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quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3167: Ser solidário (19): Morreu o Nuninho, da Cadi. De paludismo. De abandono (Luís Graça)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Uma jovem, da região, que estava grávida, e que tinha o marido em Bissau. Caíu nas boas graças das nossas senhoras, sempre muito maternais: a Júlia, a Alice, a Isabel... Cadi era o seu nome. Vivia em Farim do Cantanhez. Esteve recentemente às portas da morte. E perdeu o seu primeiro e único filho, o Nuninho, de 4 meses. Por paludismo. Por abandono. Por falta de tudo (ou quase tudo). Por falta de cuidados de saúde (primários e secundários). Por falência dos serviços públicos de saúde. Por falta de médicos que vêm estudar para Portugal e não voltam.... Por ser guineense, por ter nascido num dos piores países do mundo no que diz respeito a indicadores de saúde materno-infantil... "Que raiva, que mundo, que desgraça de país" - é a primeira reacção que nos ocorre, a nós, que estamos num país que tem um dos baixos indicadores de mortalidade infantil do mundo... Sofremos, e muito, com estas notícias tristes que nos chegam da nossa querida Guiné... e que nos envergonham a todos (LG).

Foto: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.
.

(…) “Segundo os dados da UNICEF, em cada mil crianças nascidas na Guiné-Bissau, 233 morrem antes de completar os cinco anos de idade, das quais mais de metade (138) não chegam a fazer o primeiro aniversário”. (…) (Dos jornais)


Nuninho, o filho da Cadi, morreu (*)


Cadi, de seu nome.
Amorosa.
Uma ternura.
Uma jóia de miúda.
Tinha a graça de uma gazela
Apascentando na orla da bolanha.
Era nalu.
Vivia em Farim do Cantanhez.
Filha de um velho combatente da liberdade da pátria,
Com direito a pensão
Ao fim do mês.
Estava grávida de muitas luas.
Atrelou-se à Júlia e à Alice
Em Iemberém,
No início de Março de 2008.
Com aquela candura, doçura, espanto e maravilhamento
Das crianças africanas,
Quando vêem uma Mulher Grande, branca.
Homem estava em Bissau.
Todo o mundo vai p’ra Bissau,
Onde é a escola da malandragem.
Homem vai embora.
Diz que vai à lenha
E não mais volta.
Que o mundo é bem maior e mais sedutor
Que Farim do Cantanhez.
E deixa Cadi com a barriga cheia.
Agora Cadi vai a Bissau,
Levantar a pensão do pai.
As duas novas mães, tugas,
Dão-lhe dinheiro para a viagem.
Ficam amigas.
Prometem dar notícias,
De Lisboa, cidade grande,
Chão dos tugas,
E mandar roupa para o menino ou menina.
Cadi bem gostaria que fosse menino.
Para trabalhar na horta com ela.

Agora Menino já nasceu
E vai ter nome de padrinho, tuga,
Lá longe, bem longe,
Tão longe,
Que é preciso tomar avião.
Nuno vai ser nome do menino,
Por homenagem
Ao senhor capitão-fula,
Homem valente de Guileje,
Nuno Rubim, hoje coronel.
Todo o mundo está contente.
Família está contente.
Nalu está contente.
Agora que o Nhinte Camatchol proteja o menino
E a sua mãe Cadi.
E o avô, pensionista, combatente da liberdade da pátria.
E o Estado guineense que ainda paga pensão do avô.
Que a vida é a travessia de um rio,
Cheio de rápidos e de armadilhas,
De crocodilos,
De diabos,
De irãs maus…
A vida corre, como a água do rio.
Vem tempo das chuvas,
Vem mosquito,
Vem insecto, aos milhões,
Vem virús,
Vem bactéria,
Vem fungo,
Vem nuvem negra,
Vem tempestade,
Vem fome,
Vem doença,
Vem ave agoirenta,
Vem a morte, aos quatro meses...
Por paludismo!

A dor quebra coração da gente.
Da Cadi. Da Júlia. Do Nuno.
O Nuninho morreu.
Dirão as estatísticas:
Foi mais um dos duzentos
Em cada mil
Que não chega aos cinco anos.
A implacável estatística
Da mortalidade infantil
Na Guiné-Bissau:
138 por mil nados-vivos não sobrevivem
Ao primeiro ano,
diz a OMS.
O que é tu podes fazer ?
No teu país, há um século atrás
Também era assim...

A Alice não sabia.
Não sabia das últimas notícias.
Hoje foi comprar roupinhas, lindas,
Para o filho da Cadi.
Ao Colombo,
Em Lisboa,
No chão dos tugas.
Telefona ao Pepito
Para saber quando vai,
De regresso a casa,
No Bairro do Quelelé,
Para retomar o belíssimo trabalho da AD.
E se ainda tem espaço na mala,
Ele ou a Isbael,
Para arrumar uma roupa bonito para menino.
Eu deve estar lindo e robusto e saudável.
Que em Iemberém
Os meninos não tinham barriga grande.
E eram lindos, robustos, saudáveis.
Telefona ao Nuno e à Júlia
Para saber notícias da Cadi e do Nuninho.

Do outro lado da linha,
O desalento, a tristeza, a desolação.
O Nuninho morreu, aos quatro meses.
De paludismo.
Sem assistência médica.
Sem esperança.
Sem salvação.
Como um cão vadio,
Que morre na beira da estrada,
No meio do capim,
Na lixeira do bairro.
E A Cadi também esteve às portas da morte.
Por paludismo.
O Nuno e a Júlia providenciaram, a tempo,
O recurso a uma clínica privada.
Em Bissau.
E a Cadi salvou-se.
Porque gente amiga e solidária
Proporcionou os cuidados de saúde decentes
Que o dinheiro pode comprar.
Cadi perdeu o seu menino,
Espero que não tenha perdido
A fé e a esperança nos seres humanos,
Mesmo naqueles
Que assobiam para o lado,
Enquanto as crianças da Guiné morrem
Como os cães à beira da picada e do capim.
De paludismo.
De pneumonia.
De diarreia.
De má nutrição.
De SIDA.
De abandono.
De indiferença.
De falta de médico
(Que não volta
E fica a ganhar bom dinheiro em Lisboa,
Tabanca grande,
Chão dos tugas).
E de falta de medicamentos.
E de meios de prevenção e tratamento.
E das coisas mais elementares e essenciais da vida,
Como a água potável.
Ou um mosquiteiro impregnado.

O Nuninho morreu.
De paludismo,
Que é a doença da vergonha dos ricos
E um dos inimigos mortais dos pobres,
Nomeadamente em África.
O Nuninho não é, não devia ser
Um número, mais um número
Para as estatísticas, frias e cínicas,
Do nosso descontentamento
E da nossa má conscência.
O Nuninho era um menino nalu,
Filho da Cadi,
Sem pai,
Ou com um mau pai, ausente,
Que foi a lenha e não mais voltou.
E nesse dia, fatal,
Sem a sorte do Nhinte Camatchol
A protegê-lo.

Hoje a morte em Bissau tem um rosto:
O do menino da Cadi.
E a ti, pobre gazela,
Que direi ?
Coragem,
És nova,
A vida continua...
Não tenho palavras
Para calar a tua dor...
E mesmo assim sei
Que irás lutar para vingar a morte do Nuninho,
Que irás lutar pela felicidade a que tens direito,
Que irás herdar a coragem do teu velho pai,
Que lutou por um país novo,
Onde os meninos pudessem nascer e crescer,
Lindos, livres, robustos e saudáveis.
Não tens outro jeito, Cadi.
Não temos outro jeito mesmo,
Os guineenses e os amigos da Guiné.

Luís Graça


(*) Dedicado à Júlia, à Alice e ao Nuno Rubim,
Que na semana de 1 a 7 de Março de 2008
se afeiçoaram à Cadi e ao seu futuro menino,
que só teve neste mundo
direito a uma curtíssima viagem de 4 meses.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 2 de Março de 2008 > O Zé Teixeira, no tchon nalu, em pleno Cantanhez, no meio de duas mulheres da população local. Belíssimas, gentis e vistosas mulheres nalus, de porte altivo e de grande dignidade. Na carta de Cacine, a toponomia é Jemberem, a norte de Madina de Cantanhez... Hoje todo o mundo diz e escreve Iemberém. De resto, um dos afluentes do Rio Cacine é o Rio Iemberem... Será que terá havido um erro dos nossos cartógrafos ou uma gralha tipográfica ?


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 1 de Março de 2008 > Onde quer que chegue, o Zé Teixeira conhece sempre alguém, antigo militar de unidades africanas, antigo milícia, antigo combatente do PAIGC, etc. E tem uma enorme facilidade de relacionamento humano. Ei-lo aqui em Iemberém, local onde a comitiva do Simpósio Internacional de Guileje pernoitou dois dias... Fica em plemo coração do Parque Nacional do Cantanhez. E é um orgulho para os seus habitantes e para a equipa da AD - Acção para o Desenvolvimento que lá tem projectos... Uma surpresa que contrasta com a tristeza que se sente em Bissau...

Fotos: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.



Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 2381 (1968/70) > Mampatá Foreá > 3 de Novembro de 1968 > Alguns militares portugueses, entre eles o Zé Teixeira (em segundo plano, de óculos esfumados), em operação de rescaldo de um ataque do PAIGC, ao destacamento e à tabanca, à hora do almoço.

Imagem do José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro, CCAÇ 2381( Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,1968/70). Ele esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Forbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 197o). O Zé voltou à Guiné em Março de 2005, e partir daí já lá foi mais duas vezes, a última das quais por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje. Deve estar de volta a casa, nos próximos dias, fazendo o percurso de jipe, de Bissau até ao Matosinhos. Daqui vai um grande abraço para ele e para os demais camaradas da tertúlia do Norte... Que os bons ventos do deserto vos tragam a casa, sãos e salvos... Passámos, juntos, momentos de grande emoção na semana de 29/2 a 7/3/2008 (LG).

