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sábado, 25 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24095: Blogues da nossa blogosfera (179): "Reserva Naval", criado e mantido pelo nosso camarada Manuel Lema Santos, chega ao fim... por razões pessoais e familiares do autor (mas também, em parte, pelo cansaço bloguístico e pela ingratidão das nossas instituições e associações)



"Espaço aberto a antigos Oficiais da Reserva Naval na publicação de documentos, relatos, imagens e comentários. Um meio de comunicação e participação na divulgação do legado histórico da Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa."


1. Chega ao fim um dos mais notáveis blogues da nossa blogosfera. A notícia foi-me dada no passado dia 23, em Ílhavo...

E foi-me dada justamente pelo primeiro vice-almirante que eu conheci, pessoalmente, na vida, o Tito Peixe Cerqueira, filho da terra. (E que, por acaso, é o primeiro almirante de Ílhavo, o que não deixa de ser irónico, quando falamos de uma terra que tem no corpo e na alma o ADN do mar.) Não o conhecia pessoalmente antes, mas éramos, afinal, amigos do arquiteto José António Paradela que, nesse dia, partia, aos 85 anos, para a sua derradeira viagem, aquela que não tem regresso.

E, em conversa com o vice-almirante, agora na reforma, Tito Cerqueira, falámos inevitavelmente do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (de que ele era leitor), da Marinha, da Reserva Naval, da Escola Naval, etc., e de alguns amigos e conhecidos comuns. E veio então à baila o nome do Manuel Lema Santos, cujo blogue "Reserva Nacional", criado por ele (a sua origem rem0nta a 2006, embora com outros nomes) e mantido até há pouco tempo (desde 2016) com grande paixão, competência e dedicação.

Confesso que fiquei triste pela notícia, para mais naquela hora e lugar. Mas não quis começar a fazer o luto por mais uma perda de vulto (a seguir à perda de um grande amigo e um grande ser amigo, que era o  José António Paradela), sem antes confirmar, na Net, o que se estava a passar. De facto, ao chegar a casa, à noite, e ao clicar no link:


verifiquei só havia dois postes, um de 2021 e outro de 2023 (este datado de 16 de janeiro, que começava justamente com uma "nota do autor do blogue". 

Já aqui escrevemos em tempos: "Sem desprimor para outras páginas sobre a nossa Marinha, esta é uma verdadeira enciclopédia, de consulta obrigatória, sobre a nossa armada, nomeadamente do tempo da guerra do ultramar / guerra colonial."

E tínhamos orgulho nesse blogue da nossa blogosfera, para mais criado por um histórico do nosso blogue onde tem nada menos do que 6 dezenas de referências. A história da Reserva Naval da nossa Marinha (1958-1992) é também também parte da nossa história

Na realidade, essa "enciclopédia viva" está para todos os efeitos,  fechada, ou sem acesso... Mas eu ainda esperava, ontem,  que fosse só para "obras de remodelação", como a gente faz com as nossas casas, pelo menos ao fim de 30 ou 40 anos: fecha a casa, por uns meses, para obras...

Ontem à tarde, quis tirar a limpo as minhas dúvidas e telefonei ao Manuel Lema Santos, coisa que não é muito habitual em mim, não gosto de usar e abusar do telefone dos amigos e camaradas da Guiné. Afinal tivemos uma longa conversa, de 54 minutos e 40 segundos em que ele me explicou as razões por que "descontinuou" o seu precioso e insubstituível blogue.

Não estou autorizado (ou melhor: não vou cometer a indelicadeza de reproduzir aqui a nossa conversa, franca e desinibida, como é habitual entre nós, que não temos de afinar o nosso pensamento pelo mesmo diapasão mas respeitamos-nos mutuamente, começando por reconhecer a nossa comum condição de antigos combatentes na Guiné, que já se conhecem pessoalmente desde 2006, e, em segundo lugar, o de criadores e editores de blogues que, quer se goste ou não, são uma referência para muita gente que se interessa pela história da guerra do ultramar / guerra colonial, tendo consumido num caso e no outro muitos milhares de horas trabalho...

O que eu posso adiantar, muito resumidamente,  é que: 

(i) o Manuel Lema Santos acabou de fazer oitenta aninhos, em dezembro passado;

(ii) sente-se no direito de fazer uma "sabática", embora se sinta ainda em boa forma, física e intelectualmente;

(iii) há cansaço bloguístico, o blogue deixou de estar "on line" (todavia os seus ficheiros estão salvaguardados e pode ser reativado em qualquer momento);

(iv) com tempo e vagar, e sem prejuizo da sua vida pessoal e familiar (que ele agora põe em primeiro lugar), tem outros projetos: por exemplo, uma eventual publicação (e ele está à vontade neste domínio porque conhece bem o setor editorial e indústria gráfica),  para o material imenso (fotografia, infografia, texto...) que foi recolhendo, dos arquivos e dos seus camaradas da marinha que com ele têm colaborado; 

e , por fim e não menos importante (v) deixou-me transparecer alguma mágoa pela indiferença e  ingratidão que, concordamos os dois, é uma pecha nacional, é uma das "nódoas negras" que mancham a "farda branca" dos portugueses (sejam eles militares ou civis)...

De facto, nenhum de nós está à espera de uma comenda mas quando se faz oitenta aninhos  depois de muito trabalho "pro bono", a favor dos outros (através das associações, organizações, blogues, etc.) sabe bem o reconhecimento e o apreço de quem direito, e sobretudo dos nossos pares...

De qualquer modo, o blogue está também, em grande parte,  salvaguardado com as capturas feitas pelo robô do Arquivo.pt. a última das quais em 19 de março de 2021, às 6h30. Dei a notícia  ao autor, que desconhecia a existência do Arquivo.pt,  da FCT - Fundação para a Ciência  e Tecnologia. 

Eis o (novo) endereço da "Reserva Naval" (agora em arquivo morto):

https://arquivo.pt/wayback/20210310063043/https://reservanaval.blogspot.com/



Leiria > Monte Real > Palace Hotel > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de Abril de 2012 > Manuel Lema Santos e Maria João (Massamá / Sintra)... O Manuel Lema Santos fez, antes do início do almoço, uma breve alocução, em nome da direção da AORNA - Associação dos Oficiais da Reserva Naval.  

O Manuel Lema Santos (ex-1º ten da Reserva Naval da Marinha de Guerra, imediato da LFG Orion, Guiné, 1966-1972), e que foi um dos nossos camaradas que esteve no nosso 1º Encontro Nacional, na Ameira, em 2006, ofereceu ao blogue, na pessoa do Luís Graça, um exemplar do "Anuário da Reserva Naval, 1958-1975", da autoria de A.B. Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado (Lisboa, 1992), um exemplar autografado do "Anuário da Reserva Naval, 1976-1992", de Manuel Lema Santos (Lisboa: AORN, 2011), bem como vários exemplares da última edição da publicação periódica da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval (AORN, nº 19, outubro de 2011), e ainda uma medalha comemorativa da fundação da AORN, em 1995.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados  


2. Nada melhor do que reproduzir aqui, com a devida vénia, a "nota explicativa" que o aut0r do blogue quis deixar para os seus leitores, na hora da despedida.  

Aqui fala-se, polidamente, em "suspensão", e não em "fecho definitivo"... E deixam-se agradecimentos a quem ajudou o autor. E, por fim, ficam também sentidas palavras de apreço e gratidão para com  a Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa que "encarnou, para todos os Oficiais que por lá desfilaram, muito mais do que uma forma, dita civilizada, de cumprimento do serviço militar obrigatório".

Nota do autor do blogue:

Desde 2006 que entendi publicar regularmente alguns retalhos da História da Marinha Reserva Naval, em que aquela classe de Oficiais teve primordial importância na segunda metade do século XX, muito por virtude da Guerra do Ultramar.

Ao longo dos anos a Marinha acabou por formar quase 4.000 oficiais da Reserva Naval. Mais exactamente 1712 entre 1958-1975, conforme Anuário da Reserva Naval da autoria dos Comandantes Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado e outros 1886 entre 1976-1992, conforme Anuário da Reserva Naval referente àquele período e da autoria de Manuel Lema Santos, antigo oficial da Reserva Naval, licenciado no posto de 1TEN RN em 1972, regressando nesse ano à vida civil.

Expresso aqui o meu profundo agradecimento à Instituição Marinha, nomeadamente ao Arquivo de Marinha, Biblioteca da Marinha, Revista da Armada e Museu de Marinha que me permitiram consultar, compilar e coligir muita da documentação que estruturou um blogue simples, ainda que pretendendo exibi-lo publicamente com um mínimo de qualidade histórica.

Não posso deixar de acrescentar um agradecimento aos inúmeros apoios que tive de Camaradas com documentação e imagens cedidas, sem os quais não me teria sido possível alcançar este objectivo, modesto mas determinado por forma a manter algum rigor histórico. 

Um último obrigado a todos os que, com comentários ou pessoalmente, me incentivaram por qualquer forma à continuação ao longo do tempo.

No outro lado da margem os que gostam de brilhar plagiando o trabalho de outrém, sem sequer se preocuparem com a qualidade da cópia ou as referências de origem. Felizmente foram muito poucos e sem expressão.

Por cansaço natural e um olhar familiar que me permita ainda tentar zelar pelo futuro de filhos e netas com natural apreensão, entendi suspender a publicação do blogue pessoal www.reservanaval.blogspot.com,  com um natural e sentido pedido de desculpas àqueles que me seguiram ao longo dos anos, para os quais manterei sempre a minha disponibilidade.

A Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa encarnou, para todos os Oficiais que por lá desfilaram, muito mais do que uma forma, dita civilizada, de cumprimento do serviço militar obrigatório. Ao tempo, uma opção pessoal possível num percurso universitário completo ou em vias de o ser, passagem obrigatória no rumo de vida traçado, ao serviço da cidadania e do país onde nasceram.

Diria melhor e mais correctamente, da Pátria. A evasão temporária ao amplexo paternalista, algum inconformismo e a necessidade inadiável de transpor aquela linha no horizonte terão sido algumas das motivações.

Outras tantas, eventualmente condicionadas por aspectos pessoais, profissionais, familiares e também económicos. De um lado, incertezas, anseios, dúvidas tumultuosas, sentimentos contraditórios e algumas perspectivas goradas, mas também natural confiança e esperança.
Do outro, o salto no desconhecido, arrojado mas sonhador, a aventura e o desejo de bem cumprir.

Se para muitos configurou uma escolha alternativa enquanto no desempenho de um dever cívico, para outros terá representado uma ponte provisória para a vida profissional. Ainda para alguns, em menor número mas mais tarde, a própria carreira profissional.

Escola Naval, viagem de instrução e juramento de bandeira marcaram, em sucessão, formação académica e humana, camaradagem e também crescimento. Em cenários de guerra como Moçambique, Angola e Guiné, mas igualmente em S. Tomé, Cabo Verde e no Continente, quase quatro mil Oficiais da Reserva Naval desempenharam funções ao serviço da Marinha de Guerra Portuguesa.

A navegar ou em terra, como oficiais de guarnição ou nos fuzileiros, todos fazendo parte do transbordante testemunho de solidariedade, generosidade e convívio partilhado com as Unidades e Serviços onde permaneceram. Ombreando com militares e camaradas de outros ramos das Forças Armadas. Ganhando acrescido sentido de responsabilidade e maturidade. Grangeando pelo cumprimento, pelo exemplo e pela dedicação, a amizade, admiração, respeito e camaradagem de superiores, subordinados e também das populações com que contactaram.

Na memória que o tempo não apaga, esfumam-se relatos, acontecimentos, documentos, registos, afinal História. História da Reserva Naval e da Marinha de Guerra que lhe deu origem. No espírito Reserva Naval, um passado comum a preservar.

Uma palavra para todos aqueles que nos deixaram prematuramente, chamados para a última viagem. Estarão sempre connosco!

Manuel Lema Santos
1TEN RN 1965/1972
Guiné, LFG "Orion" 1966/1968;
Comando Naval do Continente, 1968/1970;
Estado-Maior da Armada, 1970/1972

[Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição dese poste: LG]
_________

Nota do editor:

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23966: Tabanca Grande (541): José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista (LFP Bellatrix, 1969/71 e Comando Naval da Guiné, 1971/73), que se senta no lugar n.º 868 da nossa Terúlia

1. Mensagem do nosso camarada José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista (LFP Bellatrix, 1969/71 e Comando Naval da Guiné, 1971/73), com data de 9 de Janeiro de 2023:

Meu ilustre camarada Carlos Vinhal
Na sequência dos emails trocados entre nós, venho por esta via requerer a minha inscrição na TABANCA GRANDE, enviando, para o efeito, os seguintes elementos solicitados:

a) - Nome... JOSÉ MARIA MONTEIRO - voluntário
b) - Posto militar... Marinheiro "C"
c) - Especialidade... Radiotelegrafista
d) - Ramo das Forças Armadas... Marinha
e) - Colónia: Guiné, 4 anos contínuos (1969-1973)
f) - Unidade na Guiné: os 2 primerios anos... N.R.P. Bellatrix
g) - Unidade na Guiné: os últimos 2 anos no Comando Naval da Guiné
h) - Data da ida... 23 de Setembro de 1969
i) - Data do regresso... 29 de Setembro de 1973
j) - Locais de combate, no norte: Rio Cacheu, Rio Almada, Rio Bipo-Oio
k) - Locais de combate, no Centro: Rio Grande de BUBA.
l) - Locais de combate, no Sul: Rio Tombali, Rio Cumbijã e Rio Cacine, entre outros
m) - Foto - junto duas
n) - Condição de JOVEM COMBATENTE. Sim, sou dos mais jovens combatentes do Mundo. Não há, nunca houve em qualquer país que tenha entrado em conflito bélico com outros povos, exceto em 1944, quando a Alemanha se apercebeu que ia perder a guerra, a recrutar jovens mancebos com 16 anos para combater nas nossas Antigas Colónias. Sei que não sou o mais jovem combatente do Mundo, ou dos exércitos portugueses desde a fundação da nacionalidade até hoje, mas conheço alguns camaradas e outros tantos "filhos da escola", esses sim, são os MAIS JOVENS COMBATENTES, do Mundo.

Carlos, o meu penúltimo trabalho tem como título "OS MAIS JOVENS COMBATENTES", onde se refere exatamente a condição de jovem combatente.
Fui voluntário para a Marinha com 16 anos e, após terminar a especialidade, ofereci-me voluntário para a nossa antiga colónia da GUINÉ. Acredita, tenho orgulho nisso.
Fico disponível para dar todas as informações que necessitares.

José Maria Monteiro
Cascais 09/01/2023

N.R.P Bellatrix - Com a devida vénia ao Arquivo da Marinha
O CEMGFA com o autor e com o Sr. Presidente da Delegação da O.A. de Cascais, no lançamento do livro "OS MAIS JOVENS COMBATENTES", em Cascais

********************

2. Comentário do coeditor CV:

Caro José Maria Monteiro, muito obrigado por te juntares à nossa tertúlia. Tens ao teu dispor o lugar 868 da nossa Tabanca Grande.

É sempre um privilégio receber um camarada de outro Ramo das Forças Armadas que não o Exército. A esmagadora maioria da tertúlia pertence ao Exército e alguns, poucos mas bons, à Força Aérea e à Marinha.


O modo como cada um viveu a guerra, no chão, no ar ou nos sinuosos rios, faz com que cada memória traduza um modo diferente de ver e interpretar uma mesma acção. A Guiné não foi fácil para nenhum de nós. Todos tivemos medos e sentimos a morte por perto, fosse em terra firme, no ar ou na água.

Nos teus quatro anos de comissão, que começaste ainda tão jovem, deverás ter inúmeras situações para relatar. Não sei se no livro que vais apresentar no próximo sábado, dia 14, fazes referência à tua experiência enquanto operacional da Marinha Portuguesa.[*] De qualquer maneira, gostávamos que partilhasses connosco as tuas memórias e fotografias. É também uma das "obrigações" da tertúlia esta colaboração.

Faltou mandares uma foto fardado e indicares a tua data de nascimento, caso queiras que publiquemos o postalinho alusivo à efeméride.

Em nome da tertúlia e dos colaboradores deste Blogue, fica aqui um abraço de boas-vindas e a nossa disponibilidade para o que achares útil.
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Notas do editor:

[*] - 5 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23951: Agenda cultural (823): Convite para o lançamento do livro "ANTIGOS COMBATENTES, Humilhados e Abandonados", por José Maria Monteiro, dia 14 de Janeiro de 2023, pelas 12,00 horas, no Restaurante Manuela Borges, Santo António da Charneca - Barreiro

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23845: Tabanca Grande (540): Manuel Calhandra Leitão ("Mafra"), ex-1º cabo at arm pes inf, Pel Mort 1028 (Fá Mandinga, Xime, Ponta do Inglês, Enxalé e Xitole, 1965/67)

domingo, 20 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23095: Antologia (85): Operação Crocodilo, Guiné-Bissau, junho/julho de 1998 (Revista da Armada, julho de 2013): Em 44 dias de missão e em 23 operações, foram resgatados 3487 refugiados, com o apoio do navio de carga "Ponta de Sagres" da Portline (Correio da Manhã, 17/2/2007)

1. OPERACÃO CROCODILO 

Revista da Armada, julho de 2013, pág. 20

(Com a devida vénia...) (**)

Em 7 de junho de 1998 desencadeou-se na Guiné-Bissau um conflito interno entre forças militares leais ao Governo do Presidente Nino Vieira e aquelas que se viriam a agrupar e torno de uma “Junta Militar” liderada pelo general Ansumane Mane.

A fim de efetuar o rápido resgate de cidadãos portugueses e de países amigos que, fruto da elevada insegurança criada pelo conflito, pretendessem abandonar a Guiné-Bissau, o Estado Português colocou em curso a Operação Crocodilo. (*)

Esta operação envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas, sendo a componente naval constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio. Comandava esta força naval o CMG Melo Gomes.

De forma intensiva e, muitas vezes, simultânea (1), as duas aeronaves foram utilizadas em diversas missões de embarque de cidadãos nacionais e de países amigos para os navios da força naval, na distribuição de ajuda humanitária em diversos locais do território guineense, e em algumas missões de reconhecimento.

Uma das missões de recolha de cidadãos nacionais realizadas pelos dois helicópteros levou-os a cruzarem grande parte do território da Guiné-Bissau até aos Rápidos do Saltinho, nas proximidadesda fronteira com a Guiné-Conacri. 

Após um trânsito realizado a muito baixa altitude, sobrevoandoas vastas e densas florestas guineenses e utilizando a cobertura dos braços de rio e das copas das árvores para evitar uma desnecessária exposição, os helicópteros tomaram imediato contacto com grupos armados da “Junta Militar” logo que aterraram no local de recolha. Desembarcada diversa ajuda humanitária e recolhidos os passageiros ali presentes,  regressaram à Vasco da Gama sãos e salvos.

De referir que as cartas de navegação aérea disponíveis eram fotocópias a preto e branco de cartas aeronáuticas que datavam do início dos anos setenta (2). Sendo que naquela área do globo ocorre frequente perda de cobertura GPS, as aeronaves realizaram grande parte da operação com recurso a procedimentos de navegação tática meramente visual (carta-terreno).

Os helicópteros tiveram ainda uma importante participação no processo inicial de mediação e negociações de paz entre as partes em confronto, realizando diversas aterragens em local sob controlo das forças da “Junta Militar”. Releve-se a missão de transporte de uma comitiva de representantes dos países da CPLP, liderada pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Jaime Gama, de Cape Skirring, no Senegal, para a fragata Vasco da Gama, então a navegar no leito do Rio Geba.

Para poder manter e operar as duas aeronaves que embarcaram durante a Operação Crocodilo, o MUTTLEY, nickname do destacamento de helicóptero atribuído então à fragata Vasco da Gama, recebeu um reforço de dois tripulantes e três técnicos de manutenção.

Num ambiente de elevada volatilidade, o emprego criterioso e eficaz dos dois helicópteros embarcados na Vasco da Gama, associado à sua rapidez e versatilidade, revelou-se de importância muito relevante para o cumprimento da missão da força naval durante a Operação Crocodilo.

P. Conceição Lopes CFR

_________

Notas

1. Muitas das missões aconselharam à operação simultânea dos dois helicópteros. Sempre que possível, o convés de voo do Bérrio era usado em apoio à operação simultânea. Contudo, quando os navios não estavam em companhia, o que aconteceu várias vezes, a realização de operações de voo das duas aeronaves obrigou a uma coordenação e precisão concertada de todo o navio em geral, em particular de toda a equipa de convés de voo, sem margens para erros ou atrasos.

2. Fotocópias tiradas, na véspera da largada da força naval de Lisboa, de cartas da Esquadra 501 (C-130) da Base Aérea nº 6 do Montijo.


2. Informação complementar do jornal "Correio da Manhã", de 18/2/2007 (***), excertos selecionados (e negritos)  pelo editor LG, com a devida vénia:

(...) "Quando a guerra acaba, o pesadelo resiste na memória dos sobreviventes: 10 de Junho de 1998 – Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas –, o País é surpreendido com o agravar dos conflitos na Guiné-Bissau. O então líder da Junta Militar – brigadeiro Ansumane Mané –, que comandava as tropas amotinadas no país, acusava a França de conivência com a intervenção militar do Senegal e da Guiné-Conacri. Por seu lado, o presidente ‘Nino’ Vieira, suportado por 1500 militares (parte deles senegaleses), combatia os revoltosos. 

O nosso País acordava para uma missão imperiosa: a de resgatar os cidadãos portugueses ameaçados por fogos-cruzados

Melo Gomes foi o oficial superior escolhido para comandar a Força Naval envolvida na operação ‘Crocodilo’; na semana passada, sob a égide do hoje Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), a Marinha simulou, em Tróia, um cenário semelhante para testar a intervenção da Força de Reacção Rápida[Exercício ‘Intrex’]

(...)  Recuando à África onde há nove anos se desenrolou uma missão real , desvendam-se contornos, até políticos, decisivos para fazer avançar a operação ‘Crocodilo’. “Criou-se logo uma célula no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e reuniu-se o primeiro-ministro, António Guterres, com o ministro da Defesa e MNE, Jaime Gama, e os respectivos gabinetes”, recorda José Lello, na altura secretário de Estado das Comunidades. Fizeram-se contactos diplomáticos, só que não era possível esperar mais. Pela primeira vez, ponderou-se a hipótese de pedir auxílio a navios civis que estivessem na região.

O feriado festivo – de quarta-feira – ligava por ponte o fim-de-semana do oficial de operações Braz de Oliveira (hoje porta-voz da Marinha). “Recebi a notícia quando estava dentro do carro, com a minha família, a caminho do Algarve”, recorda. Inverteu a marcha em direcção à Base Naval do Alfeite, em Almada, e embarcou na fragata ‘Vasco da Gama’ com o comandante Melo Gomes. “Foi feita a ordem de operações, promulgadas as instruções de coordenação e preparada a largada.” A Marinha tinha 48 horas para se aprontar e fazer--se ao mar quando a tutela decidisse.

O Aeroporto Osvaldo Vieira, em Bissalanca, era palco de confrontos – dominados pelos rebeldes –, impossibilitando que os cidadãos portugueses fossem resgatados por via aérea.

Contra-relógio, do lado do Governo, o secretário de Estado das Comunidades recebia dos Serviços de Informação os dados para avaliar o conflito. “Os relatórios permitiam fazer uma avaliação a cada momento. De antemão, já se sabia que a situação era complicada. Só que África é imprevisível. E, de repente, como não havia organização táctica [nos combates], aconteceu” – disse José Lello. Mas a situação agudizou-se.

“Acordámos com o som dos bombardeiros; a primeira coisa que fizemos foi ligar para a Embaixada”, relata ‘Amir’ Carmali, um português que residia em Bissau. “Ainda não tinham informações concretas para nos dar, só nos aconselharam a não sair de casa.” Ouviam-se rajadas, bazucadas, bombardeios, que tinham como alvo os militares. Na capital, as ruas eram controladas por senegaleses ao serviço de ‘Nino’ Vieira.

Em Portugal havia a certeza: o resgate impunha-se. A Marinha precisava de mais de três dias para alcançar Bissau. Só restava pedir ajuda a navios civis.

 “Houve um contacto que é das coisas extraordinárias: sabíamos que havia um navio lá e não é que o primeiro-ministro [Guterres] consegue, ele próprio, falar com o comandante”, revela Lello.

(...) Na Guiné, a distância obrigou a que fosse o navio de carga ‘Ponta de Sagres’  [ da Portline] o primeiro a tirar portugueses de Bissau.

Contrariando o noticiado na época, o comandante do ‘Ponta de Sagres’ afirma que o navio não foi mobilizado. “Tínhamos carga para Bissau e fundeámos no limite das águas territoriais”, conta Hélder Almeida (#). Foi Stanley Ho – o magnata de Macau e principal accionista da Portline – quem assumiu todos os riscos da operação.

“A Embaixada (##), que tinha os contactos de toda a gente, foi inexcedível no apoio”, garante o refugiado ‘Amir’ Carmali. Os estrondos da guerra aterrorizavam. Mais: tinha chegado o momento de abandonar as casas. A representação portuguesa aconselhou-os a levar panos brancos e pertences leves. Correram até à Sé de Bissau, que servia de ponto de encontro, e seguiram para o cais. “Estavam lá centenas e centenas de pessoas brancas, pretas, tudo.”

Dia 11, perto da hora de almoço (cinco dias depois do estalar da crise) zarpou a ‘Vasco da Gama’. Antes, às 09h00, o ‘Ponta de Sagres’ avançou para Bissau. “Tive noção do risco. Mas decidi sozinho, porque há alturas em que o comandante decide sozinho.” Chegados ao cais, dois navios, um cubano e outro russo, cerravam o espaço. Mais de seis horas depois, o russo cedeu lugar ao cargueiro – ainda com 300 contentores cheios de alimentos, material de construção, roupa e outros produtos. O embaixador Henriques da Silva e a cooperação portuguesa assistiram ao embarque e à filtragem de refugiados feita por senegaleses. Só embarcavam portugueses e cidadãos de países amigos.

“Íamos de calções e camisa; o calor apertava”, conta ‘Amir’, que agarrava apenas uma garrafa de água e um saco com o que se salvou. Para trás, o irmão deixava negócios de importação e exportação. “No porto, as granadas caíam muito perto – nem na Guerra Colonial em Moçambique vi bombas cair tão perto.” Soavam alertas; o chão e o ar vibravam assustadoramente; o assobiar dos tiros atirava os refugiados, encobertos pelas mãos na nuca, para terra. Os estrondosos morteiros só encontravam resposta nos gritos de pânico.

‘Amir’ e mais 30 refugiados, zarparam à boleia do navio russo que transportava para a Índia as cinco mil toneladas de castanha de caju, vendidas por ele e o irmão. Foram para Banjul, Gâmbia. À partida, antes de darem lugar ao ‘Ponta de Sagres’, o agora dono de um restaurante lisboeta, com 54 anos, disse: “Olha, oh Deus, nós já estamos a safar-nos. Agora, Ajuda estas pessoas.”

No ‘Ponta de Sagres’ caberiam cerca de mil pessoas. Embarcaram 2250. Os refugiados, de 30 nacionalidades, fizeram 24 horas até Dacar, no Senegal. “A bordo, a habitabilidade era precária: casas de banho, só algumas mulheres e crianças lá chegaram; eles faziam onde calhava; as messes foram abertas também às mulheres e crianças com alimentação à base de massas, grão e bolachas; à noite passaram frio e, muitos, fome e sede; devem ter dormido sentados”, conta o comandante.

Dia 15 de Junho de 1998, a ‘Vasco da Gama’ entrou em águas territoriais da Guiné – o pior dia, o do ataque da Junta Militar ao quartel de Brá e ao aeroporto. “Estivemos sempre sob ameaça e a própria Força Naval foi bombardeada e alvo de morteiros”, lembra o oficial de operações do Estado Maior. 

Durante os 44 dias de missão foram evacuados, em 23 operações, 1237 refugiados. A fragata ‘Vasco da Gama’, as duas corvetas ‘João Coutinho’ e ‘Honório Barreto’ e o reabastecedor ‘Bérrio’ foram a localidades distantes, como Bubaque, Ponta do Biombo, Varela (**) e Rápidos do Saltinho, buscar pessoas. Faltou um navio polivalente à Marinha.

 (...) Uma semana depois de terem começado os confrontos na Guiné, a população da capital guineense baixou de 300 mil para 130 mil residentes. Fugiram para o interior do país.

“Quando a fragata ‘Vasco da Gama’ se fez ao mar, parti para o Senegal com uma equipa médica e jornalistas”, relata o então secretário de Estado das Comunidades. “Levava um telemóvel satélite para me manter em contacto com o MNE.” O embaixador português em Dacar estabeleceu a ligação entre os refugiados e os voos da TAP que os trariam, sãos e salvos, para o nosso País.

No centro de refugiados, em Dacar, “fomos bem tratados”, garante ‘Amir’, embora muitos portugueses se tivessem queixado das condições. Havia um pavilhão amplo e cheio de camas de campanha para descansarem; comiam ração de combate e uma refeição quente por dia. 

Mais tarde, com as saudades a apertar, embarcaram com destino ao Aeroporto Militar de Figo Maduro, Lisboa. As autoridades verificaram os documentos; os refugiados descansaram e alimentaram-se; quem não tinha casa em Portugal recebeu dinheiro, alimentos e produtos de higiene.

A missão na Guiné terminou com recordações amargadas pelas circunstâncias, mas felizes pelo sucesso no resgate de 3487 refugiados. 

Na semana passada, o ‘Intrex’ deu provas da capacidade de reacção da Armada. E a ‘Vasco da Gama’ seguiu para o Mediterrâneo Ocidental para integrar uma força com o porta-aviões espanhol ‘Príncipe das Astúrias’, em mais um exercício. (...)

__________

Notas do CM e do editor LG:

(#) Hélder Almeida, de 64 anos, comandava o navio de carga ‘Ponta de Sagres’, durante o resgate na Guiné. Recebeu de Jorge Sampaio, ex-Chefe de Estado, a Ordem Militar de Torre de Espada.

(##) Recomanda-se a leitura dos 3 postes que aqui publicámos há mais de 10 anos sobre a origem deste conflito político-militar... São da autoria do antigo embaixador português e nosso camarada Francico Henriques da Silva, membro da nossa Tabanca Grande:

17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)

18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

19 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7818: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (3) (Francisco Henriques da Silva)

 __________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)

 (**) Último poste da série > 15 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23082: Antologia (84): Poema dedicado ao Tono d'Amelita, meu companheiro de carteira no velho colégio, morto em combate em Moçambique (Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3853, Aldeia Formosa, 1971/73)

(***) Vd. CM - Correio da Manha - Guiné em Tróia a ferro e fogo: A operação que levou a Marinha à Guiné, em 1998, é mais do que uma memória: é um exercício militar para testar a capacidade de reacção rápida. 18 de Fevereiro de 2007 às 00:00

sexta-feira, 18 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)


NRP Vasco da Gama (F330) na sua visita a Tallinn, capital da Estónia, entre 27 e 31 de março de 2008. Pormenor, imagem editada pelo nosso Blogue, da autoria de Ivo Kruusamägi da Wikipedia estoniana (2008) (Com a devia vénia ao autor e à Wikimedia Commons)

Guiné > Região de Cacheu > Varela > Maio de 1968 > A extensa praia de Varela...


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Patrício Ribeiro, Ilha de Orango, 2008. 

Membro da Tabanca Grande desde 6/1/2006.

1. O Patrício Ribeiro, que vai passar em breve a nosso colaborador permanente para as questões da geografia e economia da Guiné-Bissau,   país lusófono onde vive  desde 1984, ou seja, há quase 40 anos. Fundou uma empresa, a Impar Lda, que tem levado a água e a luz a muitas tabancas recônditas. O seu filho está a dar continuidade ao negócio, mas ele não é homem para se reformar: não se reformou aos 70, também não se vai reformar aos 75 (a completar no dia 11 de outubro de 2022). Está cá e lá, entre Águeda e Bissau, descobriu agora as delícias da vida de agricultor, além de avô.


