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sexta-feira, 15 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1851: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (50): Do tiroteiro em Bambadinca na noite de 14 de Junho de 1969 à emboscada da bruxa


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Regulado do Cuor (a norte do Rio Geba) > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. A tabanca de Finete, em autodefesa, guarnecida pelo Pelotão de Milicia nº 102, é visível ao fundo. Nesta época (finais de 1969/princípios de 1970), Finete dependia da autoridade militar de Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/70). Era sempre penosa a travessia da bolanha, mas obrigatória para se ir de (e para) Bambadinca, Finete e Missirá. Missirá era o destacamento mais avançado, a norte, do Sector L1 da Zona Leste.

No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (se a me~mória não me atraiçoa), vê-se o Fur Mil Reis e o 1º Cabo Branco (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).



Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados



50ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 25 de Maio de 2007. Subtítulos do editor do blogue.



Tiroteios inconsequentes em Bambadinca e Missirá... ou a 'emboscada da bruxa'
por Beja Santos

Seriam três da manhã de 14 de Junho [de 1969] quando os sons cavos das deflagrações começaram a sacudir Missirá. Não muito longe, alguém estava a ser atacado com morteiros, rockets e armas automáticas. Logo a seguir, ouviram-se as G3 e, espaçadamente, os morteiros 60 e 81. Levantei-me de imediato, supondo que chegara a vez de Finete. A tropa aglomerava-se no alto dos abrigos, nos postos dos sentinelas, em cima das viaturas. Os céus sulcavam-se de fogo descompassado, ouvia-se claramente o troar dos morteiros, até as rajadas das Daimlers.


Boleia de barco, do Mato Cão a Bambadinca


O que me surpreendia era um fogo que cuspia em várias direcções, mas não havia resposta, como se um quartel, electrizado, decidisse fazer fogo por capricho. As opiniões coincidiam: era de novo fogo em Bambadinca. Com auxílio do Teixeira, iniciou-se a comunicação com o batalhão, com o inevitável "maior deste" a perguntar ao "maior desse" o que se passava. E, subitamente, do outro lado informou-se que tudo estava calmo, não era necessário qualquer deslocação ao "maior deste".

Na parada confirmava-se o silêncio que passara a navegar para lá das matas do Cuor, só de quando em quando o tracejado das balas riscava o céu, até que tudo se acalmou em escassos minutos. Com a voz exausta, o Teixeira relembrou:
- Meu alferes, o contingente de barcos passa em Mato de Cão cerca das 8:30.

Pragmaticamente, fomos todos descansar, já que às cinco da manhã iríamos quebrar o capim encharcado pelo orvalho.

Com ligeiro atraso, o comboio de navios civis protegido por uma LDM entrou no Geba Estreito e deu-nos boleia até ao cais de Bambadinca. A vida na tabanca não conhecia alteração, ferviam gargalhadas no mercado, não se via sinal de destruição. No quartel, deparou-se o mesmo quadro, como se houvesse a maior casualidade nestas flagelações grandes ou pequenas.

Procurei falar com o Pimbas ou com o Major Pires da Silva, estava em reunião, ambos manifestaram interesse em falar-me, dividi tarefas pelos 20 homens que me acompanhavam, fui à messe escrever apressadamente um aerograma à Cristina, ajuntando as trivialidades do costume: que caiem chuvas diluvianas e as viaturas continuam empanadas; só encontro meias de nylon em Bafatá e ando a pedir meias de malha e altas a quem gosta de mim; tenho cada vez mais gente doente, fazem-se prodígios com duas secções desfalcadas que saem de Missirá, recolhem-se milícias em Finete, outro dia descobri que nem morteiros nem bazucas seguiam connosco, só dois apontadores de dilagramas; que está prometido ir a Bafatá dentro de dias tratar dos documentos para o casamento e aproveito para perguntar à minha futura mulher se já tem a minha certidão de baptismo; que o meu padrinho de baptismo me enviou um pacotão de livros mais ou menos fabulosos, entre eles Rumor Branco, de Almeida Faria, um amigo que ela tanta aprecia; que tenho muitas saudades e aguardo cheio de esperança o resultado o meu recurso.

Falo primeiro com o major Pires da Silva, um tanto insone que me relata a sequência do que se passou esta madrugada. Acho aquilo tudo estranho, que raio de inimigo é aquele que não consegue atingir uma instalação, um telhado, uma viatura? Aliás, nos comentários breves que escutei de alguns camaradas, acorre uma palavra aparentemente enigmática mas que teria correspondido à natureza do ataque e ao volume da respostas: uma comboiada.

A seguir, fala-me na operação Goldfinger II o mesmo é dizer que eu vou estar em Aldeia do Cuor, alguém virá por Santa Helena e Mero e patrulhará esmiuçadamente a outra margem do Geba, na expectativa de uma cambança onde eu apanharei os possíveis rebeldes. A operação terá lugar na madrugada de 16.


O último encontro com o Pimbas (2)

Com a serenidade possível, recordo ao Major de Operações que tenho 9 homens que vão ser examinados pelo David Payne, não podem dar um passo; que as camas em Missirá e Finete não estão cheias de gente indolente mas gente que sofre esta permanente canseira de Missirá a Mato de Cão, sem nenhum apoio da tropa de Bambadinca.

O Major Pires da Silva lembra-me que raramente somos chamados a operações. Respondo-lhe que sair com duas secções de Missirá e Finete, neste momento, e por mais de três noites, é comprometer todo o sistema defensivo.
- Ainda bem que me fala nisso, em Julho preciso exactamente de si e de mais 12 homens.

Despedimo-nos e sigo para o gabinete do Pimbas. Está jovial e prazenteiro.
- Menino, penso que tenho um consolo para te dar. Mais mês, menos mês, vais para Fá e depois trabalharás só para as operações de Bambadinca e no sector do Cossé. Até lá, não me tragas mais problemas, aguenta estoicamente.

Fora ali mais para cumprimentar os camaradas flagelados dessa Bambadinca que eu trago no coração. Não regresso nenhuma resposta com mais efectivos, não há disponibilidade para se apoiar o Cuor. Furioso, junto-me aos meus homens, não há almoço para ninguém, petisca-se no Zé Maria, o rumo é Finete, onde tenho a premonição de um duro ataque, a qualquer hora.

A marcha pela bolanha é um calvário, a ponto de se ter feito uma padiola em que levamos o gigante Serifo Candé que anda com as pernas entrapadas que escondem as úlceras. É uma coluna em que se levam cunhetes de granadas à cabeça, por cima de uma rodilha, e pacotes de espaguete nos bolsos.

Trabalhamos com Bacari nas folhas de pagamentos dos milícias de Finete e aproveito para vistoriar as obras de um abrigo, praticamente pronto. Serifo não vem connosco, a marcha para Finete é enriquecida por uma dezena de civis que vieram de Galomaro e vão ajudar nas fainas agrícolas os Soncó e os Mané. É uma progressão difícil de 14 Km cheios de lama, com o olhar sempre atento às possíveis minas.

São 17:30, o céu é chumbo, o entardecer esfria quando, no preciso instante em que uma coluna de militares e civis abatidos pela chuva inclemente entram pela porta de armas, o fogo de morteiros 82 e rockets vem de Cancumba para o interior de Missirá. É a debandada, os militares vão para as posições preestabelecidas, os civis, enlouquecidos, esparvoados, gritando socorro, atiram-se para qualquer sítio. As nossas armas respondem, Cherno começa a sua corrida , o seu olhar perscruta a mata, põe e tira cargas nas granadas de morteiro, manda os seus recados para Cancumba.

É no meio do caos deste foguetório que dou comigo no abrigo de morteiro 81 com o Queirós. Este prepara-se para meter a primeira granada, quando lhe suspendo o gesto:
- Pá, aconteceu qualquer coisa, os gajos retiram, não há mais fogo.

E não havia mesmo, tal como em Bambadinca, um grupo não estimado limitou-se a deixar um cartão, um aviso de que sempre que podem e querem, os de Madina têm ao seu dispor a nossa intranquilidade. Os próximos minutos destinaram-se a mandar silenciar as armas e avaliar os estragos. Felizmente, estragos mínimos, umas pernas e braços escoriados, o Adão teve trabalho para as horas seguintes, tem até mesmo comprimidos para pôr a dormir os mais excitados.

Tudo somado, jantou-se mais tarde e chegou-se ao cúmulo de cumprir as ordens emanadas de Bafatá, 15 homens foram emboscar a cerca de 600 metros, vi-os seguir com o coração apertado, não há nenhuma lei que defina que a seguir a uma curta flagelação não venha um ataque demolidor. Mas, de facto, tudo não passara de um grupo que a pretexto de um patrulhamento se limitara a dar conta da sua existência. Deixara como lembrança vários buracos na parada e pedaços de rockets. O patrulhamento ao princípio da manhã confirmará exactamente isto: eram poucos e retiraram pela estrada de Moruncunda. Trouxemos alguns cartuchos inteiros e cápsulas que mais tarde entreguei em Bambadinca.


Operação Goldfinger II

O dia 15 seria imperativamente dedicado às obras, já que nos competia sair para a Aldeia do Cuor pelas 4 da tarde. A Goldfinger II é uma acção sem história, é um dos picantes de todas as guerras, que por natureza são imprevisíveis. Chovia a cântaros, lá levámos a capa dita impermeável e rações de combate. De acordo com o plano, ficámos primeiro dentro da Aldeia de Cuor e quando anoiteceu totalmente caminhámos para a orla da bolanha, uma emboscada que garantia total visibilidade para o caminho que vinha de Fá Madinga e da antiga tabanca de Canchebeu, a seguir a Biana.

As horas passaram, de novo vi chegar um pelotão (era o Pel Caç Nat 53, comandado pelo Alves Correia, tanto quanto me recordo), ouviam-se gritos desta unidade militar a tornear toda a bolanha, como se procurasse acossar um presumível grupo que tivesse vindo abastecer-se ali perto. Mais tarde, vim a saber que houvera um novo roubo de vacas em Bissaque, perto de Mero, espalhou-se o boato que 100 rebeldes iriam procurar entrar no quartel de Fá. Pois bem, nada aconteceu até às cinco da manhã, e com a primeira luz do dia regressámos moídos a Missirá.

Eu pedi há dias ao Queta Baldé que viesse conversar comigo sobre acontecimentos que mais tarde aqui se descreverão, ligados sobretudo à flagelação de 15 de Julho. A remexer os meus papéis, encontrara um louvor que lhe fora concedido e onde se referia concretamente que ele ripostara ao fogo do inimigo como apontador de metralhadora ligeira, a despeito desta ter sido atingida, tendo concorrido para baixas ao inimigo e captura de armamento.


Nosso alfero, eu que sei que não acredita em bruxas, mas que as há, há - assegura o Queta Baldé


Como a memória do Queta é praticamente infalível, depois de eu lhe ter pedido confirmação sobre os acontecimentos de Bambadinca, Missirá e Aldeia de Cuor, tudo ocorrido em escassas horas, ele que me ouve sempre a manear a cabeça, erguendo de quando em quando um dedo para depois dar uma explicação ou fazer um complemento, a certa altura disse:
- Nosso alfero, tudo isso aconteceu, mas ainda não falou na emboscada da bruxa, que foi logo a seguir, quando levámos população civil para Finete.

Olhei-o atónito, nunca tinha ouvido falar numa emboscada da bruxa e pedi-lhe pormenores.
-Nosso alfero, eu sei que não acredita mas as bruxas são os maus espíritos que andam pelas matas. Inderissa Mané, um dos filhos de Mussá, e quero lembrar que o pai de Mussá era o guarda-costas de Bacari Soncó, o pai de Malã, estava possuído por esses maus espíritos. Então, depois das flagelações a Bambadinca e Missirá, depois de termos passado a noite em Aldeia de Cuor, creio que dois dias depois de tudo isto, e ainda sem viaturas, fomos de Missirá a Finete para juntar mais gente e seguir para Mato de Cão. Estávamos a chegar junto do sítio onde fora a grande tabanca de Canturé, quando Inderissa, um rapaz que fora sempre doente, desatou a babar-se, roubou uma G3 e ameaçou que disparava sobre nós. Felizmente que ia connosco o padre Lânsana que falou com ele de mansinho e acalmou a bruxa. Olhe que podíamos ter morrido ali muitos. Nesse dia, a bruxa perdeu.

Ouvi esta explicação do Queta em completo silêncio, tomei nota de tudo e do alto da minha suficiência para encontrar outras explicações plausíveis, ocorreu-me pensar que Inderissa era epiléptico e que fazia parte dos jogos da vida morrer em acidentes, tão imprevisíveis como aquele.


Leituras: Do Prazer de Matar (F. Brown) ao Rumor Branco (Almeida Faria)

A época das chuvas prossegue desalmada, caminhamos pela bolanha de Finete enregelados com água pela cintura. Fazemos todas as acrobacias possíveis para aguentar a falta de recursos. Escrevo muito, recebi correio do meu padrinho, do Carlos Sampaio, a caminho do norte de Moçambique, de amigos de S. Miguel, cartas íntimas da Cristina, da minha mãe, chegou mais apoio do Ruy Cinatti. Procuro embalar-me nestes estímulos enquanto desabam todas as chuvas do mundo sobre o Cuor, alastrando para a Guiné.

Capa do romance policial O Prazer de Matar, de F. Brown. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 137). Capa: Lima de Freitas.

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.



Apetecia-me poetar, mas relembro a obra do Cinnati descubro a minha falta de vocação. Pego em O Livro do Nómada Meu Amigo e meço a força de um poema de Sophia de Mello Breyner Andersen endereçada ao Cinatti:

Intacta é a sua ausência
Como a estátua de um Deus
Poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas.

O Ruy, que me tem enviado alguns dos seus poemas sintéticos, escreve em Ilha: Ave!/Prenúncio de arvoredo . Como é que se pode ser tão admiravelmente simples? Ou então:

Não sei quem me criou. Deus sobre todos
Paira. Esta canção pertence-lhe:
O pão de cada dia nos dai hoje.
Não sei quem me criou. O ar que respiro
Não me deixa ser menos do que sou.

Não me deixa o mar omnipotente,
A terra inteira erguida ao céu profundo.
Cada passo da História me é presente.
Sou o compasso do Mundo.

Volto a reler Frederic Brown, um autor prolífico que tudo experimentou na ficção, desde o policial à ficção científica. O prazer de matar é mais um desses livros da Colecção Vampiro que felizmente se pode encontrar em Bafatá. É um livro soberbo. O detective não o é, é um redactor a quem mandaram fazer a notícia sobre um jovem que sofreu um acidente mortal na montanha russa, num parque de diversões. Este jovem foi identificado devido a uma carteira onde constavam os seus elementos. Afinal não era bem assim, a carteira era de outro jovem, e começa uma investigação informal na semana de férias de Sam Evans, este polícia por empréstimo e curiosidade. No final, o jornalista é confrontado com uma história de esquizofrenia, alguém aparentemente normal que tem sede a toda a hora de destroçar vidas humanas.


Capa do romance Rumor Branco, de Almeida Faria. Lisboa: Portugália Editora, 1962. (Colecção Novos, Série Novos Romancistas, 1). Prefácio de Virgílio Ferreira.

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

A grande surpresa é a leitura de Rumor Branco, por Almeida Faria. Ele não tinha ainda 20 anos quando se estreou na literatura e recebeu o Prémio Revelação de Romance, da Sociedade Portuguesa de Escritores. No prefácio, Virgílio Ferreira anuncia o aparecimento de um futuro grande escritor e refere-se a obra fragmentada, uma história sem história, catadupas de frases onde mudam as pessoas, uma bebedeira que lembra Faulkner ou James Joyce.

O personagem é um tal Daniel João, que se vai colando a vários personagens, é pequeno burguês, mas é operário, uma vezes é muito culto, outras vezes não tanto, leva uma vida carregada de mistério, cola-se à nossa pele recorrendo a múltiplos disfarces, procurando empolgar-nos através da descoberta das suas experiências. A pontuação do texto é terrível mas original, obrigado a uma leitura concentrada, a voltar atrás, a perceber a voz e o tumulto interior. Fala da vida cosmopolita mas também do Alentejo, rescreve as palavras à luz do sotaque alentejano, sobe ao sonho da burguesia e desce à miséria dos proletários alentejanos. É preso e perseguido e condenado a uma prisão quase perpétua. Visita Paris e percorre esfuziante Saint-German e Montparnasse. Maneja os cânones do novo romance e do neo-realismo. Lê-se em exaltação e fica-nos uma secura na despedida.

Tenho que escrever à Cristina para lhe contar esta novidade, já que o Almeida Faria é seu colega de curso. Vou escrever e depois deito-me, poderá ser um sono mais regrado, só ao fim da tarde é que parto para Mato de Cão. Todo o mês de Junho vai ser assim. Mas em Julho virá o ciclone, depois um novo período e operações. Ora oiçam.

__________

Notas de L.G.:


(1) Vd. relação dos dez últimos posts anteriores desta série:
11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1833: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (49): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (4)

1 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1806: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (48): Junho de 1969: Missirá em estado de sítio

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1786: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (47): Finete já está a arder ? Ou o ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1969

20 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1770: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (46): Encontros de morte em Sinchã Corubal, com a gente de Madina

11 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1748: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (45): A visita do Coronel, o Grande Inquiridor~

4 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1730: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (44): Uma temerária e clandestina ida a Bucol

27 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1704: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (43): Em louvor de Bambadinca, a nossa tabanca grande

20 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1680: Operação Macaréu á Vista (Beja Santos) (42): O Tigre de Missirá volta a rugir

13 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1657: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (41): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (3)

30 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1637: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (40): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (2)

(2) Será o último encontro do autor com o tenente-coronel Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852, e seu amigo; punido por Spínola, é colocado em Bissau, ou melhor, posto na prateleira... Uma situação humilhante, para ele. Beja Santos só voltará a encontrar o seu amigo em Lisboa.

sexta-feira, 16 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1600: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (38): Missirá, a Fénix renascida

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > O destacamento vai renascer das cinzas, depois do ataque de duas horas do PAIGC, na noite de 19 de Março de 1969.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "O Luís Casanova gostava de instantâneos, disparos ao sabor do quotidiano. Ele registou a minha cubata a partir de um local que era o fórum dos dias quentes, a cantina. A minha cubata fora o refúgio do Prof. Armando Cortesão, um dos mais eminentes cartógrafos mundiais. O cientista viveu alguns meses em Missirá, acompanhando na região do rio Gambiel uma plantação extensa de palmeiras de Samatra. Fui várias vezes a Gambiel, e lá terá lugar, na primeira semana de Janeiro de 69, um rencontro com uma força do PAIGC. Dormi até Março na cama do cientista, com um colchão de folhelho" (BS).



Foto e legenda: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.







Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > 1969 > O esatdo a que ficou reduzida a morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , depois do grande ataque ao destacamento em 19 Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha, incluindo os seus haveres mais preciosos: os livros, os discos, os escritos, as cartas... Valeu-lhe a solidariedade do pessoal de Bambadinca, sede do comando e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70), e em especial do seu comandante, o tenente-coronel Pimentel Bastos.


Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.




38ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (3). Texto enviado em 21 de Fevereiro de 2007.Texto enviado em 27 de Fvereiro de 2007.


Caro Luís, aqui vai a prosa da semana. Fotografias da Missirá calcinada tens tu, até comigo a fingir de construtor civil. Mal tinha acabdo de escrever este texto e descobri o louvor que foi dado ao Mamadu Camará, exactamente pelo conjunto da sua colaboração e onde se alude a um episódio que aqui se relata: Mamadu que nunca conduzira na vida salvou um Unimog de ficar esturricado. Seguem pelo correio os dois livros aqui mencionados e um envelope com correio da Cristina. Recebe um grande abraço do Mário.


Missirá renasce entre a lama e o cimento
por Beja Santos


Lá para o fim de Abril, caía a pique o dia, enquanto Gibrilo Embaló, Dauda Seidi, Uam Sambu, Nhaga Macque e Ieró Baldé amassam com os pés a nova lama que amanhã entrará numa singela forma de madeira, para fazer mais tijolos, no momento em que Cibo Indjai lança capim que reforçará essa lama e dará consistência aos tijolos que amanhã entrarão na dita forma sob a ameaça da época das chuvas que já se anunciou, e quando Quebá Soncó ajudado pelo seu filho Quecuta faz uma aspersão de água para que a massa barrenta se torne mais maleável, sinto-me inebriado e festivo pela epopeia do renascimento de Missirá. A minha casa desapareceu, vivo temporariamente no abrigo do Casanova, incólume às desvastações daquela noite de 19 de Março passado. Inebriado estou, e vou saudar estes operários e caçadores nativos, trolhas, heróis da guerra e da paz.

Sento-me, acendo o candeeiro de petróleo, olho fascinado para a folha A4 e escrevo Um relatório de Abril, um simulacro de poema para falar da gesta em que saímos das cinzas, combatemos e felicitamos o Cuor:

"Escrevo-vos em júbilo vendo as papaias a crescer e quando um sol poente incendeia as cores das novas moranças. Estas casas são, por ora, a lama e cibes engavinhados da bolanha onde os nossos tios mandingas continuam a cultivar a mancarra e a cana. No ar, há uma nostalgia da sumaúma que esvoaça nas crinas de um bissilão, aquela árvore de sangue forte que me dá coragem neste tempo de entusiasmo. Mãos pretas enchem as malhas de cimento, rasgam as portas que abrem para o arame farpado. Cada porta nova fala em nome de 17 moranças calcinadas. Anoiteceu e já não posso ver as enxadas que ribombam nos novos espaços da vida. Há horas em que são soldados, vão longe daqui e vigiam o rio, para que os barcos passem. Há horas em que são agricultores alçados em construtores, perfilando tijolos de adobe, reconstruindo com sorrisos, afastando os medonhos presságios. São seis horas da tarde, há um vento estrangeiro que anuncia uma luz de chumbo que vai acobertar por algum tempo estes criadores de uma tão humilde criação. Explico: até aos joelhos amassa-se a lama, enquanto ao lado se lavra a golpes de catana um cibe, se afaga uma nova parede e, como num prodígio de biologia, a parede sobe onde antes estavam naves chamuscadas. Agora, Sadjo amigo, nosso porta-bandeira, Cuor rima com suor, terra de seda oleaginosa. Escrevo-vos com a espingarda ao lado e um candeeiro de petróleo que desanuvia a sombra e ilumina o arvoredo deste gigante equatorial onde habito. Escrevo-vos para dizer que todos os olhos despontam em fósforo, nesa terra côncava vive-se uma rapsódia de adolescentes e lembro o Abril da minha Pátria.".

A minha mãe leu e ficou indecisa. Mais tarde, quando o Furriel Casanova a foi visitar, questionará:
- Não percebo a guerra que vocês fazem. O meu filho falou-me num soldado que era porta-bandeira. Não é uma loucura andar pela mata com um porta-bandeira?.

A gente de Madina/Belel trouxe canhões sem recuo e balas incendiárias


Voltando atrás lembro-me da conversa que tive com o Queta Baldé acerca dos acontecimentos de 19 de Março. São 9 da manhã, o Queta estava bem em frente a mim, as mãos circulam no ar, ritmam a cadência viva expressa no olhar de quem tudo registou, para nosso gáudio:
-Nosso alfero, não pode imaginar a sorte que teve a gente de Madina. O dia tinha estado muito quente, não havia aragem na noite. Trouxeram canhões sem recuo e balas incendiárias, puseram-se a 500 metros mesmo em cima da estrada, entre o quartel e a fonte de Cancumba, junto ao cemitério mandinga. A primeira roquetada foi sobre a sua casa que explodiu minutos depois, pois o alferes Reis tinha lá metido seis caixas com granadas de bazuca. Foram duas horas de ataque. As balas incendiárias queimaram tudo, o calor era um inferno. Eu fui para a metralhadora, no abrigo do Teixeira das transmissões e ali estive durante as duas horas do ataque. O Campino foi o herói, como o Mamadu Djau, sempre junto ao arame farpado, à procura da saída do fogo do nosso inimigo. O Mamadu Camará que não sabia conduzir foi tirar o Unimog grande que estava parado junto do combustível e andou com o Unimog pela parada. Mas quem mais lutou foi o Cherno que chegara na véspera de Bissau. Vi-o todo molhado de canseira a responder com o morteiro até se acabarem as granadas. Na manhã seguinte, quando fizemos o reconhecimento vimos muito sangue da gente de Madina, eles perderam gente.

De facto, o PAIGC não saiu completamente em glória deste ataque a Missirá. No fim de Março, fui chamado a Bambadinca para conhecer um desertor de Madina que tinha sido trazido pelo chefe de tabanca de Mero. As notícias eram importantes para mim, aquele enorme balanta falou calmamente na sua língua nativa e Nhaga Macque traduziu:

Madina/Belel insistia em armadilhar todos os trilhos que tínhamos descoberto, alterando os itinerários até Mato de Cão, Canturé e Nhabijões; houvera mortes e feridos no ataque de Março e Corca Djaló, o Comandante de Operação, ficara furioso por só ter sabido mais tarde que as munições em Missirá estavam praticamente esgotadas ao fim daquele tremendo ataque; Madina/Belel ia receber reforços para aumentar a pressão sobre Missirá e Finete.

Não valorizei nem desvalorizei estas informações, sendo céptico destas apresentações espontâneas de desertores, sabe-se lá se novos informadores legitimados em Santa Helena ou nos Nhabijões. Mas foi este informador que me fez estar atento aos sinais de presença humana e animal que eu ia encontrando nos nossos trilhos mais batidos, até que um dia descobri que valia a pena patrulhar picadas de outrora. Vim a ter surpresas, como mais tarde aqui se contará.


Chego de Bissau a 21 de Março de 1969



A Missirá onde eu chego na tarde de 21 de Março é um aquartelamento desolador, marcado pelo negro dos incêndios, de pé estão os abrigos de chapa, a cantina, a cozinha e messe, o balneário e as moranças do régulo que escaparam pela distância de todas as outras moranças que desapareceram com o vento assassino que subitamente soprou e se propagou às habitações dos caçadores nativos e suas famílias.

Quem me recebe é Bacari Soncó que substitui o régulo, ainda hospitalizado. O Reis, que me substituiu enquanto fui operado, já está em Bambadinca e jura não voltar a Missirá. Quando falo em Queta do alferes Reis, ele lança uma casquinada ainda maior daquela que teve quando falou dos armadilhamentos do fim do ano:
-Nosso alfero era muito divertido. Levava aqueles papéis que cravava nas árvores onde escrevia que tinha ali passado o Alferes Reis e tratava-os por turras paneleiros.

À entrada do quartel verifico que o arame farpado voltou a cair, vão ser mais semanas de tesoura corta-arame e Unimogs carregados de rolos e a força bruta a esticar o arame. Ardeu tudo, até pás e picaretas, os fardamentos, armas, os bens dos soldados e suas famílias. Antes de falar à população pedi para ir ver onde morreu Sadjo Baldé, que eu fora buscar ao Cossé há tão pouco tempo na companhia da mulher. Pelo Queta, descobri mais tarde, fora uma relação horrível já que a mulher amaldiçoara a sua compra, estando prometida a outro homem.

Depois, entrei sozinho na minha cubata fixando o olhar naquelas cinzas onde outrora estava a minha riqueza. Só restavam os ferros da cama onde dormira o Prof. Armando Cortesão. Atrás de mim, Cherno com a voz embargada pede desculpa por não ter podido salvar nada. Rezo a Deus pelo entusiasmo que tenho, pela alegria que sinto, em ter voltado a Missirá com o propósito de a ver renascer. Dirijo-me à população e a todos os soldados agradecendo-lhes o modo como lutaram e prometo-lhes que Missirá vai reaparecer muito em breve, pedindo a todos um esforço incomum nos próximos meses.

Depois do jantar, reúno os três furriéis (Casanova, Pires e Pina, recentemente chegado) conjuntamente com os cabos.
- Vamos continuar a ir todos os dias a Mato de Cão, Madina/Belel não vai ficar tranquila pois continuaremos ofensivos, e este espaço vai sair das cinzas. Haverá uma rígida divisão de tarefas, a população civil contribuirá para a reconstrução das moranças, tenho a promessa de que o cimento e outros materiais de engenharia vão começar a chegar para a semana.


A solidariedade do Pimbas e do BCAÇ 2852


Alguém me entrega uma carta que o Pimbas deixara para mim. Sim, o Pimbas viera de helicóptero na manhã seguinte, trazendo com o Capitão Neves o primeiro reabastecimento de munições. O Queta já me tinha dito:
- Ao fim de duas horas de ataque, quando começámos a ver que os cartuchos iam acabar, um grupo de soldados foi buscar todos os velhos cartuchos e decidimos que se o ataque continuasse os deixávamos entrar e aquelas últimas balas seriam para eles.

O Pimbas estava electrizado com aquela ruína, visitou demoradamente tudo, trouxe um verdadeiro consolo, depois, sentado na nossa messe redigiu uma linda mensagem:
- Não estou preocupado contigo, pois sei que vais levar a carta a Garcia. Não merecias esta chatice, mas a guerra prega-nos estas partidas. De tudo quanto precisares e estiver ao nosso alcance, conta connosco. Recebe um abraço amigo.

Precisávamos de tudo. Quando cambámos o Geba, éramos uma horda de indigentes, havia mais gente a vestir civil que militar, em chanatos, camisas interiores, calções fulas, enfim o tal circo referido pelo homem grande de Bissau. Na CCS, foi-nos oferecido todo o fardamento existente, a começar pela roupa dos falecidos no rio Corubal. Nesse dia não precisei de pilhar nada, deram-me roupa interior e exterior, com uma enorme dignidade alguém trouxe um subscrito com dinheiro e disse-me:
- É uma recolha pobrezinha para ajudares quem tu quiseres.

Aquele dinheiro deu-me muito jeito para comprar desde candeeiros a sabão, artigos de costura e tecidos para as mulheres e crianças. Foram tempos muitíssimo difíceis mas numa carta de 6 de Maio informo para Lisboa:

"Já ninguém anda nú, até os alfaiates de Bambadinca fizeram roupa sem pedir dinheiro. Começa a choviscar mas ja temos empilhados e salvaguardados milhares de blocos. Faltava-nos arroz e deram-nos o que apanharam no Fiofioli durante uma grande operação. Chegaram 500 sacos de cimento, todo o material de aquartelamento, reparámos o que era possível reparar, o resto aparece de raíz".

Nem tudo é gesta ou me deixa feliz: Jolá Indjai vai para Lisboa, julgava-se que era um vírus horrível, descobriu-se que estava tuberculoso. Só o voltarei a ver em Agosto de 1970, uma hora antes de eu embarcar no Carvalho Araújo onde ele me consolou:
- Agradeço o que a sua família fez por mim. O meu maior orgulho, aquilo que direi aos meus filhos é que pude combater a seu lado".

Um dia, já em Abril, descobrirei que me roubaram 1500 escudos, o que restava das minhas economias, as viaturas continuam a empanar, o Rui Gamito veio cá e deu conselhos de engenharia mas contínuamos a trabalhar sozinhos. Todas as noites trabalho com o Pires no inferno dos autos de abate, explicando pormenorizadamente o material perdido, desde camas a capacetes, numa operação interminável. A espingarda do Teixeira que tinha sido roubada por alguém que seguramente deixara a sua naquele intempestivo ataque de abelhas, durante a Anda Cá, desapareceu em auto de abate, numa descrição forjada de ferros calcinados. Continuo a trabalhar no auto da granada de Fatu Conté, expedindo deprecadas para militares ex-militares que irão ser sobressaltados quanto às ocorrências daquela granada incendiária que explodiu no reboque, em Finete, pelas 2h da tarde de 19 de Abril de 1967. Enfim, este é o quotidiano da guerra.

A informação do balanta que se apresentou em Mero pode não ser de todo fidedigna, mas a verdade é que vamos encontrando pegadas no chão enlameado à volta de Mato de Cão, e passando as semanas aumentam os indícios de bostas de vaca. Ninguém dá explicação do que se está a passar, não sei como actuar e onde emboscar os que vêm abastecer-se aos Nhabijões e a Mero. Até que num amanhecer olho para a carta do Cuor, vejo a extensa linha vermelha de uma estrada que no passado permitia vir de Bissau até Porto Gole, daqui ao Enxalé e daqui até Geba e Bafatá e perguntei-me:
- Não será que o meu inimigo está exactamente a fazer aquilo que era impensável, ou seja a usar a estrada com toda a calma e a seguir a picada que julgávamos abandonada até Madina?

Iremos começar a farejar e em fins de Abril descobriremos que a gente de Madina/Belel tinha de facto abandonado os itinerários antigos, agora deslocava-se pela estrada tida por abandonada. Feita a descoberta, iremos pacientemente emboscar. Os frutos surgirão no fim de Maio, exactamente na véspera do ataque a Bambadinca.

E portanto, a vida continua. O Casanova , com um olhar cúmplice, antes de partir para férias disse-me:
- Perdeu todos os seus discos mas guardei-lhe uma ópera cantada pela Maria Callas, a Tosca.

Estou sem dinheiro para comprar gira-discos, leio furiosamente o que levei para Bissau, o que comecei a comprar em Bissau, refazendo a minha bilbioteca. O Barco da Morte, por Agatha Christie, é um policial apaixonante, que ainda hoje releio sem nenhuma perda de surpresa. Uma multimilionária rouba o namorado à sua melhor amiga e vai passar a lua de mel a descer o Nilo. O agrupamento humano que se junta indicia alta tensão: a a antiga amiga da multimilionária aparece inesperadamente em todos os percursos da viagem; arrivistas, ladrões de alta roda, escritores exóticos e um detective lendário, Hercule Poirot, são protagonistas de vários dramas até chegarmos a cinco assassinatos e a um grande desfecho em que o que víamos escrito por Agatha Christie era totalmente o inverso do que realmente se estava a passar. A capa de Cândido da Costa Pinto é hoje um ícone do grafismo glorioso desse tempo.


Platero... e Eu



Li também Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, a história do burro mais humano da literatura mundial:

"Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro. Come o que eu lhe dou. Gosta das tangerinas, das uvas moscatéis, todas de âmbar, dos figos roxos, com sua cristalina gotita de mel. É terno e mimoso como um menino, como uma menina...; mas forte e seco como de pedra. Quando nele passo, aos domingos, pelas últimas ruelas da aldeia, os camponeses, vestidos de lavado e vagarosos param a olhá-lo: - Tem aço... Tem aço. Aço e prata de luar ao mesmo tempo."

Platero brinca com os meninos, passeia-se pelos campos, deslumbra-se com a chegada da Primavera, é o amigo mais fiel do seu dono, a quem o autor chama O Louco: "Vestido de luto, com a minha barba nazarena, e o meu pequeno chapéu negro devo ter um estranho aspecto cavalgando na macieza cinzenta de Platero. Um burro que brinca enquanto o dono lê clássicos e contempla a lua. Um dono amigo que lhe tira os espinhos quando Platero começa a coxear. Relação fecunda e cúmplice, que atravessa as quatro estaçõess do ano e várias ciclos da vida. Platero relincha quando depois das lenta madrugadas de Inverno chega o tempo de floração. Até que um dia esse bicho humanizado morre aos olhos do veterinário impotente para o fazer regressar à vida: "O seu pêlo eriçado parecia o cabelo traçado das velhas bonecas, que cai numa poeirenta tristeza quando se lhe toca. No curral silencioso, acendendo-se sempre que passava pelo raio de sol do postigo, revoava uma bela borboleta tricolor." A edição de Platero ainda é mais preciosa com os desenhos belíssimos de Bernardo Marques.

Este mês de Março é de labor, entre demolições e construções. Não há férias e dissuado a Cristina de vir até à Guiné, sabe-se lá com que tortura estamos a pagar esta nossa separação. É um tempo de promessas, um tempo único, irrepetível. O leitor que se acautele pois vamos falar de trivialidades, de peças para o Unimog que não chegam, de falta de arroz, o Carlos Sampaio vai partir para Moçambique, enquanto eu faço de mestre de obras uma parte do meu pelotão vai até à Ponta do Inglês onde há um golpe de mão bem sucedido sem sangue e com a resignação dos capturados. Lá para Junho caio inanimado de exaustão e o David Payne põe-me a caldos e repouso profundo. Mas Missirá já renasceu.

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Nota de L.G.:



quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Depois do abandono de Gandembel/Balana em 28 de Janeiro de 1969...

Em Buba, [, Região de Quínara,] durante os 3 meses de permanência [de 8 de Fevereiro a 14 de Maio de 1969], tomámos parte das forças de segurança na construção da nova estrada [Buba - Aldeia Formosa].

Foto 603 > Um camião-zorra para transporte das máquinas serviam de poiso ao pessoal apto para qualquer contrariedade.




Foto 601 > Um elevado número de nativos limpavam as bermas, com o uso de catanas.




Foto 602 > E dois tractores de rodas com bulldozer regularizavam os terrenos da faixa de implantação da estrada.





Foto 604 > Uma vista de Samba-Sabáli, uma antiga tabanca abandonada, que servia de posto avançado e permanente na segurança



Foto 605 > Aqui, já a estrada tinha sido beneficiada de uma primeira camada. Este morteiro fazia parte de uma segurança de rectaguarda.




Foto 606 > Todos os dias se deslocava um T-6. Esta aeronave aterrou coxa, e o seu piloto pode considerar-se um homem feliz, pois as bombas que se postavam sob o bojo, não rebentaram.




Foto 607 > E as minas anti-pessoais pareciam continuar em nossa perseguição...


Fotos (e legendas): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Assunto > A Companhia continuaria no Sul, bem próximo de Gandembel/Ponte Balana. Buba, a necessitar de grandes efectivos, foi o nosso destino, a perdurar até 14 de Maio de 1969. E finalmente o sossego de Nova Lamego, até ao regresso definitivo.




XI (e última) parte da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69)


(1).Texto enviado em 28 de Fevereiro de 2007.

Caros Luís e demais companheiros da Tertúlia.

Chegados a Aldeia Formosa [actualmente, Quebo], foi-nos propiciado uns dias de descanso. Pela forma afectuosa como fomos recebidos, foram dias de expurgo, e também de recuperação. Também o da fuga à solidão, o do reencontro com nós mesmos, e estes poucos dias, de um maior convívio e solidariedade, soube-nos particularmente bem.


Segurança à construção da estrada Buba-Aldeia Formosa


Havia uma fundamentada esperança que a Companhia iria ser colocada num local de maior sossego, mas o que é verdade, é que a 8 de Fevereiro, parte-se para Buba.

E o objectivo estava definido, que era o de manter segurança aos trabalhos relacionados com a pavimentação da estrada de ligação entre estes 2 aquartelamentos [Buba - Aldeia Formosa].

E a execução desta empreitada, antevia-se desde logo, bastante complexa, pois que requereria grandes efectivos militares, a fim de manterem a necessária segurança às máquinas operadoras.

E os locais de implantação da estrada, vinham sendo fortemente fustigados por uma actuação empenhada e sistemática do PAIGC, que intentava contrariar, de todo, a realização dessa infra-estrutura rodoviária.

O bastião de Salancaur, como local de refúgio dos guerrilheiros do PAIGC, não era distante, e as suas acções de armadilhamento e de contacto directo com as NT, apareciam com bastante frequência, o que demonstrava uma forte obstinação tendente à sua não concretização. E agora, despreocupados de Gandembel, até podiam agir com maior poderio.


Buba: Sede do COP 4, sob comando do saudoso major Carlos Fabião


Buba era um pequeno agregado de população indígena, com uma larga rua de permeio, como que a ligar a pista de aviação com o rio Grande de Buba.

Os edifícios militares estavam na parte mais baixa, juntos ao rio. As instalações eram substancialmente melhores que as deixadas atrás, com pavilhões prefabricados a servirem de casernas, e onde todos os militares tinham direito a uma cama com colchão. Também a qualidade da alimentação, em nada se comparava com a que nos fora ofertada noutros tempos.

Estava sedeada em Buba um grande efectivo militar, onde se incluía uma das Companhias de Comandos, salvo erro a 15ª CCmds, para além da Companhia que aí estava há mais tempo — a CCAÇ 2382 —, a que se viriam juntar a minha e a CCAÇ 2381.

Todo este efectivo militar, estava sob o comando do saudoso major Carlos Fabião (2), que detinha o COP 4.

E durante estes 3 meses de permanência [de finais de Janeiro a Maio de 1969], a nossa acção incidiu na segurança da estrada, com as tropas a permanecerem em Buba, com excepção de algum tempo (cerca de 2 semanas) em que cada grupo de combate se deslocou por Nhala e Samba Sabáli.



De novo as minas e as emboscadas, mas sem consequências para a malta da companhia


Estivemos, por 3 vezes, directamente envolvidos com o inimigo, em forma de emboscadas, mas as consequências dos confrontos não foram graves. Recordo que num ataque a Samba Sabáli (uma das tabancas abandonadas, e que foquei atrás, quando me referi a essa data de 15 de Maio) haver 2 feridos, um dos quais com uma certa gravidade e que viria a ser evacuado para Lisboa.

Os patrulhamentos tinham a sua origem em Buba, faziam-se incidir essencialmente nas imediações da frente dos trabalhos da estrada, e eram realizados ao princípio da noite ou então antes do alvorecer. Desenvolviam-se a nível de Companhia, portanto com quantitativos considerados suficientes.

No que se relacionou com os trabalhos, era desenvolvido um grau de segurança da estrada, de cada lado da mesma, com um algum afastamento do seu eixo. Nestas andanças deste tipo, o meu grupo, foi apanhado mais uma vez por um enxame de abelhas, que se encontrava num carcomido tronco de uma velha árvore. Alguns foram picados por várias vezes, onde me incluí, e que o inchaço nos desfigurou durante um certo tempo.

Todos os dias, na deslocação para a frente dos trabalhos, havia que proceder à picagem da velha estrada. Num dessas vezes, levantámos 38 minas anti-pessoais.


Os cataneiros chegaram a recusar a ida para a mata


As máquinas, montadas as seguranças, começavam então a funcionar. A limpeza de uma larga berma era levada a efeito por um grande grupo de nativos não autóctones, cujos utensílios eram as catanas.

Estes grupos de cataneiros eram em geral bastante sacrificados, pois as armadilhas e as minas anti-pessoais eram sempre em grande número, e era raro o dia, que não houvesse feridos muito graves. Até que chegou um dia, que recusaram a ida para a mata.

Os ataques ao aquartelamento de Buba faziam-se com alguma frequência. E os abrigos eram apenas umas valas abertas para esse fim. Recordo, num desses ataques, a morte de um soldado da Companhia residente, que quando fugia para se refugiar nos abrigos, foi apanhado por um rocket, que o estropia muito marcadamente.

Das contrariedades provocadas aos cataneiros, assim como dos ataques perpetrados ao aquartelamento, Carlos Fabião considera que alguém da tabanca presta informações para o exterior. Era quase certo que no dia em que a tropa não se empenhasse nos patrulhamentos, que o PAIGC ousava enfrentar mais próximo do aquartelamento.


Spínola expulsa toda a população civil de Buba, acusada de traição


Este recado chega a Spínola que num certo dia chega a Buba, reúne a população para que fosse reconhecido os que transmitiam informações ao PAIGC. Perante o mutismo desta gente, Spínola considera-a traidora e, no dia seguinte, 2 LDG encostam a Buba, e toda a população é coagida a abandonar as suas casas. O destino que tomaram, não o sei, mas disse-se então que foram para o arquipélago dos Bijagós.

Mau grado esta afronta, a situação que se começou a viver em Buba, pareceu melhorar.


A recuperação da nossa auto-estima e a ida para o Gabu


Não se pode afirmar que a Companhia, durante este tempo de permanência em Buba, conheceu um clima de paz e serenidade. Havia por aqueles sítios, uma outra faceta da guerra, bem distinta da vivida em Gandembel, e que, em abono da verdade, não foi demasiado provocante, fundamentalmente porque já éramos gente mais crescida, só porque nos era fornecido o essencial: comida bastante e uma cama decente. Quanto foi importante a conquista desta emancipação!

Julgo, inclusive, que a Companhia recuperou muito a sua auto-estima, e algumas energias mais abaladas, iam-se revigorando.

De todo o modo, o dia 14 de Maio, com partida aérea para Nova Lamego, onde sempre permaneceu a CCS do Batalhão a que pertencíamos (o BCAÇ 2835) [então sob o comando do tenente-coronel Pimentel Bastos, o Pimbas] (3), representou para esta plêiade de homens sacrificados, o fim definitivo das hostilidades.

Por lá nos quedámos até ao fim da comissão, melhorando infra-estruturas no aquartelamento, fazendo pequenos patrulhamentos, mas nunca mais ouvimos o mínimo silvar de uma bala inimiga.

Aqui, encontrámos serenidade, e tornámo-nos outros, perdemos timidezas e inibições, ainda que sempre conscientes e previdentes. E também um certo bem-estar, um lenitivo fundamental para o encontro das estabilidades, da emocional à física, e que durante tanto tempo se tinham arredado de vez, inclementemente.

E aqui, fomos gente feliz, sem lágrimas! (4) ... E sobre os momentos de dor e de sofrimento, a CCAÇ 2317 nada mais tem a narrar. E porque considera que a guerra com que se confrontou, termina em Nova Lamego, também finda aqui a sua história.

E só me resta acrescentar, o quanto custou a esta Companhia, em termos humanos, o nosso sacrifício. Da frieza dos números, que agora aponto, talvez um dia me debruce com uma leitura mais atenta.

A Companhia sai para a Guiné, com 158 homens: 5 oficiais, 17 sargentos, 35 cabos e 101 soldados. A bordo do Uíge, a 10 de Dezembro de 1969, sob o comando de um único oficial (este escriba), chegam à unidade mobilizadora, o RI 15 de Tomar, 121 militares, com 11 sargentos, 29 cabos e 80 soldados; ficaram na Guiné, para a entrega do material, 1 alferes e 3 sargentos.

Há as perdas: 9 mortos (1 alferes, 1 furriel e 7 soldados), 18 evacuados para Lisboa (7 feridos graves, 5 por doença e 6 feridos menos graves), e 4 não regressam por mudança de Companhia. Há ainda 2 elementos, que saem antecipadamente: 1 cabo — o nosso Lamego e o Comandante de Companhia, para continuar a sua carreira militar como oficial superior de Infantaria.

Não nos foi possível contabilizar os evacuados para Bissau, e que iam regressando mais tarde ao nosso seio, mas as estimativas de quem viveu sempre de perto os 23 meses de comissão, apontam para valores da ordem das 4 dezenas.

Com imenso gosto, procurei corresponder ao que tinha prometido. É uma narração sucinta, mas que terei oportunidade de vir a pormenorizar muitas das facetas aí insertas. Continuarei sempre atento ao blogue, que considero de excepcional valia para o conhecimento da guerra colonial na Guiné, dos seus tempos e dos seus sítios.

Por isso, em nome da minha Companhia, um firme agradecimento ao nosso editor.
Bem hajas, Luís.

Só mais dois aspectos finais:

(i) Amiudadas vezes me têm afirmado, que a nossa ida para Gandembel, é resultado de uma oferta voluntária por parte do Comandante da Companhia. Por desconhecimento, não posso, nem devo confirmar. O que sei, é que este oficial do quadro, não possuía nenhuma comissão em teatro de guerra.Contudo, o que sempre me causou uma certa perplexidade, é que as Companhias do Batalhão se esparsaram pela Província, sem dependência da CCS, o que não era usual.

(ii) O feitiço lançado a este vosso escriba, que no seu itinerário como militar, passou por duas Lamegos. A serrana Lamego, num curso de operações especiais, ainda no quartel velho, e onde morreram 2 companheiros que tombaram do alto da torre da igreja, quando faziam o slide. E esta Nova Lamego, hoje Gabú, da ardente e multifacetada Guiné.E se não fora as saudades a minarem e a proximidade do regresso, a passagem por esta última, saber-me-ia bem melhor que as piratarias da dureza 11 e quejandas, só suplantadas devido à porfiada ajuda prestada pelo meu velho parelha Amaro.

Para todos, um cordial abraço do Idálio Reis.


Comentário do editor L.G.:

Querido amigo e camarada Idálio: Não há, na guerra, um fim feliz, como no cinema. Mas gostei de saber que os últimos meses dos homens-toupeiras de Gandembel/Balana permitiram-vos retemperar as forças para o regresso à Pátria, à Mátria ou à Madrasta da Pátria...

Continua a dar-nos notícias da tua/nossa gente, cuja epopeia tão bem soubeste evocar e descrever nesta fotobiografia... O teu testemunho honra-nos a todos e orgulha os editores e autores do blogue bem como todos membros da nossa Tabanca Grande. A fotobiografia da CCAÇ 2317, escrita pelo teu punho, foi um dos momentos altos do nosso blogue.

Faço daqui um veemente apelo a um editor português que arrisque publicar, em livro, esta extraordinária aventura de 9 meses no corredor da morte. Porque não o Círculo de Leitores ? L.G.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá.

(...) A CCAÇ 2317 chega a Bissau a 24 de Janeiro de 1968. Uma aclimatação de 2 meses, o quanto bastou para enveredar por um sinuoso rumo, a uma fatídica zona do Sul da Província. Aí, num local estranho da região do Forreá e apenas no efémero prazo de 11 meses, houve lugar às facetas mais pérfidas da guerra, em que do mito e do mistério sobrou só o nome: Gandembel/Ponte Balana (...).

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

(...) Após o Treino Operacional, a Companhia segue rumo ao Sul da Província. Poucos dias em Guileje, para então nos coagirem a ir para as cercanias do "corredor da morte", a fim de se construir de raiz, um posto militar fixo, em Gandembel e Ponte Balana Em Guileje, a guerra não se fez esperar, e dolosamente começou a insinuar as suas facetas mais pérfidas, com as ocultas ciladas montadas na vastidão dos nossos olhares e a espreitarem o horror a todo o instante (...).

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel.

(...) Em Gandembel, vinga a insensatez, a obrigarem-nos a penar um inextinguível tempo de arrastados sacrifícios. Do período mediado entre o início da construção do aquartelamento e a chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio (...) O dia 8 de Abril de 1968 alvoreceu para um conjunto de homens inquietamente sós, desunidos de um futuro confiante, porque, por mais que se procurasse predizer, não lhes era possível reconhecer se se podia atingir. Um imenso manto de silêncio ali estava especado, com secretas sombras negras a envolver-nos (...).

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras.

(...) Instalação e início da construção do aquartelamento de Gandembel. Ilustração fotográfica: Incluí o período de tempo entre 8 de Abril de 1968 - partida de Guileje para Gandembel e início da construção do aquartelamento de Gandembel - e a chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio de 1968(...).

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel.

(...) Instalação e início da construção do aquartelamento de Gandembel (continuação) > Ilustração fotográfica: Incluí o período de tempo entre 8 de Abril de 1968 - partida de Guileje para Gandembel e início da construção do aquartelamento de Gandembel - e chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio de 1968 (...).

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço.

(...) A generosidade de um punhado de gente jovem, onde os ecos dos seus ais de desespero e dor, não ressoavam para além da região do Forreá. Gandembel/Ponte Balana, de 9 de Maio a 4 de Agosto. (...) A época plena das chuvas aproximava-se, começava a fazer surtir os seus benéficos efeitos, o que para nós incidia muito especificamente na água que o rio Balana pudesse debitar. Este, logo que retomasse alguma capacidade de vazão, significaria que a tão ansiada água já abundaria, e as restrições ao consumo que tinham prevalecido até então, evolavam-se no tempo (...).

21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28.

(...) Os ataques e flagelações mantinham-se a um ritmo praticamente diário, a que nos íamos habituando, pois que a generalidade das detonações era resultado da acção de morteiros 82, e a maioria das granadas continuava a deflagrar na periferia. Os morteiros ainda não estariam devidamente assestados, e tornava-se necessário e urgente ter que acabar as obras do aquartelamento, com condições mínimas de segurança (...).

8 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1935: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (8): Pára-quedistas em Gandembel massacram bigrupo do PAIGC, em Set 1968.

(...) Uma longa vida em Gandembel suspensa da decisão do Comandante-Chefe. E ante tantas adversidades, num ápice tudo se esfuma da forma mais indigna: o abandono. Gandembel/Ponte Balana, de 4 de Agosto às vesperas do Natal de 1968. (...) A catástrofe de 4 de Agosto foi demasiado punitiva e voraz, criando um profundo sentimento de perda. E, atendendo às circunstâncias com que nos deparávamos no quotidiano, reconheci na pungente dor do luto, que a Companhia perdia temperamento e vivacidade, com as vontades a fenecerem. (...) A deslocalização de um permanente efectivo de pára-quedistas foi fundamental para o surgimento de uma fase de muita maior tranquilidade, que resultou numa acentuada diminuição belicista por parte do PAIGC (...).

19 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

(...) Seria uma lembrança do Natal, que se aproximava? Não o foi, pois que até lá não recordo qualquer confronto, mínimo que seja. Pelo Natal, dada a solenidade do dia, chegam 2 helicópteros: um trazendo o bispo de Madarsuma, vigário castrense das Forças Armadas e um repórter do extinto Diário Popular, de nome César da Silva; outro, com Spínola e elementos do Movimento Nacional Feminino. (...) À alvorada do dia 28 [de Janeiro de 1969], o armamento pesado é desactivado, a bandeira nacional é arriada, o gerador é colocado num Unimog, e eis que partimos em definitivo de Gandembel, passámos por Ponte Balana (ali ao lado) a buscar o grupo que aí estava e seguimos para Aldeia Formosa. (...)

18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(...) As colunas de reabastecimento para Gandembel / Ponte Balana. Tanta ousadia cerceada no passo incerto, e a folha fustigada pelo sopro de um fornilho, já não encontra outro sítio para cair, senão em corpos dilacerados (...).

(...) As colunas de reabastecimento que se contextualizam com Gandembel, ficaram gravadas nos caminhos do desalento, do pesadelo e horror. E por isso, procuravam protelar-se até soar o grito da clemência, pois os bens essenciais estavam a esgotar-se, e o espectro da fome, em forma de um tipo de alimentação quase intragável, pairou algumas vezes em Gandembel.E esta desapiedada e frustrante sensação de um forçado isolamento, também contribuiu em muito para o alquebramento das forças físicas e morais, tão vitais para ousar enfrentar com denodo as vicissitudes que se nos deparavam quotidianamente.

(...) Restar-me-á apenas tentar alinhavar o último capítulo, que se prende com a permanência da Companhia em Buba, e que se prolongou até 14 de Maio de 1969 (...).



(2) Sobre o major Carlos Fabião em Buba:

4 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2080: Estórias do Zé Teixeira (22): Tuga na tem sorte

4 de Abril de 2006 > Guine 63/74 - DCLXVIII: O major Fabião e o furriel Samouco, da CCAÇ 2381 (1968/70)

Vd. também, entre outros, os posts:

17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1436: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (1): Perguntas e respostas

8 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXIV: Antologia (37): Carlos Fabião, o conciliador

5 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 : DCLXXV: O outro Carlos Fabião (3) (Rui Felício)

5 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXIII: O outro Carlos Fabião (1) (J. Vacas de Carvalho)

2 Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXV: Depoimentos sobre Carlos Fabião (1930-2006)

(3) O tenente-coronel Pimentel Bastos foi originalmente o comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), antes de ser alvo de punição disciplinar por parte do Com-Chefe:

22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1124: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (2): A vida boa de Bambadinca, no tempo do Pimentel Bastos

30 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1041: O Pimbas e os outros (Jorge Cabral)

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1035: Ainda sobre o Pimbas, com um quebra-costelas para o Beja Santos (Paulo Raposo)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

(4) Por analogia com o título do romance de João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas, Grande Prémio de Novela e Romance APE, 1989. João de Melo, nasceu nos na Ilha de S. Miguel, Açores, em 1949, pertencendo à geração da guerra colonial (esteve em Angola, entre 1971 e 1974, como furriel miliciano enfermeiro).

"A experiência da Guerra Colonial foi pela primeira vez tematizada em 1977, com A Memória de Ver Matar e Morrer. Em 1984, publicou Autópsia de um Mar em Ruínas, onde a barbárie da guerra é filtrada pelos olhos de um furriel enfermeiro, cargo que assumiu em Angola.Os livros de contos Entre Pássaro e Anjo e Bem-Aventuranças completam o testemunho apresentado nos romances".

quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1041: O Pimbas e os outros (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral, datada de 16 de Agosto de 2006:


Amigo Luis,

Conheci mal o Pimbas, conheci mal o Corte-Real, conheci mal o Magalhães Filipe, e ainda bem...

Parece que eram todos bons homens, ex-professores, que ao fim de trinta anos de carreira, haviam descoberto não ter vocação militar...

É necessário distinguir, entre a tropa miliciana, civís militarizados à força, e investidos em funções para as quais não estavam preparados, e os profissionais, designadamente os Oficiais Superiores.

Comandar um Batalhão exigia possuir qualidades de liderança, determinação e coragem, que a não existirem, deviam ter impedido a Promoção. Sabemos todos, e alguns pelas piores razões, que assim não sucedeu.

Talvez quem me conheceu e conhece, me possa considerar preconceituoso, dada a minha postura 200% paisana e anti-militar, mas sei que muitos viram, sentiram e sofreram, as prepotentes arrogâncias, os ocos autoritarismos e as criminosas incompetências.
Felizmente que consegui passar a comissão afastado da hierarquia, a qual imbuída de um espírito de casta, não compreendeu muitas vezes, que já não estava numa qualquer Unidade da Metrópole, mas sim em África e na Guerra. Aliás, tendo sido convidado em Julho de 1970 para ir para Bolama, dar instrução, recusei, precisamente por não querer integrar-me num Quartel "normal"...

Reitero o que já escrevi, sobre os quatro Comandantes de Batalhão de Bambadinca, meus contemporâneos - apenas o Polidoro me mereceu consideração, embora desconheça se gostava de ópera ou se alguma vez foi professor...

Continuação de Boas Férias, Amigo
... e desculpa lá, mas mesmo velho ou talvez por isso, não posso branquear a Verdade (a minha).

Grande, Grande Abraço
para ti, Camarada!

Jorge

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

Amigo Luís,

Mesmo a partir para férias, não quero deixar de voltar a saudar a entrada do Beja Santos no nosso blogue. Através da memória dele, lembro lugares e pessoas.

Claro que o Missirá do Beja Santos foi diferente do meu, e quanto à descrição que faz do Pimbas, nada confere com o que recordo.

Cheguei a Bambadinca no rescaldo do ataque, pelo que já não provei os rissóis da Exma. Sra. D. Maria Alzira, nem conheci a mulher do Tenente Pinheiro. Bambadinca constituía na altura, Junho de 69, um quartel aterrorizado, com medo de novo ataque e à espera das porradas

Aí me mantive, até à chegada da CCaç.12, como única força operacional. Saía todos os dias (Xime, Amedalai, Ponta Coli, Ponte do Rio Undunduma, Mato Cão, etc.), pelo que talvez não tivesse tido oportunidade de avaliar os atributos do Comandante, cuja imagem que guardo, é extremamente negativa – apático, desnorteado, um zombi. Estarei a ser injusto?

Aliás porque depois desse curto período em Bambadinca, vivi sempre em Destacamento, nunca cheguei a conhecer bem os camaradas ali colocados. Visitava o Batalhão sempre à pressa, e raramente almocei na messe…

Os meus Amigos grandes habitaram Fá e Missirá, e comigo partilharam tristezas e alegrias, mas também alguma loucura, necessária para nos sentirmos vivos…(1).

Também não privei assiduamente com o Beja Santos. Se calhar é agora que o estou a conhecer…e mesmo a tentar compreender.

Com um Abraço,
Jorge
____

(1) Do louvor que me concederam, o tal que eu ia frustrando com o Jagudi de Barcelos, consta o seguinte: “É de realçar a sua valiosa acção durante a permanência do Pelotão de Caçadores Nativos nº 63, em destacamentos isolados, onde demonstrou de forma inequívoca as suas qualidades de inteligência, chefia e inexcedível sentido de amizade mútua e de boa camaradagem”.

PS - Duas notas, uma sobre os acontecimentos de 28 de Maio de 1969 e outra sobre o Mato Cão:

(i) Tenho quase a certeza que não era o padre Poím que estava de cuecas a conversar com a mulher do Tenente. Pois, ainda em Janeiro de 1971, me visitou em Missirá… Sei que abandonou a vida eclesiástica e é enfermeiro nos Açores.

(ii) O Destacamento do Mato Cão foi inaugurado pelo Pel Caç Nat 63, já após a minha saída (em meados de 1971).

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1019: O ataque a Bambadinca (28 de Maio de 1969) (Carlos Marques dos Santos)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 2001: Uma presença fantasmagórica da guerra colonial... Restos de peças de artilharia (dois obuses 14) que os tugas não quiseram ou não tiveram tempo de desmontar ou destruir, aquando da entrega do aquartelamento ao PAIGC em 1974. Quando o quartel foi atacado, pela primeira vez, em 28 de Maio de 1969, ainda não havia artilharia (LG)

Foto: © David J. Guimarães (2005)


Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):

O ataque a Bambadinca (1)...

Dia 28 de Maio de 1969 ... Por volta das 00.30h ouvimos rebentamentos para os lados da Moricanhe. Mansambo ficava a sul de Bambadinca.

Afinal era Bambadinca. Era a primeira vez que tal sucedia.

As minhas notas dizem que a 29 de Maio de 1969 fui informado às 05.30h que o meu Pelotão, o 3º da CART 2339, iria reforçar a sede de Batalhão por 15 dias.

Reforçar a sede do Batalhão? Coisa grossa, pensámos.

Seguimos e aí tomámos conhecimento da destruição parcial do pontão do Rio Udunduma [, afluente do Geba, na estrada Xime-Bambadinca].

Chegados à sede de Batalhão, iniciámos às 16h, com o Pel Caç Nat 63, a ocupação do pontão para sua defesa e de Bambadinca.

No dia 30, fomos rendidos por 2 pelotões. Dia 31, pelas 14.00h fomos novamente para a ponte.

Dia 2 de Junho de 1969, pelas 20.30h, rebentamentos. Era Amedalai. 15 minutos depois Demba Taco e imediatamente Moricanhe.

Dia 4 Moricanhe era evacuada para reforço de Amedalai. Dia 11, Mansambo era atacada e logo depois o Xime.

Regressámos a Mansambo.

A futura CCAÇ 12 passou aqui nestes dias conturbados para iniciar a sua comissão.

CMS
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Nota de L.G.

(1) Vd. posts:

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo!

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

sábado, 4 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18895: Estórias de Bissau (18): Uma noite no Chez Toi: o furriel Car…rasco, meu anjo da guarda... (Luís Graça)

Luís Graça, Bambadinca, c. 1970/71
Estórias de Bissau > 

Uma noite no Chez Toi: o furriel Car…rasco, meu anjo da guarda...

por Luís Graça

[ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71]



Conheci-o no "Chez Toi", em Bissau. Ou melhor, reconheci-o, de Tavira, do CISMI, onde ambos estávamos a tirar a especialidade de armas pesadas de infantaria. Pertencíamos, ambos, à Companhia de Instrução, e ao pelotão do tenente Esteves (o tal que  nos tratava com mimos: “Rapazes, vocês são a fina flor da Nação”… e a gente repetia  "... a flor do entulho",  a rebolar-se na merda do mercado do gado bovino ou no lodo das salinas de Tavira). (*)

Ele era o matulão do furriel Carvalho, transmontano, com ar de durão, mas que gaguejava ligeiramente…. Voltaríamos a encontrarmo-nos, mais tarde, muitos anos depois… Só então me confidenciou que tinha a alcunha de Car…rasco, por ter dado o tiro de misericórdia a um balanta do PAIGC que se esvaía em sangue, sem pernas, depois de uma bazucada em cheio,  no decurso de uma operação (**)…

Em Bissau, eu estava hospedado no "Chez Toi", naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como “boite”. Tinha um nome chique, em francês, "Chez Toi" ( "em tua casa"). Mas eu nunca me senti em casa, nos dois ou três dias em que lá dormi...

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de pesos, que não viam há meses um pedaço de carne de fêmea, branca, o "Chez Toi" devia ter um especial encanto que eu não conseguia descortinar… Mas eu também caí na esparrela de lá ir parar… Devia trazer-nos algumas reminiscências do “bas fond” de Lisboa, que o resto era paisagem no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato…Nesse tempo ainda era o francês de praia a língua da cultura dominante da noite…

De facto, não sei como lá fui parar, ao "Chez Toi"… Publicidade enganosa, decerto. Mas para o caso não interessa. Andei dois ou três dias “desenfiado” em Bissau, antecipando o gozo do início das férias na Metrópole. Aguardava o avião da TAP para Lisboa. Eram as primeiras férias pagas da minha vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado, o patacão da guerra … (Devo dizer que não tive problemas de consciência nem devolvi, à Pátria, o “dinheiro, sujo, de mercenário”, saudação a que tive direito à chegada, num dos primeiros grafitos que me lembro de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa, onde, se não me engano, funcionava uma merda da tropa ligada ao recrutamento… Ainda não havia grafitos em Lisboa, como há hoje, mas alguém pintara, com pincel grosso e tinta de parede, vermelha de sangue, o slogan provocatório: “Mais vale, em Paris, operário, do que na guerra, mercenário”… Era um óbvio apelo à deserção,)

Estávamos em plena época das chuvas, em junho ou julho de 1970, já não me recordo bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E eu deixava para trás um ano de intensa actividade operacional. Nessa noite fui dar uma volta ao “bas fond”, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, falava francês, ou pelo menos usava expressões coloquiais em francês, como o “vachement bête”, ou “emmerder”, “copain”, “copine”, “salut”… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris, que nos chegava tarde, a Lisboa e  a Bissau, ao nosso pequeno Vietname). Mas o “bas fonds” em Bissau era, para a tropa-macaca, o Pilão. E um dos atos de "heroísmo"  da malta do mato, desenfiada em Bissau, era dormir uma noite inteira no Pilão… Sem guarad-costas nem arma,,,, Enfim, pura bravata, provocação ou leviandade!...

Por azar, no “Chez Toio”, logo na primeira noite, alguém arrombou a porta do meu quarto, forçou o cadeado da mala de cartão e fanou-me uma Dimple que no mercado local representava um salário um salário e meio de um lavandeira ano mato… Duas ou três garrafas de uísque, velho, era toda a riqueza que eu levaria a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionava comprar no Taufik Saad.

Nessa mesma noite, tive uma conversa (deveras desagradável) com o gordo do gerente do “Chez Toi”, sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa. As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, "papel do Biombo", se não me engano, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a nós, a mim e mais o meu parceiro do Pilão, em azeda discussão com o gerente. E aí, às tantas, o clima começou a ficar propício à pancadaria e ao linchamento. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.

Eu e o sacana do gerente já tínhamos chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum buraco no chão para se enfiar. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de asneiras e provocações racistas:
- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para o Spínola lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, seguramente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que eu, mas mais entroncado. Estava visivelmente embriagado. Tive então a infeliz ideia de responder à sua provocação:
- O camarada vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com…

O tipo não me deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça de garras afiadas, direitinhas à minha carótidas… Foi a primeira (e única) cena de porrada, a sério, em que eu me vi envolvido na tropa e no teatro de operações da Guiné, com luta corpo a corpo… De facto, nunca tinha sentido o "inimigo" tão perto, olhos nos olhos, as unhas enfiadas no meu pobre pescoço…

Providencialmente foi nessa altura que ele apareceu, fardado, o meu anjo da guarda... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-me daquela situação de embaraço e apuro... Escusado será dizer que o meu agressor também era militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar até ao Geba e apanhar o ar mais fresco da madrugada, antes que aparecesse a ramona… Quando me dei conta eram duas e tal da manhã…

Ele, o meu salvador, que por sinal também estava hospedado no "Chez Toi", era nem mais nem menos do que o meu camarada de pelotão, de Tavira, com quem eu de resto ainda tinha umas velhas contas por saldar… Furriel Carvalho, lembrei-me do nome... Estava numa compamhia lá para os lados de Quínara, depois de ter passado pelo leste, região de Gabu, se não erro... Resumidamente, aqui a vai a minha versão dessa história que me estava atravessada e que remontava a 1968, em Tavira, e que depois fiquei a rememorar durante o resto da noite no “Chez Toi”…

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da nossa instrução, dada pelo famoso tenente Esteves, levei dele uns socos valentes nos queixos. Eu tinha adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto nem a aleijar nem a ser aleijado… Esperava que o meu parceiro, com mais cabedal do que eu, 12 cm mais alto do que eu, entrasse no jogo do faz de conta… Mas qual quê!... Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. Estava obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos cinco melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar… por ter chumbado nos testes psicotécnicos ou, mais provavelmente, por ter sido ultrapassado por um gajo com cunha.

Devo confessar que, depois desse dia, fiquei-lhe com um pó dos diabos!... Não tinha, pois,  grandes razões para me lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabei por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as nossas duas companhias para a Guiné (ou ele ia em rendição individual, já não me recordo).

Como nunca fui um gajo de ressentimentos, fui buscar uma das garrafas de uísque que ainda sobravam da mala de cartão arrombada e lá ficámos à conversa, até de madrugada, contando as nossas peripécias de heróis da Pátria… Sei que no dia seguinte o gerente do “Chez Toi” mandou-me consertar a mala e repor a garrafa roubada… Honra lhe seja feita.  
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Notas do editor:

(*) Vd. a série Estórias de Bissau (com 17 postes até agora publicados, entre novembro de 2006 e dezembro de 2008):

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

6 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa) 


Sobre a série Galeria dos meus heróis, vd postes anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P168: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)

13 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1366: A galeria dos meus heróis (6): Por este rio acima, com o Bolha d'Água, o Furriel Enfermeiro Martins (Luís Graça)