novembro o Museu da Marioneta festeja 20 anos, mas festeja também a classificação no Inventário do Património Cultural Imaterial do Teatro Dom Roberto, uma das formas mais antigas e mais genuínas de teatro de marionetas português. 

Dom Roberto é direto e rude, mas também simpático e bonacheirão, criando grande empatia nos seus públicos!

Até meados do século XX, era comum encontrarem-se Robertos e as suas coloridas barracas nas ruas, praças, jardins e praias de todo o país. De carácter essencialmente popular e frequentemente ignorada pela maioria dos historiadores e investigadores das artes teatrais, o repertório do teatro de robertos era composto por textos de tradição oral, de sabor popular, com direito a muito improviso. 

Novos e velhos, crianças e adultos, acorriam aos primeiros sons agudos da palheta, prontos a deliciarem-se com os episódios cómicos que aqueles bonecos protagonizavam com ritmo e destreza.

No final do século XX, no entanto, esta forma teatral estava quase esquecida. Foi João Paulo Seara Cardoso, do Teatro de Marionetas do Porto, que primeiro percebeu a necessidade de preservar os Robertos, aprendendo a arte com o marionetista António Dias, ainda em atividade nos anos 80. 

Hoje, em Portugal, há de novo uma família de bonecreiros que percorrem o país com os seus ‘atores de palmo e meio’, as suas guaritas e a sempre característica voz de palheta.

No domingo dia 28 estarão reunidos no Claustro do Museu, para uma Maratona de Robertos. Venha celebrar connosco e assistir ao teatro de marionetas Dom Roberto – pelos roberteiros:

  • Fernando Cunha
  • Filipa Mesquita
  • Francisco Mota
  • João Costa
  • Jorge Soares
  • José Gil
  • Manuel Dias / Trulé
  • Marcelo Lafontana
  • Nuno Pinto
  • Raul Constante Pereira
  • Ricardo Ávila
  • Rui Sousa
  • Sara Henriques
  • Vítor Santa Bárbara 

Vd. também aqui a história do Museu e Página do Facebook do Museu da Marioneta 

 
2. O Teatro Dom Roberto  é um género de espectáculo, teatral, popular,  satírico, itinerante, de bonecreiros, também conhecido como "teatro de fantoches", destinado a todas as idades, mas que faz parte, muito em particular  das nossas melhores recordações de infância...  Era então um dos grandes divertimentos populares, até cair hoje (quase) no esquecimento... Foi recentemente  inscrito no Inventário de Património Cultural Imaterial Português.

Nesse tempo, em que éramos putos,  ainda  não havia a televisão, nem a Net nem muito as redes sociais. Víamos os "robertos", literalmente maravilhados, fascinados, boaquiabertos, assombrados, divertidos, sentados no chão, à volta de uma "barraquinha de feira", montada nalguma praça, jardim,  feira, terreiro de festa ou praia das nossas santas terrinhas...  Infelizmente, esses espetáculos, sazonais, não eram tão frequentes quanto isso...

Citando o sítio das Marionetas do Porto: “Nos finais dos anos 50, ainda os fantocheiros populares calcorreavam terras portuguesas por festas e romarias, divertindo o povo de pequenos e grandes que acorria a ver os seus espetáculos. Os pequenos bonecos de madeira e trapos bailavam caprichosamente ao som dos gritos estridentes produzidos pelo fantocheiro e tudo terminava invariavelmente pela tradicional cena de pancadaria, para grande alegria do público.

"Hoje, o Teatro Dom Roberto é apenas uma imagem feliz da infância de alguns, um traço  vivo de uma preciosa herança cultural que se vai esvaindo com os tempos da 'modernidade' ".
 
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Nota do editor:

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22565: Notas de leitura (1383): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte I (Luís Graça)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz >  2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele,  uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74).

 Foto (e imagem): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro na Guiné, durante dois anos (BART 6520/72, Mampatá,1972/74), o que me encanta, no livro do António Carvalho (, foto atual à esquerda), são algumas das suas memórias da infância, passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que não era muito diferente daquele que muitos de nós conheceram, de norte a sul do país. (*)


São apontamentos, observações, registos, relatos, pequenos retratos e histórias de pessoas da família e vizinhos. etc., que considero de interesse etnográfico ou documental para se poder conhecer um pouco melhor a infância e a adolescência da nossa geração, aquela que, nascida ao longo dos anos 40 e ainda no início dos anos 50 (,como é o caso do autor), iria depois fazer a guerra colonial / guerra do ultramar, de 1961 a 1974.

A maioria de nós nascemos em aldeias ou pequenas vilas, e temos em comum muitas dessas vivências ou experiências, a começar pelo trabalho no campo ainda em tenra idade. Em 1950, quando o António Carvalho nasceu, a nossa população activa era de  3.2 milhões, distribuindo-se pelo sector primário (ou seja, agricultura, silvicultura e pescas) (50%), sector secundário (24%) e sector terciário (26%). 

Aqueles de nós cujos pais (ou tios, avós, etc.) eram agricultores, sabiam pelo menos o que era a segada (ou ceifa), a vindima, a apanha da batata, a rega do milho, a apanha da azeitona, etc. Enfim, sabiam donde vinha o trigo, o centeio, o milho, os legumes, o leite, o toucinho, o salpicão… Sabiam distinguir um carvalho, um castanheiro... Sabiam como se fazia o pão. Participavam da matança do porco. Iam ao “monte” ou às “sortes” apanhar carqueja, pinhas, caruma… Alguns inclusive sabiam conduzir os bois... E a sua vida era pautada pelo ritmo circadiano das estações do ano e sobretudo dos solstícios (o do verão e do inverno). (**)

E, mesmo depois da escola, aos 7 anos, não havia “férias grandes” (privilégio de alguns dos “meninos da cidade”), que, no campo, o trabalho do menino era pouco mas quem o desperdiçava era louco…Menino que  só tardiamente descobriria a cidade, a praia, o mar... (***)

2. O próprio topónimo Medas poderá estar relacionado com as “medas de palha” (pág. 13), embora na terra do António Carvalho fosse mais comum chamar-lhes “rolheiros”.

De resto, o léxico usado pelo autor também já não é frequente ouvir-se (nem ler-se( e os nossos filhos e netos têm seguramente que recorrer ao dicionário para entender, termos e expressões tais como “paveias”, “vencilho”, “broa”, “restivada”, “malhada”, “chadeiro”, “tarara”, “colmeiros”, “canastro”, “juntas de bois”, "soga", "carros de milho", etc.

(…) "O trigo e o centeio, semeados entre dezembro e janeiro, em junho eram segados e transportados para a eira onde o grão acabava de secar. A segada era um trabalho árduo que decorria sempre sob muito calor, normalmente feito por mulheres, levando cada uma o seu eito e deixando para trás as paveias que outra mulher ou homem se incumbia de amarrar, uma a uma , com um vencilho feito de meia dúzia de caules do mesmo cereal.

"Ao meio da manhã e pela meia tarde algum rapazinho da casa havia de chegar com uma cesta onde raramente havia mais do que broa , vinho e azeitonas, e era esta a hora de reparação de energias e de alguma consolação." (…) (pág. 12).


E já agora, leia-se mais um bocado da descrição das operações associadas à segada (ceifa) do trigo e do centeio:

(…) "Nesse dia ou no seguinte as paveias eram levadas, no carro de bois, para a eira onde se enrolheiravam e assim esperavam mais alguns dias de sol até serem malhadas, quando já o grão se separava facilmente da palha. Nesses campos de cereal de inverno ainda se conseguia semear , em julho, feijão fradinho a que chamávamos a restivada

Na minha freguesia, às medas de palha era mais comum chamar-se-lhes rolheiros, pese embora haver autores que consideram o topónimo Medas derivado precisamente de medas de palha. Nas malhadas cada pessoa batia com os molhos ou paveias sobre o chadeiro do carro de bois, tantas vezes quantas as necessárias para que nem um daqueles preciosos grãos ficasse preso. Depois, o cereal era limpo numa tarara e levado para casa onde se guardava em grandes caixas de madeira com três metros de comprimento por um de largura e altura da cintura de um adulto."(…) (pág. 12).

O trigo, o centeio e o milho eram fundamentais na alimentação dos portugueses. No Norte predominava a broa de milho com mistura de centeio, cozida semanalmente em forno a lenha. No Sul usava-se mais a farinha de trigo.

Capa do livro
(…) “Numa ou duas caixas ficava o centeio, numa outra ficava o trigo, o cereal mais nobre, panificado só em ocasiões mais festivas. A farinha de centeio era sempre consociada com a de milho, numa proporção de uma para três partes, respetivamente, nas cozeduras da broa, aquelas que se faziam na maior parte do ano. Mas nada se perdia nas casas de lavoura.” (…)(pág. 14).


De facto, aqui nada se perdia: nesse tempo, com a palha de centeio faziam-se os colchões das camas das famílias, palha que era substituída, todos os anos, antes da chegada do inverno.

(…) “Os molhos da palha de centeio, depois de malhados, eram desenvencilhados e passados por uma forquilha que se espetava no chão pelo cabo a fim de serem limpos da parte folear e de novo atados em molhos do tamanho de uma braçada a que chamávamos colmeiros. Eram depois estes colmeiros utilizados na renovação da palha de todos os colchões da nossa casa e os restantes vendidos a quem não semeava centeio e deles precisava.” (…) (pág. 14)

Havia “a meda grande, feita da palha de trigo e de centeio”, que servia para pensar o gado em estábulo, no inverno, 
quando não havia erva no campo; e ainda “outras medas 
mais pequenas, a que chamávamos rolheiros de palha de milho, 
que eram feitas nos campos, depois de se removerem as espigas 
dos caules”, igualmente importantes na alimentação do gado.

Ora “essas medas, as de palha de milho disseminadas pelos campos e a meda mestra, de palha de trigo e centeio, erigida altaneira junto à eira e ao canastro, eram formações de uma arquitetura móvel demonstrativa, pelo sua quantidade e volume, do tamanho de cada casa de lavoura.” (pág. 14).

3. Muito interessante a história da origem do cemitério de Medas (“O sítio das quatro casas", pp. 33/34), que só muito tardiamente, em finais de 1890, foi construído, graças a uma comissão de seis medenses onde estava representadas as figuras gradas da terra, incluindo o pároco, o professor, o regedor e o presidente da Junta de Paróquia. E logo ali foram construídos os primeiros quatro jazigos funerários… 

Ficavam, assim, representadas na nova necrópole as quatro classes sociais da freguesia: “as que tinham três juntas de bois, as de duas juntas e as que possuíam só uma ou nenhuma” (pág. 34).

Na realidade, a estratificação social daquela comunidade camponesa tinha a ver com a riqueza de cada família, sendo esta “aferida pelo número de juntas de bois que possuía e pelo número de carros de milho e, nessa altura, nas Medas, não havia ninguém mais rico que o lavrador mais abastado”. 

De acordo com dados recolhidos pelo autor, e relativos ao ano de 1922, “em Medas, havia cinquenta lavradores com uma junta de bois, vinte com duas e apenas cinco com três.(…) (pág. 69).

Tirando o período de 1890 a 1930 (correspondente à emigração para o Brasil, a I Grande Guerra, a pandemia de "gripe espanhola" e a crise económica dos finais dos anos 20), a população de Medas tem vindo a crescer, desde  o segundo triénio do séc. XX: 990 (em 1920) e 2433 (em 1991). Tem vindo, naturalmente, a decrescer (e a envelhecer) no séc. XXI: 2129 (em 2011), dos quais 16,7% com 65 ou mais anos. O concelho, Gondomar, faz parte da Área Metropolitana do Porto.

(Continua)

PS - Selecção de excertos, itálicos e negritos, da responsabilidade do editor LG.
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Fonte: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.

O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) Contactos do autor, António Carvalho, Medas, Gondomar

Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036
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Notas do autor:

(**) Vd. poste de 11 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22533: Notas de leitura (1380): "Um caminho de quatro passos": temos um novo escritor, o António Carvalho passa o teste, e espero que seja com louvor por unanimidade e aclamação dos seus leitores (Luís Graça)

(...) Muitos de nós, antigos combatentes, que nasceram em aldeias ou pequenas vilas, do interior do país, vão-se reconhecer neste retrato da infância e adolescência do autor. Em boa verdade, é o retrato da nossa geração... Muitos de nós, para não dizer a grande maioria, que nasceu, cresceu e viveu no campo até à idade de ir para a tropa. Uma geração que: 

(i) nasceu de parto com dor, em casa, sem assistência médica;

(ii) foi batizada segundo os cânones da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana;

(iii) foi alimentada a caldo e broa, e alguns provaram pela primeira vez o leite, ainda não pasteurizado, da vaquinha;

(iv) assistiu ao espetáculo, hoje cruel, da matança do porco (, fabulosa a sua reconstituição, em "O festim", pp. 20/22):

(v) aprendeu as primeiras letras à luz do candeeiro a petróleo e, muitas vezes, ia descalço até à escola da vila, com os sapatos de ir à missa atados ao ombro;

(vi) vivia em casas sem saneamento básico, sem eletricidade, muito menos rádio, telefone e televisão;

(vii) foi a 1ª geração de portugueses a ser vacinada contra algumas das mais temíveis doenças infetocontagiosas que no passado causaram elevada morbimortalidade;

(viii) passou a dispor, a partir de 1945, da bala mágica, a penicilina;

(ix) só conheceu a capital do país, quando embarcou para a guerra da Guiné, que a mobilidade espacial (ainda era um luxo)...

(x) mas começou também a perceber a importância da educação como forma de mobilidade social, ou seja, para se poder sair do círculo vicioso da pobreza;

(xi) num tempo em que a democratização do ensino (e a universalização da proteção social) só começaria a chegar no final do consulado de Marcelo Caetano;

(xii) é também a geração que sai, das suas casas da aldeia e das vilas, para fazer a última guerra do Império, ou para emigrar, a salto, para o Eldorado transpirenaico. (...)

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20088: Manuscrito(s) (Luís Graça) (169): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte I - O rio Grande...



Lourinhã > c. 1940 > Ponte sobre o Rio Grande, na avenida de António José de Almeida... Foto (ou coleção) de Francisco Fernandes. Cortesia da página no Facebook Lourinhã noutros tempos, mantida pela ADL - Associação para o Desenvolvimento da Lourinhã.



Manuscrito(s) (Luís Graça) Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares > 

Parte I: O rio Grande



Da serra, azul, de Montejunto às dunas da Praia da Areia Branca,  corria o rio, Grande, da tua infância.  Era grande só de nome,  era grande à tua escala, quando eras menino e moço,  e nele brincavas, apanhando enguias, com o teu pai...

Lembras-te ?  Usavam um velho chapéu de chuva, preto, esburacado, como se fosse um camaroeiro.

Só era verdadeiramente grande quando violento,galgando casas e campos,  o rio, Grande, da tua infância.

Até Deus ficava isolado na igreja do convento,  Deus, os presos da cadeia comarcã e a mestre escola e as bancas de peixe e hortaliça do mercado municipal e o matadouro e o quartel dos bombeiros.


Nos dias de inundações e enxurradas,  fazia se gazeta à escola, à catequese e à missa, e era uma festa para os putos. Tomara que chova três dias sem parar!, cantarolava a miudagem em coro...

Lembras-te como era larga a foz do rio e grandes as férias grandes de verão, uma eternidade, duravam enquanto durasse o pião.

E havia uma ponte de madeira, com as Berlengas, ao largo, e o cabo Carvoeiro, ao fundo, e, mais longe ainda, onde o sol se punha, o mar, medonho, revolto, dos teus avoengos,  desaparecidos entre as brumas da memória das Índias e dos Brasis, e o cacimbo matinal das bolanhas das Guinés.

Talvez houvesse, também, senhoras de chapéu alto,  magras, elegantes, citadinas, lisboetas, passeando em barcos a remos e fumando, imagina!,  cigarros de boquilha.  Já não te lembras dos barqueiros, passados todos estes anos. Mas devia haver barqueiros, no rio, Grande, da tua infância, como no rio Sena, em Paris,  e nos quadros do Renoir.

Dizem que os vivos voltam sempre ao local do crime onde nasceram e viveram. Mas um dia o tsunami do esquecimento  irá varrer a tua praia, as tuas dunas, o teu rio, o adro do recreio da tua escola, a tua rede neuronal, o teu álbum de fotografias, amarelecidas, dos rios  Geba e do Corubal, e os lugares da infância onde tu poderias ter sido feliz.

Mas quem sabe se foste feliz ou se poderias tê-lo sido ? Felizmente que não há escalas de medição da felicidade, válidas e fiáveis, e esse exercício é uma pura inutilidade,  o das palavras cruzadas da felicidade.

Dizia-se que o rio, Grande, da tua infância era navegável no tempo dos fenícios, romanos, visigodos, mouros e francos, mas não era rio, era braço de mar, indomável, braço armado do terrível poder de ditar as leis da vida e da morte, de fecundar a terra, de lavrar o mar, de povoar os vales e os cabeços, e de semear os cemitérios.

Nasceste a ouvir o mar, o barulho do mar e dos moinhos de vento que te deixaram os árabes, dizem uns, ou os flamengos, dizem outros, não sei o que está inscrito no teu ADN, mas se Deus te marcou é porque algum defeito te achou.

Batizaram-te cristão, na pia da igreja, gótica, do castelo, que foi românica,  e como antes terá sido mesquita mourisca ou capela visigótica, e, muito antes ainda, templo romano ou anta, dólmen, menir.

Perdeste-te, por amores e guerras, no caminho sul de Santiago e chamaram Grande ao rio da tua infância.

Em noites de pavor palúdico, na Guiné, imaginavas-te numa piroga louca, à deriva, pelo rio Grande de Buba das tuas geografias emocionais.

Nascia, pensavas tu, em Montejunto o rio, Grande, da tua infância,  e era azul a serra, vista do mar.  Mas tu nunca soubeste, em menino, o que ficava por detrás do horizonte. Por detrás de uma serra ficava outra serra, explicava-te a senhora professora de geografia, da 4ª classe e do exame de admissão ao liceu.

Era curto o horizonte dos meninos da tua rua, a rua do Castelo que terminava no cemitério, o terminal da morte. Nunca foste, na camioneta do João Henriques, espreitar o que ficava por detrás da serra de Montejunto.  De um lado o mar, que era muito maior que o pobre rio, Grande, da tua infância; e do outro a silhueta, azul, da serra, pontuada de moinhos brancos.

Que afinal não era tão alta, a serra, como tu a vias da torre de menagem dos teus castelos de brincar às guerras de mouros e cristãos. Ou quando ias pescar enguias no rio, Grande, da tua infância.

Hoje sabes que já não há enguias no teu rio e que tudo é à escala  do nosso infinitamente pequeno e humano. E que só Alá, dizem, é grande.

Lourinhã, 10 de maio de 2015. Revisto.

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 22 de abril de 2017 > Frente à igreja do convento de Santo António (finais do séc. XVI), com a sua torre sineira e o relógio (que esteve muitos anos avariado),  uma réplica de "Stegosaurus" (7 m de comprimento, 3,4 de altura)... Este e outros dinossauros da Lourinhã evoluiram  no Jurássico  Superior (c. 150 milhões de anos).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Cadaval > Vilar > Vila Nova > Serra de Montejunto > 20 de agosto de 2015 > O belíssimo  moínho do Miguel Nobre, no alto da serra... Dizem que é que é "o mais alto" da península ibérica, dos moinhos ainda a funcionar.

Daqui tem-se uma vista fantástica sobre o mundo, ou pelo menos sobre o meu/nosso oeste estremenho, do rio Tejo à serra de Sintra, o oceano Atlântico, as praias de Torres Vedras, Lourinhã, Peniche,  as Berlengas, a Serra dos Candeeiros... Está-se mais perto do céu e eu, da minha infância onde havia muitos moinhos e cabeços. Mas o mais fascinante é o moinho, o moinho de Aviz, e o seu dono, sem esquecer naturalmente a serra de Montejunto e os seus miradouros. O moinho, que ostenta o símbolo Aviz nas suas velas, estava em ruínas há uns anos atrás,  foi reconstruído e é hoje uma beleza de se ver... Tudo somado, ficou-lhe em cerca de 200 mil euros, o preço na altura de um bom apartamento em Lisboa... Infelizmente, mais recentemente o Miguel teve um AVC... Está recuperar e a lutar contra o infortúnio. O amor aos moinhos de vento tem-no ajudado a superar este problema de saúde. Um grande abraço para ele e para os meus amigos do Cadaval, Céu e Joaquim Pinto Carvalho,  que lá me levaram.

 Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]

Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]

91. O chiqueiro, o quinteiro, o curral, mais as galinhas, os pintos, os perus, os coelhos, os patos, os gansos, a coquicha, a galinha pedrês não-a-mates-nem-a-dês, a retrete de madeira, na casa dos teus tios do Nadrupe, as batatas comidas em comum, numa travessa que tinha um cavalinho ao meio, e que ainda não era o cavalo da GNR, louça de Sacavém, barata, para o povo, o terceiro estado, o mísero estado.

E nada de alvoraçá-lo, sangrai-o e sangrai-o e, se morrer, enterrai-o.

92. O vinho dava de comer a um milhão de camponeses que eram todos os habitantes da tua aldeia.

Lembras-te de vomitar a ceia, em dia de matança do porco, quando o teu pai chegou, à noitinha, de motorizada, a anunciar a vinda de mais um herdeiro, o terceiro, era menina e chamava-se… Inha.


93. Se havia uma idade da inocência era quando se subia à portentosa figueira da ti Elvira e do ti Manel da Quinta, da Quinta do Bolardo, e se partia a cabeça, e se descobria o sangue, não o de Cristo, mas o teu sangue, que não era frio e azul, era espesso, quente e vermelho.

Faziam inocentes tropelias, brincavam aos índios & cobóis no meio da vinha do Senhor, tomavam banho, nus, nas tinas de fazer o vinho, os meninos do campo e da cidade, da vila e da aldeia, e dormiam com primas mamalhudas em camas de ferro e colchões de palha e travesseiros de barbas de milho.


94. Até um dia em que no calendário deixou de haver o domingo à tarde, e o cão a uivar na vinha vindimada do Senhor, morreu o ti Silvano, de morte súbita, assim de repente, em plena força da vida, sem tempo para chamar nem o médico nem o padre, muita saúde, que Deus não dava tudo!, ameaçava o coadjutor do padre vigário, e confirmava o facultativo, o doutor das Beiras, que veio casar com a menina rica da tua aldeia.

95. Lembras-te dos gritos lancinantes das mulheres, das tias, das primas, da tua mãe, o último adeus, o muro rente do cemitério, as campas rasas dos fiéis defuntos, as cruzes de latão, as flores murchas, o talhão dos anjinhos que iam para o purgatório!... Tu, sem deitares um lágrima, siderado, colado ao chão!

Ainda não havia flores de plástico, nem muito menos sabias tu o que era a morte, só a do porco, e Deus era pai, infinitamente misericordioso, e o padre vigário (que sucedeu ao que te batizara na igreja do Castelo,) tinha para tudo uma explicação, até para o absurdo da vida e da morte dos pobres de Cristo, da morte dos tios queridos em plena força da vida, ou para a dor das pobres crianças inocentes, e que nem batizadas tiveram tempo de ser, a não ser talvez pela parteira aparadeira, a verdade é que tu nunca mais foste capaz de lá ir à noite brincar, para o adro da igreja do Castelo, ao lado ao cemitério, que bastava o sinistro pio da coruja, no alto da torre sineira, e os fogos fátuos de verão, para o sangue nas veias te gelar!


96. Deixou de haver domingo à tarde, e a inexplicável magia da infância, bordaram-te o enxoval, as meninas da rua do Clube, uma rua abaixo da tua, aos serões, as meninas do ti Louçã, que era pintor de portas e janelas, tetos, paredes e tabuletas, as meninas costureirinhas, tuas vizinhas, meteram-te na camioneta dos Capristanos, nunca soubeste quem, com destino ao seminário de Santarém, antigo palácio real, medieval e depois colégio dos jesuítas, tu e o teu baú, terrivelmente sozinho ante os dilemas da fé, da vida, da carne, do pecado, da morte, da ressurreição e do esplendor da vida eterna, amén!, ali especado, aterrorizado, num corredor pavorosamente alto e comprido, mais alto e mais comprido do que a tua rua dos Valados, e as paredes cobertas de retratos de reis e rainhas e de azulejos com contavam histórias que só podiam da ser da bela vida que levavam os reis e as rainhas, entre caçadas e danças palacianas.

97. Lá atrás ficava o mar, a Atalaia e o Mont’oito, a P’ralta, a Areia Branca, o Porto das Barcas e os casais de Porto Dinheiro e a Ribamar dos teus antepassados Maçaricos, e os fantasmas dos corsários que infestavam a costa, assaltavam, roubavam, violavam, matavam, queimavam, faziam reféns, para trás ficava o relógio, sonolento, da torre da igreja matriz, a vinha vindimada do Senhor, o piar da coruja, os fogos fátuos, os terrores do inferno e da castração, e os sardões que se apanhavam com anzol e pedaços de pão embebidos em leite na parede do cemitério, restos da antiga muralha do castelo que fora alcáçova e antes castro ou dólmen ou promontório.

E a história era isso: sedimentos e sedimentos sobrepostos, o pouco que restava da passagem de tantos povos que se matavam e enterravam uns aos outros.

98. E as primeiras beatas fumadas às escondidas, e os putos todos em fila a mijar contra a parede do cemitério, e a medir o tamanho das pilas, e os primeiros nomes das putas da tua terra, segregados ao ouvido pelos mais velhos, o "Frasco do Veneno", que era teu primo, em segundo grau, e que há emigrar, sem retorno, para o Brasil, e que te ensinou todas as asneiras do teu vocabulário de carroceiro, cada uma custando-te depois muitos valentes puxões de orelhas da tua mãe, e um ror de rosários, avé-marias, padre-nossos, e salvé-rainhas, pesado castigo do teu confessor.

99. E o moinho do T’chico Moleiro e os ventos que sopravam nas velas e nas cabaças, numa sinfonia agoirenta, e a amante do moleiro que vigiava os putos que lhe iam roubar as pêras, as uvas e as ameixas, o terror e a magia, enfim, das pequenas e grandes coisas da vida quando já se tem dez anos feitos, a 4ª classe e o exame de admissão ao liceu.

100. Levaste contigo a tela do Brugel , o Velho, como se fora uma cruz, pesada, tê-la-ás perdido para sempre quando te sentiste estrangeiro como o Camus, na tua própria terra. 


Ou então, deixa-me adivinhar: enterraste-a, definitivamente, na guerra, lá nas bolanhas ou na florestas-galeria da Guiné, entre os mais pobres dos pobres, os teus camponeses fulas pretos da Guiné.

Ou talvez nem isso: nunca te libertarás dela, dessa tela da infância, um caleidoscópio cheio de pictogramas, a não ser talvez através do exorcismo da memória e da escrita.

Fim


Lourinhã, 10/11/2005. Revisto.


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Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)

20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)

21 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)