(i) A propósito da foto acima, do Virgílio Teixeira, tirada em maio de 1968,  escreveu o Patrício Ribeiro, em 8 de janeiro de 2018 (**):

Varela... Estas árvores que se vêm na foto [, de cima,], já foram levadas pelo mar.

Tenho aqui perto [, em Varela],  uma pequena palhota para passar alguns fins de semana. Há 20 anos estava a mais de 250 metros do mar, agora o mar já está muito mais perto; dentro de algum tempo, já posso pescar com a cana, a partir da minha varanda…

Neste mesmo local, numa clareira, aterraram os helicópteros da fragata Vasco da Gama, para recolher os Portugueses que aqui estavam encurralados na guerra de 1998.  Foi num destes helis que o nosso saudoso Pepito, saiu.

Eu também aqui estava… Mas tinha por missão ajudar a sair outros Portugueses que se encontravam no interior, em Canchungo e Cacheu. Como não apareceram às horas combinadas, estive em S. Domingos e depois em Ingoré (, sem combustível e em situação de guerra),  à procura deles… E de onde, a partir dos rádios da Missão Católica, comuniquei com a fragata a informar que estavam atrasados para a sua evacuação…

Ao fim do dia, também saí desta praia [, de Varela,] numa canoa nhominca, acompanhando os últimos 10 portugueses que quiseram sair, assim como de outras nacionalidades,  a quem a fragata autorizou o embarque… 

Como destino, “o pôr do sol”, o poente… Passados 18 milhas, mar adentro, lá encontramos a nossa frota com 3 navios dos “filhos da escola” que na parte final nos vierem cumprimentar nos botes e mandar subir pela escada de corda, para a fragata Vasco da Gama. (**)

(ii)  Informação complementar do Patrício Ribeiro sobre a sua ação heróica em Varela, logo a seguir ao golpe de Estaddo de 7 de junho de 1998 (***):

(...) Já não foi possível os helis da fragata Vasco da Gama voltarem a aterrar na praia, havia quem os quisesse deitar abaixo… mas fomos acompanhados pelo ar, de onde recebíamos ordens, por vezes mandavam-nos, à nossa canoa, desviar de alguns obstáculos, que havia no mar …

Luís, o comentário que enviei sobre as fotos da praia de Varela, foi a partir da minha lareira nas margens do Vouga [, em Águeda], onde há frio e foi com um copo de tinto na mesa …

Gosto de falar da minha praia de Varela de que adoro; dos banhos na água quente a 30º, das minhas pescarias diretamente para o grelhador, acompanhadas por umas bacias de ostras, etc…

O que escrevi no comentário, é um pequeno resumo dos diversos capítulos vividos naquela época, mas muitos deles ainda os considero 'classificados' …

Quando nos voluntariamos a ajudar os outros, quando pessoas a chorar nos pedem para não os deixar para trás …,   a “formação militar não o permite", vem ao de cima...

E, por força das condições, passamos a ser o elo de ligação entre o resto do mundo e o interior de um país em guerra, de onde não é possível informar os familiares: onde estamos, que estamos vivos … Repara, não havia telefones e as fronteiras estavam fechadas, quer internamente, quer com os países vizinhos e estas últimas estavam a ser bombardeadas. Bissau ficava longe e não  se sabia o que se passava no interior.

E quando do exterior… nos pedem a colaboração, através do nosso “bombolom”, para encontrar esta e aquela pessoa de quem não se tem notícias há muitas semanas … certamente qualquer um de nós ajudaria, se tivesse condições...

Os restantes capítulos vão saindo, quando alguém tocar na "ferida".

Luís, depois de ter saído na canoa nhominca, que, no regresso, na minha presença, carregou da fragata Vasco da Gama a primeira ajuda humanitária para a Guiné, destinada à Missão Católica de Suzana,  eu voltei para Portugal. Não, não fiquei lá...

Mas passados 2 meses regressei à Guiné, via Dakar e táxi aéreo para Bubaque, dali para Bissau em vedeta de guerra, que foi construída no Alfeite e que estava na mão dos militares senegaleses.

De Bissau por vezes saía para Varela, quando recebia um 'papelinho' avisando que era melhor ir dar uma volta… Pegava na minha mochila com uma lata de atum, atravessava a pé as bolanhas e lá ia eu para banhos.

O aeroporto de Bissau, esteve fechado quase um ano… Quando da morte do 'Nino', tinha ido passar o fim de semana à ilha de  Orango…

Na morte do Ansumane Mané, estava fora de Bissau...Ao reentrar em Bissau encontrei quase uma centena de milhares de pessoas, a saírem a pé. Algumas já iam para lá de Nhacra. Fiz um apelo na rádio RTP África, para mandarem transporte, afim de apanharem as pessoas que estavam a dormir à beira da estrada, sem qualquer condição.

Ao mínimo problema, a estrada principal era fechada a viaturas, em Safim.

Assim. como da morte dos restantes [altos dirigentes do país...], estava fora, por Varela, Contuboel, etc.

(iii) Comentário do nosso editor LG:
 
Patrício Ribeiro, português,
nascido em Águeda, em 1947,
criadoe casado em Angola,
com família no Huambo,
ex-fuzileiro em Angola de 1969
a 1972, a viver na Guiné-Bssau
desde 1984,
fundador, sócio-gerente
e director técnico
da firma Impar, Lda-


O Patrício Ribeiro não é por acaso que era conhecido em Bissau, ainda até há pouco, como o "pai dos tugas"... Os jovens, cooperantes, rapazes e raparigas, tinham por ele um enorme respeito e admiração na altura em que o meu filho, João Graça, o conheceu em dezembro de 2009, em Bissau...

Esta história do resgaste de diversos portugueses e 
outros, em plena guerra civil (que começou com o golpe de  Estado de 7 de junho de 1998), perdidos em Varela, Canchungo  e Cacheu, devia merecer honras de título de caixa alta nos jornais da época e nas parangonas dos telejornais... Não me dei conta que isso tenha acontecido... Mas é uma verdadeira história de heroísmo que nos 
honra a todos!...

Recorde-se que na sequência daquele conflito, foi 
montada pelo Governo Português uma operação de resgaste de cidadãos portugueses e de outras nacionalidades. Essa operação, com o nome de código Crocodilo.   envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas. A componente naval foi  constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio. A atuação dos
dois helicópteros foi fundamental para o êxito da missão. A força naval foi comandada pelo CMG Melo Gomes.
(Vd. P. Conceição Lopes, CFR: Operação Crocodilo. "Revista da Armada", julho de 2013, pág. 20).

A história do resgate, efectuado por conta e risco do Patrício Ribeiro, em Varela, já a tinha  ouvido contar, na tabanca de São Martinho do Porto, há uns largos anos atrás, talvez em 2012, da boca do saudoso Pepito (1949-2014), um dos "encurralados", em junho de 1998, em Varela, onde também tinha casa de praia, já do tempo dos pais

O Patrício conseguiu metê-lo, a ele e à família, e a mais cidadãos, num dos helís da fragata Vasco da Gama, ancorada ao largo, a 18 milhas, fora das águas territoriais do país, com mais os dois navios de apoio...

Eu já sabia, além disso, que, na impossibilidade de voltar o heli a Varela, o Patrício se metera na sua canoa nhominca, levando mais um grupo (10 pessoas, de nacionalidade portuguesa e outras...) ao fim da tarde, pelo mar fora, até à fragata salvadora!...

Camaradas, 18 milhas náuticas numa canoa nhominca ( embarcação em que ele é perito e que muito admira!),  são mais do que 33 km pelo mar adentro... Não é para todos, é para quem aprendeu a amar e respeitar o mar, como ele,  que foi "filho da escola" da Armada...

Já aqui escrevi e volto a repetir: Esta história incrível tem de ser melhor conhecida de todos nós... O Ribeiro Patrício, que é um homem modesto, nosso camarada, ex-grumete fuzileiro, deveria ter sido condecorado no 10 de junho por este feito de grande coragem,  altruísmo e patriotismo!... 

Amigos e camaradas, se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores!

Reparem: durante o conflito político-militar, sangrento, de 1998/99, o Patrício Ribeiro foi incapaz de estar longe da Guiné mais do que dois meses... Ao fim de dois meses, voltou a entrar  no país via Dacar, Senegal.

O Pepito e a família, cuja casa no bairro do Quelélé, em Bissau, foi pilhada e destruída pela soldadesca senegalesa, que apoiava o 'Nino' Vieira, esteve refugiado em Cabo Verde, creio que à volta de um ano... O Pepito tinha nacionalidade guineense, e este foi um dos acontecimentos mais marcantes (e traumatizantes) da sua vida, segundo me confidenciou em vida... Voltou à Guiné. para recomeçar a sua vida, uma vida nova... O Patrício Ribeiro, por sua vez, é português, é alias o português mais guinéu da Guiné-Bissau... onde continua a viver e trabalhar desde 1984.

Esperemos que o Patrício Ribeiro, agora à beira dos 75 anos, possa passar mais tempos, entre nós, à lareira e à beira do Vouga, de modo a ter tempo e pachorra para a começar a "abrir o livro"... Um homem que sabe muito da história recente da Guiné-Bissau,  saberá até de mais, pelos círculos em que se move, mas sempre o achei uma pessoa cautelosa, discreta, afável e fiável, além de solidária e generosa. (****)

____________

Notas do editor:

(***) Vd. poste de 11 de janeiro de  2018 > Guiné 61/74 - P18200: (De)Caras (104): Patrício Ribeiro, nascido em Águeda, criado em Angola, "filho da escola" da Armada, ex-grumete fuzileiro, empresário em Bissau, ator e observador da história recente da "pátria de Cabral", o "homem certo no sítio certo"... Ou melhor: o "tuga" que sabe mais da Guiné, e para quem a Guiné "sabi di mais"...

(****) Último poste da série > 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23088: (In)citações (197): Mais recordações do conflito político-militar de 1998-1999, por parte de quem o viveu por perto, o Cherno Baldé e o Patrício Ribeiro

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23029: Notas de leitura (1423): “Pequenos Grandes Navios na Guiné” nos Anais do Clube Militar Naval, número de Janeiro/Março de 1998 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
É facto que já existe bastante literatura sobre a presença da Marinha no teatro de operações da Guiné. O Vice-Almirante Lopes Carvalheira esboça um quadro rigoroso, em termos históricos, acerca da intervenção da Armada na fiscalização e intervenção que era efetivada pelos Destacamentos de Fuzileiros Especiais. Atenda-se ao desenvolvimento que dá à Operação Tridente, a maior operação em que intervém a Marinha na Guiné, a guerra dos rios e as vicissitudes por que passou a gloriosa LDM 302.
Um belo resumo a ter em conta.

Um abraço do
Mário



Pequenos grandes navios na guerra da Guiné

Beja Santos

O Vice-Almirante José Alberto Lopes Carvalheira escreveu um muito bem elaborado artigo intitulado “Pequenos Grandes Navios na Guiné” nos Anais do Clube Militar Naval, número de janeiro/março de 1998. É um documento sobre a presença da Armada nos rios da Guiné, ilustrado pelos meios envolvidos. Começa por mencionar que na fase de prevenção de conflitos a ocorrer em África foi possível fazer chegar à Guiné em 19 de maio de 1961 as primeiras unidades navais: duas Lanchas de Fiscalização Pequenas (LFPs) e duas Lanchas de Desembarque Pequenas (LDPs). 

A partir dessa data outras unidades foram sucessivamente chegando, atingindo a Esquadrilha de Lanchas o seu número máximo em setembro de 1969, com 8 LFPs, 14 LDMs-F (Lanchas de Desembarque Médias) para fiscalização, 9 LDMs-L (para transporte logístico) e 8 LDPs, perfazendo um total de 39 unidades, houve depois o abate, ainda em 1969, de duas LDMs.

A Marinha atuava na fiscalização e na intervenção, mas também apoiando para reabastecimento de toda a espécie e para escoamento de produtos económicos.

No que toca à fiscalização dos rios, havia missões no rio Cacheu, nos rios Cacine, Cobado e Cumbijã, no rio Geba com apoio à navegação de e para Bambadinca; havia ainda a fiscalização de Bolama, rio Grande de Buba, havendo de ter em conta um Destacamento de Fuzileiros sediado em Bissau e outro em Bolama; por fim a fiscalização do rio Mansoa em permanência efetuada pelo Destacamento de Fuzileiros sediado em Bissau. E escreve:

“Este dispositivo de fiscalização foi ao longo dos anos sofrendo os necessários ajustamentos, de modo a criar o maior dissuasor possível para fazer face às linhas de ação do inimigo. Assim, a partir de 1967, dentro do novo conceito de contra-penetração então estabelecido foi formado, ao norte do rio Cacheu, com base em Bigene, o Comando Operacional n.º 3 (COP 3). A este Comando que também foi comandado por um oficial da Marinha, além das forças terrestres, chegaram a estar atribuídos, em permanência, três destacamentos de fuzileiros para intervenção na zona. Com os fuzileiros instalados em Ganturé, em aquartelamento para o efeito construído pela Marinha, tornou-se possível a estes atuarem com grande eficácia por meio de patrulhas e emboscadas em botes de borracha em colaboração com as unidades navais da TG3, igualmente atribuídas ao COP 3 para fiscalização da extensa zona do rio Cacheu, ao mesmo tempo que permitia a sua utilização no apoio direto às operações deste Comando Operacional”.

Este dispositivo naval manteve-se praticamente até ao final da guerra, impôs-se como um travão às tentativas de infiltração do PAIGC no Norte da Província. A partir de 1967, no Sul da Província, os rios Cacine, Cobade e Cumbijã deixaram de ter fiscalização permanente. Nesta altura, no rio Grande de Buba foi montado dispositivo idêntico ao do rio Cacheu. Em 1970, retomou-se o dispositivo de contra-penetração do rio Mansoa, interrompido em 1967. Ainda em 1970, no rio Cacheu, mais junto à sua foz, montou-se igual dispositivo com destacamento de fuzileiros sediados na vila de Cacheu. 

“Em 1971, após o ataque levado a efeito com mísseis sobre Bissau em 9 de junho, retomou-se a fiscalização contínua do rio Geba, a montante de Bissau, até ao Geba estreito, complementando a patrulha noturna ao porto de Bissau e seus acessos que se mantinha desde 1963”

Passemos agora da fiscalização para a intervenção. Era normalmente efetuada pelos Destacamentos de Fuzileiros Especiais que tinham como tarefa base a fiscalização que desempenhavam em permanência, sempre que não eram chamados a intervir em operações.

Quanto à sua atuação, destaca-se a Operação Tridente. O autor menciona a missão e organização operacional para se poder avaliar a sua envergadura naquela que foi a maior operação de sempre da Marinha na Guiné, detalha a missão, as unidades navais em presença, as forças de intervenção e o seu comando, o apoio logístico e a execução, concluindo nestes termos: 

“Não pode deixar-se de salientar que foi muito honrosa a atuação dos cerca de mil e quinhentos homens das nossas forças navais, terrestres e aéreas empenhados nesta operação que, no terreno em combate, sofreram oito mortos e trinta e três feridos, sendo alguns com gravidade”.

Quanto às vias de comunicação, o autor refere o armamento do PAIGC utilizado nos frequentes ataques das margens dos rios, o que confere importância ao capítulo seguinte, a guerra dos rios, pondo acento tónico nos reabastecimentos, no transporte operacional e rendição das nossas forças, bem como no transporte de pessoas e bens. 

“Teve a Marinha com todas as suas unidades navais, mais particularmente com as destinadas aos transportes logísticos (LDGs Alfange, Montante e Bombarda e LDMs), permanente, intenso, discreto, mas importantíssimo trabalho. Desde junho de 1963, quando se verificou que ao risco dos ataques das margens se juntava o risco da fuga de embarcações para a República da Guiné, quer por ação exclusiva do inimigo, quer por iniciativa conivente das próprias tripulações das embarcações civis, o Comando da Defesa Marítima da Guiné decidiu-se pela organização dos seguintes comboios, o que se manteve até final, com periodicidade mensal, embora com ligeiras alterações de execução.

Comboio de Bedanda... Bissau – Bedanda – Bissau
Comboio de Catió... Bissau – Catió – Bissau
Comboio de Farim... Bissau – Farim – Bissau
Comboio de Bissum... Bissum no rio Armada

Para outras povoações, tais como Cacine e Gadamael, as embarcações a proteger seguiam em companhia até à foz do rio Cumbijã, juntamente com o comboio de Bedanda, seguindo depois pelo Canal do Melo para Cacine e Gadamael Porto, com escolta embarcada e escoltadas por uma unidade naval para o efeito. O mesmo acontecia para Buba, Bambadinca, Encheia e Teixeira Pinto, apenas com as embarcações civis com escolta embarcada e, irregularmente, protegidas por navios escolta"
.

O artigo do Vice-Almirante Lopes Carvalheira conta a história da LDM 302, a lancha que, ao longo dos anos, mais duramente sofreu as consequências da guerra dos rios da Guiné, abstemo-nos de mais pormenores, já aqui se contou as vicissitudes que sofreu, inclusive foi referida a esplêndida banda-desenhada que lhe consagrou António Vassalo.[1]


A LDM 302, imagem retirada do blogue reservanaval, com a devida vénia.
A LDM 307, imagem retirada do blogue reservanaval, com a devida vénia.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 14 DE AGOSTO DE 2015 > Guiné 63/74 - P15003: Notas de leitura (747): “A Epopeia da LDM 302”, por A. Vassalo, em BD, Edições Culturais da Marinha, 2011 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23013: Notas de leitura (1422): “Descolonizações, Reler Amílcar Cabral, Césaire e Du Bois no séc. XXI”, é coordenadora Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2019 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22761: Agenda cultural (791): Sessão de lançamento do livro "Memórias da Guerra e do Mar", de João Freire, dia 2 de dezembro,pelas 17h00, na Academia de Marinha, à Rua do Arsenal, Lisboa,... Resposta ao convite até 30 do corrente, pelo telem 919964738 ou pelo email revistamarinha@gmail.com


Convite para a sessão do dia 2 de dezembro. Resposta ao convite até 30 do corrente: telem: 919 964 738 ou mail: revistamarinha@gmail.com


1. Mensagem do meu amigo, o sociólogo  João Freire, professor emérito  do ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa,  e antigo aluno do Colégio Militar e oficial da Armada (até maio de 1968).

Data - 19:56 (há 2 horas)
Assunto - Memórias da Guerra e do Mar



Caros Senhores, Amigos e Amigas do Mar,

No próximo dia 2 de Dezembro pelas 17 horas, na Academia de Marinha (à Rua do Arsenal), terá lugar a sessão de apresentação do livro Memórias da Guerra e do Mar por mim organizado, numa edição da ‘Revista de Marinha’, uma chancela da Editora Náutica Nacional.

Entretanto, o livro está desde já em venda, nomeadamente na loja do Museu de Marinha (em Belém, que encerra às 18h) e no Clube Militar Naval (Av. Defensores de Chaves, 26, à tarde) ao preço de 20€ (ou 25€ para a modalidade de luxe). 

Pode também ser solicitado à Editora Náutica Nacional:

ou pelo Tel. 91 996 4738, 

que enviará pelo correio com um custo adicional de 3,5€ para os portes.

Agradecido pelo vosso interesse,

João Freire
_____________

Nota do editor:

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste: