sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1243: Questões politicamente (in)correctas (7): Desaparecido em campanha, morto em combate, retido pelo IN (Luís M. Lopes / Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 > 1967 > Cartazes de propaganda utilizados pelas NT na guerra psicológica. Os guerrilheiros do PAIGC nunca eram tratados como tal, mas sim depreciativamente: turras, bandidos, homens do mato... E quando eram feitos prisioneiros, as autoridades portugueses (o Exército, a PIDE/DGS, a administração...) não os tratavam ao abrigo da Convenção de Genebra... o que não quer dizer que, no tempo do Spínola, não tenha havido mudanças substanciais no tratamento dos combatentes do PAIGC e da população das zonas libertadas (ou sob o seu controlo)... A chamada acção psicológica no tempo do Spínola é um bom tema para discutirmos aqui no nosso blogue (1).

Material gentilmente cedido pelo Alferes miliciano Reis da CART 1690 (Geba, 1967/69).

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.


1. Mensagem de 30 de Setembro de 2006, enviada por um não-tertuliano, o Luís Mário Lopes:

Caro Luís Graça,

Precisava de uma informação para um trabalho que estou a preparar. Se ma souber e quiser fornecer, ficar-lhe-ia muito agradecido. É o seguinte:

Na guerra colonial, quando um militar era morto em combate calculo que os colegas tentassem levar o corpo com eles para o devolverem à família. Mas se isso não se revelasse possível, como é que se fazia? O que é que se comunicava aos familiares? Que o militar tinha sido "morto em combate" ou que tinha "desaparecido em combate"? Ou seja, perante a ausência de um corpo a devolver era dada a certeza da morte? O militar era considerado legalmente morto? Tinha direito a serviço fúnebre?

Desde já muito obrigado.
Cumprimentos

Luís Mário Lopes


2. Resposta de L.G., tamb+em comdata de 30 de Setembro de 2006:

Luís Mário Lopes:

(i) Obrigado pelo teu e-mail. Eu não tenho, para já, uma resposta definitiva para te dar... A tua questão é pertinente e interessa-nos, a todos... Vou pedir aos meus amigos e camaradas de tertúlia - e são já mais de um centena - que nos ajudem, a ti e mim... Há camaradas de tropa - incluindo pessoal que fez carreira, no Exército e na Marinha - que são mais qualificados do que eu para te responder...

(ii) Por exemplo, segundo a explicação dada pelo nosso camarada A. Marques Lopes (coronel, DFA, na reforma), em termos militares, desaparecido em campanha queria dizer que não se recuperou o corpo: aplicava-se aos militares portugueses, mortos em combate, no Ultramar, mas cujos corpos não puderam ser recuperados.

Mas havia ainda outra expressão, retido pelo IN: era um eufemismo, diz o coronel Marques Lopes. Porquê ? O Governo Português não reconhecia o PAIGC (bem como o MPLA, em Angola, ou Frelimo, em Moçambique) como inimigo, face à Convenção de Genebra; logo oficialmente, não podia haver prisioneiros... A verdade é que os houve: veja-se, por exemplo, a lista das baixas da CART 1690 (Geba, 1967/69).

(iii) Há dias soube da história de um militar, de Fafe ou Familicão, feito prisioneiro pelo MPLA, no leste de Angola... Foi dado como morto e o cadáver mandado para o cemitério da terra... Depois do 25 de Abril, o homem foi libertado, chegou à terra e a primeira coisa que viu foi a namorada com outro... Houve muitos dramas destes, ao longo dos nossos quinhentos anos de Império... O Frei Luis de Sousa, de Almeida Garret, foi de certo inspirado num caso destes...

(iv) Já pedi aos Amigos & camaradas da Guiné para darem mais uma mãozinha ao Luís Mário (e também a mim)... Ese assunto merece ser discutido no blogue... Já foi aflorado, há tempos, não tenho tempo agora para localizar os posts em questão (1)...


3. Resposta a seguir do Luís Mário Lopes, de 1 de Outubro de 2006:

Luís Graça,

Muito obrigado pela tua ajuda. Fico a aguardar mais informações que consigas recolher dos teus amigos e camaradas de tertúlia.

O trabalho que estou a preparar é uma peça de teatro em que surge uma situação com semelhanças com a do tal militar de Fafe ou Famalicão de que falas. Mesmo tratando-se de uma situação lateral, gostava de tratá-la com rigor.

É a minha primeira peça de teatro. Tenho escrito argumentos para cinema mas como não sou realizador é muito complicado os projectos concretizarem-se. Até agora foi produzida uma curta metragem A6-13 (realizada por Raquel Jacinto Nunes; foi prémio Tóbis no Lisbon Village Festival e tem sido seleccionada para alguns outros festivais), e neste momento está a ser realizada por Leandro Ferreira a longa metragem Deste lado do mundo (a rodagem deve prolongar-se até Novembro).

Quando conseguires mais informações por favor comunica-mas.

Abraços gratos

4. Comentário de Luís Graça:

Luís Mário Lopes: Os meus parabéns pelos teus êxitos. Eu ajudar-te-ei, na medida do possível, tal como os meus amigos e camaradas da Guiné. Como já reparaste, nesta caserna virtual (a maior da Net, em português, sobre este tópico, a experiência da guerra colonial em África, e na Guiné em particular), tratamo-nos por tu, como camaradas que fomos (e continuamos a ser)...

5. Nova mensagem do L.M. Lopes, com data de 3 de Outubro:

Luís Graça,

Agrada-me bastante o tratamento por tu. Julgo mesmo que os problemas deste país seriam mais rapidamente resolvidos se ao abordarmos os outros não tivéssemos sempre de estar a escolher entre o tu, o você, o senhor, o doutor, o V. Exa.,... , muitas vezes mais preocupados em saber se os outros se irão melindrar com a forma como os tratamos do que com a eficácia da comunicação (não será por isso que os anglo-saxónicos são regra geral mais eficazes do que os latinos?).

Seja como for tenho também a agradecer-te isto: o teres-me recebido como um camarada desta vossa caserna. Tanto mais que mereces tu muito mais felicitações do que eu. Os meus "êxitos", como tu lhes chamas, não são nada de especial. E não penses que me estou a armar em modesto (para que não haja dúvidas em relação a isso digo-te já que duvido que haja em Portugal argumentista melhor do que eu; e não estou também a armar-me em bom; é simplesmente a minha convicção). O problema é que como eu não sou realizador os meus argumentos acabam por ser completamente alterados e desvirtuados pelos realizadores e produtores (claro que isso viola os direitos de autor, mas não há grande coisa a fazer); aconteceu assim com a tal curta-metragem A6-13 e está a acontecer agora também com a longa-metragem que está a ser rodada. Impotente perante o modo do cinema funcionar neste país, resta-me tentar outras formas (talvez o teatro, talvez os contos ou os romances).

Mas chega de desabafos.Um grande abraço e mais uma vez obrigado (já recebi um relato com uma história de um teu camarada - agora também meu - que apesar de não corresponder exactamente à questão que te pus tem algumas analogias)

Luís

PS - Ainda a propósito do desabafo: é claro que não vivo da escrita; o que me sustenta é o facto de ser professor de matemática.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P827: 'Retido pelo IN': o caso do meu amigoTala Djaló (Hugo Moura Ferreira)

(...) "Recordas-te de uma mensagem que enviei, de que te dei conhecimento, a solicitar ajudas no sentido de tentar encontrar o meu amigo Furriel Graduado Comando Tala Biu Djaló?

(...)"Pois ele faz parte de uma lista de mais de uma vintena (ele é o 3º) de militares da 1ª Companhia de Comandos Afriacanos que ficaram em Conakry, na Operação Mar Verde, que tem como titulo Retidos pelo Inimigo.

"Ao falar com quem está envolvido nesta operação de registo histórico, foi-me afirmado que, como os vários Governos, desde essa época até hoje, não podem (esta é a palavra exacta, dado que à face do Direito Internacional poder-nos-ia ainda hoje obrigar a pagar indemnizações elevadíssimas a um país estrangeiro – foi esta a explicação) assumir oficialmente o episódio. Como tal não poderemos envolver, nem sequer a diplomacia para saber de forma oficial o que aconteceu àqueles militares que todos nós sabemos foram fuzilados logo a seguir ao fiasco da Operação ou morreram durante a mesma, mas cujos corpos não atravessaram a fronteira.

(...)"Perante esta situação de Retidos pelo Inimigo, apenas me interrogo o porquê desta situação, que certamente será comum aos diversos teatros de operações, não fazer parte das listagens de baixas que tivemos com as nossas campanhas em África.

"Poderia eventualmente ser uma listagem paralela às dos mortos em combate, em que constassem os Desaparecidos e os Retidos. Gostaria de ver essa lista publicada oficial ou oficiosamente, nem que fosse no nosso Blogue-fora-nada." (...)

(2) No meu Diário de um Tuga, em 20 de Dezembro de 1969, eu escrevia, quando estive destacado em Nhabijões, o seguinte (extractos):

(...) "Recuperação psicológica e promoção sócio-económica das populações – a chamada acção psicossocial: eis agora a palavra de ordem, sob o consulado de Herr Spínola… É isso: agora faz-se psico (psícola, como dizem os nossos soldados): o major aperta, com visível repugnância, as mãos das múmias; o médico observa, enfastiado, uns tantos casos constantes do catálogo das doenças tropicais; um outro miliciano distribui cigarros Marlboro; e o cabo da CCS anda a ver se come a bajuda de mama firme

"Admitem-se abertamente, na linguagem fetichista dos spinolistas, os erros do passado da nossa administração que não terá tido na devida conta as susceptibilidades, as idiossincracias e até os direitos das populações guineenses, mas omite-se, talvez por uma questão de má-consciência, os crimes praticados pelas NT, no passado recente e no passdo mais remoto, pelos nossos métodos particulares de pacificação

(...) "Hoje, as NT sabem que podem ser responsabilizadas, disciplinar e criminalmente (por ironia, à face das leis de um país que assinou as convenções de Genebra, mas que considera os nacionalistas africanos como simples terroristas, bandidos, bandoleiros, turras…) por eventuais actos de violência física cometidos contra prisioneiros e população civil… O etnocídio dos reordenamentos [como o do Nhabijões], esse, não tem enquadramento jurídico...

"Não se trata obviamente, em meu entender, de uma tentativa de redenção do colonialismo (que, de resto, não existiria, desde 1951, ano em que as nossas colónias passaram a chamar-se províncias ultramarinas…) mas de uma táctica defensiva, como o denunciou o secretário-geral do PAIGC, referindo-se a estas novas directivas do comando-chefe e governador-geral da Guiné, António de Spínola, que visam dissociar o binómio guerrilha-população…

"Mas, fazendo deslocar a guerra do TO (teatro de operações) para a ACAP (repartição de acção psicológica), Herr Spínola admite implicitamente que a vitória já não pode ser ganha pelas armas… O que não deixa de ser irónico: retratando-se das suas anteriores posições militaristas, constata afinal o impasse a que tem nos conduzido o militaristismo e acaba por justificar, involuntariamente, a propaganda do IN" (...)

Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P1242: Postais Ilustrados (9): Dança do compó, Bissau (Beja Santos)



Guiné Portuguesa > Postal Ilustrado (1) > Legenda > 113. Dança do compó, Bissau. Fotografia verdadeira. Reprodução proibida. Edição Foto Serra - C.P. 239 Bissau. s/d.

Postal ilustrado enviado, por avião, pelo Alf Mário Beja Santos a um familiar... Data e local: Bissau, 31/7/968. Carimbo do correio de Bissau: Ilegível. Valor dos selos: 2$00 pesos. Dois selos com efíge do Presidente da República, Alm Américo Tomás, evocativos da "viagem presidencial" à Guiné em 1968.

Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).

Acabado de desembarcar em Bissau, escreveu ele neste postal:

(...) "Vim hoje à cidade conhecer o museu, a biblioteca, o mercado, os monumentos, a catedral e o mais pouco que há. Aqui fica um pouco de folclore para si. Tomo amanhã o barco para Bambadinca, donde seguirei para o meu destacamento [, Missirá,].

"Tenho nestes dias de férias, descansado o mais possível, e uma estrela secreta me ilumina. Uma vez mais, Deus me dá um mister belíssimo para cumprir. Sinto-me cheio de força e entusiasmo. Logo que possa mandarei mais notícias" (...) .

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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post desta série > 17 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1184: Postais Ilustrados (8): Allahu Akbar, Deus é Grande (Beja Santos)

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1241: Questões politicamente (in)correctas (6): turras, nharros, tugas, guerra colonial (A. Marques Lopes)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > 1969 ou 1970 > O 1º Cabo Monteiro, transportando às costas, à moda tradicional das mães africans, um miúdo da tabanca. Neste post escreve o Marques Lopes, um grande amigo do povo guineense (esteve lá em 1967/68, em 1999 e em 2005): "Quando fui recentemente à Guiné, muitas vezes, no mato ou em Bissau, se dirigiam a mim chamando Ó branco!. Também lhes dizia O que é que tu queres, ó preto?.

Foto : © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.

Texto do A. Marques Lopes:

Eis a minha opinião sobre turras, nharros, tugas e guerra colonial. E começo por aqui: Portugal tinha, de facto, colónias, embora as conveniências tivessem levado a que essa palavra tivesse sido mais de uma vez embrulhada em papel bonito para o mundo externo ver. Só que o papel era transparente, e nunca nos livrámos internacionalmente de ser um país que travava uma guerra contra os movimentos de libertação das colónias. E eu senti que estive nessa guerra, não em guerra do Ultramar, nem em guerra nas Províncias Ultramarinas, nem em luta contra terroristas. Foi guerra colonial, não duvido, e assim tem de ser para que o efeito não venha a desmentir a causa.

Quanto a nharro e turra, não penso que alguém, agora, use essas expressões com intuitos pejorativos para com os nossos amigos da Guiné. Usamo-los para expressar as nossas vivências e o nosso linguajar do mato e da guerra. Esta foi um fenómeno histórico que nos orientou a linguagem e, até, muitas vezes, o pensamento. Já estamos noutra e não vamos voltar a chamar-lhes isso. Mas fez parte daquilo que vivemos e não vejo mal que recordemos isso como tal.

Quanto a tuga, até acho piada e não me importo que me chamem. Já agora: quando fui recentemente à Guiné, muitas vezes, no mato ou em Bissau, se dirigiam a mim chamando Ó branco!. Também lhes dizia O que é que tu queres, ó preto?. Em certas conversas ouvi guineenses referirem-se a nós como tugas. Tudo bem, sem qualquer tipo de intenção malévola, em conversa natural de pessoas que se respeitam.

Não vejo, pois, mal no uso destas palavras, desde que contextualizadas no tempo. Era assim.

Guiné 63/74 - P1240: Questões politicamente (in)correctas (5): terrorismo, terrorista (Carlos Vinhal)

Mensagem do Carlos Vinhal, com data de 24 de Outubro de 2006:

Caríssimo camarada bloguista Dr. Beja Santos (1):

Voltando ao termo terrorista que eu pessoalmente não gosto de utilizar, venho rebater/clarificar o meu ponto de vista.

Para mim, acto terrorista é uma reacção violenta contra pessoas e/ou bens, sem ter em conta se essas pessoas foram agentes activos nas acções que motivaram o terrorismo. Lembremo-nos do 11 de Setembro e do 11 de Março, por exemplo. Tratou-se de actos violentos de um inimigo sem rosto e nome duvidoso que originou a morte a milhares de pessoas inocentes e a destruição de bens, com o fim de atingir a economia dos países respectivos, confundindo regimes políticos com cidadãos indefesos. Foram ataques indiscriminados, visando o caos.

No nosso caso, estivemos numa guerra subversiva em território mais ou menos conhecido e delimitado, onde os contendores tinham nome e rosto. O objectivo era conhecido e a missão era o controle da população e o reconhecimento político, deixando para segundo plano a conquista de terreno.

Diga-se em abono da verdade que as populações controladas, por nós e por eles, foram muitas vezes apanhadas pelo fogo cruzado, mas as batalhas mais importantes foram travadas entre forças militares ou militarizadas. Cometeram-se exageros quando se mataram civis desarmados e crianças. Estes, os tais casos de consciência a que me referi anteriormente. As minas e as armadilhas que fizeram e ainda fazem vítimas inocentes, infelizmente fazem parte de uma sub-guerra onde todos temos culpas. Como a utilização do napalm.

Os termos Ultramar ou Colónia para mim são pacíficos. O primeiro designa que a posição geográfica dessa parcela territorial está além-mar. O segundo designa um conceito de soberania sobre um terrritório afastado duma Metrópole politicamente dominante. O doutor(2) sabe isto bem melhor do que eu, mas refiro-o para alicerçar o meu ponto de vista.

Quanto aos republicanos terem entrado na 1.ª Guerra Grande para defender o Ultramar, aqui tratava-se de defender o território da cobiça internacional, nomeadamente por parte da Alemanha e Inglaterra, como sabe. A nossa guerra, contra o PAIGC, foi contra o direito à soberania.

Os melhores cumprimentos e um abraço do camarada e admirador

Carlos Vinhal

Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá (1970/72)
Leça da Palmeira
Telem 916032220

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1228: Questões politicamente (in)correctas (4): Terror e contra-terror na guerra colonial ou do Ultramar (Beja Santos)

(2) O tratamento por tu é a regra básica da nossa tertúlia. O uso de títulos (académicos, militares ou outros) também não é incentivado. Razão: não melhora a nossa comunicação, é ruído. Respeita-se, em todo o caso, as outras formas de tratamento que, excepcionalmente, um ou outro dos nossos tertulianos queiram usar em público. O Carlos Vinhal não gosta de tratar ninguém por tu, fora das suas relações íntimas. O Beja Santos respondeu na mesma moeda: tratou o Carlos por você. Aliás, recordo-me de ele tratar por você os seus soldados do Pel Caç Nat 52. Eu e os meus soldados da CCAÇ 12 tratávamo-nos por tu. Sem complexos de inferioridade ou de superioridade. A nossa caserna é plural, pelo que deve respeitar as diferentes idiossincrasias, sensibilidades, particularidades...O mais importante é que todos e cada um se sintam confortáveis na tertúlia dos amigos e camaradas da Guiné.

Guiné 63/74 - P1239: Recordando o meu pai: era o silêncio o que mais custava ouvir-lhe (Ana Ferreira)

Amigos & camaradas:

1. Segundo os nossos usos e costumes de cristãos (e antes deles, os antepassados dos nossos antepassados, recolectores-caçadores do Paleolítico Superior), hoje que é dia de lembrar todos os nossos entes queridos que partiram desta vida, incluindo os nossos camaradas que morreram na Guiné, incluindo as centenas que terão ficado enterrados, longe de casa, como o Lourenço, o Peixoto ou o Victoriano (Guidaje, Maio de 1973), ou muitos outros cuja nome a terra e os vivos já apagaram (em Bissau, em Bambadinca, e tantos outros 'cemitérios' militares, já aqui abundamente evocados (1) ...

Mas também podemos e devemos lembrar todos os que morreram precocemente, a seguir à guerra, ou muitos anos depois da guerra, na lassidão da paz que nunca chegaram a conhecer, vítimas de doença física ou mental, vítimas incluindo as do stresse pós-traumático de guerra...


2.
Hoje que é de dia de lembrar, de maneira muito especial, os nossos mortos, mando-vos em primeira mão o testemunho de Ana Paula Ferreira, filha do nosso camarada, o cabo Ferreira, carinhosamente conhecido como o cabo 14... A Ana Ferreira, que eu não conheço pessoalmente, é professora e, além disso, é membro da nossa tertúlia, uma das poucas mulheres, de resto, que têm enviado os seus escritos para o nosso blogue.

É mais um testemunho puro e duro de alguém, de nós, da nossa tertúlia, a quem a guerra dói, ainda dói, e continuará a doer... Emocionou-me o seu testemunho e transmiti-lhe isso, a par do convite para aparecer num próxmo encontro da nossa tertúlia: todos gostaríamos, seguramente, de a poder conhecer.

3. Texto de Ana Ferreira (2):


"Quando regressei estava convencido que ia ser fácil esquecer, mas não foi", diz o José Teixeira (3). Acredito. Não o foi para o José nem para ninguém. Não o foi para os que lá estiveram , de facto, nem para os que viveram esta guerra, através dos que amavam.

Nos primeiros tempos, ainda eu não era nascida, sei que o meu pai acordava banhado em suores frios, gritando. Achava que ainda estava lá..... a minha mãe não conseguia perceber as palavras que proferia..... falava a língua de lá, que nós aqui não chegámos a aprender.

Anos depois contava-nos os episódios mais pitorescos... o riso das hienas, o banho de mar surpreendido por alguns tubarões curiosos... e depois a voz ficava grave e soturna quando se lembrava dos amigos com quem tinha partilhado tudo e que não tinham voltado. A fome, a sede, a falta de dinheiro, os aerogramas para a minha noiva querida, as ladaínhas repetidas sem vontade nem coragem de contar a verdade.

Era o silêncio que mais custava ouvir-lhe, era quando se calava que mais doía. A todos. Tenho pena que não tivesse dinheiro e não tivesse fugido para fora; tenho pena que tivesse que pactuar com algo tão errado; tenho pena que ele próprio achasse que já não havia retorno; apesar da guerra ser errada, a lealdade para com os amigos falava mais alto.

Um dia chamaram o seu nome. Chamaram o seu nome para uma curta viagem a Portugal. A Lisboa. Mas foi outro que embarcou. A sua incorrecção com superiores tinha desfeito o prémio do louvor "com indómita coragem...blah, blah , blah". Indómita, significaria na altura, a adrenalina que vem da certeza da morte demasiado próxima. Daí a vontade de ir para o mato. Tantos já lá haviam ficado, porque não ele?...

Pequeno e franzino mas sempre livre, mesmo sem o saber desafiava o destino, os superiores , a estupidez da guerra. Trouxe fotografias que desafiam a moral, a sanidade, a ética. Trouxe histórias que arrepiam. Sendo apenas um miúdo, revolta-me.

Hoje vivemos com uma geração que não sabe, não conhece, não quer conhecer. Sou professora e invariavelmente acabo por falar deste tema. Alguns alunos sabem que algum familiar esteve em África. Alguns falam em guerra colonial mas sem saber o que significa. Faço questão de lhes falar da História, da nossa História. Não são as datas, mas os factos. Peço-lhes para falarem, com tios, avós; alguém que tenha vivido nessa altura e tenha de facto, sabido, o que significava partir para o Ultramar (É claro que tenho de explicar o significado de Ultramar. É claro que tenho de explicar o que significa colonial. É claro que tenho de explicar o que significa guerra).

"Justiça moral"? Ninguém vai pedir desculpas pelas vidas então destruídas. Mas nós podemos continuar a falar. Ninguém, nem nada nos poderá impedir se assim o desejarmos. É um direiro que nos assiste e não reconhecerei a ninguém, nunca, o direito de mo retirar. Alguém roubou ao meu pai e a milhares de outros Portugueses, Homens e Mulheres, o direito de escolherem as suas próprias vidas. A esses desejo-lhes o Inferno: a falta de paz, de serenidade, de tranquilidade.

Não estou a ser ambiciosa. Lamento apenas, a nível pessoal, que o meu pai não tenha sobrevivido até hoje, para eu lhe poder contar, como tantos outros, ainda hoje se reunem e falam do que ele silenciou durante a sua curta vida. Afinal ele não estava sozinho nas suas recordações. Posso imaginar a sua comoção ao reencontrar amigos desses tempos tão longamente calados.

Obrigada por me fazerem sentir menos sozinha.


Filha do 1º Cabo Ferreira, Ana Ferreira
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Notas de L.G.:

(1) Vd., por exemplo, o post de 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

(2) Vd. posts anteriores relacionados com a autora e com o seu pai:

8 de Abril de 2006 > Guiné 63/4 - DCLXXXV: Aerograma de Ana Paula Ferreira: o meu pai, o 1º cabo Ferreira (CCAÇ 617, BCAÇ 616, 1964/66)

9 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVI: Cabo 14: pergunto-me se ele algum vez regressou, de facto (Ana Ferreira)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1148: Cabo 14, um blogue de homenagem de uma filha a seu pai (Ana Ferreira)


(3) Vd. post de 26 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1214: Tão longe e tão perto, camaradas de Empada, Gandembel, Guileje, Buba, Mejo, Cacine, Tite, Guidaje ... (Zé Teixeira)

Guiné 63/74 - P1238: David Payne Pereira, um gentleman luso-britânico e um grande médico em Bambadinca (Beja Santos)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Dezembro de 1969 > A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos (1). Na fotografia aparece, na segunda fila, de pé - devidamente assinalado com um círculo a azul - o médico David Payne (já falecido), tendo a seu lado, à direita, o major Cunha Ribeiro, 2º comandante do BCAÇ 2852 e, à sua esquerda, o capitão Brito, comandante da CCAÇ 12.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Alferes Miliciano Médico David Payne integrou a coluna que partiu de Bambadinca (2º Gr Comb da CCAÇ 12 e Pel Rec Inf da CCS do BCAÇ 2852) em socorro do Beja Santos e dos seus militares do Pel Caç Nat 52, vítimas de emboscada com mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé, entre Finete e Missirá.

Na foto, o Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 vistoriando os restos da viatura (Unimog 404). Deste episódio de guerra resultou um morto e três feridos graves, entre o pessoal que seguia na viatura.

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos:

Caro Luis, o Payne, mais do que meu amigo, foi um missionário e a imagem ao vivo dos médicos tipo João Semana. Ele merece entrar pela porta alta do nosso blogue. Aqui vai e recebe um abraço do Mário.


Algumas notas vibrantes para um luso-britânico e médico no Sector L1, algures entre 1968 e 1969

por Beja Santos

Tocou-me profundamente as lembranças que o Torcato Mendonça (2) veio aqui trazer sobre o primeiro médico do BCAÇ 2852, David Payne Pereira. Conhecemo-nos em 62, à volta dos nossos protestos estudantis. E foi com muita alegria que o revi no dia 24 de Julho de 1968, a bordo do Uge.

Falámos de tudo e de nada e quando nos despedimos, já na madrugada de 29, mal sabíamos que nos iríamos encontrar tão regular e intensamente, a partir de Setembro. Apanhei-o ainda na inocência, e saquei-lhe um acordo quanto a receber as populações civis de Missirá e Finete, pelo menos duas horas de uma manhã à sua escolha.

Eram tantas as doenças, tanto o sofrimento e tantos os doentes que as duas passaram para três e mesmo quatro horas, e em determinada altura mesmo todos os dias havia lista de espera para a consulta da gente do Cuor.

O Payne era um luso-britânico. Quero eu com isto dizer que bebia chá sem macaquear a finesse, acreditava nas instituições multisseculares, fora educado por uma mãe inglesa a cumprir horários, a amar a música e a tratar toda a gente com deferência.

Tínhamos vários ídolos em comum, sendo o principal Gerald Moore, talvez o maior pianista acompanhante de todos os tempos. Quando eu procurava surpreendê-lo propondo-lhe ouvirmos a Sinfonia Ressureição, de Mahler, na versão de Otto Klemperer à frente da orquestra Philarmonia, ele respondia-me com versões surpreendentes dos Concertos Brandburgueses de Bach.

O Torcato Mendonça refere as suas deambulações/visitas de trabalho pelas unidades do sector, o que era um facto e emanava da sua personalidade e sentido do dever: um médico está disponível e mostra que antecipa tal disponibilidade.

Quando havia feridos, ele apresentava-se. Assim vai acontecer na noite de 15 de Outubro de 69, quando ele for a Finete cuidar dos meus feridos graves e fechar os olhos ao nosso condutor que não resistiu ao impacto da mina anticarro (3).

Em 69 ele vai trabalhar para Bissau e, em 70, por meu convite, ele e a Isabel (a sua mulher), foram padrinhos de casamento da Cristina, em Abril. Regressámos, e a nossa amizade fortaleceu-se. Visitava-o frequentemente na Avenida António Augusto Aguiar, e enquanto os miúdos brincavam nós ouvíamos Gerard Moore a acompanhar vozes divinas e bebíamos chá.

Duas doenças traiçoeiras foram minando-o, numa altura em que ele fazia uma carreira brilhante na psiquiatria. Ele partiu na força da vida e cheio de coisas para fazer. Perdemos um camarada da Guiné que recordava amíude, e com uma saudade nada lamechas, a vida de caserna, as consultas, os tratamentos de urgência e o crédito das boas amizades firmadas.

Fiquei-lhe a dever inestimáveis atenções e permito-me propor que de vez em quando ele entre em cena. Da minha parte, vou distingui-lo em determinados momentos na Operação Macaréu à Vista: a noite da visita triunfal do Pimbas ao Cuor; o seu comportamento aquando a companhia do Paulo Raposo foi sujeita ao doloroso traumatismo das vidas perdidas no Rio Corubal, em Cheche (4); a visita de urgência que me fez quando em Abril de 69 eu julguei que tinha a vida por um fio; a sua elegância no acolhimento que me fez na sua casa em Bissau quando em casei.

Toda aquela imagem que temos do médico devotado, materialmente desinteressado e incapaz de receber dinheiro pelas consultas, e cujas estátuas encontramos em tantas localidades do nosso País, reconhecidos como anjos tutelares por aqueles que foram suavizados no seu sofrimento, enquadra perfeitamente na postura exemplar do David Payne Pereira no Sector L1. E um obrigado ao Torcato Mendonça por me ter ajudado a remexer nos escaninhos da memória.
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Nota de L.G.:

(1) Bd. post de 21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1096: O álbum das glórias (5): Futebol em Bambadinca, oficiais contra sargentos (Beja Santos)

(2) Vd. pots de 28 de Outubrod e 2006 > Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira

(...) "Não se acomodava ao conforto de Bambadinca e ia visitar as Companhias [do Sector L1]. Aqui, [na foto,] veio tratar da saúde do pessoal de Mansambo. Á luz de fraca lâmpada faz uma pequena cirurgia a um sobrolho de um militar.

"Tive agora conhecimento do seu desaparecimento. Lastimo profundamente" (...).

(3) Nesse fim de tarde, o autor sofreu uma violenta emboscada com mina anticarro, na estrada Finete-Missirá.

Vd. posts relacionados com este episódio da mina com emboscada ao Beja Santos e ao seus homens:

24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio (Luís Graça)

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)


(...) Era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o tigre de Missirá, tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto (...) (1): A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos (...).

"Não foi a 15, mas sim a 16. O Corca Só não levou para Madina/Belel o escalpe do Beja Santos. E isso é o mais importante: ele hoje está vivo e entre nós, partilhando connosco as alegrias e as tristezas de um tempo e de um espaço que nos coube em sorte, nos nossos verdes (e loucos) vinte anos" (...).


(4) A CCAÇ 2405, aquartelada em Galomaro e Dulombi (1968/70), e a que pertenciam os nossos tertulianos Paulo Raposo, Rui Felício e Victor David, perdeu 17 dos seus homens, na travessia do Rio Corubal, em Cheche, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereirod e 1969 Vd. entre outros os seguintes posts:

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

6 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - D: Madina do Boé, 37 anos depois (Luís Graça / Xico Allen / Albano Costa)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXI: Comentário de Afonso Sousa ao texto sobre a retirada de Madina do Boé

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre do Cheche, na retirada de Madina ...

17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

Guiné 63/74 - P1237: Lembranças do David Payne (Torcato Mendonça / Beja Santos)

1. Mensagem do Beja Santos, de 30 de Outubro de 2006:

Caro Luís, gostei muitíssimo das recordações do Torcato Mendonça sobre o Payne. Como sabes, conheci o Payne nas manifestações estudantis de 62, depois a vida separou-nos e reencontramo-nos no Uíge, em Julho de 68. Fiquei-lhe a dever inúmeras atenções, sobretudo com a forma tão disponível como ele recebia regularmente as populações civis de Missirá e Finete. Só faz sentido eu atrelar-me a esta saudação se tu tiveres espaço. Prefiro escrever quando tu me disseres que é oportuno. Recebe um abraço do Mário.

2. Resposta de L.G.:

Mário: A nossa conversa é como às cerejas… Seria justo evocar aqui os médicos (mas também os enfermeiros) que estiveram connosco. Dentro das tuas prioridades, escreve sobre o Payne, quando quiseres. Prometo publicar o teu texto logo a seguir.

3.Mensagem, a seguir, do Torcato Mendonça, de 30 de Outubro de 2006

Caro Luís Graça:

Foi, através de uma das estórias do Beja Santos, que soube do desaparecimento do Payne. Fiquei triste. Se há pessoas que gostava de voltar a ver, ele era uma era uma delas. Tive conversas com o Payne sobre os mais variados assuntos. A saúde física e mental das NT, das populações e... muito mais, muito mais.

Ele estava em Bambadinca com a mulher. O conhecimento do Beja Santos é mais forte, quer pelas razões por ele aduzidas no mail quer pela convivência em Bambadinca. È bom saber que alguém vai escrever, vai relembrar um amigo. Os afectos vindos de lá são diferentes. Mesmo divergindo nalguns pontos, a nossa união, chamemos-lhe assim, é superior ou transcende mesmo o normal. É, ou foi a vivência das situações de perigo. Creio que sim.

Posso não concordar com algumas coisas que escreves, Beja Santos. Além de gostar de ler, respeito a tua forma de sentir e relatar o passado. Fala do Payne. Merece ser relembrado quem ajudou tantos, discordando da guerra.

Luís Graça: o primeiro morto da CART 2339 foi um enfermeiro. Foi ferido na Moricanhe (1). O desempenho deles era fundamental para as NT. Em operações e nos aquartelamentos.

Parece que [ainda] ninguém falou das Enfermeiras Paraquedistas. Fui evacuado e tratado por uma, em Nova Lamego. Contactei várias vezes com elas nas evacuações. Vezes demais. Era interessante alguém, que as tenha conhecido bem ou, alguma delas, escrever sobre a Guiné.

Um abraço aos dois do

Torcato Mendonça
_________

Nota de L.G.:

(1)Moricanhe: destacamento de milícias e tabanca em autodefesa, entre o Xime e Mansambo, na ZA da CART 2339, Mansambo,1968/69, mais tarde abandonado pelas NT, no decurso da reacção do PAIGC à Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969): vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339 (Carlos Marques dos Santos)

Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

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Évora > A Praça do Giraldo em 2006 > "De Maio a Agosto, sob os calores secos de Évora, não houve monte que não fosse visitado, noites e dias, pelas tropas peregrinas e desafortunadas, enquanto os serenos alentejanos de Évora se regalavam, ao anoitecer, com a bica aromática ou imperial na esplanada mítica da acolhedora praça do Giraldo" (Mendes Gomes)…

Foto: Luís Graça (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

O Palmeirim de Catió é o Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Catió, 1964/66). Publicamos hoje a segunda parte da sua crónica. Continuamos a aguardar fotos do seu álbum do tempo da Guiné (1).


Segunda Parte > 2. De Évora para a Guiné


2.1. Sorte ou destino ?

As últimas semanas de Évora redobraram em esforço e penar, quando se soube o destino que nos calhara.

Das três hipóteses, a Guiné era, à partida e em abstracto, a mais receada por toda a gente. Pior clima, risco muito maior, segundo se dizia. Além disso, a Guiné só tinha uma cidade que merecesse o nome: Bissau. O resto era mata e campos de arroz.

O fascínio de Angola e Moçambique compensava, um pouco, o que de mau pudesse esperar-se. Tantos continuavam a escolher aquelas paragens para viver. Depois, os testemunhos, directos e de portas travessas, abonavam uma passagem por lá, apesar dos riscos.

A grandeza de África, nos rios e matas, nas montanhas e na riqueza natural, a vida selvagem, a variedade da população nativa emprestavam um apelo forte àquela sorte. E as muitas cidades, erguidas à boa maneira africana, como réplicas de cidades da metrópole lusíada!…

Na Guiné, só a beleza natural e étnica prometiam lenitivo para a tormenta certa.



2.2. R.I. 16 - ÉVORA

De novo, uns dias de descanso, para mim, em terras de Pedra Maria, à espera do embarque.
Em dia certo de Agosto, teríamos de regressar ao quartel de Évora. A partida para o barco, no cais de Alcântara, far-se-ia de lá, Évora, em comboio especial.

Unidos pela sorte comum, estávamos condenados a ser bons camaradas e, de preferência, melhores amigos.

Era a guerra, imaginada em pesadelos, que nos esperava nas matas tenebrosas da Guiné.
A experiência viva da instrução militar, nos montes e caminhos perdidos no vasto Alentejo, não deixava espaço para grandes esperanças, numa luta de guerrilha traiçoeira.
- Seja o que Deus quiser -, pensava eu e poucos mais.

A maioria dos soldados eram alentejanos, para quem Deus pouco ou nada dizia. Para eles, era só a sorte e esta, o destino de cada um. E qual seria?…

A cerveja, essa, haveria de ajudar a passar o tempo. O resto se veria.

Uma coisa parecia certa e não querida. Aquele batalhão tinha à frente de cada uma das três companhias de infantaria um dos três mais temíveis oficiais, dizia-se, nunca antes saídos da Academia Militar. Chamavam-lhe os Três Mosqueteiros.

Na semana de Évora que antecedeu a incorporação dos recrutas no R.I.16, a dúzia de aspirantes milicianos, os designados comandantes de pelotão do batalhão que iria formar-se com destino para o ultramar, foi um joguete nas mãos daqueles figurões.

Na preparação física, o tenente Pinto pôde demonstrar, à saciedade, todo o capital acumulado de recordes, em flexões de braços e pernas, abdominais, saltos, corridas e demais proezas e de toda a panóplia muscular, religiosamente esquartejada nas longas horas académicas. Para além da ufana exibição de resultados através das linhas do seu físico escultural…

Na preparação ético-militar, era o tenente Varão quem dava cartas. O tenente Varão, o mais bravo, era comandante da minha companhia, a 728.

De porte garboso, longos braços e pernas, bamboleantes, gerindo muito bem a sua estatura, excepcionalmente elevada, bastante acima da nossa média, cultivava, sem esforço, uma eloquência fácil, onde procurava realçar uma escrupulosa propriedade de termos, em discurso que procurava ser demonstrativo da grande cultura geral que lhe atribuíam.

Rosto, oval e afilado por um nariz comprido e adunco; olhos mortiços, embora aquilinos; boca em forma de y, sugerindo a de um tenro golfinho; cabelo claro, curto e hirsuto, mas obrigado a formar madeixa ao lado; tez pálida e tristonha, onde o sorriso nunca se abria, apenas se esboçava.

Parecia querer incarnar, em si, o protótipo do verdadeiro militar, na decisão, na autoconfiança, na disciplina e na valentia. Pronto a subir até ao generalato. Iríamos ser, por certo, um chicote implacável, nas suas mãos, em terras de África.

O outro, o tenente Cavaleiro parecia ser o mais normal e aproximado do padrão miliciano. Mais dialogante e menos castrense. ( Só este viria a chegar a general…)

Toda a experiência de instrutores, desenvolvida nos vários quartéis, como simples aspirantes, ia ser posta à prova. Em proveito próprio, também. Tratava-se de preparar o pelotão que ia ser levado até às matas da guerra.

A seriedade e densidade da aprendizagem que, pelos seus 4 aspirantes teria de ser incutida aos soldados da companhia, teve no comandante Varão, um incansável e obssessivo mentor. A distância entre ele e os seus aspirantes e sargentos estava fora de dúvidas. Relacionamento, só em serviço e de serviço…e, muito respeitinho pelos elos da hierarquia…

Os montes secos e tórridos do Alentejo, de Maio a Agosto, ajudaram a causticar a modelação pretendida. A única saída residiu no espírito de corpo que se desenvolveu, apesar de tudo, entre os 4 oficiais milicianos e respectivos sargentos da 728.

O Mário Sasso, um moçambicano (da Beira) radicado há uns bons anos, na boémia e no fado alfacinha, de Lisboa, era o comandante do 1º pelotão.

Tinha feito um bom curso em Mafra e, por feitio, tinha de ser o melhor em tudo. Brioso, procurava ter uma conduta semelhante à figura. Quis ingressar nos comandos, mas o coração não lhe aguentaria o esforço.

Versátil e sensível, tocava viola e acordeão e cantava o fado castiço, ajudado por uma voz rouca, mas afinada. Era o mais citadino dos 4.

O Arlindo Santos, bairradino de origem, aparentado ao famoso José Cid, então na berra, era de feitio fleumático, calado e observador. Bom conversador, quando se dispunha a isso, embora limitado e concentrado numa temática, balizada pelo sensacional e fantástico. Quem quisesse saber as últimas, verdadeiras ou, por vezes, fantasiosas, era procurá-lo.

Eu tinha o 3º pelotão à minha conta: 90% de alentejanos, lentos, mas dóceis. Melancólicos, por natureza. Só o furriel Brás, tripeiro de gema, conseguia quebrar aquele bloco desvitalizado com a sua viola inseparável e um reportório vasto de desgarradas nortenhas.

O 2º sargento Gaspar, mais velho uma dezena e meia de anos do que todos, já ia na 2ª ou 3ª comissão de ultramar!…Modos de vida. Era casado e com filhos na metrópole.

Corpo e espírito de orangotango, haveria de dar os seus problemas, em teatro de guerra. Na véspera das operações, não havia doença que aquele corpanzil não tivesse. Para o fim, o pelotão já lhe perdoava e até preferia que ele ficasse no quartel. Um peso morto. Mas refilão, de sobra…Ah! Ainda conseguia fazer flic-flac, à rectaguarda…e era bom a contar anedotas. No final, já as repetia. Dizem que voltou para Angola, noutra missão e acabou chefe de posto…Uma Autoridade Administrativa.

O cabo Augusto era empregado de mesa no hotel Ritz. Revelar-se-ia um prestimoso cozinheiro de caldeiradas…Pacato e sempre pronto a avançar, muito dialogante. Os soldados gostavam dele. O cabo Madaíl, aveirense castiço, muito frontal, parecia ser destemido. À última da hora, os cuidados do pai, muito bem relacionado nas terras e salinas da ria, conseguiu comprar-lhe a sua substituição. Não foi promovido a furriel… Daí o ter surgido o 2º sargento, Leonel, um coimbrão, pacato, repetente, em mais uma comissão. Vidas. Também era casado e com descendentes.

No 4º pelotão, estava o Aspirante Gonçalves. Alentejano das raias de Espanha, em Campo Maior. De porte pequeno, ratinho, de olhos azuis, caracoletas alouradas, mas voz barítona. Era bravo e vivaço. Sempre, um leal amigo…Já nos conhecíamos das românticas guerras no B.I.19 da Madeira…

Falar-lhe da sua Passarinho foi sempre o ponto fraco…Então, com uma cerveja a mais, era um livro aberto… Ainda hoje, aquela felizarda é a sua feliz cara-metade…

De Maio a Agosto, sob os calores secos de Évora, não houve monte que não fosse visitado, noites e dias, pelas tropas peregrinas e desafortunadas, enquanto os serenos alentejanos de Évora se regalavam, ao anoitecer, com a bica aromática ou imperial na esplanada mítica da acolhedora praça do Giraldo…

Só aos fins de semana, poucos, foi possível partilhar aquela calma, quase a roçar uma tristeza lânguida.

A rica Sé e o seu tesouro quase milenar, o resto das colunas de sabor grego do templo de Diana, a capela dos ossos, de gosto irreverente, dedicada sei lá porquê, a São Francisco, o verde jardim, viçoso e labiríntico de D. Manuel I, as ruelas brancas e estreitinhas, autênticos pedaços das urbes mouriscas, as formosas e arabescas chaminés no cimo das casas, onde parecia ninguém habitar, pelo calor constante, foi o repasto turístico da maioria, ali deslocada, originária das terras buliçosas do norte.

O quartel era quase moderno nas suas enormes casernas, que as camas de 2 e 3 andares multiplicavam, sabiamente, o reduzido espaço para tanta gente: As salas de oficiais, sargentos e praças eram verdadeiros bares, cá de fora; a cozinha monacal, de grandes panelões a fumegar e um refeitório amplo, com as terrinas metálicas sobre mesas, compridas, de mármore; a cadeia castrense para serenar os ânimos mais exaltados; uma enorme parada calcetada a granito, servindo de altar quotidiano à indispensável mística militar... são as reminiscências que ficaram a perdurar na lembrança dos candidatos forçados à guerra de África…

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

Guiné 63/74 - P1235: Coronel Correia de Campos: um homem de grande coragem em Sambuiá e Guidaje (A. Marques Lopes)


O Coronel António Correia de Campos, um homem de cavalaria e do 25 de Abril, aqui justamente evocado pelo nosso camarada A. Marques Lopes. Fonte: Portal do Exército (2006)

Texto enviado em 22 de Outubro último pelo A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba; e CCAÇ 3, Barro), membro da direcção da delegação Norte da A25A - Associação 25 de Abril.


Caros camaradas:


A propósito de Guidaje, e do post recentemente colocado no blogue (1), deixem-me aqui recordar um homem por quem fiquei com muita admiração desde a primeira vez que o conheci.

Eu conheci o tenente-coronel António Correia de Campos num dia de 1968, quando eu estava com a CCAÇ3 de Barro, durante uma operação realizada no corredor de Sambuiá e por ele comandada (foi nessa altura também o comandante do COP3).

No meio do fogachal de uma emboscada vi a sua figura insólita, para as circunstâncias, de pingalim de cavaleiro, pistola e coldre à cowboy, seguros com um fio à volta da coxa direita, sempre em pé e gritando:
- O morteiro está à direita, uma bazucada para lá!... Fogo intenso para o lado esquerdo, é lá que está o RPG!...

Disseram-me, depois, que o Correia de Campos era mesmo assim, uma coragem e calma impressionantes. Numa outra operação na mesma zona [vd. carta de Bigene], já nos finais de 1968, também comandada por ele, o meu grupo, quando foi dada ordem de retirar, atrasou-se, porque levava um morto com o pescoço aberto por um estilhaço de rocket, e um guerrilheiro, ferido com uma rajada na barriga e deixado pelo IN, ia apoiado nos ombros de dois soldados meus (2).

Quando tivemos que atravessar uma bolanha com água muito alta (foi em plena época das chuvas) disse aos meus para fazerem uma maca de ramos para o deitar e levá-la pela bolanha. Fizeram a maca, sim senhor, mas não quizeram pegar nela:
- É turra, deixa ficar, vem jagudi e come ele...

Pegámos nela, eu e um furriel branco. O nosso morto foi às costas de um do grupo. Só quando íamos a meio da bolanha, com água pelo peito, é que apareceram dois, muito enfiados, a oferecerem-se para levar a maca. Chegámos depois à base de operações, onde estava já o tenente-coronel Correia de Campos, um helicóptero e uma enfermeira paraquedista. Mandei formar o grupo, mesmo em frente do tenente-coronel, e dei-lhes uma piçada, chamei-lhes todos os nomes... e que nem eram bons para os gajos da raça deles... e coisas que me vieram à cabeça por estar muito lixado. Diz-me o tenente-coronel Correia de Campos, que me ouvira serenamente:
- E pá, não te chateies, as coisas são mesmo assim... manda-os pó caralho e paga-lhes umas cervejas... Mas , olha, a enfermeira diz que o homem já morreu, não aguentou.

Era também comandante do COP3[, com sede em Bigene, ] durante o cerco de Guidaje (1), para onde foi assim que o cerco começou (esteve lá desde 10 de Maio). No Público Magazine, de 5 de Novembro de 1995, escreveu o jornalista Francisco de Vasconcelos:

“Sobre a acção de Correia de Campos no cerco (que é também destacada por Ayala Boto), um dos oficiais das forças especiais ali enviadas foi peremptório: Guidage, no fundo, não há dúvida, aguentou-se devido a ele. Foi um esforço brutal pedido a um homem de 50 anos. Uma vez terminado o cerco, Correia de Campos — hoje reformado em coronel — esteve alguns dias preso em Bissau, devido a uma infracção cometida em época anterior por um oficial sob o seu comando...
“No meio do inferno de Guidage, o governador Spínola foi ali de helicóptero para visitar a guarnição, dirigir um apelo à coragem e patriotismo dos oficiais e anunciar-lhes que iria enviar para a região o Batalhão de Comandos Africanos. Recorda Ayala Boto, que acompanhava Spínola como ajudante de campo: À chegada, a primeira imagem que surgiu foi a de uma povoação abandonada e com um único habitante que se dirigia para o heli como se estivesse a passear na Baixa de Lisboa. Era Correia de Campos.

"Após a partida do governador, gerou-se um movimento de abandono do quartel por parte de muitos militares, que queriam ir-se embora, tendo sido impedidos de o fazer por Correia de Campos, que, lembra o próprio, se postou de sentinela, à saída do aquartelamento" (...).

Lembro que ele foi um homem do 25 de Abril: às 10 horas do dia 25 foi ele que foi enviado pelo Comando da Pontinha para ali coordenar as operações. Foi ele, mais o Jaime Neves, que entrou, a seguir, no Ministério do Exército e aí prendeu diversos oficiais superiores, incluindo o coronel Álvaro Fontoura, chefe do gabinete do ministro do Exército (este já tinha fugido) ( ).

Após o 25 de Abril foi comandante do Regimento de Lanceiros 2 até ao 25 de Novembro de 1975.

Foi um bravo e nobre militar, injustiçado depois como muitos militares de Abril.

Abraços
A. Marques Lopes

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 24 de Outubro de 006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...

Vd. também post de 21 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1198: Antologia (53): Guidaje, Maio de 1973: o inferno (Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes)

(2) Vd. post de 6 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLVII: O Alferes Lopes, com os balantas (CCAÇ 3, Barro, Cacheu)

(3) Vd. edição do semanário Expresso, de 27 de Abril de 1974 > O regime foi derrubado em clima de festa

(...) "Às 15 e 25 entra no Quartel do Carmo o tenente-coronel Correia de Campos para parlamentar com as individualidades que se encontravam do lado de dentro e negociar as condições da rendição. O povo impacienta-se e grita: Fora!

"Na posse das tropas da Junta de Salvação Nacional ficou um major da G.N. R. como refém.

"É preciso ter confiança nas pessoas honestas. Tenham calma para que tudo caminhe devidamente e dentro dos trâmites de pessoas civilizadas. Nós queremos resolver tudo a bem. Mas o tempo passa e não há meio de sair o tenente-coronel Correia de Campos. O capitão Maia, de megafone em punho, grita lá para dentro:

"Atenção Quartel do Carmo. As negociações estão muito demoradas. Não tenho ordens para as deixar demorar mais tempo. São 3 e 30. Ouve-se a ordem para as metralhadoras alinharem devidamente. 3 e 40: Saiam de mãos no ar e sem armas. Mas ninguém saía.

"Apenas, o tenente-coronel Correia de Campos apareceu depois de o capitão Maia haver gritado lá para dentro: Atenção Quartel do Carmo. Se acontecer qualquer mal ao nosso enviado o vosso responderá por tudo.

"Eram precisamente 16 horas quando, perante a não rendição das individualidades e da G.N.R. aquartelada no Carmo, foi dada ordem para abrir fogo sobre a frontaria do edifício, que praticamente nada sofreu.

"A Guarda Nacional Republicana, que havia tomado posições no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, declara a um dos responsáveis pelas forças da Junta de Salvação Nacional que estão dispostos a renderem-se, contando que o façam primeiro os que estão dentro do quartel. Por uma questão de solidariedade, afirmaram.

"Às 16 e 10 entra no Carmo o dr. Feitor Pinto, que leva uma mensagem de Spínola para Marcello Caetano. Noutro artigo desta edição descrevemos estes contactos mais pormeorizadamente, contactos em que intervieram Pedro Pinto, Feytor Pinto e Nuno Távora.

"Pouco depois, perante a demora da rendição, é comunicado que iria ser destruido o quartel, caso não saíssem imediatamente.

"Os carros de combate começam a tornar posição. Vive-se uma hora de certa angústia e expectativa, até que, por uma questão de segundos, se evitou o pior. Feytor Pinto trouxe de dentro a certeza de que a rendição se havia operado em termos completos, sendo imediatamente anunciado que, em breve, se iria proceder à transmissão de poderes e que o general Spínola se deslocaria ao Carmo. Os vivas irromperam de todos os lados e os militares a custo conseguiram segurar a multidão que pejava por completo o Largo do Carmo e artérias de acesso

"Às 17 e 40, um carro conduzia o General Spínola e o major Dias de Lima por entre os milhares de pessoas que se aglomeravam no Largo, ovacionando prolongadamente os ocupantes da viatura, que entraram imediatamente no edificio. Seguiu-se a transmissão de poderes" (...).

Vd. também Instituto Camões > Camões - Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 5, Abril-JUnho de 1999 > Cronologia do 25 de Abril

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1234: Guileje: croquis do aquartelamento e tabanca (José Casimiro Carvalho)

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Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 ou 1973 > Croquis do aquartelamento e tabanca, desenhado à mão pelo Fur Mil Op Espec José Casimiro Carvalho (CCAC 8350, 1972/73), e enviado pelo correio a seu pai.

Foto:© José Casimiro Carvalho (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Telegráfica mensagem, enviada pelo José Casimiro Carvalho (1), em 29 de Outubro de 2006:

"Motivado pela recente morte do meu Pai, vasculhámos as suas memórias... Encontrei isto... e chorei.

"Vou partilhar com a tertúlia este documento histórico"

2. Resposta de L.G., ao e-mail do José Casimiro:

José: Sinto muito... A morte dos nossos pais é sempre a antecipação da nossa própria morte... O teu gesto é bonito, é uma homenagem a ele: vou pôr o 'croquis' de Guileje no blogue, a teu pedido...
Cheguei do Porto há 4 horas... Fui lá cima, homenagear os velhotes da minha mulher que já se foram desta vida... Em contrapartida, ainda pude levar os meus... Fica bem, tanto quanto possível... Guarda, para ti, os melhores momentos que passaste com o teu velhote... Luís
3. Comentário de L.G.: Pelo que posso deduzir, este croquis do aquartelamento de Guileje deve ter sido desenhado pelo nosso camarada, à mão, e enviado pelo correio a seu pai. Vasculhando os seus papéis, o José Casimiro acaba por descobrir um documento que tem muita valia, para nós e para o Pepito e a sua equipa, às voltas com o projecto de reconstrução de Guileje. Obrigado, Zé, pelo teu gesto e pela tua sensilidade!
Pelo que consigo ler na info-imagem, o aquartelamento e a tabanca de Guileje formavam um rectângulo, todo minado à volta, na parte desmatada, com minas, armadilhas e fornilhos. A orientação parece ser norte/sul, tendo as peças de artilharia de 11.4, em número de três, apontadas para a fronteira com a República da Guiné-Conacri. Originalmente, eu pensava que os obuses de Guileje fossem de calibre 14 cm. Podem ver-se ainda as posições dos morteiros: dois 81 (incluindo o 'meu', o que era operado pela secção do Furriel Carvalho, do lado oeste, junto a um dos abrigos) e dois 10,7.
A oeste, há um campo de futebol, uma pista de aterragem de aeronaves e um heliporto. Ao longo do perímetro do aquartelamento, há arame farpado, postos de iluminação, postos de sentinela, abrigos e valas, todos devidamente assinalados. As palhotas da tabanca situam-se dentro do perímetro do aquartelamento. O trilho que corre a norte da pista de aviação era o trilho da água, o que significava que as NT e a população precisavam de sair do perímetro defensivo para se abastecer do precioso líquido. A esttrada que atravessava o aquartelamento e a tabanca, no sentido norte/sul era a que seguia para Mejo e Bedanda (a noroeste) e ligava a sul à estrada de Mampatá - Gadamael - Cacine, ao longo da fronteira.
O Pepito e o Nuno Rubim, a quem vou mandar uma cópia do documento, saberão melhor do que eu interpretar e completar estas informações.
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Nota de L.G.:

(1) O Zé Casimiro, o nosso herói de Gadamael, não pertenceu à CCAV 8356, mas sim à CCAÇ 8350... Além disso, não vive em Lisboa, mas sim na Maia, distrito do Porto, donde é natural. Não sei quem foi o filho da p..., mouro ou morcão, que trocou os seus dados biográficos na página da nossa tertúlia. Assumo a responsabilidade pelo erro: Em meu nome, e da nossa tertúlias, as minhas humildes desculpas... Em breve será feita a devida correcção.

O José Casimiro Carvalho, furriel miliciano de infantaria, com o curso de operações especiais, nas vésperas de embarcar para a Guiné, em 1972. Ele escreveu-me nestes termos: "Meu amigo;
sou natural do Porto; vivo na Maia desde 1983; sou de infantaria (Operações Especiais); fui incorporado numa Companhia de Cavalaria (CCAV 8350)... Não é caso de morte, mas se puderes corrige... Obrigado. Ah!... sou adepto do FCP, mas fui do SLB até aos 27 anos de idade... Outras estórias, he he he"....
Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados


O editor do blogue, Luís Graça e o herói de Gadamael, José Casimiro Carvalho, na Ameira, em 14 de Outubro de 2006.

Foto: © Manuel Lema Santos & esposa (2006) (com a devida vénia...). Fonte: Encontro na Ameira > 14 de Outubro de 2006 > Luís Graça & Camaradas da Guiné

Guiné 63/74 - P1233: O meu cantinho na Net (Fernando Chapouto, CCAÇ 1426, Geba, Banjara, Camamudo, Cantacunda, 1965/67)

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Lisboa > Cais da Rocha Conde Óbidos > Meados de 1965 > Embarque, no TT Niassa, do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para a Guiné. Ao fundo, o tabuleiro da ponte sobre o Rio Tejo ainda em construção.

Foto: © Fernando Chapouto (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


O Fernando Chapouoto, ontem (1965) e hoje (2006),
Fotos: © Fernando Chapouto (2006). Direitos reservados.


1. O Fernando Chapouto, nosso tertuliano desde 30 de Junho de 2005 (1), mandou-me no verão passado um e-mail com saudações e fotos para a fotogaleria. Entre outras coisas escrevia:

"Quero dizer-te que já comecei a minha história da passagem pela Guiné. É longa e complicada. Estou a chegar perto do pontão de Banjara. Daí para a frente é que a guerra começa a sério.

"Quero felicitar-te pelo [teu] exemplar trabalho sobre a guerra colonial, em especial na Guiné. Porque me toca e porque já muito foi dito sobre aqueles que se intitutam ex-combatentes das esplanadas de Bissau. Para esses, peço-te que não passes cartão, porque a caravana passa e os cães ladram, enquanto nós continuamos fiéis aos princípios de ex-combatentes".


2. O Fernando, que vive na área da Grande Lisboa (Bobadela, Loures), tem a sua página pessoal na Net, a que chamou O Cantinho do Fernando. Tem a sua secção sobre a Guiné e a sua CCAÇ 1426.
Recorde-se que ele foi furriel miliciano mas também ranger (descobri-o há dias, no nosso encontro na Ameira, em 14 de Outubro de 2006) (2). A sua unidade esteve sedeada em Geba, na Zona Leste, com passagem por Banjara, Camamudo e Cantacunda. Pelo seu comportamento em combate, o Fernando tem a cruz de guerra, uma estória que desde já lhe peço para ele um dia destes nos contar.

A página está ainda em construção, mas já estão disponíveis algumas dezenas de fotos do seu álbum de fotografias da Guiné. É pena ainda não estarem devidamente legendadas. Tomei a liberdade de seleccionar uma, pelo seu interesse documental: o embarque do pessoal da CCAÇ 1426 e de outras unidades para a Guiné, em meados de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos. Ao fundo vê-se o tabuleiro da ponte sobre o Rio Tejo, ainda em construção.

3. Dou os meus parabéns ao Fernando por, sendo um dos veteranos da guerra da Guiné (ele é de 1965/67), ter criado não só uma página pessoal na Net onde fala da sua experiência da Guiné, como por nos convívios anuais do pessoal da sua unidade manter o espírito de camaradagem que os uniu a todos nesses já longínquos tempos (3). A propósito, não resisto a transcrever uma mensagem que posta na sua caixa de correio, assinada pela filha de um camarada, com data de 19 de Setembro de 2006:

"O meu nome é Elsa, sou filha do Armindo Monteiro que esteve consigo na Guiné na Companhia 1426. Estivemos no passado dia 16 de Setembro, no Encontro. Acompanhei o meu pai ao referido encontro, e foi muito especial para mim saber parte da história de uma pessoa que amo, o meu Pai. Nunca falámos, ou melho, sempre evitámos falar no que aconteceu na Guiné, e foi importante para mim perceber que o meu pai teve amigos, formou amizades e que nem tudo foi mau. Adorei o Encontro e adorei conhecer-vos. Obrigado! Elsa Rodrigues".

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXIX: Recordando Geba, Banjara, Camamudo, Cantacunda, Bafatá (CCAÇ 1426) (Fernando Chapouto / A. Marques Lopes)

(2) Vd. post de 15 de Outubrto de 2006 > Guiné 63/74 - P1178: Ameira: Que belo dia! (Fernando Chapouto)

(3) Outro tertuliano que também fez parte da CCAÇ 1426 é o Belmiro Vaqueiro, hoje reformado, residente em Bragança: vd post de 26 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXII: CCAÇ 1426 (Geba, 1965/67): Presente!(Belmiro Vaqueiro / A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1232: O soldado comando Raimundo, morto em combate, não foi abandonado em Guidaje (A. Mendes, 38ª CCmds)

1. Mensagem do Amílcar Mendes:

Amigo Luís Graça, venho-te pedir que publiques o que te escrevo: O corpo do soldado Comando José Luís Inácio Raimundoje que morreu nas valas em Guidage, foi trazido por nós, Comandos da 38ª Companhia, aquando do nosso regresso a Binta na coluna.

Não ficou enterrado em Guidaje porque NUNCA deixamos mortos ou feridos para trás. Tínhamos o dever moral de trazer o seu corpo e só o largámos em Binta quando ficou numa urna e dali seguiu para a capela mortuária de Bissau onde foi devolvido à família.

Recebi mensagens peguntando porque não ficou ele enterrado em Guidaje como outros; porque na nossa formação de COMANDOS foi-nos ensinado que o mais importante era o HOMEM!

2. Comentário de L.G.:

Amílcar:

(i) Foi um lapso da minha parte, involuntário, um típico erro cometido por simpatia: estava a pensar nos camaradas paraquedistas da CCP 121 que lá morreram e lá ficaram, o Lourenço, o Victoriano e o Peixoto, aqui evocados num post recente do Victor Tavares, no decurso da Op Mamute Doido, em 23 de Maio de 1973: vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

(ii) Aqui fica a tua correcção (e o teu protesto, implícito): eu sei que um camarada ferido ou morto em combate não se deixa para trás, que isso era um ponto de ponto para os bravos da 38ª CCmds.

(iii) Aceita as minhas desculpas, extensivas a todos os teus camaradas que estiveram contigo nesses longos e difíceis dias de Maio de 1973, em Guidaje. As minhas desculpas também à família do Raimundo, que era natural da Chamusca. Eu sei que ainda é doloroso falar da morte de camaradas nossos.

(iv) Vou corrigir o título do post P1223, de 30 de Outubro último.

terça-feira, 31 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)

Texto de Pedro Lauret, ex-oficial imediato da LFG Orion (Guiné, 1971/73) e hoje capitão-de-mar-e-guerra na reforma (1):

Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial

Durante toda a minha comissão (1971-1973) era frequente receber no navio mensagens referindo a possibilidade de serem colocadas minas aquáticas nos diversos rios e braços de mar.

As mensagens invariavelmente previam: a vinda de especialistas soviéticos para dar formação sobre minas; a colocação de minas neste ou naquele curso de água; a ida de elementos do PAIGC especializar-se a um país de leste …

A Marinha sempre levou a sério estas informações. Os sistemas tradicionais de rocega de minas não eram aplicáveis à realidade dos rios da Guiné pelo que a sua minagem iria trazer graves problemas à navegação. Algumas dúvidas se punham, no entanto, sobre a real possibilidade de uma minagem sistemática dos rios pois as condições naturais eram adversas: fortes correntes, grandes amplitudes de maré, fundos baixos, cursos sinuosos.

Colocada esta nota prévia vamos à nossa estória:

Numa tarde de 1972 descia, no NRP Orion, o Rio Cacheu vindo de Binta em direcção a Ganturé. Ao descrever a curva de acesso à clareira do Tancroal avistei um objecto estranho a flutuar, acestei os binóculos e apercebi-me de um objecto esférico a flutuar.

Uma mina?! Era óbvio! Máquinas à ré, a toda a força!

O navio devia navegar a 14 nós (3), as máquinas inverteram, o navio tremeu, na gíria da Marinha diríamos que até fogueiros saíram pela chaminé. O navio estancou antes de atingir o terrível objecto. De novo de binóculos em riste comecei a aperceber-me que era uma estranha mina. De facto era completamente esférica, mas mina não parecia ser. Com alguns toques de máquina aproximámo-nos, aos poucos fui-me apercebendo das características daquela exótica mina aquática.

Calculem o que era: uma cabra afogada que inchou e a sua esférica barriga aparecia a espreitar à tona de água.

Foi assim que um garboso navio da Armada colocou máquinas a ré a toda a força para não atropelar uma cabra afogada.


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Notas de L.G.:

(1) Vd post de 1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)


(2) Vd. último post desta série, 20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1193: Estórias avulsas (4): O fantasma-cagão da 3ª Companhia do COM, EPI, Mafra, 1966 (A. Marques Lopes)

(3) Um nó é equivalente a um milha náutica/hora, ou seja,a 0,51444 m/s ou a 1,852 km/h. Neste caso, 14 nós correspondem a uma velocidade de 25,928 km/h. Fonte: Wikipédia (2006)

Guiné 63/74 - P1230: Onde se fala do Henriques da CCAÇ 12, do ranger Eusébio e da tragédia do Quirafo (Mário Miguéis)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 > Finais de 1969 ou princípios de 1970 > O ex-furriel Henriques, que na altura usava um pera, à revelia do RDM, e óculos esfumados (na época, estavam na moda)... Esses óculos irão desaparecer, para sempre, sob o efeito de cone de fogo de um bazuca, no decurso da Op Boga Destemida, em 9 de Fevereiro de 1970 ... Em homenagem às cangalhas, que lhe terão possivelmente salvo a vista, e que ficaram para sempre enterrados no capim e na terra vermelha de Gundagué Beafada, aquele tuga nunca mais usou óculos na vida... O Furriel Mil de Informações Mário Migueis, que diz tê-lo conhecido em Bambadinca, entre Novembro de 1970 e Janeiro de 1971l, tem razão quanto aos óculos: nessa altura, o Henriques de facto já não usava óculos...

Foto: Luís Graça (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Mensagem do Mário Migueis que me chegou via Paulo Santiago, com data de 6 de Outubro de 2006 (1):

Caro Santiago:

Só agora tive oportunidade de ir ao blogue que me indicaste. Confesso que foi uma surpresa agradabilíssima poder rever, através de fotos da época, e não só, figuras e locais tão familiares, cujo registo os trinta e cinco anos entretanto decorridos não conseguiram apagar. Só por isso, o meu jarama (2) ao editor do blogue e a todos os restantes tertulianos, independentemente dos respectivos credos e patentes.

Penso que conheci o Henriques (Luís Graça) em Bambadinca, durante a minha passagem pelo sítio (Novembro de 1970 a Janeiro de 1971). No entanto, as fotografias dele disponíveis no blogue (uns óculos de que me não recordo) deixam-me algumas dúvidas (3).

Tenho, no entanto, uma fotografia com o T. Roda (CCAÇ 12), na qual, ao fundo, aparece a figura daquele que eu admito ser o agora nosso Luís Graça. A personagem que eu recordo usava, na altura, pêra pouco farta e, quando não estava em serviço, apresentava-se invariavelmente fardado com camisa de meia manga, calção, bota de lona e meia bem esticada até ao joelho (tudo como mandava a sapatilha e... o Anjos de Carvalho) (4).

Olha, nunca me deu para ir à Internet em busca da Guiné...e agora!... Agora, despertaste-me a curiosidade e o apetite e, qualquer dia, dou comigo a blogar também por vielas e calçadas, que é como quem diz por bolanhas e picadas...

Passando, agora, à questão que me colocaste, via telemóvel, quando, na paz do Senhor, passeava eu, desarmado e inocente, na Rua de Santa Catarina da Invicta Cidade, confirmo que, na Companhia do Lourenço (andas a chamar nomes feios ao homem!...), havia realmente um Furriel Miliciano Eusébio. Não me constou nunca, porém, que fosse Ranger (embora admita que pudesse sê-lo) e, até final de Outubro de 1972 (altura em que regressei à Metrópole), não pertenceu a GE [Grupo Especial] nenhum, nem nunca pôs os pés para além da linha de fronteira (5).

Mas, atenção!... embora o nome, o tempo e o local da acção sejam coincidentes, podemos (nunca se sabe!...) estar a falar de Eusébios diferentes. De qualquer modo, já tenho gente a tratar de tentar confirmar (ou até a localizar o Eusébio, quem sabe?!...).

(...) Por outro lado, quem diz que iam fardados e equipados com armamento russo para beneficiarem do factor surpresa e lançarem a confusão, está completamente fora do esquema, pois, como sabemos, para as acções além fronteiras, eram privilegiadas pelo Com-Chefe as tropas de cor (grupo do Marcelino da Mata, comandos africanos, milícias) e o equipamento capturado ao IN, para que não ficassem eventualmente no terreno provas da nossa participação nas mesmas, retirando, assim, sustentação às queixas (constantes, após a invasão de Conacry) das Repúblicas da Guiné e do Senegal na ONU.

No que se refere à emboscada do Quirafo e ao Desaparecido em Combate (estavas de férias, mas eu estava no Saltinho)(6), detecto algumas incorrecçõs no relato das quais, oportunamente, te darei conta (antes disso, vou tentar falar com alguém da desgraçada CCAÇ 3490 e, se possível, contactar o Batista - o famoso Morto-Vivo (sabes que este foi o título que dei a um conto com que concorri, uns anos atrás, a um concurso literário do JN? Claro que foi inspirado na nossa história ...).

Bem, bem,... com estas e com outras, estou a entrar pela madrugada dentro!... Deixa-me mas é desligar o aparelho, que se faz tarde!...

Um grande abraço e até breve!


PS - Juro-te que chorei durante meia-hora de tanto me rir com o teu relato do episódio das abelhas e do nosso Lourenço. Quem, como eu, conheceu os actores, tem que chorar certamente! Assisti à chegada ao quartel das G-3 abandonadas pelos pobres periquitos, algumas das quais com as coronhas derretidas, outras calcinadas... Foi, realmente, uma grandecíssima palhaçada e, contada por ti, a história tem realmente um sabor...

2. Resposta do Paulo Santigao:

Caro Migueis:

Agradeço a tua mensagem. O Eusébio que esteve no Saltinho, trabalha na NEA no Porto. Deve ser o tipo que pensavas trabalhar na Regisconta, que parece agora ter aquela designação. Há um tertuliano, Fur Mil Ranger, que esteve em Mansoa, em 1974 [, o Eduadro Magalhães Ribeiro] , já me deu o número de telefone de casa do tal Eusébio e me disse que o tipo ía gostar de falar comigo, etc. Respondi-lhe que espero justificações na Net, local onde descobri a história. Estou a aguardar.

Agradeço que corrijas algumas imprecisões da emboscada do Quirafo. Em 17 de Abril de 1972, tu estavas presente e eu de férias, como digo nos Posts onde relato o que me transmitiram os meus homens. Penso, contudo, o mais importante foi demonstrar a incompetência criminosa do Lourenço e do C. Lemos (7).

Há dias o Cosme, um dos meus ex-cabos, disse que o cabo apanhado à mão no Quirafo se chamava Ferreira, e não Batista, nome que utilizei no relato, pois era o que tinhas indicado quando almoçámos em Aveiro e falámos no caso.

Era bom que entrasses para a Tertúlia. Reenviei a tua mensagem para o Luís Graça. Vamos ter um encontro dia 14 em Montemor o Novo, onde vou com o Julião [Martins] e o [Carlos] Santos, [ambos da CCAÇ 2701) que andam a arranjar inspiração para escrever no blogue. Deves lembrar-te do Vacas de Carvalho, do Pelotão de Cavalaria [, o Pel Rec Daimler 2406, ]em Bambadinca. Há tempos contei no blogue o dia em que despertei o Anjos de Carvalho ao som dos tambores, com autorização do Polidoro, claro (3).

Não falei nas coronhas derretidas, porque a certa altura arranquei para Cansamange, deixando o Proveta na recolha de armas e na discussão com os pilotos dos heli. Podia ter sido um dia desastroso.

Espero continuar a encontrar-te na Net e também na Blogosfera.
Um abraço

Paulo Santiago
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Notas de L.G.:

(1) Segundo informação posterior do Paulo Santiago, o Mário Migueis, natural de Esposende, e também conhecido por Silva, foi furriel miliciano de informações, passou por Bambadinca, no tempo do BART 2917, entre Novembro de 1970 e Janeiro de 1971, e esteve com o Paulo Santiago no Saltinho até meados de 1972. Não pertencia ao Pel Caç Nat 53: não confundir com o Fur Mil Mário Rui...


(2) Lê-se djarama e quer dizer obrigado, no dialecto fula da Guiné-Bissau.

(3) Vd. post de 16 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1180: Paraquedistas, anjos da morte nos céus do Corubal (Luís Graça)

(4) Major Anjios de Carvalho, 2º Comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), já aqui várias vezes evocado, a última das quais pelo próprio Paulo Santiago: vd post de 11 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1062: Uma cena em Bambadinca: quando o Major caiu da cama (Paulo Santiago)

(5) Vd. posts de:

27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1119: Um periquito no Saltinho, o ranger Eusébio (CCAÇ 3490, 1972/74)

27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1120: O Ranger Eusébio no Saltinho: erros e omissões (Paulo Santiago)

27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1121: Carta Aberta ao Ranger Eusébio (Paulo Santiago)

(6) Vd. posts de:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

(7) Capitão Miliciano Lourenço, cmdt da CCCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74); tenente-coronel Castro Lemos, cmdt do BCAÇ 3872, sedeado em Galomaro: vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P1229: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (18): Não fujam, nós não somos bandidos!

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Guiné > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1973 > O novo destacamento do Mato Cão, no tempo em que o Pel Caç Nat 52 era comandado pelo Alf Mil Joaquim Mexia Alves (1971/73). No tempo do Beja Sanmtos, a segurança às embarcações de passagem pelo Geba Estreito, em Mato Cão, era assegurado por diversas forças, que estavam sob o comando do batalhão sediado em Bambadinca, desde a CCAÇ 12 até aos Pel Caç Nat (52, 53, 54, 63). O Joaquim Mexia Alves sucedeu ao Wahnon Reis e ao Beja Santos no comando do Pel Caç Nat 52 (1)

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados.




Guiné > Região Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Geba > 1968 > A necessidade faz o órgão: com três pirogas, o Beja Santos fez uma jangada e, perante a incredulidade geral, levou um velho reboque para a outra margem do Rio Geba e dali até Missirá... Ele tinha fama de levar tudo o que encontrava à mão, já que em Missirá não tinha nada: por isso o pessoal de Bambadinca gritava uns para os outros, mal avistavam o Pel Caç Nat 52 a atravessar a bolanha de Finete: "Eh, malta, em guarda, vem aí o Tigre de Missirá!"...

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Texto enviado em 17 de Outubro de 2006, peloBeja Santos:

Caro Luís, adianto já o texto referente à semana de 30 de Outubro. De 26 a 29 estarei numa conferência em Roma sobre educação do consumidor, os próximos fins de semana são passados numa pós-graduação em Carregal do Sal, e a partir da próxima semana estou em pleno funcionamento universitário. Penso que tu terás duas boas ilustrações para este texto, ou mesmo três: tens aí a minha fotografia a cambar o atrelado; mando-te pelo correio uma preciosidade bibliográfica que é o Dicionário crítico de algumas ideias e palavras correntes que o António José Saraiva escreveu no início dos anos 60 e que a censura de vez em quando retirava do mercado; mas também tens Mato de Cão que hoje é palco de um episódio burlesco que hoje vou contar. Como te disse ao telefone, ainda esta semana seguirá outro texto e prevejo a elaboração de outro em breve pois na última semana de Novembro estarei a fazer um curso em Bruxelas. Não te incomodo mais e recebe um abraço do
Mário.


Continuação da série Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2). O Mário Beja Santos foi Álf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) .

"Não fujam, nós não somos bandidos!"

por Beja Santos

São quatro da manhã, chove desalmadamente para que não nos esqueçamos que daqui a um bocado se seguirá uma cacimba, depois uma fornalha que deixará a lama seca no nosso camuflado. Não caibo de contente, pois hoje vamos trazer um atrelado, oferta do batalhão que parte e que descobriram este apêndice a mais. Não lhes faz jeito nenhum, e para nós é precioso para transportar petróleo e outras cargas . A operação de partida está normalizada: dois cantis, comida em autogestão, dois apontadores de dilagrama, um morteiro 60, uma bazuca, uma metralhadora ligeira, um cortejo de dose equilibrada de caçadores nativos e milícias. Não vejo indumentárias, muitos deles irão vestidos com roupas civis, boinas e gorros multicolores, calças amarelas, colares cheios de enfeites onde não faltam as tampas de cervejas ("manga de ronco!")

Elegi para tema de reflexão para os 12,5 Km que se vão percorrer encontrar o ponto de equilíbrio e a boa comunicação entre os caçadores nativos que têm uma surda guerra de classes com os milícias e deixar o aquartelamento com totais garantias de resistir a uma qualquer flagelação consistente. Não descobri a pólvora, muitos outros terão centenas de civis a ficarem intranquilos quando metade da guarnição parte para estes patrulhamentos diários.

Bambadinca não deu resposta a mais tropa, a mais morteiros e a equipamento mais moderno. Não deu, nem dará. Até agora os ânimos andam acalmados, uns a caiar, outros a pregar chapas na garagem, outros a carpinteirar e a cimentar, não foi fácil instalar os sanitários para civis e militares. Depois de falar com o 2º Comandante que dentro de dias parte, tomei a decisão de não apoiar a proposta do régulo Malã em criar em Canturé uma tabanca em auto-defesa. A concretizar-se este sonho do régulo, teríamos que encontrar mais armamento à altura das circunstâncias e um novo pelotão de milícias. Acontece que não há meios, não posso tirar efectivos a Missirá nem a Finete.

Continuando as minhas cogitações, está resolvido o problema do equipamento perdido, desgastado e até inútil, está feito o abate do tripé de morteiro que eu nunca vi. Quando regressei de Bambadinca da última vez vinha aliviado com os autos de incapacidade e ruína, desde tachos de 20 litros até 108 lençóis. As arrecadações foram limpas de ferros retorcidos, candeeiros sem candeia e peças de viatura sem nenhum préstimo. Estamos outra vez sem petróleo, hoje é preciso trazer mais tinta e estou cheio de curiosidade em saber o que vai fazer o Marcelo Caetano.



Guiné-Bissau > Região de Baftá > Bambadinca > 1997 : O que restava da antiga escola... e da casa onde vivia, no tempo em que alguns de nós por lá passaram, em 1968/71, a professora Dona Violette da Silva Aires, de origem cabo-verdiana, aqui tão justa e oportunamente evocada pelo Beja Santos (3).
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá)


Preciso de mais uma embalagem de Fenergan para tratar os meus inchaços e entretanto começa a doer-me o joelho direito (serei operado a uma exostose em Março próximo). E é no somatório destes factos e eventos que se entrou na estrada de Gambana, Mato de Cão está já bem próximo. É um lindo amanhecer, avisto o Geba barrento com o tarrafe quieto e túrgido. A tropa fica em vigia na colina e junto à estrada. Ao longe vejo o ponto crescente da LDM e na curva do rio, mas lá longe, aparecem seis embarcações. Eu já sabia desta movimentação incomum, estão a chegar os equipamentos do novo batalhão e a partir para Bissau as bagagens de quem os antecede. Acresce que os djilas andam a levar fazendas e a trazer óleo de palma. Compete a Missirá garantir uma livre circulação do Geba sem que os RPG 2 atemorizem ou lancem o caos.

Na posição interesseira de quem quer uma boleia para Bambadinca, ponho-me isolado no pontão, cumprimento o oficial e a guarnição da LDM, eles passam e afastam-se e dirijo depois a palavra ao Comandante do primeiro barco, o mais bojudo e praticamente sem passageiros.
-Somos 25, preciso da sua ajuda, tenho a viatura do outro lado de Bambadinca e carregamentos a fazer.

Sim, podemos ir, 15 no primeiro barco, 10 no segundo. Chamo a tropa e não me apercebi que vieram a correr aos gritos, de armas em riste, um autêntico ulular bélico. A LDM lá vai serena quando se começam a ouvir nas plateias dos terceiro e quarto barcos expressões como cubano, bandidos, desgraça. Quando olho para o espectáculo do pânico instalado, sabe-se lá quem lançou o rastilho do falso alarme, usei a única instância que considerei capaz de travar o pavor generalizado: subi para o tejadilho da cabina, gritei-lhes a plenos pulmões que não éramos bandidos, que, como podiam ouvir, eu não tinha sotaque cubano, pedíamos desculpa pelo susto devido a uma entrada tão desaforada. Os soldados perceberam desta vez que há limites para os clamores desatinados E no porto de Bambadinca tive que cumprimentar todas as tripulações e passageiros. Descobri que de futuro devo aparecer com mais brancos e exigir uma entrada disciplinada do pessoal.

Conheci hoje a Sra Dona Violete, a professora de Bambadinca. Preciso de informações sobre os programas escolares, pedi-lhe mesmo se podia aceitar que o nosso professor bem como o Zé Pereira ali estagiassem por algum tempo. É uma senhora fora do tempo, que fala com brandura, aconchegando o cabelo, recortando a melodia das palavras e que quando conversa avança para o interlocutor. Dei comigo encostado à parede, ela olhava-me em derriço como se eu fosse o primeiro alferes que lhe aparecesse à frente. Esta aparição vai-me custar bem caro em 1970, quando o Comandante me pediu que lhe levasse um ramo de flores e pusesse todos os nossos préstimos à sua disposição. Mas, tirando um episódio trágico-cómico de solidão, será a Dona Violete quem em traços rigorosos me vai explicar o que é hoje Bambadinca. Prometi voltar para conversarmos mais.

Depois de todas as andanças do aprovisionamento, avançamos para uma garagem onde nos aguarda, meio adormecido, o nosso atrelado. Há interjeições, risada e súbito toda a massa do reboque entra em movimento até ao cais. Depois de se parlamentar com Mufali, o canoeiro, apura-se que estamos na vazante, que o reboque não pode ir em cima de uma piroga, com fatalismo assegura-me que não há condições para tirar o reboque desta margem para a outra do Geba.

Mas havia. Olhei para três pirogas ao mesmo tempo, perguntei se elas não podiam estar amarradas e levar toda a carga equilibrada lá dentro. Foi o que aconteceu, como uma fotografia certifica que este atrelado a atravessar o Geba não é fruto do delírio. Ao fim de uma hora, aquela jangada muito especial aterrou no lodo de Finete e toda a tropa o puxou para terra. O guincho do Unimog 411 concluiu a operação que culminou com uma salva de palmas. Ganhei coragem para loucuras maiores que vêm por aí: os balneários de 8 bidões articulados, o nosso precioso chuveiro, passará por esta odisseia, e numa jangada mais sofisticada.

Mais tarde, quando eu perder a vergonha nos meus pedidos e sugerir levar viaturas a partir do Enxalé, encontrarei novas facilidades em jangadas mais possantes que me serão disponibilizadas a partir do porto de Bambadinca. Nesse dia despedi-me do velho batalhão, regressarei a 27 para ouvir o discurso da tomada de posse de Marcelo Caetano. Esse dia será marcado pelo reencontro com o David Payne Pereira, que terá uma importância fundamental para mim. Será o meu arrimo nas horas de desânimo. Aturou-me e tratou-me toda a população civil de Missirá e Finete. Quando, em Abril próximo, o Adão aparecer aos gritos em Bambadinca a dizer que eu não tenho temperatura e devo de estar a morrer e que já não articulo palavra no meu catre, ele virá a correr. Será o padrinho de casamento da Cristina.

Regressamos exaustos mas com petróleo, vitualhas e muitos objectos desirmanados das cantinas de oficiais, sargentos e praças. Nesta sociedade de consumo nada se sabe sobre aqueles microcosmos em que os copos podiam ser pedaços de garrafa, se desconheciam toalhas, travessas e garrafas para água. Missirá, aos poucos, passou a ter baixela, cozinheiros, forno de pão e descobrimos o prazer de estarmos à mesa sem a necessidade de comer à pressa algo de desenxabido antes de se passar ao loto a feijões e analisar as tarefas do dia seguinte.

A verdade é que ainda não me despedi do velho batalhão [, CCAÇ 1910]. Na véspera de partirem, Missirá será brevemente flagelada, o depósito de géneros ficará destelhado e o plinto em cimento para hastear a bandeira destruído. Não haverá vítimas com excepção dos pés feridos do Teixeira das transmissões.

Vão passar-se dois dias calmos. Já temos um gongue para chamar as tropas, é uma velha roda de ferro pendurada num gancho, dispara-se uma martelada com a manivela e Missirá começa a trabalhar. Persuadi Quebá Sonco que não se podem todas as noites fazer morteiradas de reconhecimento para lá dos cajueiros. Bambadinca quer 40 granadas à carga, não nos podemos dar ao luxo de fazer estrondos à menor suspeita. Os livros à carga já começaram a funcionar: armas, cantis e marmitas, até um par de binóculos faz parte da existência do aquartelamento.

Binta, a opulenta mulher de Madiu, e minha distinta lavadeira, andou à pancada com algumas comadres e foi o cabo dos trabalhos para serenar os ânimos. O caderno reivindicativo dos dois bazuqueiros chegou a bom termo, já possuem pistolas para se defenderem caso as bazucas emperrarem.

Nos tempos livres, li O Cavalo Espantado, de Alves Redol e O Deserto dos Tártaros de Dino Buzatti. Antes tinha relido com satisfação duas obras indispensáveis: Dicionário Crítico de Algumas Ideias e Palavras Correntes, de António José Saraiva, e O Hóspede de Job, de José Cardoso Pires. José António Saraiva sempre me mereceu a admiração pelas suas investigações na cultura portuguesa. Este dicionário é uma análise ao conteúdo de certos termos para nos precaver "contra a prestidigitação verbal e contra todas as tentativas de subjugação pela palavra". Ele analisa, por exemplo os conceitos de esquerda e direita, laicismo, tradição e liberdades. Fixei para todo o sempre os conceitos de: "país real", "país legal" e "país fabuloso". Lançando uma crítica implícita à ideologia salazarista, o país real em que vivíamos era a boa gente das vilas e aldeias ordeira e inimiga das novidades. Era um país real afinal utópico. Estabelecera-se numa imaginação de cúpula um país fabuloso constituído por pessoas felizes, trabalhadoras e encantadas pelos discursos oficiais de apelo à ordem. Este país fabuloso pode ser uma perigosa realidade tornando mais dolorosa a marcha do país real.

Quanto ao Hóspede de Job é uma saga do Alentejo sem trabalho e de um par de amigos que peregrinam os seus sonhos pela terra amada, o velho Tio Aníbal e o jovem Janico, João Portela que desespera com a falta de trabalho. José Cardoso Pires entusiasmara-me com o seu O Anjo Ancorado, talvez a primeira obra que anuncia o triunfo do desenvolvimento urbano e a latência de uma sociedade de consumo, contrariando usos e costumes da tradição e da obediência. Uma enorme surpresa está para vir e que vai marcar a ferro quente a minha visão de Portugal: O Delfim, lançado em 1968. Perderei toda a minha biblioteca em breve, subsistirá esta obra-prima da literatura portuguesa contemporânea, pois andará sempre no meu saco.

E eis senão quando os ponteiros do destino lançam-se numa nova vertigem: Marcelo Caetano vai falar ao país; as flagelações entram no barro do quotidiano de Missirá; o Alferes Almeida e o seu pelotão de Caçadores Nativos 54 chegam aqui sem pré-aviso para eu partir para a segunda operação ao Burontoni. Ando feliz com as obras de Missirá e os sinais de conforto e bem-estar. A guerra parece estar longe, mas todo o mês de Outubro vai ser palco de pequenas e grandes guerras. Não resisto a contar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

29 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1039: O Pel Caç Nat 52 no Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

(...) "O Pel Caç Nat 52 esteve largo tempo em Mato Cão, chegou comigo, salvo o erro, um mês ou dois antes do Natal de 72 e por lá foi ficando ao longo de 73. Eu fui para a CCAÇ 15 [, em Mansoa,] em meados desse ano de 1973 e o Pelotão ainda lá ficou" (...)

A propósito da ida do Meixa Alves para a CCAÇ 15, ele já me pediu para esclarecer (e rectificar) a informação (errada) que foi veiculada no blogue segundoa qual ele foi depois capitão miliciano... Ele, de facto, chegou a comandar a CCAÇ 15, mas sempre como Alferes Miliciano. O seu a seu dono... As minhas desculpas, Joaquim!

(3) Vd. post de 18 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P882: Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)
(...) "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...)