Foto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.


1. Mais três poemas do José Manuel, recebidos em 4, 5 e 6 de corrente. Foram escritos na Guiné (1). O José Manuel foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74 (2). Ainda não temos nenhuma foto dele nem do tempo dele. Aproveito para o convidar a ler alguns dos excertos do diário do Zé Teixeira que passou também por Mampatá, uns anos anos (3). Aproveito também para lhe agradecer as suas gentilezas: José Manuel veio à festa do Beja Santos e trouxe alguns dos vinhos da sua Quinta da Graça para a malta provar... Sei que deixou para mim, ao cuidado do Virgínio Briote, uma garrafa de vinho fino... Obrigado, José Manuel! Como dizia um outro poeta, maldito, Luíz Pacheco (morto há pouco tempo), ainda melhor que a poesia, são as mulheres, e ainda melhor que as mulheres é o vinho, que nos faz esquecer as mulheres... Os teus poemas transportam-nos ao encanto, ao sortilégio, ao perigo das matas e das picadas de Tombali, mas também à solidão e à miséria da nossa condição de homens, combatentes, sem razão nem para matar nem para morrer... (LG).


Estradas amarelas
corpos cobertos de pó
pica na mão à procura delas
o polegar ferrado no pau
tac, tac, tac, tac, tac, tac
tacteando por sons diferente
o Fernandes com cara de mau
espeta no solo o ferrão da pica
tac, tac, tac, tac, tac, TOC
o calafrio
depois o grito
anunciando o perigo
o grupo é mandado parar
chega o Vilas à frente
e todos manda afastar
de joelhos no chão
numa simulada carícia
afaga a terra com a mão
com gestos simples e perícia
vai cavando devagar
hei-la... está aqui
lisa preta a brilhar
parece inofensiva a maldita
deita-lhe a mão e grita
és minha, já te tenho
volta-a
tira-lhe o detonador
e entre dentes, diz
esta não
esta não causará dor.


Tenho saudades
do amor que não se compra
daquele que se sente
o tal
que vem de dentro
e
que não acaba
com um orgasmo
não quero mais
ser
aquele que se vai
assim que se vem
não quero mais
ficar vazio
não quero mais
ficar sem eco
não quero mais
perder o elo
que me liga
a ela
seja ela quem for
não quero mais
fazer amor
sem ter de oferecer uma flor.

Josema
Bissau 1974


Saborear a vida

é sentir os outros
é sentir o vento
é sentir a água
é tocar...
num corpo de mulher


guiné 1972
josema
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores:
9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

(2) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

(3) Alguns dos excertos de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968

(...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).

(...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN.Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...).

(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).

(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).

(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).

(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Uma enfermeira (*) pára-quedista no meio dos Lassas...

Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > A bela Miriam, a lavadeira, de etnia fula, que, no romance, gostava de fazer converso giro com o Furriel Rafael...

Foto: Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra. Ed. de autor (Cucujães, 2000).


Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > A liberdade: um caminho difícil, com um preço alto para muitos homens e mulheres que combateram na guerrilha. É o que sugere esta imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)

PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
Autor: Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112

Advertência: Trata-se de uma obra de ficção, embora inspirada em factos reais, em especial na actuação da CCAÇ 763, os Lassas, que estiveram e viveram em Cufar, no sul da Guiné, nos anos de 1965 e 1966.

Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726, Cufar, 1965/66). Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte X (Final) > A professora do PAIGC é libertada no mato, grávida de um Lassa que morre em combate(pp. 97-111)

Vd. resumo dos episódios anteriores (2)

(i) Disfarçada de mulher de limpeza, Pami ouve os furriéis Gama, Taveira e Rafael a debaterem, dilacerados, o sentido da guerra e o seu sacrifício pela Pátria


Miriam, para além da roupa de Rafael, agora também tratava da limpeza e arrumação do quarto dos três furriéis. Pami, prisioneira em liberdade condicionada, acompanhava por vezes a lavadeira fula, dando uma ajuda a esta nas suas tarefas. Numa dessas deslocações à messe de sargentos, os três ocupantes encontravam-se no quarto comum. Sobre as camas, os mesmos falavam sobre a guerra e os seus problemas envolventes. Sem darem qualquer importância, aliás ignorando completamente a permanência das negras, movimentando-se nos seus trabalhos de limpeza.

Perspicaz e atenta, Pami registava as dissertações dos militares. Gama, sentado na cama recostado sobre a cabeceira da mesma dizia:
-Foda-se!... Martírio... para mim não há pior que a sede. Quando a boca se me seca, quase que sufoco!

Pami paralisou, confuso o seu cérebro tentou, sem o conseguir, saber qual a espécie de sede a que o militar se referia. Não era ele que os colegas diziam, transformar-se completamente perante uma acção de fogo? Não diziam até que, rastejando, ia à zona de morte buscar os camaradas feridos, quando eram emboscados? Dúvidas racionais sobre qual a sede sofrimento do militar.

Taveira, tronco nu, envergando apenas uns calções de cáqui, completamente estendido sobre a cama dissertava:
-É pá! Eu penso muitas vezes que um dia em que por hipótese tenha um filho... Que poderei eu dizer-lhe, sobre esta merda?... Que seu pai subiu aos cumes do bem, e que chafurdou, descendo aos abismos do mal?

Rafael de bruços, pés sobre os ferros da cama, lançando nuvens de fumo dos cigarros que sofregamente aspirava, atalhou:
- Filho!? Se o tiver... espero ter a coragem de confessar-lhe que seu pai se encontrou perdido e dividido entre esses dois pólos. Poderei até confirmar-lhe que espezinhei a condição humana e a própria Pedra de Moisés.

A prisioneira, na ânsia de ouvir os militares, ia fazendo render o tempo, ajudando vagarosamente na limpeza do aposento. Ignorando completamente a presença das duas mulheres, Rafael continuou:
- É certo que cada guerra é criadora das suas próprias normas e leis, não revogando as leis humanas. De livre vontade, sob coacção ou de qualquer outra forma não há dúvidas que as aceitamos e respeitamos... Quem terá ética e razão, para nos condenar pelo que fazemos? ... Também é lógico e racional questionar que, em termos teológicos, nos estamos cada vez mais afastando da libertação! O fosso que nos separa da casa e da família é cada vez mais profundo. A vida que foi. A ligação a essa forma de vivência torna-se cada vez mais esfumada. Estamos cada vez mais próximos do inentendível da razão, e da destruição da nossa identidade global.

Enquanto falava, lançava argolas de fumo do seu terceiro ou quarto cigarro, cujas pontas ia lançando na lata de conserva, improvisado cinzeiro. Gama abandonou a posição sentada e esparramou-se na cama sobre o lado direito, pronunciando:
- É fado de saudade, a comunhão que fazemos, no partilhar do pão, farinha amassada de tristeza e alegria, com os companheiros, envoltos nestes uniformes camuflados de guerra.

Taveira contorceu-se como que acossado por carreiro de formiga cadáver. Embora a sua propensão extrovertida de interpretar as situações, fleumático atirou:
- A unidade e a solidariedade são a procura incessante da estrutura humana no mundo. Há algo que é muito importante escalpelizarmos: A terrível confissão de que não temos nomes, e aquilo que apenas possuímos é a transformação desses mesmos nomes, em comunicados de guerra. Muito simplesmente a nossa condição humana é única e exclusivamente medida em litros de suor sangue e lágrimas, derramados em prol da Pátria. Todos somos espectros de outras guerras. Isso é o que nos une e permanecerá entre nós.

Gama interrompeu:
- É verdade! Somos uma geração que está a ser sacrificada e devorada, para o bem futuro e salvação das gerações vindouras.
- Mentira! - exclamou, peremptório, Rafael, dando uma volta e sentando-se na cama. De dedo em riste para o seu camarada afirmou:
- Repito! Em princípio isso é uma mentira imposta! Não nos sacrificamos a nós ou aos turras, mas a ambos. Os que já se foram e aqueles que ainda virão, são a súmula de todo este disparate!... O Taveira tem absolutíssima razão, quando diz que todos somos espectros de outros conflitos. Pergunto: Porquê nos foi destinada esta vida? Porquê nascer para este estado de sofrimento? Como compreender tudo isto?... Também é verdade, que qualquer resposta me é inútil, porque me encontro com vertigens, vomitando sobre o abismo que se abre à minha frente. Quando matamos, já não somos nós! Porque nós próprios já estamos mortos. Conheci poucas pessoas que quisessem vir para aqui, e muitos menos que não tivessem medo da guerra, e receio de não regressarem a casa. Muitos, mas muitos de nós tenho a certeza, dentro de si ficarão, com os buracos que abrimos para os abrigos, as crateras abertas pelas granadas de morteiros e as noites das matas sem luar cheirando a morte! Alguém já compreendeu, que se toma impossível regressar de uma guerra?...Ela será nossa companheira até nos extinguirmos. Findará apenas quando o som cavo, das pás de terra se ouvir, caindo sobre as tábuas, que envolverão a nossa matéria.
-Será!?... Que só sabemos criar através da destruição?

Pami não entendia agora muitas das coisas que os militares diziam. Mas ficou com a certeza de que era aquela a fotografia do seu interior, e que não tinha nada a ver com a que se apresentavam exteriormente perante o mundo.

Rafael continuou:
-Gostaria de perguntar a estas gentes que nos transformam em voluntários forçados e nos incutem a ter saudade dos maternos mamilos, sugando-os até fazer sangue. O porquê? E para quê?... À minha ditosa Pátria - busto, figura, mulher libertada - gostaria de perguntar que mais sacrifícios nos requer?... Às mulheres, mães, irmãs, esposas e amantes, gostaria de questionar porquê não invertem a razão dos valores, e gritem bem alto em uníssono: Parem!... Basta!... Por favor! Ou será que o absurdo leva as mães ao masoquismo de terem orgulho chorando sobre a campa dos seus filhos? Falsos heróis, fabricados por um louvor em Ordem de Serviço!

Gama inquieto, a adrenalina subindo. Exclamou:
- Pára , não voltemos a Camões. Lembra-te que o desgraçado, para poder divulgar a sua Obra, teve de dar manteiga aos padres.

Rapidamente Rafael ripostou:
- Camões é inquestionável. Sabes porquê? Porque a Língua é parte integrante da nossa identidade. Quem melhor a cantou como Ele? Mas também podemos reflectir - indicando na direcção das mulheres no seu trabalho - Que língua falam estas desgraçadas negras? Se Ela revela o que construímos e aquilo que somos. Também te dá os exemplos contrários. O que não somos, e o que não construímos ou antes destruímos.

Os militares, em íntimos pensamentos interrogativos concerteza, calaram-se por breves minutos. Um silêncio claustraniano invadiu a mansão militar. Mas Taveira remexeu o refugado.
- Sim!... Podemos questionar que outros tormentos e desalento, deseja a Pátria ver no rosto dos seus filhos, para se sentir feliz. Quem será o último a morrer, em seu nome e da sua glória?

Rafael voltou filosofando:
-O meu pai mostrou-me uma noite, o poço da Ribeira Velha. Era tão profundo, que apenas reflectia uma estrela. Um ano a seca foi tão grande que o fundo do poço se transformou em lama, fazendo desaparecer a estrela. Penso que o desaparecimento de uma estrela , no fundo de um poço, nos destroça mais do que uma emboscada na estrada de Cabolol. A sede que martiriza o Gama talvez seja esta. Por ventura, um de vós que me sobreviva, irá falar com o meu pai. O meu pai chorará, e aquele que lhe falar, ficará diante dele cabisbaixo, envergonhado, mordendo os lábios. Sentir-se-à culpado por não ter sido morto também. E reflectirá sobre a própria sobrevivência. A cara de meu pai reflectirá na distorção da sua dor e paixão a minha própria cara. Nessa hora concerteza pensareis: Porquê ele e não eu?
- Amanhã!... Será a vez de outro amigo e companheiro olhar nos olhos de outros pais ou mães. Não tenhais dúvidas! Este será o drama que nos acompanhará! Somos, sem dúvida, uma geração que não existiu para viver e amar, mas sim para se extinguir sob o síndroma dos efeitos da guerra. Como será o futuro? Quais os efeitos para todas as partes deste enorme disparate?

Como que acordando de longo sono, olhou para Míriam e rispidamente interpelou-a:
- Como é, saco de carvão? Esta merda nunca mais fica limpa? Gosse! Fora daqui!

Pami sentiu enregelar-se e, rapidamente, seguiu a sua companheira, que saía adivinhando borrasca. Os militares continuaram de certeza a sua conversa. Mas para a prisioneira o que ouvira era suficiente, para ficar completamente baralhada. O mundo apareceu-lhe, como imenso labirinto, bem definido entre dois pólos invisíveis: O Princípio e o Fim.

Não era a primeira vez que a conversa dos militares a fizeram raciocinar sobre este tema da guerra. Nas conversas habituais do varandim, tinha assistido a um aceso debate sobre a política portuguesa para as colónias Portuguesas em África, e ouvira perfeitamente falar sobre Amílcar Cabral.

Recordava na altura ter Rafael referido que um seu amigo tinha estudado engenharia com o líder do PAIGC, e que se referia a ele como sendo dos melhores alunos do seu curso de agronomia. Pena era ter-se ligado aos comunistas de Leste. Sobre este tema, não recordava quem tinha levantado o problema de não ter o PAIGC simpatias só nos países de Leste. Tinha até sido levantado o problema da Língua na Guiné, e a influência que os países de língua francófona, dada a sua proximidade, poderiam daí retirar algum partido, resultante do laxismo português. Ouviu muito mais sobre a questão colonial (províncias de Portugal). Inclusive, o Gonçalo, falar da estupidez de não ter sido tomada em conta a posição de Norton de Matos, sobre Angola. Sobre este caso, Pami por desconhecimento absoluto não pôde retirar conclusões.


(ii) Pami, com sintomas de gravidez, vai com o Furriel Rafael... em português


Aproximava-se a época das chuvas. Pami começou a sentir-se um pouco estranha, tinha vómitos pela manhã, o ciclo menstrual desapareceu-lhe e os seus pequenos seios começaram a crescer. Preocupada a prisioneira, pelos indícios verificou que estava grávida. Entrou em pânico, quando compreendeu que transportava no ventre, um filho ou filha, do militar branco.

Como seria? Que fazer perante esta situação?... Não poderia dizer a ninguém. Mas como esconder tal situação? Falar com Míriam e contar toda a verdade? De certeza esta ficaria com ciúmes, e a amizade terminaria. E mais grave o furriel Rafael ficaria logo a saber. E se contasse ao furriel ou ao alferes? Qual seria a reacção? Rafael era amigo do Gonçalo! Incerteza como reagiria! Agora, sim, sentia-se num dilema, turbilhão de ideias. Como poderia ser compreendida pela guerrilha? Certo era que não poderia viver assim sem comunicar com alguém.

Passada que foi uma noite sem fechar os olhos, e com uma agitação incontrolável na sua mente, teve uma resolução, chamou Míriam, e solicitou-lhe, para interceder junto do furriel Rafael, pois queria falar com ele. Aquela riu perdidamente, e perguntou:
- Sanhá, tu não sabe fala potuguês! Como fala tu com furiel? Quê qui tu quere fala cum ele?- perguntou com desconfiança.

A prisioneira informou de que não aguentava mais a situação, e queria que o furriel a interrogasse, para depois a matar, ou mandar embora.

Míriam falou com o furriel, e este informou que ia falar com o alferes Telmo. Para resolver o assunto. Pela tarde, apareceu um milícia, que mandou a prisioneira acompanhá-lo, e seguiram para a casa dos interrogatórios. O milícia mandou sentar Pami, ele também se sentou no chão. Passado um bom bocado, apareceu o furriel só, sem arma, vestindo roupa civil. Calça cinzenta e camisa branca. Deixara crescer a barba novamente, mas agora estava um pouco mais gordo. Retirou um maço de cigarros do bolso da camisa, e ofereceu um ao milícia e retirando outro para ele, acendeu com o isqueiro, primeiro o dele, e depois o do milícia. Olhou para a prisioneira, e comunicou ao milícia:
- Diz-lhe lá que já não me lembrava dela como prisioneira! Mas que está mais gorda e mais bonita! Pergunta-lhe se está satisfeita com os soldados de Cufar!

Antes do milícia fazer a tradução, a prisioneira retorquiu em crioulo perfeito:
- A mim fala só cum furriel!

Este ficou um pouco desorientado, ao ouvir a prisioneira, e demoradamente reteve o olhar no coto da mulher. Olhou para a cara da mesma e ordenou ao milícia:
- Vai embora! Eu falo então com ela!

O milícia saiu, o furriel sentou-se no único banco existente na casa. Começou a fazer argolas com o fumo do cigarro, com o olhar e pensamento concerteza distante. Voltou a olhar para a prisioneira que, angustiante, aguardava a oportunidade da autorização para falar. De repente disparou:
- Quê qui bó miste?

Pami olhou para o furriel, duas gotas caíram-lhe dos olhos e pronunciou:
- Eu peço perdão, eu falo português!

O furriel rápido como um felino, deu um salto deixando cair o banco. Instintivamente, levou a mão direita à anca, como se procurasse a pistola. Notava-se que tinha ficado desorientado. Olhando constantemente para a prisioneira, deu uns passos na sala - como que fera a preparar o salto sobre a presa - sempre fumando. Até que parando levantou o banco, voltando a sentar-se, e calmamente interpelou:
- Não estou a compreender, vamos com calma! Repete lá o que disseste?
- É verdade!... Falo português, e possuo a quarta classe de escolaridade, tirada na escola missionária de Catió. Peço perdão por ter escondido, mas tinha medo que me matassem. O meu nome verdadeiro é Pami Na Dondo. Sanhá Na Cunhema era minha mãe que faleceu em Cadique há um ano e pouco. O meu pai é Pan Na Ufna e meu marido Malan Cassamá, se ainda for vivo.

Estupefacto, o furriel mandou a prisioneira falar e contar tudo. Enquanto Pami ponto por ponto narrava a sua vida, o militar em silêncio fumava, acendendo cigarros uns nos outros. Incrédulo, ouvia, parecendo o pensamento estar muito longe. A narrativa da destruição da escola de Flaque Injã fê-lo olhar para a prisioneira, que agora falava e chorava. Pami ia começar a narrar alguns episódios da sua estadia como prisioneira no aquartelamento. Mas foi interrompida pelo furriel.
- Ficaste contente quando o Gonçalo morreu, na noite que te levou para a cama?

Pami ficou sem saber que responder e admirada pelo militar saber que o amigo a tinha violado. Escondendo o estado de gravidez em que se encontrava, num rasgo de audácia, perguntou:
- Como sabe?
- Sei tudo o que se passou nessa noite, há soldados que viram e a Míriam contou-me tudo. Estás ou não contente por ele ter morrido?
- Fiquei contente nesse dia, sim! Não o nego. Mas hoje não sei! Estou muito confusa! Furriel, por favor, eu quero terminar agora!... Mate-me! Eu já não sirvo para nada. Nem para os militares, nem para o PAIGC. Quero mesmo acabar. Mate-me ou mande matarem-me! A partir deste momento, só o meu pai me poderá compreender, Malan meu marido dificilmente o fará.

Rafael deitou fora a ponta do último cigarro restante do maço e apagou-a com a ponta da bota de lona. Olhou fixamente a prisioneira, e disse-lhe:
- Malan Cassamá já não existe! Foi abatido em Flaque Injã quando ao servir de guia tentou fugir.

Pami retorquiu:
- Tentou a fuga ou mandaram-no fugir?
- Sinceramente não sei dizer! Mas daria no mesmo. Após tudo isto tenho a certeza que não és assim tão ingénua e ignoras a situação em que nos encontramos. Sabes perfeitamente que estamos na opção zero! Quem não mata, morre! Que alternativas existem?

A prisioneira, sentindo o coração apertado, com aquela verdade tão dura respondeu:
- Sim! Só que nós morremos por uma causa nobre e justa, queremos ser livres e donos da nossa Terra!
- Tens razão! Só que nós não queremos morrer e, para isso acontecer, a única lógica concerteza é matar. Quem achas que sofre mais? A mãe de Malan Cassamá ou a mãe do Gonçalo? Há possibilidades de medir a dor e o sofrimento de qualquer mãe pela morte de um filho?... Pode um homem ser a maior peste do mundo, mas para a sua mãe ele será sempre o seu filho. Aqui há coisas concretas, não podemos brincar. Mesmo que queiramos não podemos fugir à realidade.


(iii) Rafael, armado de G3, leva Pami para o mato, sozinha com ele. Pami, grávida em resultado da violação, implora ao Lassa para que mate


Pami não respondeu, chorava copiosamente. O furriel levantou-se e disse-lhe, saindo:
- Esperas aqui que eu volto já.

Saiu, e a professora guerrilheira continuou chorando, completamente destroçada. Totalmente em farrapos, o seu cérebro ia tentando recompor algumas coisas. Malan morto! E seu pai, ainda seria vivo? Apenas existia uma indecisão. Era a corrente que se transmitia do seu ventre ao pensamento.

Teria ela também o direito de decidir qual o caminho do ser que transportava? Reconhecera já raiva com ela própria, ao tontamente sorrir, acariciando o ventre. Sentia momentos de incerteza, sobre o gosto do que transportava.

Passados alguns minutos o furriel regressou. Tinha envergado uma camisa camuflada, por cima da camisa branca. No ombro em bandoleiro de cano para baixo, trazia uma espingarda G3. Abriu a porta, e sem olhar, disse:
- Vamos! Segue-me!

Abandonaram o quarto de interrogatório, e o furriel dirigiu-se para a porta de armas seguido da professora de Flaque Injã. À saída da porta de armas, o soldado de sentinela olhou e falou:
- Vai comê-la, ou entregá-la ao papá do céu? Veja lá, meu furriel, mas é se ela lhe rouba a arma, enquanto está matando a fome!.
- Vai-te foder! Porco de merda! - foi a resposta do furriel.

Seguiram junto ao arame farpado e depois divergiram para o carreiro que dava acesso à lagoa, entrando na picada que a circundava. Pami sentia o corpo todo em demente tremura, e os seus passos seguindo os do militar eram já inseguros e incertos. Recordante, ouviu o padre Francelino narrando os passos de Cristo, coroado de espinhos arrastando a Cruz, a caminho do Gólgata. Tentou rezar o Pai-nosso em sinal de perdão. O furriel andou uns cento e cinquenta metros, e parou debaixo de uma árvore, carregada de ninhos de tecelões que, com o aparecimento dos intrusos, voaram, num grande chilrear.

O sol caía sobre o fundo da pista. Brevemente a noite africana apareceria com os seus sons e mistérios. Época de chuvas, o bonito luar de África, não apareceria mas sim as trevas e algum tornado. O furriel puxou a culatra da G3, e introduziu uma bala na câmara, rodando a patilha de segurança para tiro de rajada. Mandou sentar a prisioneira no chão, ao que esta obedeceu. Rafael olhou para a cara da rapariga, e sentiu qualquer coisa diferente de quando a interrogara pela primeira vez. Verificou em pormenor que a prisioneira apresentava a cara mais cheia, os seios agora bem visíveis pelo afastamento do pano, pareciam que tinham dobrado de tamanho, o olhar tornara-se meigo e brilhante de uma doçura estranha.

O militar procurou os olhos da prisioneira e fixando-os tentou penetrar no seu intimo, questionando-a!
- Que posso fazer por ti?
- Mata-me! - respondeu, firme, a prisioneira.
- Sabes que cometeste uma grande falta e erraste ao mentires nos interrogatórios. Podias ter colaborado e assim não morrerias. Os militares não te trataram bem?

A rapariga acenou que sim com a cabeça. Mas o militar pressentiu qualquer coisa na prisioneira, e, julgando que era a hora certa, insistiu:
- Fala! Há qualquer coisa estranha, que parece quereres dizer-me algo mais!?

Pami mudou de posição, e pôs-se de joelhos, como que em oração, olhos no chão, saíram-lhe estas palavras:
- Já não tenho solução, aqui ou na guerrilha, a minha vida já não vale nada, pelo que o melhor é morrer!

Uma torrente de lágrimas caía pela cara da pseudo-guerrilheira. O furriel já não olhava para a mulher, mas sim para o cair do sol por sob o ilhéu de Infanda, e ela continuava:
- Mata-me! É melhor assim, para mim e para ele, que o Deus do padre Francelino me perdoe.
- Não! Há alguma coisa errada no meio disto tudo. Conta! Conta toda a verdade!

Massacrava o furriel com perguntas. Agora já num choro em soluços, Pami de joelhos continuava: - É nula a solução, eu sei tudo sobre vós, já contei tudo, mas aparecer assim na guerrilha não vão acreditar. Vai ser o maior desgosto para o meu pai!
- Mas aparecer como? - ripostou o militar.
Completamente destroçada, Pami confessou:
- Eu fiquei grávida na noite em que morreu o Gonçalo! Nas minhas entranhas existe um ser, filho dele!

(iv) Rafael liberta finalmente Pami, que irá ter um filho de tuga, norto em combate. A mãe pôs-lhe o nome de Umberto Cassamá.


Uma rajada soou por sobre a lagoa de Cufar, e o seu eco redobrou na margem oposta. As aves que se alimentavam, nas águas calmas, levantaram voo em gritos de aflição.

Pami pareceu sentir o seu corpo trespassado por milhares de projécteis, e o seu cérebro apenas definiu o fim. Passaram uns segundos eternidade. A mulher levantou os olhos, e olhou para Rafael. Este continuava a olhar o pôr-do-sol, e sobre a rala e negra barba, apareciam agora gotas de orvalho caídas da fonte de seus olhos. A arma mantinha-se fumegante, virada para os céus.

Pami jamais sonhara ver aquele homem duro comovido. O militar baixou-se, pegou na guerrilheira pelos braços, e ergueu-a. Voz embargada, falou para Pami mulher criança:
- Se quiseres ficar connosco, podes ficar! Ninguém te tratará mal. Se achares melhor ires ter com o teu pai, vai! Perdoa ao Gonçalo, e se for um rapaz não te esqueças de lhe por o nome de Humberto! Aqui em Cufar todos te julgarão morta! Nunca te arrependas de ser uma mulher livre! O teu pai saberá compreender-te! Vai!...

Completamente atónita, Pami Na Dondo, guerrilheira e professora de Flaque Injã, não queria acreditar no que ouvia do militar. Começou a caminhar no sentido do fundo da pista, de regresso ao desconhecido. Cinquenta metros à frente, sentiu na coluna um arrepio de frio e a sensação que iria receber uma rajada pelas costas, - o furriel não iria cometer uma traição - e virou-se para ao menos morrer de frente. Ajuizou mal. Apenas viu o militar de costas, caminhando em direcção ao aquartelamento.

Míriam tinha razão, Rafael nunca seria capaz de matar mulher. Só em combate ele poderia matar alguém. Teve vontade de voltar atrás correndo e pedir perdão ao militar.

Ao entrar na porta de armas, a sentinela brincou com o furriel:
- Aquela, já vai dormir com os anjinhos hoje!? Amanhã vai dar um belo pequeno-almoço aos jagudis!

O furriel, sem olhar repostou:
-Sim, aquela voltou a ser uma mulher livre!

No fundo do carreiro, Pami contornou a pista e dirigiu-se para a mata de Cufar Novo. Fez-se noite....

Época de chuvas, completamente encharcada, Pami na Dondo, vagueou perdida pelas matas de Cufar Nalu, Camaiupa Cachaque e Cabolol. Passados dois dias, num carreiro junto ao rio Quaianquebam, próximo onde Gonçalo fora abatido, um grupo de guerrilheiros, encontrou-a caída completamente exausta.

26 de Novembro de 1966, algures na mata do Cantanhez no Sul da Guiné, nascia Umberto Cassamá, filho de Pami na Dondo, e neto de Pan Na Ufna. No mesmo dia, os Lassas desembarcavam do navio Niassa no Cais de Alcântara em Lisboa.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores desta série >

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)

10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)

18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)

30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

5 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2506: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (9): Parte VIII: Os demónios étnicos (Mário Fitas)

20 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2560: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (10) - Parte IX: A prisioneira é violada...


(2) Resumos dos postes anteriores:


(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhez. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malan e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló [ou Djaló]. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da tropa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como. Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.

(viii) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã, quando esta, já esquecida dos interrogatórios, é levada de novo, em princípios de Setembro de 1965, à presença do temível triunvirato: Queba, o intérprete, o alferes Telmo (com o seu caderno), e o furriel Rafael (com a sua pistola).

Embora aterrorizado com as ameaças do Furriel Rafael (que parece fazer bluff...). Pami teme sobretudo que os Lassas façam de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando o seu marido, Malan, como guia...

Voltando de novo à sua morança-prisão, Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade... Os seus piores receios, entretanto, materializam-se, ao reconhecer o seu Malan na silhueta do negro, de corda atada ao pescoço de um negro, conduzido por um Lassa, a caminho da porta de armas, possivelmente para srevir como guia numa operação... Pelo burburinho que perpassa pelo aquartelamento, Pami toma conhecimento de que os Lassas estão em operações lá para os lados de Caboxanque... Um avião T-6 é atingido, mas o seu o piloto consegue fazer uma aterragem de emergência em Cufar...

No regresso dos Lassas ao quartel, Pami sabe, pelas conversas que ouve junto dos milícias, eles ter-se-iam esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC. Mas sobre Malan não consegue saber mais nada de concerto.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?


(viii) Caminhamos para os finais de 1965. Pami têm agora duas novas amigas, com quem conversa mais amiuadamente, as lavadeiras Miriam e Meta, esta última mulher de um velho milícia. Os Lassas já se habituaram à presença de Pami que continua a observar e registar mentalmente tudo o que se passa à sua volta. Dá conta da existência de um furriel de nome Gonçalo, que passa a vida a falar com o seu cão cufar. No final do ano, aparecem aviões a lançar toneladas de bombas sobre o Cantanhez. Os Lassas saem para uma operação em Darsalame. O Furriel Rafael é ferido e evacuado para o Hospital de Bissau. Miriam está chorosa e apreensiva. Leva Pami ao quarto do Furriel a quem lava a roupa e a quem faz favores sexuais. Pami fica intrigada com as fotografias que vasculha. As duas mulheres falam sobre as bajudas brancas do Furriel.

Agora já ninguém liga à prisioneira nem a importuna. Mas Pami fica triste certo dia, quando ouviu um soldado a ler, a outro, uma carta dos pais... A professora interroga-se sobre a condição humana e a estupidez da guerra. Com mais liberdade de movimentos e beneficiando da amizade de Miriam, Pami vai conhecendo melhor o quotidiano dos Lassas, as suas misérias e grandezas. Mas o que mais espicaçou a sua curiosidade intelectual foi uma longa conversa sobre os povos da Guiné, travada num círculo à volta do Leão de Cufar e dos seus colaboradores mais próximos. No final, fica a saber que Rafael tinha voltado do hospital…


(ix) A profesora do PAIGC esforça-se por consolidar a sua amizade a lavadeira, a jovem fula, Míriam, que está muito triste porque ninguém lhe dás notícias do seu furriel, enquanto ao mesmo tempo acalenta a ideia de o levar no Homem Grande, "para bala não entrar no corpo dele"... Entretanto, Rafael regressa do hospital. Miriam faz uma festa. A vida em Cufar continua, com a sua rotina de guerra... Um belo dia, Pami entra no quarto dos furriéis, a convite de Miriam, vê fotografias de bajudas brancas e lê uma carta da mãe de Rafael... Inevitavelmente sente saudades da sua mãe, que morreu no mato...

Entretanto o Leão de Cufar, o comandante dos Lassas, vai para Bissau, para outra missão, sendo subtituído por um "capitão gordinho, com ar assustado"... Esta mudança de liderança vai fazer mal aos Lassas, e à sua prontidão para a guerra...

Na véspera de sair para mais uma operação, os Lassas estão tensos, agressivos, violentos. O Furriel Gonçalo acaba por forçar Pami a ter relações sexuais com ele, no seu quarto, com a cumplicidade de Miriam. A resistència de Pami é inútil...

No dia seguinte, Gonçalo morre em combate.... Os Lassas estão destroçados. Como retaliação pelos seus desaires, bombardeia o Cantanhez com a sua artilharia pesada. Pami volta a temer as represálias dos Lassas. Teme pela sua vida, enquanto assiste a cenas tristes, em que os Lassas exibem comportamentos estranhos, regressivos, e continuam a morrer ou a ir para o hospital em Bissau...

__________

Nota: Dirigida ao Mário Fitas

Ao ler o blog P2593 do Luís Graça, sobre a guerra da Guiné, encontrei uma foto que é sua e está identificada como " uma enfermeira". O nome dessa enfermeira é Ivone, se pretender pôr lá o nome pode fazê-lo. (...)

Jorge Félix
ex-Alf Pil Aviador

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2248: Blogpoesia (6): África Raiz, de Fernanda de Castro


Capa do livro de Fernanda de Castro (*) (1900-1994) - Raíz Áfrca.
Desenhos originais de Eleutério Sanches. Capa de Inês Guerreiro
Tipografia A. Cândido Guerreiro, (Herdeiros) Lda.,
em Setúbal, Rua Serpa Pinto, 20 e 22, Portugal
Dezembro de 1966
__________

ÁFRICA RAIZ (**)
À terra de Bolama, em cujos braços repousa minha mãe

África,
no teu corpo rugem feras,
uivam fomes e medos ancestrais,
no teu sangue há marés,
na tua pele há dardos e punhais.

Ventre de Continentes,
és mater e matriz.
Ásia é semente, Europa é flor,
outros serão essência ou tronco,
tu, África, és raiz.

Dos teus flancos de fêmea fecundada,
nascem florestas, rios e montanhas.

Florestas venenosas de gigantes,
de monstros, de ciclopes vegetais,
de fungos, de landólfias e de orquídeas,
onde pastam manadas de elefantes,
onde flores carnívoras,
sob um céu baixo, de invisiveis brasas,
sugam antenas e digerem asas.

Fios de água, que vertes das entranhas
e te rasgam a pele
como pontas de lança,
como lâminas de aço,
prendendo, laço a laço,
matas, capim, tarrafe, canaviais.
Cascatas, cachoeiras,
furiosos caudais
saltando precipícios,
arrastando pirogas, crocodilos,
abrindo a golpes de água
os leitos abissais
dos Zambezes, dos Congos e dos Nilos.

Montanhas como dorsos de mamute,
gargantas de titans, abismos de neblina,
e na crosta rugosa a lepra das florestas,
as pegadas do vento,
as aves de rapina.
Presença subterrânea
de lavas e de chamas,
de vulcões em potência,
ressonância, rumores
dos rios interiores,
promessas de esmeraldas, de rubis,
de metais raros,
Kilimanjaros
nos roxos da distância.

(...)

É meio-dia. O sol, a pino,
é metal em fusão sobre as bolanhas.
Pilam arroz e milho, nas tabancas,
as mulheres Mancanhas.
Meninos de café, de chocolate,
com fieiras de contas e missangas,
rebolam-se no chão,
trincam nozes de coco, chupam mangas.
A cadência, o compasso do pilão,
os zumbidos, as moscas, o calor,
mergulham a tabanca
num cálido torpor.

Não há relógios. O que marca o Tempo,
não é o Sol, não é a Lua, a Estrela,
mas a esteira, o tambor, o arroz, a rede,
o sono, o amor, a fome, a sede.
(...)

Joaquim de Có, que tinha cem mulheres,
costumava dizer
a Dembo, seu herdeiro,
filho primeiro
de sua irmã Fulata:

- Que mais hás-de querer, ó Dembo,
se tiveres
vacas, arroz, mulheres,
aguardente de cana,
chabéu, mancarra, milho,
e cada ano um filho?
E ao homem grande de Lisboa,
ao chefe branco seu amigo,
com felina ironia:

- Negro é assim, coitado...
E sorria
com seus dentes limados,
aguçados,
de velho canibal,
que tem, só para ele, cem mulheres,
pra ele, Joaquim de Có,
enquanto o chefe branco tem só uma,uma só.
(...)
À tarde, à porta das palhotas,
em torno dos mais velhos,
dos que sabem contar coisas remotas
dos tempos esquecidos,
os mais novos escutam
com os cinco sentidos:

Dia que Deus fez mundo,
fez dois homens igual.
Deu a eles embrulho,
dois embrulhos igual,
e disse: não abrir,
se não eu castigar.
Um deles abriu,
pensou: Deus não vem cá.
Deus foi e castigou.
Ao outro deu caneta,
a ele deu enxada;
depois fez ele preto,
e ele pôs-se a chorar.
Veio então diabo,
sem ninguém chamar,
pôs-lhe mão na cabeça,
fez-lhe festa, festinha,
e o cabelo zangou
e ficou carapinha.
__________

Nota de vb:
(1) Maria Fernanda Telles de Castro e Quadros, nasceu a 9 de Dezembro de 1900 e faleceu a 19 de Dezembro de 1994. (...). Autora de livros e de peças para o público infantil, dramaturga, memorialista, romancista, tradutora, muito em especial poeta da alegria, como assinalou David Mourão-Ferreira no discurso de saudação no jantar comemorativo dos 50 anos de vida literária de Fernanda de Castro:
"Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia-noite”...
Fonte: Sociedade Portuguesa de Autores (Com os nossos agradecimentos).

(*) Fernanda de Castro, era filha de Ana Teles de Castro e Quadros e de João Filipe Quadros, oficial da Marinha de Guerra. Foi com os seus pais para a Guiné em 1913, quando seu pai foi nomeado Capitão do Porto e Chefe dos Serviços Marítimos de Bolama.
Fernanda de Castro dedicou este poema à memória da sua mãe, enterrada em Bolama, vítima da febre amarela.

(**) África Raiz, in Senegâmbia. Com a devida vénia.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2181: Álbum fotográfico do Hugo Costa (1): A mãe e os seus filhos, o direito à esperança (Bissau, Abril de 2006)

Guiné-Bissau > Bissau > Abril de 2006 > Mãe e filhos na antiga Praça do Império do tempo colonial... O direito à esperança, trinta e três anos depois da independência, mas também um símbolo de ternura: tira postal p'ra gente.... (1)

Foto: © Hugo Costa / Albano Costa (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem do Albano Costa:
Caro Luís Graça:

«O direito à esperança»... Ainda bem que publicas a foto da Senhora com os dois meninos em pleno centro de Bissau, mais propriamente na Praça do Império, tendo em fundo a avenida que vai em direcção ao mar... O Hugo na altura disse que a senhora pediu muito para tirar postal, e ele tirou, e disse-me:
- Se tivesse meio de fazer chegar esta foto ao seu destino eu enviava-a.
E eu respondi-lhe:
-Tivesses pedido a direcção da senhora.

Mas confesso que não era fácil chegar ao seu destino. Os correios na Guiné ainda têm muitas falhas, o que é pena. Por isso nada melhor que aparecer no nosso blogue. Obrigado pelo teu gesto, eu e o Hugo em nome da senhora ficamos muito gratos.

Um abraço grande, Albano Costa

2. Comentário de L.G.:

Albano: O teu puto tem grande sensibilidade e talento para a fotografia e para o fotojornalismo… Vou dar mais visibilidade/destaque às fotos do ano passado, da viagem Porto-Bissau, Abril de 2006… Já agora diz-me: houve algum pormenor especial que tenha chamado a atenção do Hugo, para além da ternura com que a jovem mãe pediu ao Hugo para lhe tirar uma foto, a ela e aos filhos ? Uma foto que ela nunca chegará a ver! ?
Dá-lhe um grande abraço meu…

PS – Quero fazer um post com a foto e as tuas informações complementares… Pode ser que a foto chegue ao seu destino… Seria bonito, embora pouco provável… Em todo o caso, nunca digas nunca...
Por outro lado, eu soube há tempos - por intermédio dos teus amigos de Guifões - , que tu herdaste o negócio do teu pai... E agora passaste o bichinho ao teu filho, Hugo Costa. São três gerações de fotógrafos. O bichinho da fotografia e do vídeo mas também o teu grande amor pela Guiné e pelas suas gentes. A prova disso é o Hugo ter voltado lá em Abril de 2006. Ele merece uma série só para ele, tu já tens uma (embora aguarde novos posts, novas fotografias, mas a culpa não é tua...) (2).
___________

Notas de L.G.:


(2) Vd. posts de:
(...) "O Albano Costa já era fotógrafo (profissional) quando fez a sua comissão de serviço, como 1º cabo, operacional, na CCAÇ 4150 (Guidage, Bigene, Binta, 1973/74).
"A sua paixão pela fotografia fez com que ele seja, de longe (com o Humberto Reis), um dos nossos tertulianos com mais documentação sobre a Guiné, de ontem e de hoje.
"Ele já aqui nos contou como, em Novembro de 2000, quebradas as últimas resistências psicológicas, voltou à Guiné, agora como simples turista, revisitando sítios por onde estivera vinte e seis anos antes e conhecendo muitos outros de que só ouvira falar...
"Nessa viagem de 15 dias (...), com um grupo de camaradas, ele não só fez um excelente vídeo (realização, montagem e insorização do Hugo Costa, seu filho) como tirou muitas e óptimas fotografias, que eu já tive o privilégio de ver, em Guifões, Matosinhos, no seu estabelecimento comercial"...

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2131: Mutilação Genital Feminina: É crime, diz explicitamente o novo Código Penal (A. Marques Lopes / Luís Graça)

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > A festa do fanado em Bambadinca. O Fanado, como rito de passagem, é comum aos diversos grupos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau. No entanto, é sobretudo entre os islamizados (fulas, mandingas e beafadas) que se pratica a Mutilação Genital Feminina (MGF), prática essa que é criminalizada no nosso novo Código Penal (1). Há quem, em nome do relativismo cultural, tenha tido e mantido até agora uma posição ambígua face à MFG. Pessoalmente, considero e sempre considerei a MGF (deste que estive na Guiné) uma prática (social, cultural e médica) absolutamente indefensável... (LG).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


1. O nosso camarada A. Marques Lopes, sempre atento ao que se passa no mundo e arredores, mandou-nos há dias a seguinte notícia:


Código Penal inclui mutilação genital feminina > Associações imigrantes, partidos políticos e vítimas aplaudem alteração


14 de Setembro de 2007/ Marta Clemente, da Agência Lusa


Associações de imigrantes guineenses, partidos políticos e vítimas congratulam-se com a inclusão no novo Código Penal da Mutilação Genital Feminina [MGF], uma prática para a qual os médicos em Portugal ainda estão pouco sensibilizados.

«Concordo com a inclusão da MGF no código penal. Até na Guiné-Bissau devia ser», disse o dirigente da Associação Guineense de Solidariedade Social, Fernando Ká, à agência Lusa (2).

A mutilação genital feminina é uma antiga tradição em 28 países africanos, entre os quais a Guiné-Bissau, entre a população muçulmana, e consiste na remoção total ou parcial dos órgãos genitais femininos.

Em declarações à Lusa, o dirigente associativo defendeu que «nem tudo o que é cultural é bom» e lembrou que a MGF é feita em «condições de higiene deploráveis, para além da violência em si porque é feito a sangue frio».

Fernando Ká disse ainda não ter conhecimento de que esta prática seja realizada em Portugal.

Para acabar com a discussão que o Código Penal criava em torno desta questão, por não ser claro, o novo, que entra em vigor no sábado, já prevê a penalização para crimes que tirem ou afectem o prazer sexual.

Uma alteração que foi recebida com agrado pelo CDS-PP e pelo Bloco de Esquerda (BE), que há muito a reclamavam.

Para a deputada do BE, Helena Pinto, a inclusão da MGF no actual Código Penal era «uma questão de interpretação». «Era preciso interpretar nesse sentido. O novo (Código Penal) é mais claro e este tipo de crime não fica sujeito a interpretação», disse a deputada, acrescentando ser «positivo que exista esta clarificação».

Para o deputado Nuno Magalhães, do CDS-PP, «foi dado um avanço» na lei, na medida em que a MGF «fica juridicamente enquadrada», mas ainda não é esta a resposta que o partido pretendia. «Não é a nossa solução, mas registamos que foi um avanço», disse o deputado, acrescentando que o CDS-PP defende a criação de um crime autónomo.

A actual lei não é clara quanto à penalização da MGF, uma vez que apenas refere como crime quem privar outra pessoa de «importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente» ou quem tirar ou afectar, «de maneira grave, (...) a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem».

O novo Código Penal alterou este último artigo, e acrescentou quem «tirar ou afectar, de maneira grave, (...) a capacidade de fruição sexual».


2. Comentário de L.G., editor:

Já aqui temos falado, embora pouco, deste problema no nosso blogue, a propósito da nossa (mal) conhecida festa do fanado (3). Retomo o que escrevi num dos primeiros posts do nosso blogue, e espero que ilustres juristas da nossa Tabanca Grande, como o Jorge Cabral, possam e queiram também participar neste debate (participámos os dois, em Maio do ano passado, numa conferência sobre este tópico; confesso, entretanto, que ainda não tive tempo para ler o novo Código Penal que, de resto, não é meu livro de cabeceira):

(i) Em tempos comentei, em 5 de Agosto de 2002, nos Fóruns do Público > Cidadania - Mutilações sexuais: Salvem as meninas da Guiné (um tema de discussão que hoje só está disponível em arquivo), o seguinte post publicado originalmente por Barbarian Girl, em 16 de Maio de 2002:

Estou indignada com o que acabo de ler, numa reportagem do Público, assinada pela Sofia Branco. Não imaginava, na minha jovem e santa ignorância, que em pleno Século XXI ainda se praticassem mutilações sexuais como a excisão do clitóris nas meninas como parte dos rituais de iniciação à vida adulta...

O mais espantoso é que isto se passa num país irmão(!), onde se fala (?) português, que foi um colónia portuguesa(!), por onde passaram muitos portugueses. Mais: se calhar estas práticas continuam a fazer-se em Portugal, no seio das famílias guineenses islamizadas que por cá se vão instalando, com a complacência ou a conivência de muita gente, a começar pelas autoridades de saúde.

Nunca vi ninguém denunciar esta coisa horrorosa. Vocês sabiam disto, vocês tinham conhecimento disto ? Tenho vergonha da minha ignorância e do meu silêncio involuntariamente cúmplice. Por isso vejo-me na obrigação de publicar aqui, com a devida vénia, o artigo da Sofia Branco, apesar da sua extensão. O que podemos fazer para ajudar a salvar as meninas da Guiné ? Refiro-me a nós, mulheres portuguesas, a começar pelas universitárias. Bárbara.


(ii) Luís Graça:

A Sofia Branco [, jornalista do Público, e destacada figura da luta contra a MGF,] volta a este tema, com um notável e bem documentado dossiê. Parabéns ao Público e à Sofia por este excelente trabalho de jornalismo de investigação. Parabéns pela sua sensibilidade, empenhamento e rigor no tratamento deste tema marginal.

Espero que a Bárbara tenha lido a reportagem ou tome conhecimento do dossiê, disponível on line, nos dossiês do Público.pt: Sofia Branco (2002)- O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris. Público. 4 de Agosto de 2002)

Não é difícil a qualquer um de nós, homens e mulheres formatados pela cultura do Ocidente, ficarmos hoje siderados e indignados pelo conhecimento da prática da Mutilação Genital Feminina (abreviadamente, MGF). Aconteceu-me comigo, quando há trinta e tal anos a descobri na Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau), nomeadamente entre os fulas (a principal tribo islamizada do território e um dos mais importantes aliados dos tugas).

Só estranho é que a indignação, de que se faz eco o director do Público, no seu editorial de ontem, chegue tão tarde a Portugal. Durante décadas e décadas, todos nós, portugueses (autoridades coloniais, tropas, oficiais do quadro, milicianos, soldados, marinheiros, capelães militares, missionários, comerciantes, antropólogos, médicos, professores, jornalistas...), convivemos com esta realidade. Uns melhor, outros pior. A festa do fanado era difícil de passar despercebida a qualquer branco que conhecesse minimamente o chão fula e o seu povo, ou que convivesse com a ppoluação das tabancas, como era o meu caso.

Na Guiné, entre 1969 e 1971, na Zona leste, nunca vi os tugas (a começar por Spínola e a sua brilhante entourage de especialistas em acção psicossocial, com alguma formação portanto em ciências da saúde e em ciências sociais e humanas) minimamente preocupados com aquilo que hoje é uma evidente violação dos direitos humanos, além de um problema de saúde pública. Dir-me-ão que o Governador e Comandante-Chefe tinha mais que fazer do que usar a sua reconhecida autoridade e prestígio junto dos fulas para influenciar algumas das suas práticas mais aberrantes... Não creio, por outro lado, que no staff do brihgadeiro e, mais tarde, general Spínola houvesse suficiente sensibilidade sócio-antropológica para o problema da MGF que todos os anos matava e mutilava crianças guineenses.

Na época em que lá estive (entre Maio de 1969 e Março de 1971) também não os vi sequer preocupados com a simples promoção do estatuto da mulher guineense. A psico, a famosa acção psicológica, tinha muito pouco de promoção social... Do Minho a Timor, a festa do fanado (e a MGF praticada em pleno mato pelas fanatecas ou excisadoras, fora dos olhares profanos, dessacralizadores, dos homens) fazia parte do folclore ultramarino e era aceite pelos nossos antropólogos, formados pelo ISCPU - Instituto Superior de Ciências Políticas e Ultramarinas, em nome do relativismo cultural. Falava-se, de resto, eufemisticamente em circuncisão, e nomeadamente masculina (enquanto a feminina era praticamente ignorada ou escamoteada)!

E, no entanto, durante a guerra colonial o povo fula foi praticamente todo ele militarizado, mobilizado e martirizado em nome da defesa da pátria comum (que era obviamente uma ficção do regime político que tanto oprimia os tugas da metrópole como os nharros das colónias). A grande maioria dos soldados da minha Companhia de Caçadores nº 12 (CCAÇ 12) eram de origem fula.

Os fulas também foram vítimas da guerra (todos eles, homens, mulheres e crianças!), já que as suas aldeias, também elas, estavam organizadas em autodefesa e, por isso, eram potenciais alvos dos ataques da guerrilha do PAIGC. Os fulas deram o principal contingente da tão sonhada força africana com que Spínola queria ganhar a guerra (ou pelo menos ganhar tempo...).

Hoje é fácil cairmos na tentação de diabolizar os fulas (o principal esteio da comunidade muçulmana guineense, a par dos seus rivais históricos, os mandingas) não só pelo erro histórico da aliança dos seus chefes tribais com o colonialismo dos tugas (e que nós corrompíamos, de uma maneira ou de outra) como pelo seu modo cruel de dominação sexual, social e económica das mulheres.

Dito isto, que fique claro, aos olhos dos meus amigos guineenses, fulas, futa-fulas, mandingas ou outros, que a MGF no meu país é um crime. E como tal deve ser prevenida e reprimida. Parafraseando o editorial do Público, não há, não pode haver, respeito pela identidade multicultural dos povos que incentive, tolere, ignore ou escamoteie as violações dos direitos universais.

Qual é a situação actual na Guiné ? Embora a excisão (nas raparigas) e a circuncisão (nos rapazes) continue a ser uma prática corrente, tem-se procurado formas alternativas à MGF, valorizando os aspectos culturais e simbólicos da festa do fanado e não discriminando as fanatecas (para quem a festa do fanado é o seu sustento e a sua razão de ser).

Segundo fontes da OMS, citadas pela União Parlamentar Internacional (UPI), estimava-se que, nos finais da década de 1990, na Guiné-Bissau, a taxa de prevalência da MGF fosse da ordme dos 50% e afectando 100% das mulheres islamizadas. No caso das muheres das etnias fulas e mandingas, estima-se que 70 80% sejam excisadas. Nas zonas urbanas (Bissau e pouco mais...)calcula-se que a MGF atinja 20 a 30% das raparigas e das mulheres. No entanto, não há estatísticas oficiais, ou outras, de confiança, sobre a frequência e a gravidade desta prática na pátria de Amílcar Cabral.

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. Art. 144º do Código Penal > Ofensa à integridade física grave > "Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a [...] b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação, de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; [...] é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos". O que é novo nos crimes de ofensa à integridade física grave é que passaram a comportar, explicitamente, uma nova circunstância - a supressão ou afectação da capacidade de fruição sexual, que engloba práticas como a MGF.

(2) Na Guiné-Bissau, há legislação que impede a prática da MGF, através do artigo 115º do Código Penal (ofensas corporais graves). As pessoas que a praticam (por exemplo, as fanatecas) podem ser condenadas até cinco anos de prisão efectiva... O problema da Guiné-Bissau (e de outros países, onde a prática da MGF é tolerada ou autorizada) não é falta de legislação... Recentemente a a Eritreia proibiu a MGF, com o novo Código Penal que entrou em vigor em 31 de Março de 2007. Esta prática (a excisão feminina) atinge 89 por cento das mulheres, islamizadas e cristianizadas, deste país do corno de África. Com a Eritreia passam a ser 16 os países que já criminalizam a MFG, num total de 28 onde essa prática é milenar e ainda tem larga aceitação social...

(3) Vd. posts de:

10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(5): ecumenismo e festa do fanado

4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

sábado, 10 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)

Guiné > Raparigas fulas de Bissau > Postal ilustrado (pormenor) > Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho (ex-fur mil op esp, CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74). Calcula-se que, na Guiné-Bissau, quatro em cada cinco mulheres fulas e mandingas sejam excisadas (leia-se: vítimas da prática milenar da Mutilação Genital Feminina) (LG).


Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > A festa do fanado em Bambadinca. O Fanado, como rito de passagem, é comum aos diversos grupos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau. No entanto, é sobretudo entre os islamizados que se pratica a MGF.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.



Cartaz da Conferência sobre Mutilação Genital Feminina: Uma Abordagem Multidisciplinar. Lisboa, Centro de Formação do Hospital dos Capuchos, 17 de Maio de 2006.

Na mesa, os Dr Jorge Cabral, Alfredo Henriquez e Cristina Carvajal Isabel (assistente social colombiana, com vasta experiência em trabalho social na América Latina e Europa)


A apresentação de Mafalda Sofia Félix dos Santos (licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Autónoma de Lisboa, com especiaidade em Jornalismo. Pós-graduação em Criminologia pela Universidade Lusófona. Especialista em Etnologia)

Dr Jorge Cabral, Dr Alfredo Henriquez e Prof Luís Graça (sociólogo da saúde e do trabalho, docente universitário, ex-combatente da guerra colonial na Guiné) que fez um comentário final sobre a Mutilação Genital Feminina e o relativismo cultural.


O Dr Jorge Cabral (docente da Universidade Lusófona, presidente do Instituto de Criminologia, especialista na área da Infância, direito penal, escritor, ex-combatente da guerra colonial na Guiné) e o Dr Alfredo Henriquez (presidente do Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social), que presidiu à conferência.

Fotos: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...) (2)


1. Comemorou-se, na passada 5ª feira, dia 8 de Março de 2007, mais um Dia Interncional da Mulher. Pensando num pequeno país como a Guiné-Bissau, nas suas crianças, adolescentes e mulheres, é de recear que este dia tivesse tido pouco ou nenhum impacto na melhoria da sua condição socioeconómica, e da sua emancipação. Por razões históricas, culturais, religiosas, sociais e económicas, a condição da mulher guineense - apesar da independência - está longe de ser aceitável.

Não é vocação nem propósito deste blogue reflectir, analisar e debater, por sistema, a actualidade sociopolítica da Guiné-Bissau. Há, no entanto, um problema que persiste, e que afecta uma parte significativa das guineenses: a Mutilação Genital Feminina, a nossa (mal) conhecida festa do fanado, uma prática que tem milhares de anos e que viola os direitos humanos das mulheres, adolescentes e crianças.

Não podemos ficar indiferentes ao Holocausto Silencioso das Mulheres a quem Continuam Extrair o Clitóris, (Sofia Branco, Público, 4/8/2002), na Guiné-Bissau ou noutros paíes de África e do Próximo Oriente. No nosso tempo, quando passámos por lá, convivemos superficialmente com este fenómeno. Por falta de sensibilidade cultural, de informação e de formação de nós, jovens tugas, e sobretudo por cinismo e hipocrisia das autoridades portuguesas, a MFG foi um problema que nos passou ao lado, até mesmo na cama (na tarimba que servia de cama para as nossas episódias conquistas...). Dificilmente falávamos sobre isto, com as bajudas e muito menos com as mulheres grandes, sobre as consequências do fanado para a saúde reprodutiva, sexual, psicólógica e mental da mulher guineense, em especial das que pertencia aos grupos islamizados (fulas, mandingas e outros).

Também não creio que o Amílcar Cabral e outros dirigentes do PAIGC alguma vez tenham tocado no problema. Calculo que fosse tabu durante a guerra de libertação. Hoje as coisas mudaram, felizmente. E há mulheres (homens, poucos) guineenses a lutarem pelos seus direitos... Sem defender o relativismo cultural, devo no entanto acrescentar que não podemos ver estes e outros complexos que têm ver com valores, de uma perspectiva etnocêntrica e eurocêntrica...

Segundo dados da OMS - Organização Mundial de Saúde, a taxa de prevalência da MGF na Guiné-Bissau seria da ordem dos 50%, atingindo maior percentagm entre as mulheres fulas e mandingas (70% a 80%). A modalidade MGF mais praticada é de tipo II - Excisão do clitóris com parcial ou total excisão dos lábios menores...


Há um ano atrás, dois membros da nossa tertúlia, Jorge Cabral e Luís Graça, participaram, comentadores, numa conferência sobre a MGF que se destinou sobretudo a apresentar e discutir a um trabvalho de invetsigação de Mafalda Sofia F. Santos e Paulo César L.B. Matos (Universidade Lusófona). A iniciativa foi do Fórum de Santo António dos Capuchos.Achei


Achei oportuno reproduzir aqui, hoje, como modesto contributo para a celebração do Dia Internacional da Mulher - 2007, a intervenção do nosso camarada Jorge Cabral em 17 de Maio de 2006.


2. Intervenção do Jorge Cabral:



O meu louvor aos Promotores desta iniciativa.

Que eu tenha conhecimento é a primeira vez que em Portugal de uma forma pública e organizada, se pode debater tão complexo quanto dramático problema.

Pedem-me um comentário, e duvido que o façam só tendo em conta a minha qualidade de jurista. Certamente sabem que estive na Guiné-Bissau, que sou curioso. Que procurei conhecer e aprender, porque também eu adoptei o lema Humani nihil alienum, isto é, nada do que é humano me pode ser estranho.

Estamos em 2006, e só desde 2002 o assunto mereceu entre nós alguma atenção, mercê dos notáveis artigos de Sofia Branco. E no entanto, como tão bem acentuou na altura o Prof. Luís Graça, durante décadas e décadas os Portugueses conviveram com essa realidade. Médicos, Professores, Padres, Agentes da chamada Acção Psico-Social, artífices da Política Spinolista da Guiné Melhor, conheceram a prática da Mutilação Genital Feminina. Uma Guiné Melhor na qual metade das meninas era e continuou a ser violentamente mutilada, com a complacência de todos os representantes do Poder Colonial.

Claro que na Guiné-Colónia vigorava o Código Penal Português, o qual sempre puniu as ofensas corporais, designadamente as que ocasionassem “cortamento, privação, aleijão ou inabilitação de algum membro ou órgão do corpo”, cominando uma pena de prisão de 2 a 8 anos. Obviamente que nunca ninguém foi julgado pela prática da excisão.

Respeito pela cultura, tradições ou costumes do Povo? Ou desprezo? A realidade colonial dividia-nos entre nós e eles, e o fanado era festa deles, que não nos incomodava enquanto ocupantes. Paradoxalmente porém, aplicávamos com rigor o Código Civil quanto ao registo das crianças, todas filhas ilegítimas, dado pai e mãe não serem casados segundo a Lei Portuguesa. Ia-se até mais longe obrigando as crianças fulas a possuírem um nome português, em geral o do Chefe do Posto, facto que eu descobri ao deparar numa aldeia com 32 Augustos (Augusto Idrissa Embaló, Augusto Demba Djaló, Augusto Mamadú Baldé… etc).

A Mutilação Genital Feminina praticava-se no meu tempo e pratica-se hoje na Guiné-Bissau e também, embora em reduzido número, em Portugal. Podemos, como a Mafalda fez, elencar as crenças ou razões que lhe são subjacentes, as quais servirão tão somente para mascarar o seu objectivo fundamental – o controlo da sexualidade feminina – um cinto de castidade sem chave e vitalício.

O problema deve pois ser enquadrado nos direitos da Mulher, direito ao Corpo, direito à Sexualidade, direito à Liberdade, direito à Dignidade. Porque o que está verdadeiramente em causa é o estatuto da Mulher. A mulher coisa, a mulher propriedade, a mulher comprada, a mulher serva.

Na guerra e na Guiné estive há muitos anos. Do que lá se passa hoje sobre Mutilação Genital Feminina, só disponho de algumas informações – as tentativas de criar um Fanado alternativo, que cumpra os ritos de iniciação sem mutilar, parece não ter dado o resultado esperado. Quanto às fanatecas, as mulheres que fazem profissão da excisão, bastantes entregaram as facas, acreditando que lhes seria atribuída uma pensão para sobreviverem, o que parece não ter acontecido.

Segundo creio a operação está a ocorrer em crianças cada vez mais novas, quase bebés, porque talvez a facilite, ou em virtude de as novas excisadoras não terem a perícia das de antigamente. Não creio que exista uma vontade política determinada em erradicar a Mutilação Genital Feminina, num país em que o equilíbrio étnico é garante de uma sempre difícil estabilidade. Decretar pura e simplesmente a proibição iria sem duvida desagradar aos Islamizados, que constituem o grupo religioso maioritário na Guiné.

Acredito que, quando muito, as preocupações sejam de saúde pública, como se pode depreender do Código Penal da Guiné-Bissau, cujo art. 117º, que tem como epígrafe “Ofensas Privilegiadas”, diz o seguinte: “Quem habilitado para o efeito e devidamente autorizado, efectuar a circuncisão ou excisão sem proceder com cuidados adequados para evitar que se produzam os efeitos previstos no nº 1 do art.115º ou a morte da vitima, e estas sobrevierem, é punido com pena de prisão até 3 anos e de 1 a 5 anos”.

A leitura do preceito é elucidativa – o que se pune é a negligência na operação e não a própria mutilação genital feminina. Estamos no domínio da Medicalização, de que a Mafalda falou. Atenuam-se os riscos. A complexa cerimónia de iniciação transforma-se numa intervenção cirúrgica sem outro objectivo ou razão, senão cumprir o costume.

Aliás, e como sabem, durante o séc. XIX e até aos anos 30 do séc. XX, tanto nos EUA como na Europa, a ablação do clítoris constituiu tratamento da histeria, da ninfomania e do lesbianismo. Terapêutica para bem delas, está bem de se ver…

Há mais de 20 anos, que nas minhas aulas falo da Mutilação Genital Feminina e sempre a propósito da falta de consciência da ilicitude. A punição de alguém por um acto cometido implica a interiorização do ilícito da conduta praticada, que a pessoa sinta que o que fez está errado. A não ser assim, a aplicação da norma penal torna-se absurda e ineficaz. Por isso todo o esforço para banir ou erradicar determinado comportamento deve ser efectuado prioritariamente através de outros meios, de uma Política Social, de educação, de saúde, de integração. O Direito Penal, não o esqueçamos, deve constituir uma ultima ratio.

Enraízada como crença, mito ou costume, será a Mutilação Genital Feminina um valor cultural a ser preservado? O respeito pela identidade cultural deve tolher-nos na luta, contra práticas desumanas, atentatória da vida e da liberdade das pessoas?

Cada cultura encerra em si valores e desvalores. Não devemos deixar morrer os valores, mas devemos procurar extinguir os desvalores. De outra forma toleraríamos que as viúvas na Índia fossem enterradas vivas com os falecidos maridos, ou que os pais violassem as filhas obedecendo a um velho costume.

Creio que o impacto dos artigos da Sofia Branco, publicados no Jornal Público em 2002, se deve principalmente à informação de que a Mutilação Genital Feminina ocorreria em Portugal. Também pela Europa as preocupações aumentaram com a possibilidade da prática ser cá efectuada, dada a corrente migratória. Julgo, porém, que toda a Mutilação Genital Feminina é igualmente grave, devendo ser denunciada e combatida, independentemente do lugar onde seja efectuada. A universalidade dos Direitos Humanos impõe-nos que sintamos toda a sua violação, como violação dos nossos direitos. A mutilação de uma menina no Sudão constitui uma ofensa à minha condição de homem livre, até porque a minha liberdade só pode ser assumida em plenitude, num Mundo de Homens e Mulheres Livres.

Em todos os nossos Códigos Penais, o de 1852, o de 1886, o de 1982 e o de 1995, a mutilação genital constitui o crime de ofensas à integridade física grave previsto e punível no actual art. 144º. No projecto em discussão, propõe-se ao artigo um acrescento, na alínea b). Assim onde agora se lê – “Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem”, passará a surgir “de procriação ou de fruição sexual”.

A proposta suscita-me algumas dúvidas. A mutilação já estava incluída quer na alínea a) “privá-lo de um importante órgão ou membro” e até na própria b) “afectar-lhe a possibilidade de utilizar o corpo”. A questão é porém outra. Deve a mutilação feminina, ser incriminada autonomamente, tipificando a conduta?

Se a resposta for positiva então terá de ser enquadrado o novo tipo, nos crimes contra a Liberdade Sexual, definindo com rigor o comportamento. Para tanto, tornar-se-á necessário que os nossos legisladores conheçam o problema. Infelizmente, a nossa política criminal parece ditada pelos media. Se amanhã os jornais relatarem um caso de canibalismo, logo surgirá uma proposta de criminalização, como aconteceu com a venda de bebés, que evidentemente já estava integrada no crime de escravidão.

Desculpem toda esta desalinhada exposição. Penso que indiciei o que penso sobre a temática em debate: Atentado contra as crianças, coisificação da mulher, abominável violação da dignidade, deve ser encarado na óptica dos Direitos Humanos.

Estudado multidisciplinarmente, urge o seu combate no terreno, pelos diversos técnicos que conheçam e lidem com a situação. Técnicos de saúde, interventores sociais e todos os que trabalham com a Imigração, terão um papel fundamental pela persuasão, educação e aconselhamento.

A repressão só por si nada resolverá! Antes pelo contrário, aumentará o secretismo ou determinará as famílias a levarem as crianças à Guiné para sofrerem a Mutilação. Por outro lado, ao actuarmos aqui em Portugal, chamando a atenção para o criminoso da conduta, estaremos a colaborar na luta também lá, pois os imigrantes transmitirão a mensagem. Vai sendo tempo de terminar. Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, como diz o Poema.

É legítima a nossa indignação. Não chega porem indignar-nos. Habitamos o mesmo mundo e pertencemos à mesma raça – a Raça Humana. Não somos nós e os outros, somos todos Nós!

Lutar contra esta prática, constitui dever de cada um de nós, porque é nossa obrigação contribuir para um Futuro mais livre, fraterno e solidário.

Muito Obrigado.
Jorge Cabral

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts sobre o fanado que, no caso das raparigas, implica a prática da Mutilação Genital Feminina:


4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)(Luís Graça)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)

(2) O Fórum de Santo António dos Capuchos é uma iniciativa de profissionais de Serviço Social organizada pelo Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social (CPIHTS), pelo Serviço Social dos Hospitais dos Capuchos, Desterro, Miguel Bombarda, Liga dos Amigos e Utentes do Hospital dos Capuchos (LAU) e do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona.