quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Uma enfermeira (*) pára-quedista no meio dos Lassas...

Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > A bela Miriam, a lavadeira, de etnia fula, que, no romance, gostava de fazer converso giro com o Furriel Rafael...

Foto: Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra. Ed. de autor (Cucujães, 2000).


Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > A liberdade: um caminho difícil, com um preço alto para muitos homens e mulheres que combateram na guerrilha. É o que sugere esta imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)

PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
Autor: Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112

Advertência: Trata-se de uma obra de ficção, embora inspirada em factos reais, em especial na actuação da CCAÇ 763, os Lassas, que estiveram e viveram em Cufar, no sul da Guiné, nos anos de 1965 e 1966.

Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726, Cufar, 1965/66). Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte X (Final) > A professora do PAIGC é libertada no mato, grávida de um Lassa que morre em combate(pp. 97-111)

Vd. resumo dos episódios anteriores (2)

(i) Disfarçada de mulher de limpeza, Pami ouve os furriéis Gama, Taveira e Rafael a debaterem, dilacerados, o sentido da guerra e o seu sacrifício pela Pátria


Miriam, para além da roupa de Rafael, agora também tratava da limpeza e arrumação do quarto dos três furriéis. Pami, prisioneira em liberdade condicionada, acompanhava por vezes a lavadeira fula, dando uma ajuda a esta nas suas tarefas. Numa dessas deslocações à messe de sargentos, os três ocupantes encontravam-se no quarto comum. Sobre as camas, os mesmos falavam sobre a guerra e os seus problemas envolventes. Sem darem qualquer importância, aliás ignorando completamente a permanência das negras, movimentando-se nos seus trabalhos de limpeza.

Perspicaz e atenta, Pami registava as dissertações dos militares. Gama, sentado na cama recostado sobre a cabeceira da mesma dizia:
-Foda-se!... Martírio... para mim não há pior que a sede. Quando a boca se me seca, quase que sufoco!

Pami paralisou, confuso o seu cérebro tentou, sem o conseguir, saber qual a espécie de sede a que o militar se referia. Não era ele que os colegas diziam, transformar-se completamente perante uma acção de fogo? Não diziam até que, rastejando, ia à zona de morte buscar os camaradas feridos, quando eram emboscados? Dúvidas racionais sobre qual a sede sofrimento do militar.

Taveira, tronco nu, envergando apenas uns calções de cáqui, completamente estendido sobre a cama dissertava:
-É pá! Eu penso muitas vezes que um dia em que por hipótese tenha um filho... Que poderei eu dizer-lhe, sobre esta merda?... Que seu pai subiu aos cumes do bem, e que chafurdou, descendo aos abismos do mal?

Rafael de bruços, pés sobre os ferros da cama, lançando nuvens de fumo dos cigarros que sofregamente aspirava, atalhou:
- Filho!? Se o tiver... espero ter a coragem de confessar-lhe que seu pai se encontrou perdido e dividido entre esses dois pólos. Poderei até confirmar-lhe que espezinhei a condição humana e a própria Pedra de Moisés.

A prisioneira, na ânsia de ouvir os militares, ia fazendo render o tempo, ajudando vagarosamente na limpeza do aposento. Ignorando completamente a presença das duas mulheres, Rafael continuou:
- É certo que cada guerra é criadora das suas próprias normas e leis, não revogando as leis humanas. De livre vontade, sob coacção ou de qualquer outra forma não há dúvidas que as aceitamos e respeitamos... Quem terá ética e razão, para nos condenar pelo que fazemos? ... Também é lógico e racional questionar que, em termos teológicos, nos estamos cada vez mais afastando da libertação! O fosso que nos separa da casa e da família é cada vez mais profundo. A vida que foi. A ligação a essa forma de vivência torna-se cada vez mais esfumada. Estamos cada vez mais próximos do inentendível da razão, e da destruição da nossa identidade global.

Enquanto falava, lançava argolas de fumo do seu terceiro ou quarto cigarro, cujas pontas ia lançando na lata de conserva, improvisado cinzeiro. Gama abandonou a posição sentada e esparramou-se na cama sobre o lado direito, pronunciando:
- É fado de saudade, a comunhão que fazemos, no partilhar do pão, farinha amassada de tristeza e alegria, com os companheiros, envoltos nestes uniformes camuflados de guerra.

Taveira contorceu-se como que acossado por carreiro de formiga cadáver. Embora a sua propensão extrovertida de interpretar as situações, fleumático atirou:
- A unidade e a solidariedade são a procura incessante da estrutura humana no mundo. Há algo que é muito importante escalpelizarmos: A terrível confissão de que não temos nomes, e aquilo que apenas possuímos é a transformação desses mesmos nomes, em comunicados de guerra. Muito simplesmente a nossa condição humana é única e exclusivamente medida em litros de suor sangue e lágrimas, derramados em prol da Pátria. Todos somos espectros de outras guerras. Isso é o que nos une e permanecerá entre nós.

Gama interrompeu:
- É verdade! Somos uma geração que está a ser sacrificada e devorada, para o bem futuro e salvação das gerações vindouras.
- Mentira! - exclamou, peremptório, Rafael, dando uma volta e sentando-se na cama. De dedo em riste para o seu camarada afirmou:
- Repito! Em princípio isso é uma mentira imposta! Não nos sacrificamos a nós ou aos turras, mas a ambos. Os que já se foram e aqueles que ainda virão, são a súmula de todo este disparate!... O Taveira tem absolutíssima razão, quando diz que todos somos espectros de outros conflitos. Pergunto: Porquê nos foi destinada esta vida? Porquê nascer para este estado de sofrimento? Como compreender tudo isto?... Também é verdade, que qualquer resposta me é inútil, porque me encontro com vertigens, vomitando sobre o abismo que se abre à minha frente. Quando matamos, já não somos nós! Porque nós próprios já estamos mortos. Conheci poucas pessoas que quisessem vir para aqui, e muitos menos que não tivessem medo da guerra, e receio de não regressarem a casa. Muitos, mas muitos de nós tenho a certeza, dentro de si ficarão, com os buracos que abrimos para os abrigos, as crateras abertas pelas granadas de morteiros e as noites das matas sem luar cheirando a morte! Alguém já compreendeu, que se toma impossível regressar de uma guerra?...Ela será nossa companheira até nos extinguirmos. Findará apenas quando o som cavo, das pás de terra se ouvir, caindo sobre as tábuas, que envolverão a nossa matéria.
-Será!?... Que só sabemos criar através da destruição?

Pami não entendia agora muitas das coisas que os militares diziam. Mas ficou com a certeza de que era aquela a fotografia do seu interior, e que não tinha nada a ver com a que se apresentavam exteriormente perante o mundo.

Rafael continuou:
-Gostaria de perguntar a estas gentes que nos transformam em voluntários forçados e nos incutem a ter saudade dos maternos mamilos, sugando-os até fazer sangue. O porquê? E para quê?... À minha ditosa Pátria - busto, figura, mulher libertada - gostaria de perguntar que mais sacrifícios nos requer?... Às mulheres, mães, irmãs, esposas e amantes, gostaria de questionar porquê não invertem a razão dos valores, e gritem bem alto em uníssono: Parem!... Basta!... Por favor! Ou será que o absurdo leva as mães ao masoquismo de terem orgulho chorando sobre a campa dos seus filhos? Falsos heróis, fabricados por um louvor em Ordem de Serviço!

Gama inquieto, a adrenalina subindo. Exclamou:
- Pára , não voltemos a Camões. Lembra-te que o desgraçado, para poder divulgar a sua Obra, teve de dar manteiga aos padres.

Rapidamente Rafael ripostou:
- Camões é inquestionável. Sabes porquê? Porque a Língua é parte integrante da nossa identidade. Quem melhor a cantou como Ele? Mas também podemos reflectir - indicando na direcção das mulheres no seu trabalho - Que língua falam estas desgraçadas negras? Se Ela revela o que construímos e aquilo que somos. Também te dá os exemplos contrários. O que não somos, e o que não construímos ou antes destruímos.

Os militares, em íntimos pensamentos interrogativos concerteza, calaram-se por breves minutos. Um silêncio claustraniano invadiu a mansão militar. Mas Taveira remexeu o refugado.
- Sim!... Podemos questionar que outros tormentos e desalento, deseja a Pátria ver no rosto dos seus filhos, para se sentir feliz. Quem será o último a morrer, em seu nome e da sua glória?

Rafael voltou filosofando:
-O meu pai mostrou-me uma noite, o poço da Ribeira Velha. Era tão profundo, que apenas reflectia uma estrela. Um ano a seca foi tão grande que o fundo do poço se transformou em lama, fazendo desaparecer a estrela. Penso que o desaparecimento de uma estrela , no fundo de um poço, nos destroça mais do que uma emboscada na estrada de Cabolol. A sede que martiriza o Gama talvez seja esta. Por ventura, um de vós que me sobreviva, irá falar com o meu pai. O meu pai chorará, e aquele que lhe falar, ficará diante dele cabisbaixo, envergonhado, mordendo os lábios. Sentir-se-à culpado por não ter sido morto também. E reflectirá sobre a própria sobrevivência. A cara de meu pai reflectirá na distorção da sua dor e paixão a minha própria cara. Nessa hora concerteza pensareis: Porquê ele e não eu?
- Amanhã!... Será a vez de outro amigo e companheiro olhar nos olhos de outros pais ou mães. Não tenhais dúvidas! Este será o drama que nos acompanhará! Somos, sem dúvida, uma geração que não existiu para viver e amar, mas sim para se extinguir sob o síndroma dos efeitos da guerra. Como será o futuro? Quais os efeitos para todas as partes deste enorme disparate?

Como que acordando de longo sono, olhou para Míriam e rispidamente interpelou-a:
- Como é, saco de carvão? Esta merda nunca mais fica limpa? Gosse! Fora daqui!

Pami sentiu enregelar-se e, rapidamente, seguiu a sua companheira, que saía adivinhando borrasca. Os militares continuaram de certeza a sua conversa. Mas para a prisioneira o que ouvira era suficiente, para ficar completamente baralhada. O mundo apareceu-lhe, como imenso labirinto, bem definido entre dois pólos invisíveis: O Princípio e o Fim.

Não era a primeira vez que a conversa dos militares a fizeram raciocinar sobre este tema da guerra. Nas conversas habituais do varandim, tinha assistido a um aceso debate sobre a política portuguesa para as colónias Portuguesas em África, e ouvira perfeitamente falar sobre Amílcar Cabral.

Recordava na altura ter Rafael referido que um seu amigo tinha estudado engenharia com o líder do PAIGC, e que se referia a ele como sendo dos melhores alunos do seu curso de agronomia. Pena era ter-se ligado aos comunistas de Leste. Sobre este tema, não recordava quem tinha levantado o problema de não ter o PAIGC simpatias só nos países de Leste. Tinha até sido levantado o problema da Língua na Guiné, e a influência que os países de língua francófona, dada a sua proximidade, poderiam daí retirar algum partido, resultante do laxismo português. Ouviu muito mais sobre a questão colonial (províncias de Portugal). Inclusive, o Gonçalo, falar da estupidez de não ter sido tomada em conta a posição de Norton de Matos, sobre Angola. Sobre este caso, Pami por desconhecimento absoluto não pôde retirar conclusões.


(ii) Pami, com sintomas de gravidez, vai com o Furriel Rafael... em português


Aproximava-se a época das chuvas. Pami começou a sentir-se um pouco estranha, tinha vómitos pela manhã, o ciclo menstrual desapareceu-lhe e os seus pequenos seios começaram a crescer. Preocupada a prisioneira, pelos indícios verificou que estava grávida. Entrou em pânico, quando compreendeu que transportava no ventre, um filho ou filha, do militar branco.

Como seria? Que fazer perante esta situação?... Não poderia dizer a ninguém. Mas como esconder tal situação? Falar com Míriam e contar toda a verdade? De certeza esta ficaria com ciúmes, e a amizade terminaria. E mais grave o furriel Rafael ficaria logo a saber. E se contasse ao furriel ou ao alferes? Qual seria a reacção? Rafael era amigo do Gonçalo! Incerteza como reagiria! Agora, sim, sentia-se num dilema, turbilhão de ideias. Como poderia ser compreendida pela guerrilha? Certo era que não poderia viver assim sem comunicar com alguém.

Passada que foi uma noite sem fechar os olhos, e com uma agitação incontrolável na sua mente, teve uma resolução, chamou Míriam, e solicitou-lhe, para interceder junto do furriel Rafael, pois queria falar com ele. Aquela riu perdidamente, e perguntou:
- Sanhá, tu não sabe fala potuguês! Como fala tu com furiel? Quê qui tu quere fala cum ele?- perguntou com desconfiança.

A prisioneira informou de que não aguentava mais a situação, e queria que o furriel a interrogasse, para depois a matar, ou mandar embora.

Míriam falou com o furriel, e este informou que ia falar com o alferes Telmo. Para resolver o assunto. Pela tarde, apareceu um milícia, que mandou a prisioneira acompanhá-lo, e seguiram para a casa dos interrogatórios. O milícia mandou sentar Pami, ele também se sentou no chão. Passado um bom bocado, apareceu o furriel só, sem arma, vestindo roupa civil. Calça cinzenta e camisa branca. Deixara crescer a barba novamente, mas agora estava um pouco mais gordo. Retirou um maço de cigarros do bolso da camisa, e ofereceu um ao milícia e retirando outro para ele, acendeu com o isqueiro, primeiro o dele, e depois o do milícia. Olhou para a prisioneira, e comunicou ao milícia:
- Diz-lhe lá que já não me lembrava dela como prisioneira! Mas que está mais gorda e mais bonita! Pergunta-lhe se está satisfeita com os soldados de Cufar!

Antes do milícia fazer a tradução, a prisioneira retorquiu em crioulo perfeito:
- A mim fala só cum furriel!

Este ficou um pouco desorientado, ao ouvir a prisioneira, e demoradamente reteve o olhar no coto da mulher. Olhou para a cara da mesma e ordenou ao milícia:
- Vai embora! Eu falo então com ela!

O milícia saiu, o furriel sentou-se no único banco existente na casa. Começou a fazer argolas com o fumo do cigarro, com o olhar e pensamento concerteza distante. Voltou a olhar para a prisioneira que, angustiante, aguardava a oportunidade da autorização para falar. De repente disparou:
- Quê qui bó miste?

Pami olhou para o furriel, duas gotas caíram-lhe dos olhos e pronunciou:
- Eu peço perdão, eu falo português!

O furriel rápido como um felino, deu um salto deixando cair o banco. Instintivamente, levou a mão direita à anca, como se procurasse a pistola. Notava-se que tinha ficado desorientado. Olhando constantemente para a prisioneira, deu uns passos na sala - como que fera a preparar o salto sobre a presa - sempre fumando. Até que parando levantou o banco, voltando a sentar-se, e calmamente interpelou:
- Não estou a compreender, vamos com calma! Repete lá o que disseste?
- É verdade!... Falo português, e possuo a quarta classe de escolaridade, tirada na escola missionária de Catió. Peço perdão por ter escondido, mas tinha medo que me matassem. O meu nome verdadeiro é Pami Na Dondo. Sanhá Na Cunhema era minha mãe que faleceu em Cadique há um ano e pouco. O meu pai é Pan Na Ufna e meu marido Malan Cassamá, se ainda for vivo.

Estupefacto, o furriel mandou a prisioneira falar e contar tudo. Enquanto Pami ponto por ponto narrava a sua vida, o militar em silêncio fumava, acendendo cigarros uns nos outros. Incrédulo, ouvia, parecendo o pensamento estar muito longe. A narrativa da destruição da escola de Flaque Injã fê-lo olhar para a prisioneira, que agora falava e chorava. Pami ia começar a narrar alguns episódios da sua estadia como prisioneira no aquartelamento. Mas foi interrompida pelo furriel.
- Ficaste contente quando o Gonçalo morreu, na noite que te levou para a cama?

Pami ficou sem saber que responder e admirada pelo militar saber que o amigo a tinha violado. Escondendo o estado de gravidez em que se encontrava, num rasgo de audácia, perguntou:
- Como sabe?
- Sei tudo o que se passou nessa noite, há soldados que viram e a Míriam contou-me tudo. Estás ou não contente por ele ter morrido?
- Fiquei contente nesse dia, sim! Não o nego. Mas hoje não sei! Estou muito confusa! Furriel, por favor, eu quero terminar agora!... Mate-me! Eu já não sirvo para nada. Nem para os militares, nem para o PAIGC. Quero mesmo acabar. Mate-me ou mande matarem-me! A partir deste momento, só o meu pai me poderá compreender, Malan meu marido dificilmente o fará.

Rafael deitou fora a ponta do último cigarro restante do maço e apagou-a com a ponta da bota de lona. Olhou fixamente a prisioneira, e disse-lhe:
- Malan Cassamá já não existe! Foi abatido em Flaque Injã quando ao servir de guia tentou fugir.

Pami retorquiu:
- Tentou a fuga ou mandaram-no fugir?
- Sinceramente não sei dizer! Mas daria no mesmo. Após tudo isto tenho a certeza que não és assim tão ingénua e ignoras a situação em que nos encontramos. Sabes perfeitamente que estamos na opção zero! Quem não mata, morre! Que alternativas existem?

A prisioneira, sentindo o coração apertado, com aquela verdade tão dura respondeu:
- Sim! Só que nós morremos por uma causa nobre e justa, queremos ser livres e donos da nossa Terra!
- Tens razão! Só que nós não queremos morrer e, para isso acontecer, a única lógica concerteza é matar. Quem achas que sofre mais? A mãe de Malan Cassamá ou a mãe do Gonçalo? Há possibilidades de medir a dor e o sofrimento de qualquer mãe pela morte de um filho?... Pode um homem ser a maior peste do mundo, mas para a sua mãe ele será sempre o seu filho. Aqui há coisas concretas, não podemos brincar. Mesmo que queiramos não podemos fugir à realidade.


(iii) Rafael, armado de G3, leva Pami para o mato, sozinha com ele. Pami, grávida em resultado da violação, implora ao Lassa para que mate


Pami não respondeu, chorava copiosamente. O furriel levantou-se e disse-lhe, saindo:
- Esperas aqui que eu volto já.

Saiu, e a professora guerrilheira continuou chorando, completamente destroçada. Totalmente em farrapos, o seu cérebro ia tentando recompor algumas coisas. Malan morto! E seu pai, ainda seria vivo? Apenas existia uma indecisão. Era a corrente que se transmitia do seu ventre ao pensamento.

Teria ela também o direito de decidir qual o caminho do ser que transportava? Reconhecera já raiva com ela própria, ao tontamente sorrir, acariciando o ventre. Sentia momentos de incerteza, sobre o gosto do que transportava.

Passados alguns minutos o furriel regressou. Tinha envergado uma camisa camuflada, por cima da camisa branca. No ombro em bandoleiro de cano para baixo, trazia uma espingarda G3. Abriu a porta, e sem olhar, disse:
- Vamos! Segue-me!

Abandonaram o quarto de interrogatório, e o furriel dirigiu-se para a porta de armas seguido da professora de Flaque Injã. À saída da porta de armas, o soldado de sentinela olhou e falou:
- Vai comê-la, ou entregá-la ao papá do céu? Veja lá, meu furriel, mas é se ela lhe rouba a arma, enquanto está matando a fome!.
- Vai-te foder! Porco de merda! - foi a resposta do furriel.

Seguiram junto ao arame farpado e depois divergiram para o carreiro que dava acesso à lagoa, entrando na picada que a circundava. Pami sentia o corpo todo em demente tremura, e os seus passos seguindo os do militar eram já inseguros e incertos. Recordante, ouviu o padre Francelino narrando os passos de Cristo, coroado de espinhos arrastando a Cruz, a caminho do Gólgata. Tentou rezar o Pai-nosso em sinal de perdão. O furriel andou uns cento e cinquenta metros, e parou debaixo de uma árvore, carregada de ninhos de tecelões que, com o aparecimento dos intrusos, voaram, num grande chilrear.

O sol caía sobre o fundo da pista. Brevemente a noite africana apareceria com os seus sons e mistérios. Época de chuvas, o bonito luar de África, não apareceria mas sim as trevas e algum tornado. O furriel puxou a culatra da G3, e introduziu uma bala na câmara, rodando a patilha de segurança para tiro de rajada. Mandou sentar a prisioneira no chão, ao que esta obedeceu. Rafael olhou para a cara da rapariga, e sentiu qualquer coisa diferente de quando a interrogara pela primeira vez. Verificou em pormenor que a prisioneira apresentava a cara mais cheia, os seios agora bem visíveis pelo afastamento do pano, pareciam que tinham dobrado de tamanho, o olhar tornara-se meigo e brilhante de uma doçura estranha.

O militar procurou os olhos da prisioneira e fixando-os tentou penetrar no seu intimo, questionando-a!
- Que posso fazer por ti?
- Mata-me! - respondeu, firme, a prisioneira.
- Sabes que cometeste uma grande falta e erraste ao mentires nos interrogatórios. Podias ter colaborado e assim não morrerias. Os militares não te trataram bem?

A rapariga acenou que sim com a cabeça. Mas o militar pressentiu qualquer coisa na prisioneira, e, julgando que era a hora certa, insistiu:
- Fala! Há qualquer coisa estranha, que parece quereres dizer-me algo mais!?

Pami mudou de posição, e pôs-se de joelhos, como que em oração, olhos no chão, saíram-lhe estas palavras:
- Já não tenho solução, aqui ou na guerrilha, a minha vida já não vale nada, pelo que o melhor é morrer!

Uma torrente de lágrimas caía pela cara da pseudo-guerrilheira. O furriel já não olhava para a mulher, mas sim para o cair do sol por sob o ilhéu de Infanda, e ela continuava:
- Mata-me! É melhor assim, para mim e para ele, que o Deus do padre Francelino me perdoe.
- Não! Há alguma coisa errada no meio disto tudo. Conta! Conta toda a verdade!

Massacrava o furriel com perguntas. Agora já num choro em soluços, Pami de joelhos continuava: - É nula a solução, eu sei tudo sobre vós, já contei tudo, mas aparecer assim na guerrilha não vão acreditar. Vai ser o maior desgosto para o meu pai!
- Mas aparecer como? - ripostou o militar.
Completamente destroçada, Pami confessou:
- Eu fiquei grávida na noite em que morreu o Gonçalo! Nas minhas entranhas existe um ser, filho dele!

(iv) Rafael liberta finalmente Pami, que irá ter um filho de tuga, norto em combate. A mãe pôs-lhe o nome de Umberto Cassamá.


Uma rajada soou por sobre a lagoa de Cufar, e o seu eco redobrou na margem oposta. As aves que se alimentavam, nas águas calmas, levantaram voo em gritos de aflição.

Pami pareceu sentir o seu corpo trespassado por milhares de projécteis, e o seu cérebro apenas definiu o fim. Passaram uns segundos eternidade. A mulher levantou os olhos, e olhou para Rafael. Este continuava a olhar o pôr-do-sol, e sobre a rala e negra barba, apareciam agora gotas de orvalho caídas da fonte de seus olhos. A arma mantinha-se fumegante, virada para os céus.

Pami jamais sonhara ver aquele homem duro comovido. O militar baixou-se, pegou na guerrilheira pelos braços, e ergueu-a. Voz embargada, falou para Pami mulher criança:
- Se quiseres ficar connosco, podes ficar! Ninguém te tratará mal. Se achares melhor ires ter com o teu pai, vai! Perdoa ao Gonçalo, e se for um rapaz não te esqueças de lhe por o nome de Humberto! Aqui em Cufar todos te julgarão morta! Nunca te arrependas de ser uma mulher livre! O teu pai saberá compreender-te! Vai!...

Completamente atónita, Pami Na Dondo, guerrilheira e professora de Flaque Injã, não queria acreditar no que ouvia do militar. Começou a caminhar no sentido do fundo da pista, de regresso ao desconhecido. Cinquenta metros à frente, sentiu na coluna um arrepio de frio e a sensação que iria receber uma rajada pelas costas, - o furriel não iria cometer uma traição - e virou-se para ao menos morrer de frente. Ajuizou mal. Apenas viu o militar de costas, caminhando em direcção ao aquartelamento.

Míriam tinha razão, Rafael nunca seria capaz de matar mulher. Só em combate ele poderia matar alguém. Teve vontade de voltar atrás correndo e pedir perdão ao militar.

Ao entrar na porta de armas, a sentinela brincou com o furriel:
- Aquela, já vai dormir com os anjinhos hoje!? Amanhã vai dar um belo pequeno-almoço aos jagudis!

O furriel, sem olhar repostou:
-Sim, aquela voltou a ser uma mulher livre!

No fundo do carreiro, Pami contornou a pista e dirigiu-se para a mata de Cufar Novo. Fez-se noite....

Época de chuvas, completamente encharcada, Pami na Dondo, vagueou perdida pelas matas de Cufar Nalu, Camaiupa Cachaque e Cabolol. Passados dois dias, num carreiro junto ao rio Quaianquebam, próximo onde Gonçalo fora abatido, um grupo de guerrilheiros, encontrou-a caída completamente exausta.

26 de Novembro de 1966, algures na mata do Cantanhez no Sul da Guiné, nascia Umberto Cassamá, filho de Pami na Dondo, e neto de Pan Na Ufna. No mesmo dia, os Lassas desembarcavam do navio Niassa no Cais de Alcântara em Lisboa.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores desta série >

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)

10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)

18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)

30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

5 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2506: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (9): Parte VIII: Os demónios étnicos (Mário Fitas)

20 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2560: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (10) - Parte IX: A prisioneira é violada...


(2) Resumos dos postes anteriores:


(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhez. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malan e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló [ou Djaló]. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da tropa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como. Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.

(viii) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã, quando esta, já esquecida dos interrogatórios, é levada de novo, em princípios de Setembro de 1965, à presença do temível triunvirato: Queba, o intérprete, o alferes Telmo (com o seu caderno), e o furriel Rafael (com a sua pistola).

Embora aterrorizado com as ameaças do Furriel Rafael (que parece fazer bluff...). Pami teme sobretudo que os Lassas façam de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando o seu marido, Malan, como guia...

Voltando de novo à sua morança-prisão, Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade... Os seus piores receios, entretanto, materializam-se, ao reconhecer o seu Malan na silhueta do negro, de corda atada ao pescoço de um negro, conduzido por um Lassa, a caminho da porta de armas, possivelmente para srevir como guia numa operação... Pelo burburinho que perpassa pelo aquartelamento, Pami toma conhecimento de que os Lassas estão em operações lá para os lados de Caboxanque... Um avião T-6 é atingido, mas o seu o piloto consegue fazer uma aterragem de emergência em Cufar...

No regresso dos Lassas ao quartel, Pami sabe, pelas conversas que ouve junto dos milícias, eles ter-se-iam esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC. Mas sobre Malan não consegue saber mais nada de concerto.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?


(viii) Caminhamos para os finais de 1965. Pami têm agora duas novas amigas, com quem conversa mais amiuadamente, as lavadeiras Miriam e Meta, esta última mulher de um velho milícia. Os Lassas já se habituaram à presença de Pami que continua a observar e registar mentalmente tudo o que se passa à sua volta. Dá conta da existência de um furriel de nome Gonçalo, que passa a vida a falar com o seu cão cufar. No final do ano, aparecem aviões a lançar toneladas de bombas sobre o Cantanhez. Os Lassas saem para uma operação em Darsalame. O Furriel Rafael é ferido e evacuado para o Hospital de Bissau. Miriam está chorosa e apreensiva. Leva Pami ao quarto do Furriel a quem lava a roupa e a quem faz favores sexuais. Pami fica intrigada com as fotografias que vasculha. As duas mulheres falam sobre as bajudas brancas do Furriel.

Agora já ninguém liga à prisioneira nem a importuna. Mas Pami fica triste certo dia, quando ouviu um soldado a ler, a outro, uma carta dos pais... A professora interroga-se sobre a condição humana e a estupidez da guerra. Com mais liberdade de movimentos e beneficiando da amizade de Miriam, Pami vai conhecendo melhor o quotidiano dos Lassas, as suas misérias e grandezas. Mas o que mais espicaçou a sua curiosidade intelectual foi uma longa conversa sobre os povos da Guiné, travada num círculo à volta do Leão de Cufar e dos seus colaboradores mais próximos. No final, fica a saber que Rafael tinha voltado do hospital…


(ix) A profesora do PAIGC esforça-se por consolidar a sua amizade a lavadeira, a jovem fula, Míriam, que está muito triste porque ninguém lhe dás notícias do seu furriel, enquanto ao mesmo tempo acalenta a ideia de o levar no Homem Grande, "para bala não entrar no corpo dele"... Entretanto, Rafael regressa do hospital. Miriam faz uma festa. A vida em Cufar continua, com a sua rotina de guerra... Um belo dia, Pami entra no quarto dos furriéis, a convite de Miriam, vê fotografias de bajudas brancas e lê uma carta da mãe de Rafael... Inevitavelmente sente saudades da sua mãe, que morreu no mato...

Entretanto o Leão de Cufar, o comandante dos Lassas, vai para Bissau, para outra missão, sendo subtituído por um "capitão gordinho, com ar assustado"... Esta mudança de liderança vai fazer mal aos Lassas, e à sua prontidão para a guerra...

Na véspera de sair para mais uma operação, os Lassas estão tensos, agressivos, violentos. O Furriel Gonçalo acaba por forçar Pami a ter relações sexuais com ele, no seu quarto, com a cumplicidade de Miriam. A resistència de Pami é inútil...

No dia seguinte, Gonçalo morre em combate.... Os Lassas estão destroçados. Como retaliação pelos seus desaires, bombardeia o Cantanhez com a sua artilharia pesada. Pami volta a temer as represálias dos Lassas. Teme pela sua vida, enquanto assiste a cenas tristes, em que os Lassas exibem comportamentos estranhos, regressivos, e continuam a morrer ou a ir para o hospital em Bissau...

__________

Nota: Dirigida ao Mário Fitas

Ao ler o blog P2593 do Luís Graça, sobre a guerra da Guiné, encontrei uma foto que é sua e está identificada como " uma enfermeira". O nome dessa enfermeira é Ivone, se pretender pôr lá o nome pode fazê-lo. (...)

Jorge Félix
ex-Alf Pil Aviador

Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. O piloto era o Coelho, diz a legenda do fotógrafo, o Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp, CCAÇ 12 (1969/71). O Humberto Reis conviveu, de muito perto, com a malta da FAP, o que lhe permitiu tirar algumas das melhores fotos aéreas que já aqui publicámos... Inclsuive ele julga conehcer o Joirge Félix, que o etrá desenrascado numa situaçãod e apuro em finasi de Julho ou princípios de Agosto de 1969, em Madinba Xaquili (1)...

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada (2, 3). O temível helicanhão. Um Alouette III, com canhão lateral de calibre 20 mm. No mato, em operações, o helicóptero era o nosso anjo da guarda, como muito bem diz o nosso camarada Paulo Raposo que estve na Op Lança Afiada, como Alf Mil Inf da CCAÇ 2405 (2). A presença do heli e sobretudo do helicanhão era sempre securizante e protectora. Até ao dia, nos primeiros meses de 1973, em que a nossa supremacia aérea foi sa ser contestada pelos foguetões terra-ar Strella... (LG).


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros. O número de evacuações, por insolação, desidratação, doença, ataque de abelhas e esgotamento foi enorme: mais de uma centena de casos (3)

Fotos: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados


1. Mensagem do novo habitante da nossa Tabanca Grande, Jorge Félix (que foi Alf Mil Pil Aviador de helicóptero Al III, Guiné , 1968/70) (1)

Caro Luís Graça.

Ontem eram 5 da madrugada , hoje são 4:50, voos noturnos que a idade nos vai permitindo ter.

Não é facil contar histórias da nossa Guiné, nunca conto, e julgo que nem quero contar, no entanto o vosso Blog é ganda ronco e merece uma colaboração. Fotos, tenho muito poucas, foram-se para os álbuns dos filhos e estão muitas perdidas. Espero que na continuidade da nossa correspondência apareçam fotos, sabe-se lá.

As recordações contadas a mais que uma voz, porque o tempo dilui muita coisa, podem vir a ser mais reais.

... No seu tempo fui a Bambadinca no dia 12 de Março de 1969. Na caderneta de voo consta o seguinte: Bs- Buba -Bambadinca (1 hora 40 minutos). Depois de estar em Bambadinca fiz TGer (transporte geral) e Tevs (transporte evacuações)- Bambadinca-Zops (zona operacional) com cinco aterragens e a duração de 1 hora e 40 minutos.

No mesmo dia mais 35 minutos outro voo de Tevs Zops-Bambadinca, duas aterragens. Mais uma hora e 20 minutos voo de TGer - Tevs Bambadinca-Mansambo-Zops, 10 aterragens. Mais um voo de 30 minutos com duas aterragens a fazer Tger e Tevs. Finalmente para terminar esse dia viagem de 15 minutos para Bafatá, onde devo ter dormido. Este dia longínquo de 12 de Março de 69 voei seis horas nos Céus da sua Bambadinca.

Virei a página da caderneta e vejo que no dia 13 foi a mesma "movimentação" , 25 aterragens e 3 horas de voo; no dia 14 Bafatá-Bambadinca-Zops duas horas e meia de voo; dia 15 mais seis horas e 15 de voo com Tevs e Tger para a Zops; no dia 16 Bambadinca- Bafatá- Zops com duas horas de voo. Voltei para Bafatá numa DO27. No dia seguinte vim para Bissau. Viagem que demorava mais ou menos 5o minutos.

Isto tenho eu aqui escrito mas não me recordo que manobras foram estas e com quem.(De momento estou com arrumações e tenho o scanner perdido, logo que acabe as obras, vou lhe enviar estas páginas da caderneta).

Será que a memória do seu Blog terá imagens e relatos destes dias ? Alguém se lembra o que aconteceu nesses dias? (3) Tenho a ideia que foi numa dessas operações que um exame de abelhas entrou por uma porta do Heli e saiu por o outro lado sem incomodar ninguém.

Não é estranho que me recorde disto e nada mais ...

Já são seis horas, vou me deitar.

Boa viagem para a terra das bolanhas, beba lá um copo por mim, dê saúdades àquele Povo.
Jorge Félix

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Notas de L.G.:

(1) Mensagem que recebi hoje, do Humberto Reis:

(...) Este nosso novo tertuliano Jorge Félix, ex-alf mil pil av, julgo que era um que andava quase sempre com botas de cano alto. O comandante da esq 123 era o cap Cubas, de alcunha o Canibalão, pois a esquadrilha era a de Os Canibais. O Cubas foi substituído em 70, se não me engano, pelo cap Morais da Silva, que chegou a ser CEMFA depois do 25 de Abril.

Se a memória não me falha, 39 anos depois, foi o Félix que me aterrou em Madina Xaquili, em Agosto de 69, e deu o alerta (tínhamos ficado sem rádio após a flagelação) de que necessitávamos de evacuações Y para os feridos graves e munições várias. Ele aterrou porque viu os nossos sinais de cá de baixo e desconfiou que tinha havido problemas (acertou).

Transportava alguns pára-quedistas que tinham nessa altura uma companhia em Galomaro, e foram eles que nos enviaram os primeiros cunhetes de munições para nos desenrascar Chegou-nos um héli 1 ou 2 horas depois com as munições e fez as evacuações dos 2 feridos graves que vieram para o HMP na Estrela.

Deve ter sido contemporâneo do ex-alf mil pil av (Al III) Solano de Almeida que eu conheci lá e o pai, comandante da TAP, conheci-o cá muito bem com o seu belo barco (gostava de andar no ar e na água).

É do tempo dele tb o ex-fur mil pil av Rui Branco que depois de vir de lá foi instrutor de voo no Aero Clube de Torres Vedras. Tb o Manuel Santana, ex-alf mil pil av que morava aqui em Sete Rios, foi do tempo dele.

Enfim tanta malta conhecida a quem perdi o rasto. Eu que tantas noites dormi lá na base e convivi com muitos deles, nunca mais soube nada. Pode ser que o Félix tenha contactos dessa malta do nosso tempo em comum, 69 e 70, e esteja disposto a repartir connosco algumas memórias daquela época. Contacta com ele nesse sentido. Ela mora aqui na zona de Lisboa? Tens um contacto telefónico? Se necessário podes dar o meu 918 776 460 (esquece o outro 919 039 672, que só me dá problemas) (...).

Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2587: Gandembel: Será que ainda estão vivos os jovens que eu evacuei, em Outubro de 1968 ? (Jorge Félix, ex Alf Mil Piloto Aviador)

(2) Vd. poste de 6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

(...) A mata do Fiofioli era uma mata bem controlada pelo inimigo. Era um tufo rodeado de bolanha por todos os lados, fazia lembrar uma ilha.

Para se desalojar o inimigo, preparou-se uma grande operação, prevista para durar oito dias, com várias companhias envolvidas. Todo o abastecimento tinha de ser feito por heli. E lá fomos mais uma vez.

Houve um dia que os helis não conseguiam descer para nos abastecer de água devido à vegetação densa. Passámos muita sede. Nesse dia tivemos de beber água de um charco lamacento. Como? Tirámos o quico, nome que dávamos ao boné, que estava todo sebento, enchemo-lo de lodo, e, por baixo, íamos apanhando a humidade às gotas. Só acredita quem por lá passou.

(...) As baixas até ao fim da operação foram muitas, umas por exaustão, outras por oportunismo. Um dos meus rapazes, que transportava o cano da bazuca, a meio da operação, quando passou por perto de um heli, meteu-se nele para ir embora, deixando no chão o tubo abandonado.

(...) De lá trouxe um livro do inimigo, que ensinava as crianças a ler. Depois foi o regresso. Mais uma penosa caminhada. Os helis andavam no seu vai vem abastecendo-nos de água e rações de combate. Tínhamos de ser nós, os oficiais, a tomar conta da água e a distribuí-la por todos igualmente. Os helis eram assaltados se não tivéssemos organizado este sistema. (...)


(3) Sobre a Op Lança Afiada (8-18 de Março de 1969, Sector L1, Bambadinca), vd. postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII: Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli (Luís Graça)

(...) Iniciada em 8 de Março de 1969 com a duração de 11 dias, a Op Lança Afiada foi uma das grandes operações que se realizaram na época, ainda no início do consulado do brigadeiro António Spínola (1968-73), um mês depois da trágica retirada de Madina do Boé.

A Op Lança Afiada envolveu cerca de 1300 homens, entre militares, milícias e carregadores. Houve cerca de duas dúzias e meia de flagelações das NT por parte dos guerrilheiros, os quais no entanto se furtaram ao contacto directo.


As populações sob controlo do IN passaram, com alguma segurança, para o outro lado do rio Corubal. Os fuzileiros não puderam ou quiseram participar nesta operação, que também não envolveu outras tropas especiais (comandos e páras). Foi, pois, uma operação só com tropa macaca, embora a nível de regimento, sendo comandada por um coronel (Hélio Felgas). Quase um terço dos efectivos eram carregadores !!!

Pensava-se que em Mina, junto ao Rio Corubal, estaria sedeado o Comando do Sector 2, da estrutura político-militar do PAIGC. Pensava-se também que havia um grande hospital, com médicos e enfermeiras... cubanos!

Do ponto de vista militar, a operação foi um bluff... Em contrapartida, houve inúmeras evacuações (n=110) dos nossos combatentes, devido a problemas de desidratação, desnutrição, esgotamento físico e stresse psicológico...


É interessante a análise do autor do relatório sobre os sucessos e os insucessos desta megaoperação de...limpeza.

Damos hoje início à publicação de alguns excertos desse relatório. Tratando-se de uma fotocópia de um documento dactilografado e possivelmente policopiado a stencil, com data de 1970, há erros e omissões que eu procurei colmatar ou corrigir, sempre que possível. Também substituímos algumas abreviaturas para tornar o texto mais legível para os paisanos ou os que não fizeram tropa nem estiveram na Guiné. L.G. (...)


9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas (Luís Graça)

Negritos, da responsabilidadfe do editor L.G.

(...) Dia D + 4 (12 de Março de 1969)

Os Dest A e B continuaram batendo a área 6 sem nada encontrarem.

Na área 4, o Dest B foi flagelado às 10H10 tendo sofrido um ferido ligeiro mas feito baixas confirmadas. Combinando a manobra com o Dest C, capturou 3 nativos e queimou diversas tabancas na área. O Dest C foi flagelado às 11H00 tendo 3 feridos ligeiros que não evacuou e fez um morto confirmado ao IN.

Quanto ao Dest E, dera a volta próximo da margem esquerda do Rio Buruntoni, queimara 2 toneladas de arroz numas casas junto ao caminho para Ponta do Inglês, capturara inúmeros animais domésticos e tivera contacto com o IN às 13H00, sofrendo um ferido que fora evacuado. Apreendera material ao IN.

O Dest F, agora reforçado por um Gr Comb do Dest G, devido às numerosas evacuações que tivera que fazer, mantinha-se emboscado a Norte da Foz do Rio Bissari. O resto do Dest G continuava emboscado a Norte do Galo Corubal. E os Dest H e I bateram a área 10, tendo a sua actuação sido prejudicada pela demora dos reabastecimentos e evacuações.

O milícia ferido em 111630 (gravemente, segundo o parecer do enfermeiro) só foi evacuado em 121315 embora os comandantes da Operação e do Agrupamento Táctico tivessem sido largados no local cerca das 9H00. Por razões desconhecidas, porém, o piloto não quis evacuar o ferido em nenhum das 2 vezes que lá foi deixar água.

Na margem oposta do Rio Corubal viam-se elementos IN que foram metralhados pelo helicanhão. A tabanca de Inchandanga Balanta ficou a arder.

Durante o incêndio de uma das tabancas entre Galo Corubal e Dando rebentaram inúmeras munições que provavelmente estavam escondidas no colmo dos tectos.

Os ataques das abelhas continuavam a mostrar-se mais perigosos que as flagelações IN pois o pessoal carregador tudo abandonava para fugir aos enxames que, nesta época, são extremamente agressivas.

Cerca das 13H15, num helicóptero insistentemente pedido, os comandantes da Operação e do Agrupamento Táctico foram transportados a Bambadinca juntamente com o milícia ferido, o qual seguiu para Bissau.

A deficiência do apoio aéreo em reabastecimentos, evacuações e recomplementos levou a fazer mensagens e a focar o assunto no RELIM [Relatório de Informações sobre a Actividade Operacional].


Dia D + 5 (13 de Março de 1969)


Os Dest A e B aproximaram-se de Tubacutá (área 5). Durante a noite anterior ouviram um motor dum barco fazendo travessias do Rio Corubal na região entre Queroane e Fiofioli. O movimento durara desde as 19H00 do dia 12 e as 4H00 do dia 13.

Os Dest C e D continuaram destruindo a enorme tabanca de Ponta Luís Dias, com uma grande escola onde havia muitos livros e cadernos. Por seu lado, o Dest C, às 7H30, destruíra cinco canoas em local com indícios de ter tido grande movimento durante a noite. Todos estes Dest apanharam e consumiram centenas de animais domésticos. Cerca das 19H30 o Dest E sofreu nova flagelação, tendo nove evacuados no dia seguinte.

Os Dest H e I detectaram e destruíram o acampamento IN de Gã Júlio, enquanto os F e G faziam o mesmo ao de Mina. Ambos estes acampamentos haviam sido recentemente abandonados. Tais como outros, ainda tinham comida quente. Este facto constou do comentário ao RELIM deste dia, no qual pedia o estabelecimento de emboscadas nocturnas na outra margem do Rio Corubal.

Neste dia houve uma reunião em Bambadinca com Sua Excia. o Comandante-Chefe e o Exmo. Comandante da Zona Aérea que disseram ao Comandamte da Operação estar a ser excessivo o esforço pedido à FA [Força Aérea]. Expondo-se como esses meios estavam a ser empregues.

Por outro lado Sua Excia. deu Directivas sobre a recolha do arroz IN. Ficou ainda estabelecido não proceder a quaisquer recompletamentos, excepto de oficiais e sargentos, a fim de aliviar os meios aéreos. (...)


9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli (Luís Graça)

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

(...) Dia D + 8 (16 de Março de 1969)

Os Dest A, B e C actuaram entre Queroane e Mangai destruindo tudo à sua passagem. O que sobrara de Mangai ficou reduzido a cinzas. Foram ainda capturados 3 nativos e feitos 2 mortos confirmados.

Os Dest F, G e I voltaram a bater a mata do Fiofioli mas agora no sentido Leste-Oeste. Inicialmente, porém, deslocaram-se por indicação do guia à zona (C8-71) e aí do lado de lá da bolanha, e portanto já fora da mata do Fiofioli, encontraram espalhado pelo mato, além de novos documentos, importante e valioso material de guerra que deu para encher mais de dois helis.
Os Dest E e H bateram também no sentido Oeste-Leste e Sul da mata e foram acabar de destruir a tabanca de Fiofioli, capturando ainda muitas munições.

Nesse dia, às 10h30 houve nova reunião em Bambadinca com Sua Excia o Comandante-Chefe. Sua Excia informou que em virtude de ter de realizar uma operação noutro Sector, determinava a suspensão do apoio aéreo em 17 [de Março] e o embarque dos Dest A, B e C em Ponta Luís Dias nesse dia com destino ao Xime. Os outros Dest do Agrupamento Sul não seriam reabastecidos em 17. Que o seriam em 18 mas compreendeu-se mal pois, segundo Sua Excia, em 17 o esforço aéreo não poderia ser mantido e só seria deixado o heli de evacuações. No entanto, os Dest do Agrupamento somavam nessa altura mais de 750 homens que seria necessário reabastecer de água e alimentação (os Dest A, B e C somavam entre 450 e 500 homens). (...).

c. Apoio aéreo

Inicialmente o apoio aéreo, no que respeita a reabastecimentos, revelou-se deficiente. O facto de não ter sido cedido o heli ao Comandante da operação, dificultou a acção de comando e influiu nos rendimentos dos meios à disposição, pois previra-se que esse heli colaboraria com o das evacuações e com o dos reabastecimentos.

Além disso, a coordenação levou o seu tempo a rodar, o que é naturalíssimo pois não tem havido muitas operações como esta.

Em terceiro lugar, os meios aéreos não deram inicialmente o rendimento que se esperava, uns por avarias, outros por serem desviados para outras missões e outros por estarem na altura das inspecções e revisões.

A situação quanto ao apoio aéreo era a seguinte em 13 de Março de 1969, às 13H45 (MSG 735/I/BCAÇ 2852):

- 1 DO estava avariado havia 2 dias;
- O outro DO só começou a trabalhar às 10H00;
- O heli trabalhava pouco mais de 1 hora, seguindo para Bissau;
- O outro heli seguira às 08H00 directo de Bafatá para Bissau (parece que podia ter ido ficar a Bissau na véspera);
- O helicanhão saira para Bissau às 10H30, só regressando no dia seguinte às 11H00;
Os helis que haviam seguido para Bissau só foram substituídos cerca das 11H00 ; só depois desta hora, portanto, se regularizou o serviço de reabastecimentos e evacuações.

No dia 13 a actividade dos meios aéreos fornecidos para a operação foi a seguinte:

- A DO levantou de Bafatá para a área 9 [ Mina – Gã Júlio ]às 07H20 com o Comandante do Agrupamento Táctico Sul, o Major Negrão da FA e o Cap Lopes que ia assumir o comando do Dest G e ficou no Xitole; à tarde foi para Bissau;

- Os 2 helis levantarm às 07H30 com o comandante da operação para Bambadinca (serviço normal);

- O helicanhão, saúdo da zona de operações em 11 de Março, às 10H30, e regressado a 12, às 11H00, fez escolta ao heli de Sexa Comandante-Chefe; não prestou serviço à operação, que se tivesse conhecimento;

- A DO chegou de Bissau, foi a Piche buscar o Coronel Neves Cardoso para uma reunião em Bambadincas onde chegou às 11H00; à tarde voltoiu a levar a Piche o mesmo oficial.

Em 14 os helis chegaram a Bambadinca às 08H30 e só aqui é que se abasteceram (pelo menos um). Podiam tê-lo feito em Bafatá. No entanto, a situação melhorou por vários motivos. Primeiro, porque se acabou com os recomplementos. Segundo, porque a selecção natural fez baixar o número de evacuações. Terceiro, porque os meios aéreos ficaram mais tempo na zona da operação. Quarto, porque a coordenação ar-terra ganhou experiência e tornou-se por isso mais eficiente. (...)

Vd. ainda o poste de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

Guiné 63/74 - P2591: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (25): Notícia da Lusa (Virgínio Briote)

Simpósio Internacional de Guiledje
Notícia de Bissau
Lusa (transcrição com a devida vénia...)
Guiné-Bissau: Antigos combatentes portugueses e guineenses evocam batalha de Guiledje
Bissau, 27 Fev (Lusa) "Combatentes das forças armadas portuguesas e do movimento de libertação da Guiné-Bissau reúnem-se durante a próxima semana neste país africano para uma evocação do conflito armado em Guiledje, no sul do país.
Entre sábado e sexta-feira da próxima semana, os participantes no Simpósio Internacional de Guiledje visitam o antigo quartel desta localidade, no sul da Guiné-Bissau, e o acampamento Osvaldo Vieira, enquanto em Bissau decorrem a partir de segunda-feira debates, distribuídos por vários painéis.
A abertura do simpósio, na segunda-feira, num hotel da capital guineense, conta com a participação do Presidente da Guiné-Bissau, João Bernardo "Nino" Vieira, que fará uma intervenção, bem como de vários embaixadores, nomeadamente o de Portugal, José Manuel Paes Moreira.
Na terça-feira, vários ex-combatentes portugueses e guineenses vão dissertar sobre o tema "Guiledje e a Guerra Colonial/Guerra de Libertação", num debate moderado por João José Monteiro, reitor da Universidade Colinas de Boé.
A problematização conceptual, a contextualização histórica e a importância historiográfica de Guiledje na guerra é o tema a debater na quarta-feira, dia 5 de Março, numa sessão moderada pelo historiador guineense Leopoldo Amado.
Os efeitos, consequências e implicações político-militares no pós-Guiledje são outros dos assuntos em discussão.
No dia seguinte, quinta-feira, os participantes do Simpósio Internacional de Guiledje vão ouvir depoimentos e testemunhos de veteranos da guerra colonial que ali combateram, num painel moderado pela ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria guineense, Isabel Buscardini.
O Simpósio Internacional de Guiledje termina na sexta-feira, dia 8 de Março, com a participação na cerimónia de encerramento do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal, João Gomes Cravinho, segundo o programa do evento.
Durante a guerra colonial na Guiné-Bissau, Guiledje foi um ponto estratégico para as duas partes em conflito e fundamental para as forças armadas do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) conseguirem ganhar a guerra, através do "Corredor de Guiledje", que lhes permitia o abastecimento de armas e alimentos."
MSE. Lusa
__________
Nota de vb: vd artigo de

Guiné 63/74 - P2590: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (24): Pepito e os oito magníficos da sua equipa (Luís Graça)


Lisboa, Campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa > 6 de Setembro de 2007 > O Pepito, entre o Nuno Rubim (à esquerda) e o Luís Graça (à direita).


Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


1. Texto do editor do blogue:


Anésia Fernandes

Por detrás de um grande líder, há sempre uma grande equipa. No caso da organização do Simpósio Internacional de Guiledje - uma ideia que nasceu no seio da ONG AD há dois anos e tal - esse líder chama-se Pepito e a equipa é constituída, pelo menos, por oito magníficos, três dos quais são mulheres: a Anésia Fernandes, a Cadidjatu Candé e a Conceição Vaz...

É justo conhecê-los, a eles e a elas, na véspera de arrancar este evento que tem despertado uma certa curiosidade, bastante interesse e até algum entusiasmo tanto em Portugal como na Guiné-Bissau.

Militarmente ou apenas simbolicamente, Guileje foi um passo de gigante no caminho para a indepência da Guiné-Bissau... No fundo, é esta mensagem que se quer passar, interna e externamente.

Cadidjatu Candé

Mas, por outro lado, acentua-se que este simpósio não pretende celebrar a derrota de ninguém, pelo contrário, representaria o triunfo da vida sobre a morte, da paz sobre a guerra, da memória colectiva sobre o esquecimento e o branqueamento da história, da ciência sobre a propaganda, da amizade sobre o ódio...

É também a afirmação (ou a reivindicação) da apropriação da história por parte dos guineenses , e de certo modo da recusa do círculo vicioso da pobreza e da dependência...

Mas ainda é cedo para fazer um balanço de uma iniciativa que está em marcha. Falemos depois dos actores que, na sombra, têm estado a organizar tudo isto...

Conceição Vaz

Comecei a contactar com o Pepito em finais de 2005. Pessoalmente conheci-o em Fevereiro de 2006, numa das suas deslocações a Lisboa. Apesar da sua agenda sempre apertada, ele foi de uma extraordinária gentileza para comigo, ao fazer questão em deslocar-se ao meu local de trabalho, na Escola Nacional de Saúde Pública, só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele ama com um coração muito grande), falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos, que era já o Projecto Guiledje (com dj, como ele gosta que se escreva), e, ainda, ter a ternura de presentear-me com o livro de contos O Cativeiro dos Bichos, do seu querido pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, um paladino do combate pela justiça e da liberdade nas terras que ele tanto amava (Portugal, Cabo Verde, Guiné-Bissau).

Gonçalo Marques

O nosso querido amigo, o saudoso Capitão José Neto (1927-2006), que entrou para a nossa tertúlia logo a seguir ao Pepito, já me tinha preparado o terreno, ao apresentá-lo nestes termos, naquela linguagem franca e chã com que ele se exprimia, no nosso blogue: " (...) Tenho a pretensão de conhecer o carácter dos homens ao fim de dois dedos de conversa. Não tão cientificamente como tu, profissional do ramo, mas, como dizia o outro, raramente me engano.

"E asseguro-te que o Pepito é do melhor que há. Talvez um pouco sonhador, porque abdica duma vida confortável que poderia gozar cá em Portugal, em troca das mil e uma tarefas que desenvolve na sua querida Guiné em prol do seu povo. É fácil entender que o seu espírito superior choca com certo primitivismo que grassa naquela região, mas não desiste e essa é a qualidade que faz dele um amigo que muito admiro e a quem dispenso a minha modestíssima colaboração sem reticências" (...).

Honório Correia

Pude comprovar, de imediato, as palavras sábias do Zé Neto, neste convívio de apenas dois anos e picos (que é necessariamente esporádico, e em grande virtual, já que só nos encontrámos, em Lisbia, três ou quatro vezes, se a memória me não falha).

No nosso primeiro encontro, em Fevereiro de 2006, eu e o Pepito falámos - como se fôssemos já velhos amigos - da então situação económica, social e política da Guiné-Bissau, dos medos e das esperanças que os guineenses sentiam em relação ao futuro, dos demónios étnicos, do perigoso retorno à pertença e à identidade étnico-linguísticas na ausência de um Estado de direito que garantisse a protecção e o respeito do indivíduo e da família...

Enfim, falámos idos terríveis acontecimentos de 1998, a guerra civil, que levaram o Pepito e a família a refugiar-se em Cabo Verde, terra de seu pai... E do doloroso regresso a Bissau, um ano e tal depois, o retorno à casa completamente pilhada, violada, destruída... Os livros, as fotografias, as memórias de uma vida...

Leopoldo Amado

O que foi espantoso foi ouvir este homem, que é um profissional do optimismo, que é um gigante com coração de ouro, contar isto sem ódio, sem ressentimentos, sem rancor, quase sem mágoa... Disse-me que tinha vindo a recuperar algumas coisas, naturalmente com emoção: uns negativos, umas cartas, uns livros... E isso era suficiente para lhe dar alento para continuar a viver e a trabalhar na sua terra e no seu continente, de que muitos fogem...

Tanto quanto me é dado observar e saber, a ONG guineense AD - Acção para o Desenvolvimento, fundada no início dos anos 90, tem-se vindo a impôr, entre as ONG que operam na Guiné-Bissau, justamente pela sua liderança, seriedade, competência, qualidade, eficácia e metodologia de participação comunitária.


Moisés Pinto

E isso é um motivo de honra para o seu fundador, a sua direcção e os seus colaboradores, mas também e sobretudo um motivo de esperança para a população que é é objecto e sujeito do trabalho da AD, através dos seus projectos nas mais diversas áreas do desenvolvimento económico, social e cultural.

A AD tem merecido, até hoje, o meu profundo respeito e admiração que, creio, é partilhado por muitos dos nossos amigos e camaradas da Guiné, que se reunem à volta deste blogue.

Temos procurado, discretamente, sem desvio dos nossos próprios objectivos como grupo e como blogue (e sem interferência na vida interna deste novo país-irmão que é a Guiné-Bissau), levar ao conhecimento dos que nos visitam e lêem o trabalho feito por esta ONG guineense, em prol da democracia, da cidadania, da participação comunitária, da protecção da natureza, da educação e formação das suas gentes, do desenvolvimento sustentado e integrado da daquela terra e daquele povo, bem como da preservação da sua identidade histórica e cultural, nos mais diversos sectores e domínios.

Tomané Camará

Reitero, por isso, mais uma vez os parabéns que aqui dá dei ao Pepito, por ter conseguido concretizar este sonho, e ganho pelo menos a nova batalha de Guiledje - ainda por cima a ele que é um homem de muitos outros combates, mas que nunca foi um combatente de armas de guerra na mão!..

À distância, só posso imaginar as dificuldades e os obstáculos que representam pôr em marcha este projecto como este: foi preciso lutar contra moinhos e marés e congregar os meios (científicos, humanos, técnicos, logísticos, financeiros) bem como o apoio político e institucional do Estado e de instituições relevantes da sociedade civil guineenses, uns e outros necessários para que este Simpósio Internacional de Guildeje: Na Rota da Independência da Guiné-Bissau venha a ser, como todos o esperamos e desejamos sinceramente, uma realização de sucesso, com contrapartidas reais, materiais e simbólicas, para o povo guineense e não apenas para as suas elites...

Há um núcledo duro de colaboradores da AD que estiveram mais directamente empenhados na organização do Simpósio. Não sei exactamente o que é que cada toca na orquestra, mas não tenho dúvidas que são todos excelentes executantes sob a batuta do maestro. Pessoalmete, só conheço o Leopoldo Amado. E estou desejoso de conhecer os restantes magníficos...

Estás de parabéns, Pepito, tu e os teus colaboradores. Boa sorte para o resto dos trabalhos! Vemo-nos amanhã!

Luís Graça & Camaradas da Guiné.

PS - Pepito, obrigado também pelas fotos que me mandaste, a meu pedido, dos teus colaboradores (na organização do Simpósio)... Se faltar alguém a culpa é tua...

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2589: Blogpoesia (9): Sangue derramado (José Manuel, Mampatá, 1972/74)

Sangue derramado
por José Manuel (1)

Puseste o pé em sítio errado,
um som violento, o pó levantado,
escondeu por algum tempo
teu corpo violentado.

sem pensar em outras minas
correram em teu socorro,
o sangue fugia de teu corpo
e o hélio não chegava.

tua cara, ainda de criança,
ficava cada vez mais pálida,
tudo, num silêncio angustiado.

apesar dos teus vinte anos,
a vida fugia-te em golfada.
porquê tanto sangue derramado?
_____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

Guiné 63/74 - P2588: Historiografia de uma guerra (3): a última emboscada do PAIGC, na ponte do Rio Jagarajá, em 15 de Maio de 1974 (José Zeferino)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 2ª CCAÇ / BCAÇ 4616 (1973/74) > Jargas, um os guias e picadores do Xitole que estavam na frente da coluna que foi emboscada no Jagarajá

Foto : © José Zeferino (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do novo membro da nossa Tabanca Grande, José Zeferino, ex-Alf Mil At Inf, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616, Xitole, 1973/74 (1)

Assunto - Comentário de Abreu dos Santos ao post 2565, de José Zeferino (2)


Caros camaradas da Guiné e tertulianos:


A propósito do referido comentário e sem querer nem procurar qualquer tipo de protagonismo ou polémica, tenho que referir o seguinte:

(i) Não tive conhecimento de qualquer espécie de coluna motorizada de Bambandica com o objectivo de contactar o PAIGC. Mas não me admiro que estivesse a ser preparada.

(ii) As únicas viaturas militares presentes no dia 15 de Maio de 1974 no Jagarajá pertenciam ao Xitole.

(iii) Para a instalação da segurança da coluna para Cambessé saíu do Xitole o 4º GC comandado pelo alferes Luís Aguiar, apeado, e procedendo à picagem até ao Jagarajá.

(iv) Um outro grupo de combate, creio que o 2º, seguia-o em dois unimogues e a alguma distância.

(v) O 3º GC, o meu , de reserva, chegou ao local praticamente no fim da emboscada.

(vi) O procedimento para lá do pontão [do Rio Jagarajá], portanto na zona da 1ª CCAÇ, de Mamsambo , não foi analisado por mim, nem o podia ser.

(vii) Quando se desencadeou a emboscada – não uma simples flagelação, como se pretende – o alferes Aguiar acciona uma mina ao procurar abrigo nas árvores, tendo ficado sem uma perna.

(viii) O comandante da milícia de Cambessé também faz detonar uma mina que lhe amputa um pé.

(ix) Logo atrás, no começo da descida para o rio, o soldado - já confirmei que não era cabo, pelas minhas notas - de transmissões Domingos Ribeiro é atingido por fogo directo, no peito, ao tentar posição que lhe permitisse contactar com o quartel. Já depois de ter estado bem abrigado do fogo inimigo.

(x) Tive conhecimento de um soldado morto na zona de Mamsambo mas não confirmei as circunstâncias. Creio que se prestava para fazer fogo de LGF.

(xi) Assinala, ainda, Abreu dos Santos um morto da 3ª CCAÇ do 4616/73. Em consequência deste ataque de 15 de Maio no Jagarajá? É que não me recordo de ter visto algum camarada da 3ª CCAÇ na zona do Xitole, nem em Mamsambo. A 3ª CCAÇ do nosso Batalhão estava posicionada em Farim e K3.

(xii) Seja : os camaradas mortos, de imediato ou não, e feridos do Xitole NÃO SALTARAM APRESSADAMENTE DAS VIATURAS PROVOCANDO A DEFLAGRAÇÃO DE MINAS.

(xiii) Uma referência ainda aos “disparos longínquos”: Os nossos batedores, guias e picadores - entre eles o Jargas , de quem envio uma foto – responderam ao fogo IN em plena picada. Mais tarde, quando da entrega do quartel ao PAIGC, e já à civil , reconheceram elementos das forças que nos tinham atacado em 15 de Maio no Jagarajá.O reconhecimento visual foi recíproco. Lembravam-se, gracejando, que tinham disparado uns contra os outros. Estavam a alguns metros uns dos outros.

(xiv) Gostaria, por fim, de ver comentários de camaradas que estiveram naquele dia lá. Pois posso ter omitido, sem querer, qualquer facto. E até desconhecer outros. Natural. Foi há 34 anos!

Assim caros editores deixo nas vossas mãos o tratamento que optarem por dar a este mail. Seja qual for, concordo.

Com os melhores agradecimentos e cumprimentos e esperando regressar ao vosso convívio com relatos mais agradáveis .

José António dos Santos Zeferino

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2565: Tabanca Grande (57): José Zeferino, Alf Mil At Inf , 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616 (Xitole, 1973/74)

"(...) No dia 15 de Maio de 1974, na zona do Rio Jagarajá, limite de actuação das forças do Xitole, fomos alvo de uma violenta emboscada que nos causou dois mortos (um alferes e um cabo de transmissões), um ferido grave (o Comandante da Milícia de Cambessé) e uns, poucos, feridos ligeiros. Procedia-se à segurança de uma minicoluna com materiais de construção para Cambessé. (...)"


(2) V d. poste de 21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2568: Historiografia de uma guerra (2): Maio de 1974, Sector L1 (Bambadinca): Os nossos quatro últimos mortos (Abreu dos Santos)

Guiné 63/74 - P2587: Gandembel: Será que ainda estão vivos os jovens que eu evacuei, em Outubro de 1968 ? (Jorge Félix, ex Alf Mil Piloto Aviador)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Foto 320 > "E nestas acções, a aeronave trazia sempre algo. Desta vez, uns cunhetes de armamento que se descarregam, enquanto o ferido espera a oportunidade de ser levado até ao Hospital Militar"

Foto e legenda: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.



1. Mensagem de um ex-camarada da Força Aérea, Jorge Félix:

Senhor Luis Graça:

A Guerra tirou-nos o sono ... Tropecei no seu Blogue. Vi pouco, muito pouco, mas chegou para me inquietar.

No post de 3 de Janeiro de 2008, num jantar de 27 de Dezembro 2007 (1), ouvi falar de Gandembel e fui ver o mapa e a minha caderneta de voo. (Fui piloto de helicópteros Al III em 68/69/70 na Guiné-Bissau). Lá encontrei que no dia 19 de Outubro de 68 fiz um TGER (transporte geral) para Gandembel. No dia 20 do mesmo mês um TEVS (tranporte evacuação). No dia 29 voltei lá para fazer outra evacuação. Não sei se lá voltei, pois por vezes marcávamos ZOPS (zona operacional) em lugar do nome da localidade.

Esta semana deve ter sido mexida, já la vão uns anitos, mas recordo-me que não era fácil a vida de Gandembel (2).

Passados estes anos todos, não tenho palavras para lhe transmitir com me encontro... eufórico?, pensativo?, saúdoso?, lamechas? com vontade de ter 20 anitos ...Será que os individuos que evacuei estão vivos ?

A hora é tardia e os anos pesam. Não sendo despropositado, gostava de dar um abraço a todos aqueles jovens que não conheço mas com quem vivi momentos que nos acompanham passados que já foram tantos anos. Mantenham viva essas memórias, eu por cá, se puder darei uma ajuda.

Voltarei , é tarde, muito tarde.

Jorge Félix (ex Alferes Miliciano Piloto Aviador)


2. Comentário de L.G.:


Jorge, aqui somos velhos camaradas e tratamo-nos todos por tu, do coronel ao soldado. É uma alegria e uma honra acolher-te na nossa Tabanca Grande. Julgo que és o primeiro piloto aviador de heli a aparecer por estas bandas. Os Melec têm aparecido, mas os pilotos andam mais arredios... Why ? Vocês também eram muito poucos, pelo que a probabilidade de dar com o nosso blogue também é bem menor... Mas, olha, foi um feliz acaso... E ainda bem que apareceste, porque nos falta a perspectiva da guerra da Guiné... by air.

Deixa-me dizer-te que tenho um amigo, o Lino Reis, natural da Lourinhã, que também foi Alf Mil Piloto Aviador, na Guiné, andou nos helis, como tu, mas julgo que mais tarde (talvez, 1970/72 ou 1971/73)... Ele depois enveredou pela carreira de piloto comercial... Hoje é advogado, ou pelo menos tirou direito. Não sei se ele costuma visitar o nosso blogue... Encontrei-o há uns tempos num 10 de Junho, em Belém, e, de vez em quando, na nossa terra... Mas, curiosamente, não temos falado muito da Guiné... Por pudor ? Não sei...

Espero, entretanto, que o Idálio Reis, que é o nosso herói de Gandembel/Balana, ele e os seus homens-toupeira, leia este poste e traga mais algum elemento novo sobre a tua a ida, em serviço, a Gandembel no já longínquo Outubro de 1968... No próximo sábado, dia 1, espero estar a caminho de Guileje, passando por Gandembel... Lembrar-me também de ti e de todos os valorosos pilotos aviadores cuja a cuja competência e coragem muitos de nós, tropa-macaca, devem a vida...
Não há nenhum camarada operacional do tempo da guerra colonial que não se lembre, ainda hoje, ao ouvir um heli nos nossos pachorrentos céus azuis, quão securizante era o som o helicanhão a rondar por cima das nossas cabeças, como um anjo da guarda protector...
Obrigado, também, pelos termos novos que aprendi contigo: TGER, TEVS, ZOPS... Conto, seguramente, contigo para não deixarmos que sejam os outros a contar a nossa história por nós... LG

__________

Notas de L.G.:


(2) Vd. a série de 11 artigos do Idáio Reis sobre a CCAÇ 2317 (Gandembel, Abril de 1968/Janeiro de 1969):


Guiné 63/74 - P2586: Historiografia da presença portuguesa em África (6): O Prof René Pélissier e o Inácio Maria Góis (Virgínio Briote)





História da Guiné (1841-1936) Vol. I

René Pélissier

Histórias de Portugal
282 Pags
€ 14,27+ IVA
Editorial Estampa
___________


René Pélissier, quem é?

Doutorado em letras, Pélissier é um especialista em história colonial Portuguesa recente. A vasta obra publicada (sete volumes em língua portuguesa) não abarca apenas Portugal, estende-se também a Espanha.

Os seus trabalhos ajudam-nos a entender as aventuras africanas e asiáticas dos povos ibéricos.

Correspondência com o Professor René Pélissier (I)


1. A propósito do lançamento do livro do Inácio Góis, o Meu Diário, recebemos em tempos uma mensagem do Professor René Pélissier:
Prezado Senhor,Sou o historiador e bibliógrafo francês da Guiné e não consigo encontrar um exemplar de uma edição de autor que a Biblioteca Nacional de Lisboa possui mas, sem dar o endereço do autor – editor.
Trata-se de Góis, Inácio Maria: O meu Diário (1). Guiné 1964-66 Companhia de Caçadores 674, s.l. s. d. Aljustrel: Mineira, 674 páginas cerca de 2006.

Seria capaz de me dizer onde posso arranjar o livro ou pelo menos como contactar o autor? Alguém no vosso blog conhece este senhor?
Muito obrigado pela sua ajuda
Melhores cumprimentos

Prof. René Pélissier



Prontamente, e com muito gosto, respondemos-lhe:

Caro Professor René Pélissier,

Já publiquei a sua mensagem no foranada, um blogue que reúne mais de 100 ex-combatentes na Guerra da Guiné, abrangendo todos os anos do conflito colonial. Estou certo que vamos encontrar o autor e, assim, satisfazer o seu pedido.

Procurei, em tempos, saber o porquê de um estrangeiro, dedicar tanto tempo da sua vida na pesquisa e publicação de tão vasta bibliografia sobre a aventura deste pequeno povo pelas terras africanas e asiáticas. E nunca consegui saber. Será que existe algum sítio onde eu possa procurar informação fidedigna sobre o Professor?

vb (Virgínio Briote)

2. Dias depois, o Prof Pélissier respondia-nos:

Prezado Senhor,

Agradeço muito a sua ajuda e li a sua mensagem no blogue.

É muito difícil ter uma relação razoavelmente completa dos livros publicados sobre a guerra colonial e sugiro que, ao seu nível, o blogue tente fazê-lo para a Guiné, dando as referências bibliográficas completas (incluindo os endereços dos editores ou autores-editores). Não falo dos artigos que abundam!~

Sou muito pouco esperto em relação a informática, mas julgo que não deve haver sítio nenhum dedicado à minha contribuição "ultramarina". O que posso dizer é que existe no Diário de Noticias de 2 de Abril 2007 uma pequena entrevista minha que talvez possa responder a algumas das suas perguntas.Como sabe a Editorial Estampa já publicou sete volumes da minha autoria sobre a história mas é apenas uma pequena parte do que publiquei em francês sobre o assunto. A tradução custa muito e os leitores são poucos.
Tenho as maiores dificuldades em encontrar uma revista ou um jornal português sério que aceite gastar dinheiro para publicar crónicas bibliográficas internacionais, trimestrais sobre o tema "ultramarino".~

Agora estou á procura de um novo media, visto que a minha colaboração com uma revista portuguesa conceituada acaba no fim de 2007. Na Biblioteca Nacional de Lisboa pode ver o meu último livro de bibliografia (1712 resenhas!): intitula-se Angola-Guinées-Mozambique..., 748 páginas e verá o que pretendo fazer no domínio da informação.
Vamos ver se vou continuar ou desistir: sem media e interesse do público não vale a pena dedicar-se a tanto trabalho. E como sou um especialista independente e não partidário é raro que " je plaise aux Grecs et aux Troyens".

Muito obrigado.
René Pélissier


3. Transcrição (com a devida vénia) de extractos de uma pequena entrevista que o Professor Pélissier deu a Leonor Figueiredo, do DN.

O Prof Pélissier no DN em 02-04-07

O francês com uma paixão pela África portuguesa




O historiador francês René Pélissier apaixonou se pela nossa história colonial. E, apesar de não o dizer, adivinha-se que se enamorou do País e dos portugueses "mas de uma forma lúcida". Nesta relação ainda mal esclarecida que dura desde a adolescência, ainda não parou de escrever sobre o nosso passado e queixa-se de não ser reconhecido por Portugal. Em França, os adeptos do tema também não devem ser muitos. Apresenta-se René Pélissier, um homem só.

No livro que acaba de lançar, previne que não se trata de "libelo nem acusação" a Portugal. Mas isso esperar-se-ia de um historiador?
Só o historiador ideal é imparcial. A objectividade é uma fábula prisioneira de preconceitos, ideologias, antipatias e nacionalismo. Mas para a história colonial portuguesa basta consultar os autores de língua inglesa. Há séculos que a maior parte a denuncia como negreira, arcaica, brutal e incapaz: a quinta-essência do ultra colonialismo sob os trópicos.

É a sua grande obra, fruto de 40 anos de pesquisa, muito mais do que a compilação de livros anteriores?

Certamente. É o meu testamento historiográfico em honra dos portugueses, se quiserem abrir os olhos sobre a sua história colonial recente. Nos livros anteriores, sobre a conquista de Angola, Moçambique, Guiné e Timor, fiz uma análise profunda do avanço da fronteira colonial. Mas faltava a visão global e o estudo da progressão da implantação no império. Neste livro para o grande público, não posso pormenorizar, o leitor ficaria perdido no formigueiro cronológico de 490 operações militares. É uma síntese documentada, em que demonstro que não houve colonização sem primeiro haver soldados, na África tropical continental e Timor.

Por isso defende que a colonização começa no séc. XX, e não no XV.

Quis dinamitar o mito dos "cinco séculos de colonização/exploração". Como falar de "cinco séculos" em que o colonizador não aparece, senão na viragem do século XIX para o XX?


Para destruir este mito que tanto mal fez a Portugal, nada melhor do que o estudo da sua história militar colonial desde 1800. É uma evidência que para haver colonização é preciso haver colonos. Ora, as estatísticas oficiais, apesar de frágeis, mostram que a esmagadora maioria dos colonos estavam concentrados em Luanda. Mesmo em 1900 – admitamos que havia dez mil europeus –, o povoamento branco era minúsculo.

Durante décadas crescerá muito lentamente. Penso mesmo que, em 1900, metade dos futuros angolanos, no mínimo, nunca tinha visto um único branco.

Sei que a África portuguesa nunca foi o Jardim do Éden, mas foi pior nas outras colónias tropicais europeias. A diferença é que as suas metrópoles nunca reivindicaram nem cinco, nem quatro, nem três (à excepção da África do Sul) séculos de colonização.

Estudou a política colonial de vários regimes. Há grandes diferenças entre monárquicos, republicanos, a ditadura militar e Salazar?

Não houve grandes diferenças entre a monarquia e a I República no plano militar, à excepção talvez de os oficiais da república não hesitarem em empregar métodos radicais.


Salazar herda uma situação militar "calma", o que convém à sua visão contabilística: o império deve não só bajular o orgulho nacional da metrópole, como também contribuir para enriquecê-la.

Em 1930 e 1940, era a ambição admitida por todos os colonizadores, europeus e japoneses. Salazar trouxe continuidade na gestão governamental e evitou a perda de parte ou de todo o seu império para os aliados. Mas, prisioneiro do mito da unicidade do caso português, esclerosou-se, acreditando poder escapar, só, ao desaparecimento dos impérios ultramarinos, mais ricos e desenvolvidos do que o seu.

Vítima do mito dos cinco séculos, não quis ver as realidades e preparar o futuro. A sua obstinação transformou-se em pesadelo para a maioria dos portugueses, de 1961 a 1975. E bem depois.

Chamou às colónias "antídoto" psicológico para "a falta de confiança, pessimismo e complexo de inferioridade dos portugueses". Continua a pensar assim?


Não. Desde 1974-75 parece que o português médio retomou confiança no seu futuro europeu.

Mas escreveu em Explorar (1979) que os portugueses tinham nove espelhos para se verem na História.

Agora terão menos, talvez, mas a fórmula de Eduardo Lourenço continua pertinente – "Portugal é um país que nunca soube viver a sua história, senão como História Santa". Ainda há trabalho a fazer para os "jovens" historiadores ou jornalistas lusófonos. A luta continua!

Acusou alguns jornalistas portugueses de terem feito propaganda. Quando? Como bibliógrafo, chega à mesma conclusão ao ler os muitos livros que têm sido publicados?

Sim, quando os PALOP ainda eram colónias do Estado Novo e mesmo depois, nos anos das ilusões, após 1974.


Agora é diferente, com a chegada de gerações de grandes profissionais. Consegui – e às vezes foi difícil, pois certos editores portugueses não sabem o que é um serviço de imprensa ou julgam que a minha opinião não vale o custo de envio – os livros de reportagem ou de análise que estes novos jornalistas publicam sobre os PALOP e Timor.

Alguns são notáveis e fazem um trabalho de historiador, o que escrevi, preto no branco, nas minhas crónicas bibliográficas internacionais na Análise Social.

A paixão por África começa aos 12 anos, ao ler a revista Science et Voyages. E o caso português?

É uma história de amor. Fiquei encantado com o Terceiro Império. O desconhecido fascina-me. Tive vocação de explorador tardia, mas obstinada! Interrogava-me: como conseguiram negligenciar os portugueses cultos, míopes pelos "fumos da Índia", a história feita pelos parentes há duas ou três gerações? Estava tão apaixonado pela mina de ouro que é a biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa que cheguei a pensar naturalizar-me português para entrar neste continente misterioso.
Porque não se naturalizou?
Por três razões: a primeira é que prefiro Fernão Mendes Pinto à poesia épica; a segunda, é que com o fim dos impérios coloniais, se tivesse exercido o meu espírito crítico como historiador não partidário, teria tido, como português, sérios problemas com a PIDE; a terceira é que fui para o terreno africano confrontar os livros com as realidades.


E como não gosto dos mitos, fiquei estrangeiro, mas sempre grande consumidor de publicações portuguesas – uma droga dura para mim, pois moro em França numa biblioteca ultramarina! -, mas livre de me exprimir, sem ser acusado de ser traidor à "nova" pátria.
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(1) Por vezes, as nossas lágrimas foram difíceis de conter nas matas infernais da Guiné-Bissau, entre a região norte de Bafatá e nordeste de Farim, junto à fronteira do Senegal, onde a CCaç 674 se encontrava acantonada na pequena povoação de Fajonquito. (...).

O meu Diário, Guiné - 1964/1966. Companhia de Caçadores 674, de Inácio Maria Góis. Edição do Autor. Gráfica Mineira, Ltd.- Aljustrel. Abril 2006.
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Notas de vb:


1. vd artigos de René Pelissier, Análise Social, vol. XXXVIII (166)

Militares, políticos e outros mágicos

Esta nota de leituras refere-se a numerosos livros sobre a guerra, nomeadamente a guerra colonial portuguesa (1961-1974). Um número que poderia ter sido muito maior se os editores nos tivessem facultado todos os títulos pedidos. É que alguns parecem ter dificuldade em fornecê-los, ou consideram que os serviços de imprensa lhes saem demasiado caros, ou então trabalham com pessoal negligente. Em suma, não se trata, portanto, de uma selecção baseada em escolhas políticas ou simpatias pessoais do autor. Uma bibliografia só pode falar daquilo que se tem à mão. É, todavia, manifesto um crescimento significativo das memórias de antigos combatentes portugueses, aliás bastante mais significativo do que a produção suscitada pela conquista colonial dos séculos XIX e XX. Tudo indica que, nas décadas futuras, esse fluxo aumentará exponencialmente, devido às centenas de milhares de portugueses letrados que foram mobilizados para a defesa do império, devido à diversidade das suas experiências e ao traumatismo gerado por uma guerra que a grande maioria odiava, quer a considerasse inútil, contrária aos seus projectos e desumana, quer tivesse a sensação de ir arriscar a sua vida por interesses políticos e económicos com que não se identificava. As guerras de descolonização deixam geralmente uma lembrança amarga no espírito dos europeus que as travam. Os portugueses não fogem, evidentemente, a essa regra e estamos longe do triunfalismo das «belas campanhas coloniais» à Mouzinho de Albuquerque, Alves Roçadas, João de Azevedo Coutinho e outros grandes ou pequenos heróis de há três ou quatro gerações. Não há, nem nunca haverá, heróis nas guerras que vamos visitar. Apenas vítimas de ambos os lados, pese embora aos propagandistas e historiadores nacionalistas.De qualquer forma, na guerra de 1961-1974, uma guerra esfarelada e sempre recomeçada, sem batalhas decisivas, sem oficiais triunfantes, sem desafio patriótico, não há quem consiga citar um único nome sonante de entre a monotonia dos milhares de oficiais esgotados no mato ou prudentemente refugiados num qualquer gabinete com ar condicionado.

Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)

1. Texto enviado ontem, através do endereço de correio electrónico Quinta Srª da Graça. Vim a descobrir, através de pesquisa na Net, que a Quinta da Senhora da Graça, com sede em Senhora da Graça, 5030-429 Lobrigos (S. J. Baptista), Santa Marta de Penaguião, distrito de Vila Real, Telef. 254 811 609, era de um camarada nosso, o José Manuel Lopes, autor deste poema.


Viagem sem regresso

não regressar
será o esquecimento
será o vazio
a dor
dor
que já se não sente
o não poder ver a gente
que nos abria o sorriso
e a vontade de amar.

josema
Guiné 1972


2. De facto, confirmei, através de um simples contacto telefónico, que o josema, que assina o poema, era o José Manuel Lopes, produtor de conhecidos e excelentes vinhos DOC, do Douro, e que tem também um turismo de habitação, na sua Quinta da Senhora da Graça. À conversa com ele, disse-me, no essencial o seguinte:

(i) teve conhecimento do nosso blogue, porque viu o programa Câmara Clara, da RTP Dois, da Paula Moura Pinheiro, edição de 24 de Fevereiro de 2004, que foi dedicado à literatura sobre a guerra colonial, e teve dois convidados em estúdio, os escritores Lídia Jorge (autor da Costa dos Murmúrios...) e Carlos Matos Gomes (que assina Carlos Vale Ferraz, o autor de Soldadó); nessa edição, o fundador e editor deste blogue foi entrevistado; o nosso blogue foi amplamente divulgado; o programa passa também na RTP África e na RTP Internacional;

(ii) ficou muito sensibilizado e até emocionado, e foi visitar o blogue de que passou a ser visita diária;

(iii) foi Fur Mil Inf Armas Pesadas, com o curso de Op Esp e a especialidade de Minas e Armadilhas;

(iv) a sua unidade era a CART 6250; esteve sempre em Mampatá, entre 1972 e 1974;

(v) fez segurança aos trabalhos da nova estrada Quebo - Mampatá - Salancaur, que ficou asfaltada antes do 25 de Abril... Tratava-se de uma obra que ia ao encontro da estratégia do Spínola, a da contra-penetração nas regiões libertadas do PAIGC. A obra parou com o 25 de Abril... O novo troço deveria ter uns 30 quilómetros...

(vi) O José Manuel foi inesperadamente mobilizado para a Guiné, já com 18 meses de tropa... Juntou-e à malta da CART 6250, que era constituída por gente do interior (do Alentejo, das Beiras, do norte)... A unidade mobilizadora foi o regimento de Vila Nova de Gaia;

(vii) Depois de Bolama, seguiram em LDG para Buba. onde tuveram logo o baptismod e fogo, como era da "parxe do PAIGC";

(viii) ele e a companhia dele seguiram os acontecimentos de Guileje, e saíram de Mampatá para fazer segurança à CCAV 8530, restantes forças e população civil, que andaram perdidos, nesse perigoso campo de minas, que era todo o corredor de Guileje, montadas umas pelo PAIGC e outras pelas NT; aliás, a sua CART 625o foi uma das unidades que mais minas levantou, durante a guerra e no final da guerra; recorda-se que se pagava mil escudos por cada mina levantada...

(ix) tem histórias fantásticas, como a de um camarada nosso, natural da Régua, que foi encontrado inaninado, desidatrado, doente, no Rio Corubal, numa piroga à deriva, depois de ter fugido de uma zona controlada do PAIGC... Teria sido um dos sobreviventes do desastre do Cheche, na travessia do Rio Corubal, em 6 de Fevereiro de 1969, na sequência da evacuação de Madina do Boé (Oficialmenet não houve sobreviventes!) ... Levado para Conacri, mostrou-se colaborante com o PAIGC e levado para uma zona libertada... Razão por que não estaria em Conacri, na prisão do PAIGC, em 22 de Novembro de 1970, quando os 26 portugueses foram libertados, na sequência da Op Mar Verde... Como tinha liberdade de movimentos, terá decidido mais tarde (em data que o José Manuel não precisou), procurar as NT, seguindo ao longo do Rio Corubal... Foi nessa altura que o encontraram... "Devia ter nais oito anos do que nós... Vive hoje na Régua, e com muitas dificuldades"... Pus a hipótese de ter sido companheiro de infortúnio do nosso morto-vivo do Quirafo, o António da Silva Baptista, que já nos contou que houve, no seu tempo de cativeiro, no Boé, um português que fugiu, seguindo o curso do Corubal... Uma história estranha e misteriosa, que fica por confirmar...

(x) há outras histórias, que vão enriquecer o nosso blogue e a nossa memória, incluindo o período do pós-25 de Abril, em que o José Manuel teve contactos frequentes e intensos com a malta do PAIGC (cujos graduados "andavam sempre com livros e cadernos debaixo do braço e tinham muito nível"); soube do 25 de Abril, quando vinha de uma operação no mato e viu os restantes camaradas, no heliporto de Mampatá, agitadíssimos, muito eufóricos, com os soldados a gritar: "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou!"... Isto passou-se a 26 de Abril. A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, que na vida civil era rádio-amador...

(xi) durante a sua comissão , ele próprio costumava andar com um lápis e um caderninho n0 bolso, onde nomeadamente ia escrevendo os seus poemas; tem muitas coisas dessa época, que nunca publicou nem mostrou a ninguém, além de inúmera documentação fotográfica; escreveu versos que eram acompanhados com músicas conhecidas da época, de autores contestatários como o Zeca Afonso; vai-me mandar o Cancioneiro de Mampatá (foi assim que eu logo o baptizei...); inclusive, prontifficou-se a mandar-me um poema por dia...

(xi) durante anos não falou da guerra colonial com ninguém, só mais recentemente foi ao convívio anual do pessoal da CART 6250;

(xii) esteve sempre em Mampatá onde a tropa vivia misturado com a população (maioritariamente, futas-fula), razão por que nunca foram atacados; não tinham artilharia, só mais tarde é que passaram a ter obus 14, que dava apoio às operações de segurança de construção da estrada Quebo-Mampatá-Salancaur... Também aqui, em Salancaur, abriram um destacamento (arame farpado, valas e tendas...);

(xiiii) fala da Guiné com a mesma paixão com que fala do seu Douro (donde nunca mais saiu, desde que regressou da Guiné, em Agosto de 1974)...

Passámos rapidamente a tratar-nos por tu, como velhos camaradas. Convidei-o a integrar a nossa Tabanca Grande, o que aceitou com visível regozijo... Quando puder entregará as fotos da praxe. Fica à espera do filho, para lhe digitalizar as fitos (Ele é um jovem enólogo e está neste momento fazer uma estágio na Austrália).

Convidei-o a assitir ao lançamento do livro do Beja Santos, no dia 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia de Lisboa... Vai ver se pode. Costuma vir a Lisboa, todos os meses, para fazer entregas de vinhos aos seus clientes.

José Manuel, estás apresentado. Estás em casa, entre amigos e camaradas! Sê bem vindo! Como vês, não há viagens sem regresso... A não ser as da morte. E por falarem regresso, tens histórias fabulosas de Mampatá, escritas por um velhinho, que por lá passou, um anos antes de ti, o nosso camarada Zé Teixeira (2)...L.G.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série > 12 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2259: Blogpoesia (7): Nas terras de Darsalam, no Cantanhez, adormeceste, para sempre, como herói, meu querido Sasso (J.L. Mendes Gomes)

(2) Vd. poste de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi