sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3386: Operação Macaréu à vista - II Parte (Beja Santos) (50): Fim: Acalma-te, Mário, a guerra acabou

(À esquerda:) Capa do livro Guiné Diário da Guiné: 1969-1970: O Tigre Vadio, de Mário Beja Santos, editado por Temas & Debates e Círculo de Leitores, Lisboa, 2008, a ser lançado no próximo dia 11 de Novembro, no Museu da Farmácia, em Lisboa (À direita: Convite)


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados



Nota dos editores:

Este é o 50º (e último) episódio da série Operação Macaréu à Vista, Parte II, que cobre o período de Setembro de 2007 até agora. Em termos cronológicos, corresponde ao segundo ano da comissão do Beja Santos, à frente do Pel Caç Nat 52, ou seja, desde Agosto de 1969 até ao fim (Agosto de 1970).

Durante 50 semanas, o nosso camarada e amigo Beja Santos mandou-nos, religiosa, metódica e disciplinadamente, os 50 episódios desta narrativa, que agora deu origem ao seu segundo livro, Diário da Guiné: 1969-1970: o Tigre Vadio.

Tigre de Missirá era a alcunha ou o nome de guerra do nosso camarada. Tigre Vadio foi o nome de código da operação que, em Março de 1970, o comando do sector L1 da Zona Leste planeou e mandou executar às suas forças operacionais, na região do Cuor, a norte do Rio Geba Estreito. Uma operação dramática (e sangrenta) que levou o Pel Caça Nat 52, a CCAÇ 12 e outras forças a território controlado pelo PAIGC, a enfrentar o PAIGC, em sua casa, na região de Madina / Belel... (Mais os seus aliados: as abelhas, a sede, o clima, o terreno...).

Pelo meio, ficam muitas outras peripécias, venturas e desventuras de um oficial miliciano, comandante de um pelotão de caçadores nativos. Um jovem, melómano, culto e crente, que vem da militância JUC - Juventude Universitária Católica, carismático, determinado, corajoso, perfeccionista, e com o seu quê de aristocrático, que trata os seus homens por você, e que se corresponde com o poeta Ruy Cinatti e o comandante Teixeira da Mota...

Graças aos aerogramas que escrevia diariamente à sua noiva e depois esposa, Cristina Allen, aos seus apontamentos do seu caderno diário, à memória fotográfica de elefante tanto sua como de alguns dos seus homens que vivem hoje em Portugal (com destaque para o Queba), foi possível, ao Mário, terminar com sucesso, alivío e sentido do dever cumprido esta tarefa, quase sobre-humana, de pôr em linha (e depois em papel) as memórias de uma riquíssima experiència humana e militar no TO da Guiné.

O nosso blogue, que o coaptou e acolheu, em meados de 2006 - e lhe estragou os planos de "escrever as suas memórias da Guiné" após a reforma, aos 67 anos... - aproveita, simbolicamente, este momento para o saudar e para lhe agradecer. Ele foi, nestes últimos dois anos, um bloguista militante, indefectível, com presença semanal, nas nossas páginas. E assim continuará, esperamo-lo bem. Quem conhece(u) o Mário e com ele convive(u), sabe que não é homem para "capinar sentado"... Ideias e obra não lhe faltam.

Por tudo isto, ele merece a nossa singela homenagem, o nosso reconhecimento público, e sobretudo a expressão da nossa amizade e camaradagem. Dia 11 de Novembro próximo, no lançamento do Tigre Vadio, esperamos encher o Museu da Farmácia com a nossa presença, com a presença da malta da Tabanca Grande, com a presença de todos os amigos e camaradas da Guiné.

Um Alfa Bravo, Tigre!

A equipa editorial do blogue,
Luís Graça
Carlos Vinhal
Virgínio Briote


Operação Macaréu à vista - II Parte > Episódio L (*)


ACALMA-TE, MÁRIO, A GUERRA ACABOU
por Beja Santos


(i) Uma marcha processional a caminho do Carvalho Araújo

Só muitos anos mais tarde é que soube como se espalhara a notícia. O Domingos Silva, já a viver em Bissau, telefonara à D. Leontina, nos CTT de Bambadinca, para deixar uma mensagem a um primo em Bricama, pedira as novidades, soubera que eu tinha partido há dois dias para Bissau. No mercado do Bandim encontrou o Zé Pereira que por sua vez encontrou Quebá Sissé em Brá que por sua vez veio ao hospital de Bissau e encontrou no Pidjiquiti o José Jamanca. O telefone árabe ficou imparável, todos aqueles com quem combati no Cuor e nos outros regulados exigiram “partir mantenha”. De modo que, preparava-me eu para ir buscar as duas volumosas caixas em madeira ao Depósito de Adidos, quando à saída do Vaticano III tive a surpresa de encontrar um rancho de amigos prontos para me ajudar.

Aproveitámos uma boleia naquela manhã ensolarada na ruidosa estrada de Santa Luzia, a minha ilustre comitiva fazia catadupas de perguntas (o que vais fazer em Lisboa, onde vais viver, vais ficar longe da família, quando vais voltar à Guiné, se não te importas, levas um bilhete para mandar camisa, calça, sapato, equipamento de futebol, mandas fotografia com senhora e toda a família...). Nisto, o Domingos Silva desceu ao concreto e perguntou se eu não levava arte africana para Lisboa. Acordei para a realidade dos presentes, mesmo a tinir com falta de dinheiro. Assentou-se que íamos primeiro a Brá carregar as caixas, dali seguiríamos para o cais, já com a indicação do local onde ficariam no Carvalho Araújo. No regresso, o Domingos e o José Jamanca iriam comigo à Missão Católica para fazer as compras das ditas lembranças. Foi um alegre cortejo, o mercado de Bandim estava no auge do mercadejar, ouviam-se todas as línguas da Guiné, encontravam-se todos os trajos, era um festival de cor, de cheiros e sons.

À entrada do cais, na posse de uma guia de marcha, subimos a escada até ao portaló, pareciam urnas em madeira natural, avançámos para o convés onde recebi instruções da cabine onde ia ficar e o local onde podíamos depositar as caixas. É neste emaranhado de encontros e desencontros, de gente que entra e sai, que dei de frente com o José Alberto e o Tomé que não via desde que saímos de Mafra, em Outubro de 1967. Abraço puxa abraço acordámos ficar os três na mesma cabine. Saí daquele bulício para regressar ao de Bissau, não tinha palavras para agradecer a todos os meus antigos soldados a surpresa do encontro, o imprevisto de tão linda despedida.

N/M Carvalho Araújo da Companhia Insulana de Navegação


Na Missão Católica fui timidamente escolhendo gazelas, pássaros, árvores da vida, guerreiros, sempre a verificar os escassos escudos e logo a seguir assisti a um vibrante regateio em que o Domingos me aliviou na carteira e me sobrecarregou na consciência, na verdade eu estava a poupar à custa da obra dos missionários. Mais abraços e marquei a despedida para as 11h da manhã do dia seguinte, exactamente uma hora antes do Carvalho Araújo se lançar pelo Canal do Geba em direcção ao Atlântico. O Domingos aproveitou para me lembrar que era cristão e que gostaria muito de ficar com uma lembrança minha, talvez aquela cruz que eu tinha num fio ao pescoço, talvez o meu livro de orações, roupa não valia a pena era muito notória a nossa diferença de peso. Tudo isto me enternecia, a tudo procurava dizer que sim. A desoras fui almoçar, mas o estado de espírito de quem vivia sem obrigações era superior às minhas forças. A humidade da época das chuvas era de cortar à faca, refugiei-me no sombreado da messe de oficiais onde acabei de ler, depois de dormitar, Viver com os outros, de Isabel da Nóbrega, consagrado com o Prémio Camilo Castelo Branco.

É uma prosa original, estruturada em diálogos, pensamentos, declarações e contrapontos. Trata-se de uma reunião mundana, é o culminar de um jantar com o reencontro de amigos e familiares dos anfitriões. Está ali muito da sensibilidade da classe média portuguesa do início dos anos 60. Não há uma só referência à guerra de África, os casais falam dos pais e dos filhos, de amizades desorientadas, no torvelinho dos silêncios há quem recorde traições, infidelidades, doenças mais ou menos graves, os espíritos liberais confrontam-se com os tradicionalistas, estes nitidamente cautelosos e defensivos. Alguém, dentro da reunião mundana, propõe um jogo, algo como o resumo de um romance que todos gostariam de escrever, não assinado, que depois seria lido em voz alta, competindo à assembleia (os participantes da reunião) adivinhar o autor. É um pouco como o teatro dentro do teatro, os diálogos entram em conflito e, paradoxalmente, em unidade, com o que cada um pensa interiormente. Assim se desfia a trama do romance em que múltiplos contadores colam as suas histórias que vencem as solidões pois que a apoteose de todas estas reuniões é descobrir sempre a alegria de nunca estarmos sós. Estão aqui bem vincados os caracteres destes grupos sociais, os seus gostos e as suas preferências, vemos timidamente o discurso da emancipação da mulher, o rompimento com o país imóvel, as contradições de uma classe que aspira ao desenvolvimento e à liberdade de espírito. Leio, volto atrás, identifico pessoas, atitudes, ambientes. Conheço um pouco deste país de que fala Isabel da Nóbrega, rendo-me ao encadeado da psicologia das personagens, à conversação e ao sonho, à afirmação categórica e à dúvida escondida. Um belo romance.

Capa de João Câmara Leme, Portugália Editora, 1965. Trata-se de um jantar de gente das classes médias, celebra-se o restabelecimento do anfitrião, nessa noite de Verão um conjunto de familiares e amigos vai discorrer sobre os temas que os preocupam: o crescimento dos filhos, os preconceitos sociais, os divórcios, as leituras, as recordações da juventude, entre outros. É um vasto encadeado de diálogos a que se misturam reflexões íntimas de quem escuta e sentencia. Está ali mais ou menos tudo o que pensava uma classe a liberalizar-se, obrigando os tradicionalistas a refugiarem-se em esquemas lógicos defensivos. Uma classe média que não vivia a guerra em África e que praticamente vivia à margem do regime de Salazar. Obra original, subtil e cruel com a solidão daqueles que se alimentam a viver com os outros.

(ii) O momento da partida

Encontramo-nos à porta da cervejaria Mário, bebemos todos Fanta, a todos prometi escrever em breve. Ando, aliás, com o meu caderninho viajante, espero esta tarde começar a listar as minhas actividades assim que chegar a Lisboa. De novo em cortejo ou roda-viva avançamos para o cais, oiço exclamações atrás de mim, é Jolá Indjai que chega, sabia que ele tinha voltado à Guiné tratado da sua tuberculose, vem com um sorriso doce agradecer a hospitalidade dos meus familiares. É nesse momento que não sustenho as lágrimas, vejo o espanto e a confusão no rosto dos meus amigos, a situação resolve-se quando a sirene nos chama para bordo. No convés aceno a todos e junto-me aos oficiais que vão ouvir uma prelecção feita por um oficial general que agradece os serviços que prestámos à Pátria. A todos cumprimenta e abandona o salão prontamente cercado pelos seus acompanhantes. É o tumulto da despedida, agora tenho tempo para observar a excitação dos contingentes cabo-verdianos e açorianos com quem vou viajar. Sente-se a serpentina de calor abafado pelo Canal do Geba fora, há quem identifique Prabis, depois Ponta Prainha e depois Ponta Biombo. A caminho do lusco-fusco temos Caió à direita e a ilha Caravela à esquerda. Depois, entramos no negrume do Atlântico.

Antes, durante e a seguir ao almoço aproveitei para saudar gente que não via há anos, depois escrevi e li. Ficou registado no meu caderninho viajante: dar prioridade à visita à mãe do Carlos Sampaio, visitar o Sr. Raimundo Rodrigues Oliveira que me mandava pelo Natal broas pagando bem caro os portes de correio, agora está tolhido numa cadeira de rodas, ir buscar o Fodé, o Paulo e o Alcino (?) e passearmos por Lisboa.
Estou a ler Aquele dia inesquecível, de James Hilton, de quem já tinha lido Adeus Mr. Chips e o singular romance policial Acidente ou Crime?. Estou rendido à subtileza da história e aos contrastes de uma relação conjugal condenada à ruptura. Naquele dia inesquecível, 1 de Setembro de 1921, George Boswell recebe a visita de Lorde Winslow, que visita Browdley, a cidade industrial onde George trabalha cheio de empenho para a melhoria das condições de vida dos seus munícipes. Lorde Winslow pede-lhe que o acompanhe numa viagem ao Continente, poios o seu filho, Jeff, vive uma relação amorosa, ruinosa, com Lívia a mulher de George Boswell. Sigo empolgado o drama deste conselheiro municipal e director de jornal regional. Somos levados ao passado, a outro drama, o da família Channing, a família de Lívia, depois à paixão de George por Lívia, a morte do filho do casal, os graves desencontros.
Interrompo a leitura, regresso ao convívio, ao jogo das cartas, ao jantar e às conversas sem rumo nem destino. Alguém, na mesa do comandante, informa que a água do banho está racionada, temos sensivelmente trinta minutos entre as 6h45 e as 7h15 para usarmos o chuveiro. Habituados que estamos todos às soluções práticas, entendi-me prontamente com o José Alberto e o Tomé: punha o despertador para as 6h45, saía da cabine para o chuveiro, minutos depois regressaria, seria a vez do José Alberto, a seguir a este tomaria duche o Tomé. Ora, o que se passou no primeiro, no segundo e no terceiro dia? Ainda a limpar-me chamava o José Alberto, quando este regressava o Tomé informava que não precisava de tomar banho, ficava para a manhã seguinte.
Passados estes três dias, não me contive e perguntei ao José Alberto: "O que se passa com o Tomé, está chateado, vai tomar banho a outro sítio, quer que se comece por ele, és capaz de me explicar?”. Surpreendido pela minha curiosidade, o José Alberto deixou-me de boca aberta: “Pá, o Tomé nunca tomou banho na Guiné, deves ser o único que não sabe. Mesmo quando jogava futebol ou vinha das operações, molhava-se com um pano humedecido, não me perguntes porque é que ele não cheira mal. O espantoso é que faz a barba todos os dias, lava a cabeça e põe brilhantina”.
Vivi doze dias numa cabine com o Tomé e a verdade é que não havia maus cheiros. Às vezes olhava-o de lado, a ver se ele se coçava ou a sujidade aparecia na pele ou caía no chão. Era a primeira vez que eu ouvia falar num ser humano, branco, preto ou mulato, totalmente incompatibilizado com o banho durante dois anos consecutivos naquela tórrida África Ocidental.

Tradução de Leonel Vallandro, capa de Bernardo Marques, Colecção Dois Mundos, Livros do Brasil. É um romance muito belo, de estrutura formal, uma interessante análise de uma cidade industrial entre o século XIX e o fim da segunda guerra mundial. Iremos simpatizar do princípio ao fim com George Boswell, a sua moral de dedicação às pessoas e às obras, sentir elevado apreço pelos sentimentos de Lívia, sua mulher, até percebermos que se transformou num autómato da determinação. Aquele dia inesquecível ocorreu a 1 de Setembro de 1921, quando George Boswell soube que Lívia partira para se juntar a Jeff, um jovem diplomata filho de Lorde Winslow. O mundo de George mudou, centrou-se no seu serviço público a Browdley e ao trabalho autárquico. No final, Lívia vai reaparecer mas George toma partido pelas decisões do filho, que a mãe pretende oprimir. James Hilton, naquele início dos anos 70 em que eu o estava a ler, caminhava para o esquecimento. No entanto, este livro, +por si só comprova que estamos perante um grande escritor.




(iii) Do Sal para São Vicente, de São Vicente para Ponta Delgada

Estremunhado, acordo naquele amanhecer barulhento. Fui ver à escotilha, a aridez do Sal está diante de nós, a gritaria da tropa cabo-verdiana é ensurdecedora quando descem para o batelão que os conduz a terra firme, dizem-nos adeus mas só olham para a sua ilha. E seguimos sem nada à vista na linha do horizonte até que vários pontos minúsculos nos dão conta que contornamos um arquipélago, o Carvalho Araújo avança para a baía do Porto Grande em Mindelo. Tivemos licença para sair, Mindelo tem um belo património, em primeiro lugar alugámos táxis e partimos para a praia de Salamansa, por vinte escudos cada um teve uma barrigada de marisco, depois regressámos ao Mindelo que impressiona pela sua arquitectura colonial, é uma cidade cheia de história, ganha pelo pitoresco da posição, graças ao Monte Cara a despontar num dos recantos da baía e avistando-se Santo Antão lá ao fundo. Sente-se a cultura, o nível de alfabetização, sem dúvida a África cruza-se aqui com a Europa. Entardecia quando o Carvalho Araújo levantou ferro a caminho dos Açores.

Ando amolecido, passeio-me pelo convés com uma braçada de livros, A Metamorfose, de Kafka, O Caso do Olho de Vidro, de Erle Stanley Gardner, o livro de James Hilton e até a História da Guiné, de João Barreto, cuja capa está já praticamente desfeita. A excitação dos primeiros dias está a esfriar, as emoções assentam, há cada vez mais gente a meditar para o fundo do horizonte, é lá que uma nova vida nos aguarda.
Leio um pouco da História da Guiné, a sua separação de Cabo Verde, em 1879, isto no tempo de Fontes Pereira de Melo. O novo governo colonial faz tratados com régulos, procura reduzir os atritos, o que não impede um número crescente de revoltas que transformam os acordos e os tratados de paz em coisa nenhuma. Na verdade, governa-se em Bolama, há comércio no Cacheu e na região dos presídios mas a obediência é sempre contingente, com o liberalismo a missionação tornou-se insignificante, as revoltas reacendem-se a todo o instante. É na página 310 que dou de novo com Marques Geraldes, de quem já aqui se falou quando era Itálicocomandante de Geba e que fora resgatar gente roubada junto do régulo Dembel, com um comportamento e uma galhardia que me comoveram, isto em 1883. O autor desta História da Guiné chama-lhe um herói esquecido, refere a sua ousadia quando Marques Geraldes, já tenente, toma a tabanca do régulo de Mansomine, ataca Mussá Moló, em 1886, o que vai trazer alguma tranquilidade na região do Geba. É um tempo de assaltos, de disputas ferozes entre régulos, Bissau está permanentemente hostilizada, a Guiné parece não atrair investimentos nem colonos, tenta-se mesmo criar uma companhia majestática abrangendo toda a colónia, mas tudo falha. Fecho o livro e recordo com saudade os seis meses que vivi em São Miguel, as amizades que cimentei. Esses amigos estarão amanhã à minha espera no porto de Ponta Delgada.

Foi a primeira história da Guiné, escrita por um sanitarista. Está longe de ser um livro perfeito, mas abriu caminho para os dois volumes "A Guiné Portuguesa", de Teixeira da Mota, de 1954. Nos anos 80, René Pélissier iria publicar a "História da Guiné - Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", entre nós editada pela Editorial Estampa, em 1989. O João Barreto organizou o seu trabalho à procura de público amplo que se interessa-se fundamentalmente por: o reconhecimento da história da Guiné e o processo colonizador que se lhe seguiu, com capitanias e presídios; a história da Guiné depois da Restauração de 1640, uma minuciosa descrição do que ali ocorreu ao longo de todo o século XIX, a definição de fronteiras, a questão de Bolama, o aparecimento do Governo Autónomo, a letargia do fim de século, a Guiné e a I República, o tráfego de escravos, a obra de Teixeira Pinto, as missões religiosas, a reorganização dos serviços administrativos. A despeito de todos os seus defeitos, é a obra de arranque para a ténue historiografia disponível sobre a Guiné, como colónia e país independente.



Será uma experiência emocionante. Com lentidão, o navio avança para o comprido dedo do molhe do cais, uma multidão de mulheres vestidas de preto vigia a aproximação dos seus filhos, maridos, netos. Ouve-se o sulcar das águas e o resfolegar da casa das máquinas, há gaivotas em toda a parte, nem no navio nem em terra se ouve uma voz. Estamos a escassos metros quando alguém grita de terra, ergue-se um coro, os braços acenam freneticamente, parece que se deu o milagre instantâneo do reconhecimento. É uma alegria contagiante, quase todos os que vão para Lisboa choram desalmadamente com a possessão que se instalou nos que estão em terra e que parecem querer voar para o navio, tal a vibração do sangue. O barco atraca, a tropa açoriana desce a escada em alvoroço, só vejo braços abertos, só oiço gritos, toda aquela espontaneidade avassala quem está a bordo e só depois, discretamente, descemos para terra. Temos direito a só regressar de madrugada.

No cais, aguardam-me Maria e Marino Teves, a Bibi e algumas filhas do Dr. José Maria de Medeiros, o padre Weber. Aguento o embate, sou levado para a rua de Santa Clara n.º 2 onde nos esperam mais amigos, segue-se um quase banquete, não se fala da guerra, fala-se exclusivamente daqueles tempos de 1967 e 1968 que precederam a partida para a Guiné. Telefono à Cristina, tenho a voz embargada quando lhe digo eufórico: “Dentro de três dias, ao amanhecer, estarei em nossa casa”. A Cristina responde: “Com o dinheiro disponível, creio que não poderia fazer melhor. O quarto tem o essencial, chegam hoje umas estantes para a sala, com o tempo compraremos mais electrodomésticos. Para começar, penso que não vais ficar decepcionado”.

(iv) Chegada a Lisboa

Anoiteceu quando chegámos a Cascais, de mansinho o Carvalho Araújo planta-se em frente ao Bugio. Estou a acabar de ler Aquele dia inesquecível. Lívia comunica a sua separação, parte para Genebra. George Boswell trabalha desalmadamente, Browdley desenvolve-se, prospera. Vem nova guerra, o filho de Lívia e Jeff Winslow aparece em Browdley ferido. Mais tarde George reencontra Lívia, esta procura reaproximação, mas os afectos estão mortos. Aquele dia inesquecível mudara tudo. Meditava neste belo romance mas as luzes de Cascais e Estoril prendiam-me como um íman. Rendo-me definitivamente ao pandemónio que vai a bordo.

Em alvoroço, subimos e descemos todos os andares do Carvalho Araújo, à procura de referências e de diferenças, assinalando em voz alta o que conhecemos, ouve-se o trânsito na Marginal, ouve-se o rolar dos carros na ponte sobre o Tejo. Há um estado anormal de excitação, joga-se até desoras, bebe-se muito, parece que é exactamente agora que acabou a guerra. É a febre do primeiro dia fora da comissão militar, parece que já estamos desfardados.

Comemos o pequeno-almoço à pressa, há quem esteja à mesa com os seus pertences à volta, não vá chegar aí uma ordem para regressar à Guiné. Saímos de roldão, quem vem em unidade militar tem de controlar as emoções, a gente da rendição individual foge para as saídas, indiferente à gritaria dos diferentes administrativos a quem compete indicar aonde nos devemos apresentar. Fico a saber que as minhas caixas seguem para um quartel na Calçada da Ajuda, informam-me que tenho uma entrevista com um major da unidade na manhã seguinte, o Exército pretende fazer um contrato comigo. Saio desabrido por aquele Cais da Rocha do Conde de Óbidos onde embarquei na manhã de 24 de Julho de 1968. Visto a farda n.º 2, com a calça comprida, não tive dificuldade em conseguir um táxi, quando me instalo, com a mala bem pesada e a arte guineense atada por cordas, posta nos meus costados, parece que estou a dar ordens para partirmos para o Xime ou o Xitole. Faço perguntas, oiço comentários, identifico sítios, assombro-me com algum edifício desconhecido.

O táxi passa pelo Cais das Colunas, esta é a minha Lisboa, pareço um gaiato a apontar para o Castelo de São Jorge, banzado com os cacilheiros, o trânsito da Baixa, a imponência quieta da Avenida da Liberdade. Passamos pelo Saldanha, só faltou acenar ao Monumental, onde fui tantas vezes ao cinema e teatro. É uma manhã de Agosto quente, mas não sinto a humidade da Guiné, incendeia-me o entusiasmo de querer avisar meio mundo que cheguei a Lisboa e que tenho planos para recomeçar a minha vida. O táxi perece voar, é a vez do chofer fazer perguntas, tem um filho a fazer recruta, quer saber se a guerra da Guiné é tão dura quanto por aí dizem à boca calada. Dou respostas assépticas, hoje não quero que o senhor chofer tenha maus sonhos. Passamos pelo Campo Grande que conheço a palmo, o jardim está a definhar, talvez seja do calor do Verão, tem pouco a ver com o verde viçoso e os lindos canteiros de flores que sempre conheci em miúdo. De repente, lembrei-me da felicidade que senti, tinha eu 11 anos, quando achei uma nota de 20 escudos dentro do jardim e ofereci à minha mãe. O táxi vira à direita e entra na Avenida do Brasil, pára ao lado da Garagem Dragão, tinha sido esta a referência que a Cristina me dera ao telefone, estava eu em Ponta Delgada.

Tiro a custo o malão pesado, a arte guineense chocalha com tanto movimento, os mirones param na rua com este quadro insólito. Toco a campainha, oiço a declaração de alegria da Cristina. À porta de um sexto andar gritamos e beijamo-nos. Arrasto o malão para a entrada, a Cristina freme de entusiasmo, quer mostrar o espaço organizado: a salinha com alcatifa em tom azul-marinho, depois um quarto ainda vazio, a cozinha com a mesa já posta para o almoço, é daqui que avisto uma Lisboa com arranha-céus até ao Sheraton, vou fazendo perguntas, a Cristina procura responder. Depois o corredor faz um cotovelo, há uma casa de banho e ao fundo o nosso quarto com janela tendo o Júlio de Matos como fundo. É um ambiente cheio de ternura, a Cristina foi uma grande artífice com os poucos tostões disponíveis.

É no momento em que lhe estou a pegar nas mãos e lhe procuro agradecer tudo quanto tem feito por mim que sinto um rugido medonho, as paredes estremecem, sinto um pânico, estendo os braços com as mãos viradas para a frente, sinto-me em Missirá, procuro um morteiro 81 cercado por bidões cheios de terra e cimentados, preparo-me para gritar, quero todos a postos para reagir contra as gentes de Madina. São segundos de total desencontro, os olhos procuram orientar a melhor resposta para aquele ataque ao fim da manhã.
A Cristina apercebe-se de que estou a viver aquilo que ela já lera em relatos sobre quem chega da guerra: um simples estampido de um carro põe um ex-combatente à procura do inimigo, deitado no chão ou lançando-se sobre as pessoas. A Cristina serena-me: “Estamos na linha do aeroporto, dentro de dias estás completamente habituado a este barulho. Acalma-te, Mário, a guerra acabou. Olha, tens ali uma carta do Ruy Cinatti. Vou acabar o almoço, tenho sardinhas no forno, como tu pediste”.

Recomposto do choque, abro a carta do Ruy. Começa com uma linda saudação, diz que está a escrever um livro sobre Timor e que entretanto prepara duas conferências. Diz que está contente com a minha decisão de voltar a estudar e oferece-me um poema:

Tempo de Vigília

Da realidade concreta erguer um hino
que eleve os corações ao seu destino,
mas tê-la, primeiro, qual a mão
que aperta, doendo,
destruindo ilusão
que a siga, fútil.

Ó delírio épico,
actual e sádico!
Ó salário! – medo
vago, involuntário!

A multidão inclina-se
perante o morto,
subindo até ao cimo da fadiga
o rosto absorto.

No lodo inquieto,
barrento, de águas vivas, jaz oferto
o corpo múltiplo
dos que negaram ser escravos.

Paz e perdão
aos vivos que alinham
cohortes futuras.

Alegria só
aos que se libertam.

A carta termina:
“É a minha vez de lhe agradecer toda a companhia que me deu. É possível que não entenda porque lhe ofereço hoje este poema. Daqui a uns anos falaremos. V. veio diferente, veio liberto e melhor preparado para lutar na vida. Não se arrependa pelo amor que deu e recebeu. É bom tê-lo de volta. Não se esqueça do que viveu. Não se esqueça do que sofreu. Transforme tudo em dívida consigo. Até breve”.
_____________

Nota dos editores:

(*) Vd. os postes anteriores desta série, por ordem cronológica:

13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2123: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (2): Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido

28 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2138: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (3): Op Pato Rufia (Xime, Setembro de 1969)

5 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2154: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (4): Cartas de Missirá, Setembro de 1969

12 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2174: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (5): Aquela Terceira Semana Prodigiosa de Setembro

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2195: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (6): Hoje perdi o meu braço direito, o Casanova

26 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2218: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (7): Afundem a armada de Madina

9 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2251: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (8): Cartas que levam saudade(s) das terras e das gentes do Cuor

16 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2299: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (10): O meu amigo açoriano de Bissau

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2317: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (11): O fantasma de Infali Soncó

6 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2331: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (12): Um Adeus a Missirá, e um poema de Ruy Cinatti a M. Caetano e M. Soares

14 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2349: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (13): Na despedida de Missirá, em que me tornei um Soncó

4 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2407: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14): O falso descanso em Bambadinca

11 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2431: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (15): Oficial e cavalheiro em Bambadinca, às ordens de Dona Violete

18 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2449: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (16): Aqueles dias cinzentos e nómadas de Bambadinca em Dezembro

25 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

1 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

8 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2513: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (19): O Natal de 1969 em Bambadinca e na Ponte do Rio Udunduma

15 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2540: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (20): A morte de Uam Sambu, na Missão do Sono, em Bambadincazinho

22 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2570: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (21): Em Bissau, em tempo de Vesperax, curando uma depressão

29 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja
Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso


21 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2668: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (24): Cartas de Bambadinca, Janeiro / Fevereiro de 1970

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2693: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos (25): A festa do meu casamento, 7 de Fevereiro de 1970

4 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2720: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (26): Cartas de amor e de amizade

11 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2749: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (27): Quando os mortos abrem os olhos aos vivos

18 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2771: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (28): A euforia de comandar cem homens na Op Rinoceronte Temível

27 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2797: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (29): Lá estarei em Bissalanca à tua espera!

5 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2810: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (30): O Xime, sem ferro mas com fogo...

10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio

19 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2861: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (32): Operação Pavão Real

30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

15 de Junho de 2008 Guiné 63/74 - P2945: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (34): Presentes de casamento

20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2968: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (35): Just Married

27 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2990: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (36): Um memorável batuque, em Bissau, na Mãe de Água, em honra da Cristina

6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3027: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (37): Com baixa psiquiátrica, no Hospital Militar de Bissau

11 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3078: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (39): Adeus, até ao meu regresso

24 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3091: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (40): Operação Beringela Doce: Da cabeça não me sai aquela mulher morta...

8 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3120: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (41): Um mês nos Nhabijões

5 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3172: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (42): Cartas de um militar de além-mar em África... (5)

12 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3195: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (43): Um grande ataque a Demba Taco

19 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3218: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (44): Em Bissau, no julgamento de Quebá Sissé

26 de Setembro de 2008 Guiné 63/74 - P3242: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (45): Um almoço tardio com um engenheiro exterminador

3 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3266: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (46): Chegou o meu periquito

10 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3290: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (47): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)...

17 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3327: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (48): O adeus a Bambadinca

24 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3349: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (49): Prometo que hei-de voltar

Guiné 63/74 - P3385: António Batista, um caso em vias de solução (Cor António P. Costa)


Notícias sobre o António Batista, o Morto-vivo do Quirafo, um caso em vias de solução?




O António Batista entre o Mário Fitas e o Luís Graça no IIIº Encontro em Monte Real.
Foto: © Helder de Sousa (2008). Direitos reservados.


Mensagem do Coronel António Pereira da Costa


Tal como me pareceu, o Batista tem direito a duas pensões:


1. A de ex-combatente (cerca de 185 € por ano).


Relativamente a esta, o requerimento deveria ter sido metido até Dezembro de 2002. (Lei n.º 9/2000).
Tendo havido vários requerimentos nestas condições, o M.D.N. determinou que fossem aceites (despacho n.º 14 de 31JAN05). Neste aspecto foi-lhe atribuída o registo n.º 41014094.
Foi elaborada uma proposta de lei, a n.º 220/X, discutida e aprovada na AR, na generalidade, em 17OUT08. Está em fase de regulamentação.
De momento, está na Comissão de Defesa Nacional da AR. Depois terá de ir ao Presidente da Republica para promulgação. Só depois terá efeito. A consulta ao site da AR, segundo me disseram, dará informações sobre este assunto, quer no que se refere à votação na generalidade, quer no actual estado dos trabalhos.


2. A pensão de ex-prisioneiro (cerca de 108 € por mês).

Ele está também a candidatar-se à pensão de ex-prisioneiro, (Dec-Lei 161/2001 de 22Mai) que será paga pela CGA. Este assunto já está, como disse, no Min. Def. Nac. Departamento Jurídico e será pouco provável que venha devolvido.


Um abraço do


António Costa

__________


Notas:

26 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2885: O Nosso III Encontro Nacional, Monte Real, 17 de Maio de 2008 (9): António Batista, ex-prisioneiro de guerra

26 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2885: O Nosso III Encontro Nacional, Monte Real, 17 de Maio de 2008 (9): António Batista, ex-prisioneiro de guerra

Guiné 63/74 - P3384: Recordando os nossos vencimentos no Dia Mundial da Poupança (José Martins)


1. Mensagem do nosso camarada José Martins, TOC de profissão, que nos manda esta mensagem a propósito do dia de hoje, 31 de Outubro, Dia Mundial da Poupança.

Bom dia camaradas
Não me recordo se hoje é ou não o Dia Mundial ou Nacional da Poupança.
De qualquer forma segue um texto intitulado Os nossos vencimentos.

Um abraço
José Martins

OS NOSSOS VENCIMENTOS



Capa do livro do nosso camarada Inácio Maria Góis,
O Meu Diário: Guiné 1964/66. Companhia de Caçadores 674.
Edição de autor.
Mineira, Aljustrel.
2006.





Inácio Maria Góis esteve na Guiné entre 13 Maio de 1964 e 27 Abril de 1966. Fez parte da CCAÇ 674 e pisou os trilhos de Fajonquito e Farim. Dia a dia, foi anotando o que se passava dentro dos aquartelamentos e fora deles. Viviam-se, então, os primeiros anos da luta armada e à medida que as surpresas iam ocorrendo, Inácio ia constatando que estava a participar numa guerra que não fazia sentido.

Porque estás sempre a escrever essas simples palavras, se elas não fazem qualquer sentido, perguntava-lhe um ou outro camarada. E à medida que ia escrevendo ia descontando os dias. Foram vinte e três meses e catorze dias de vivência naquelas terras que nunca mais esqueceu, reduzidas a um diário a que mais tarde pôs o nome de O meu diário.

(Fotografia e texto inserto mo blog de Luís Graça & Camaradas da Guine, no Post 2286 de 20 de Novembro de 2007, com notas de Virginio Briote) (*)

Lembrei-me de que tinha na minha biblioteca o livro acima e de que falava do nosso patacão, que para alguns era miserável, mas outros diziam que se faziam fortunas.

Na página 211 do livro em questão, com o título supra e escrito, segundo o autor no Sábado, dia 24 de Julho de 1965, estão descritos os vencimentos auferidos à época, e nos anos seguintes, pelos militares que cumpriam a sua comissão de serviço em África.

A minha intervenção neste texto fica-se pela obtenção da Portaria n.º 362/2008 de 13 de Maio do Ministério das Finanças e da Administração Pública, que determina, no seu anexo, o Quadro de actualização dos coeficientes de desvalorização da moeda a que se referem os artigos 44º do CIRC e 50.º do CIRS.

Para o ano em questão (1965) o coeficiente é de 60,93.



Conforme a Especialidade, cada Praça recebia um prémio. A partir de Agosto de 1965, o pré das Praças foi aumentado para 680$00 (3,39 €) e 550$00 (2,74 €) consoante fosse 1.º Cabo ou Soldado, mantendo o prémio de Especialidade.

José Martins
31 de Outubro de 2008
___________________

Nota de CV

(*) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2586: Historiografia da presença portuguesa (6): O Prof René Pélissier e o Mário Inácio Góis (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P3383: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (1): A terrível estrada do K3: 1 de Agosto de 1965, o Dia Mais Longo

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (*), com data de 30 de Outubro de 2008 (O Rui, residente na Vila da Feira,é membro da nossa Tabanca Grande, desde 30 de Abril de 2007):

Caros Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote.

Recebam um abraço. Um dia conhecer-nos-emos pessoalmente.

Envio-vos, desta feita, mais um excerto das minhas memórias, Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa.

Muita saúde e bem-estar é o meu desejo, também para todos os tertulianos e mais ainda para aqueles que ainda sofrem com sequelas daquela guerra.

Rui Silva
ex-Fur Mil
CCAÇ 816
Bissorã, Olossato, Mansoa
1965/67

2. A terrível estrada do K3

Esta estrada ligava Olossato a Farim. Julgo que o K3 era assim chamado por estar a 3 Km de Farim.



Foto 1 > Neste recorte do mapa da Província da Guiné, vê-se localização do K3, na estrada Mansabá/Farim, a 3Km desta localidade. Pode ver-se também a estrada K3/Olossato, onde se deram as inúmeras emboscadas de que fala o nosso camarada Rui Silva e onde perdeu a vida o seu companheiro de armas Silva.

Domingo, 1 de Agosto de 1965

O DIA MAIS LONGO, como nós o perpetuámos.


As praias na Metrópole, cheias de gente por certo, a gozar das delícias do sol, do mar e da areia (de direito, convenhamos), e nós, os da 816, embrenhados no mato, algures na Guiné aos tiros para acertar no semelhante (só que de côr) para que este não nos matasse primeiro. Tínhamos todos pouco mais de 20 anos de idade.

Do livro das minhas memórias, Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa

...passaram-se mais dois dias e eis que o Capitão reúne Sargentos e Oficiais e diz-nos que temos de voltar à estrada do K3 para limpar as abatises (árvores de grande porte abatidas e a obstruir a estrada), pois, segundo um reconhecimento aéreo, o inimigo, em face das outras terem sido retiradas pela tropa, dias antes pela 816, abateu outras e então à laia de vingança, em número muito maior; Portanto, a ordem, que era do Comando do Batalhão, ficou dada através do nosso Capitão.
- Agora é que vai ser o bom e o bonito! - comentámos nós de imediato e em surdina.

Feito esse trabalho, pela certa que eles esperavam pela nossa aceitação ao convite, pelo menos naqueles próximos dias. Os da 566 (Companhia sediada no Olossato), que sabiam bem daquelas manobras inimigas, mostraram-se bem receosos, mais por nós, que para além de irmos à frente e a limpar a estrada, tínhamos toda a parte activa na operação.

Então todo o mundo se queixava pela desdita e temia por o resultado de tal odisseia. Só nos perguntávamos:
- Mas para quê tirar as abatises, se logo ao outro dia eles põem outras e até mais? E para quê, se aquela estrada nem é de todo necessária pois até está considerada militarmente interdita?. (Havia outros acessos a Farim, quer por rio quer por estrada).
- Isto é orgulho do Batalhão e nós é que nos amolamos - lamentávamo-nos nós!

Mas, enfim, as ordens são para se cumprirem e embora muito fosse de prever naquela estrada o que nós dizíamos não passavam de conjecturas (?).

Naquele célebre domingo, dia 1 de Agosto de 1965, pelo alvorecer, a caravana pôs-se pela 2.ª vez e passado pouco tempo a caminho do K3. Alguns bem se safaram alegando estas ou aquelas maleitas. O Coelho, por causa das hemorróidas; o Coutinho, por indisposição; o Baião, por causa das dores de barriga, etc.

Dos chamados não operacionais, e entre os Furriéis, alinhou o Moreira, que não teve coragem ou jeito de arranjar algum pretexto para fugir ao casual convite do Capitão. Ainda me recordo do desventurado do Silva, aquando da altura das queixas deste e daquele, dizer-me, no sítio aonde dormíamos(?) e enquanto calçava as alpercatas a preparar-se para a partida:
- Eu tenho um forte motivo para ficar, pois tenho os pés cheios de bolhas - (daí ele ter calçado sapatilhas em vez das habituais botas de campanha) e apontava-os ao dizer-mo de seguida - mas eu vou.

Lembro-me também que ele usava um grande terço religioso à volta do pescoço. Mal sabia o Silva, o saudoso Silva, que ia a caminho da sua derradeira saída para o mato e, o que era pior, a caminho de viver o seu último dia de vida.

A coluna foi-se formando dentro do ritual habitual. Na frente desta vez e com funções bem adequadas à tarefa, o gigantesco Caterpillar que com a sua grande potência e mobilidade afastaria as abatises. Com o seu enorme peso só uma grande mina o poderia tornar inoperacional. Às abatises tínhamos de ter o cuidado prévio de ver se havia armadilha com granadas ou com os devastadores e artesanais fornilhos. Foram desmontadas várias armadilhas.

O Capitão mandou um Atirador com a respectiva metralhadora para dentro da colher do Caterpillar que aqui seguia, sempre que a coluna retomava a marcha. O lugar era de boa observação e a colher, sendo de aço espesso, era ao mesmo tempo um bom abrigo.

Um pelotão apeado, em duas filas, uma de cada lado da estrada, precedia o Caterpillar. A seguir a este, outro Gr Comb e outro ainda fechava a 816. Depois a antiquada, mas robusta GMC, com uma cabina improvisada na parte da carga do veículo, onde sobre um tripé estava montada a metralhadora pesada MG42, a meu cargo. Finalmente o Gr Comb da 566 em missão de apoio e segurança fechava a coluna.

A MG 42, que inspirava grande confiança, apresentava-se muito limpa e lubrificada, pois o meu municiador, o Cabo António, ali ao meu lado, tinha muito esmero neste serviço. Longas fitas carregadas de cartuchos ocupavam grande espaço da cabina que não tinha mais do que 1,5 metros quadrados de área. Agachado, a contas com a comunicação, o Radiotelegrafista, o Cabo Fontes, que ia procurando sintonizar o contacto com o posto do quartel de Olossato e mais tarde com a aviação. De tanto em tanto tempo ele tinha de entrar em comunicação com o quartel para que fosse mantido um regular e permanente contacto entre este e a coluna. Nos intervalos das ligações ele arranjava música oriunda não sei de onde, mas que em tão angustiosa aventura dava um toque de descompressão.

Os bombardeiros logo apareceram também e para o devido apoio aéreo, e pronto, agora era só andar, limpar, e estar pronto para aguentar o que, desta vez, muito provavelmente, estava para vir. O IN estava perto, por certo, sentíamo-lo, respirávamo-lo.

À medida que íamos avançando, mais cuidados tomávamos e então coloquei o capacete na cabeça. As nossas expressões diziam tudo. Ninguém piava. O perigo de cilada era evidente, pressentia-se isso a cada passo. Barulho, só o inevitável dos guinchos a trabalhar, para além, claro, dos motores das viaturas, que só iam as indispensáveis.

Então, algumas centenas de metros andados e... eles aí estão!!

Rebenta uma emboscada! Durou alguns minutos. A Companhia reagiu com ímpeto. A emboscada incidiu na cabeça da coluna e logo, nós os que íamos na cabina da metralhadora na GMC, cá atrás, procurámos saber (pergunta sacramental) se havia feridos.
- Nada - alguém dos apeados respondeu.

Companhia recomposta e a coluna prossegue a marcha. Volvidas mais algumas centenas de metros e, como já era de esperar, rebenta nova emboscada. As emboscadas estavam a incidir na cabeça da coluna e como eu ia quase no fim desta, e fora da zona de fogo, sem qualquer hipótese de atirar sobre o inimigo, não chegava a intervir.

Ouviu-se uma voz alarmada:
- Eles estão a fazer fogo para os bombardeiros e de metralhadora anti-aérea!. Está bonito! - alguém acrescentou. Cá para mim disse:
- Bem armados estão eles. Vamos ter bem que aturar.

Bom, era clarividente que os íamos ter à perna até ao fim, fim esse que ainda vinha longe, muito longe.

Nós na estrada, e eles a acompanharem-nos mesmo ali ao lado na orla do mato, quais animais felinos atrás da presa, e a emboscarem-se no sítio que achassem mais apropriado. Era este o quadro equacionado!

1 de Agosto, dia de pleno verão na Metrópole; as praias por certo, ou não fosse domingo, cheias de gente folgazia e a gozar das delícias do mar e da areia e, nós ali, em cenário de guerra, guerra latente, aberta e declarada. Que contraste! - meditei eu - se bem, que, passageiramente pensei nisto, pois logo me conformei ao lembrar-me que tinha de ser assim... talvez.

Alguém teria de estar ali a defender aquela parte do património do país, património de Portugal. Portugal que é dos portugueses. Na circunstância éramos nós, os que estávamos ali, os defensores da integridade da nação, assim quis o destino.

Outra emboscada ainda surge. Esta mais forte e mais duradoura que as anteriores.

Parecia que à medida que o tempo passava, e o que era natural, eles iam concentrando mais pessoal, aumentando assim o seu efectivo. Por outro lado, eles confiando, talvez, mais nas suas possibilidades e com o efectivo a aumentar com o correr do tempo, atacavam cada vez com mais ímpeto e potência. O resultado desta emboscada não nos chegou, aos que iam na cauda da coluna, mas eis que surge no ar o pássaro sinistro – o helicóptero Alouette - que logo era o mesmo que dizer que havia feridos a evacuar, senão mortos. Soubemos depois que o Jaquim, um preto dos nossos, tinha levado um tiro num ombro e que outro soldado, este branco, tinha também sido atingido com um tiro e ainda outro tinha apanhado com estilhaços. Nada de cuidado, apesar de tudo. Foram evacuados rapidamente para o Hospital Militar de Bissau e a Companhia prosseguiu com a sua missão. Houve ainda uma flagelação e eis que chegamos ao K3. A missão estava virtualmente cumprida. A estrada estava agora e outra vez, literalmente desimpedida e a Companhia vinha reagindo aos sucessivos ataques inimigos, com prontidão e vigor.

Foto 2 > Este recorte do mapa da Província da Guiné, mostra a zona mais problemática do Óio limitada pelas estradas Mansoa/Bissorã/Olossato/Farim/Mansabá/Mansoa. Bem no meio o Morés.


Agora era o regresso!

Extenuados, física e psicologicamente, aproveitámos aquela breve paragem para descansarmos um pouco. Havia já passado umas poucas de horas que tínhamos deixado o aquartelamento do Olossato. Deitados no chão, de braços e pernas abertas, olhando o céu e esquecendo por momentos aquela clima de guerra, assim se prostrou a maioria da malta ganhando força e alento para a derradeira, mas longa etapa, o regresso, o sempre temeroso e difícil regresso à base, na circunstância o aquartelamento de Olossato.

Era para cima de uma dezena de quilómetros que teríamos de vencer para chegar ao Olossato.

O Capitão então, de arma apoiada nos ombros e encostada à nuca, gritou:
- Embora, o 1.º Grupo de Combate à frente.

Competia agora a este GComb a dianteira da coluna uma vez que até ali tinha vindo na retaguarda. Mas parecia que ninguém era do 1.º grupo. Todos nós estávamos receosos; era fácil de adivinhar que ia haver guerra, muita guerra, agora no regresso. Muitos segundos de tensão, depois alguma hesitação, mais gritos do Capitão e então os homens do 1.º Grupo vão-se arrastando paulatinamente tomando lugar na cabeça da coluna agora com progressão no sentido contrário para Olossato. O Capitão, como que dando o exemplo, põe-se à frente da coluna, encorajando desta forma a malta.

Andadas algumas centenas de metros, o Capitão salta para dentro da cabina da metralhadora, na GMC, aonde eu ia, viatura que agora ia à cabeça da coluna e que precedia então os primeiros homens apeados, que eram como se disse os do 1.º Grupo de combate. O Capitão ordena que saia o municiador - o António - e que eu tome o lugar deste. O roncar dos bombardeiros fazia-se ouvir agora, por fadiga nossa também, de forma ensurdecedora, pois desde a manhã cedo que o seu ruído característico nos acompanhava sem cessar. Os bombardeiros voavam em círculo em redor da coluna.

Silenciosos, tensos, antevendo o perigo a cada segundo, mais ainda quando surgia zonas de capim denso nas margens da estrada, lá íamos seguindo de regresso com a maior das atenções e apreensões.

O Capitão desaloja a MG42 do tripé e coloca-a agora sobre o parapeito da cabina apertando-a firmemente nas suas mãos. Uma vez nesta posição, a arma tinha um maior campo de acção e mais facilmente manobrável. Apareçam eles, parecia querer dizer o seu olhar frio.

Eu ia colocando as fitas dos cartuchos o mais acessíveis possível a uma rápida alimentação da metralhadora e preparando os canos de reserva. Devido à grande cadência da arma, os canos condutores dos projécteis aqueciam muito e antes de encravarem procedia-se regularmente à sua troca.

O Capitão abre fogo.
- Que foi? - perguntei eu, surpreso.
- Eles cruzaram ali a estrada. Oh Fontes, - gritou ele - transmita à aviação para eles largarem ali umas bombas depois da bolanha, pois eles estão lá emboscados - presumia o Capitão.

Logo o cabo Fontes transmitiu, mas os bombardeiros disseram não. Que só as largariam pela certa, pois, segundo eles, as que tinham iriam ser poucas até ao fim.
- Pró diabo com a aviação - vociferou o capitão, visivelmente contrariado.
- Está bonito - disse para comigo.

Passamos pelo tal sítio que o Capitão referenciou, mas nada, nem o mais leve sinal de presença inimiga. A coluna continua, tão receosa e alertada como nunca. A altura era da maior tensão como nunca se tinha visto e o nervosismo acentuava-se. Começa a findar o dia e os bombardeiros ameaçam sair da cena alegando que logo que comece a escurecer vão-se embora. Aqui palavras ininteligíveis saem da boca do Capitão. A distância para o Olossato entretanto vai-se encurtando, mas naquela situação, parecia que nunca mais chegávamos. Começámos a ficar perplexos com a inesperada ausência de emboscadas. Estávamos agora a escassos 5 ou 6 quilómetros do quartel e eles ainda não tinham aparecido, surpreendentemente!

Enganaram-se? Desistiram da ideia, por qualquer razão ou motivo? Que se passaria?

Estas e outras interrogações baralhavam-se no nosso espírito. Mas não, pela conversa dos pilotos dos T6, a coisa estava feia, mas só nós os da cabina da GMC é que sabíamos disto. A Companhia começa a então a convencer-se que eles já não deviam aparecer. Estávamos agora pertinho do Olossato e portanto não era crível que eles ainda fossem aparecer. Mas, num ápice e em potência, eis que rebenta a emboscada. A terrível emboscada!

Estávamos junto à bolanha de Joboiá. É desencadeada à base de lançamento de granadas de mão. Estas chovem de todos os lados e ouvem-se também tiros de metralhadoras ligeiras e pesadas do lado deles. A emboscada que marcaria de forma indeleve a Companhia 816. Jamais outra causaria tantas vítimas e traumatizaria tanto o espírito da malta. Jamais outra, e agora no sentido positivo, nos espicaçaria tanto o brio e nos ferisse tanto o orgulho com evidentes resultados em operações futuras.

O tributo pago foi alto e testemunha, o desventurado do Silva, a grande e principal vítima daquela violenta e surpreendente emboscada, Sim, em Joane, Famalicão, jaz o saudoso Silva, o que tinha os pés cheios de bolhas e que quis vir à Operação.

A Companhia tinha sido apanhada um pouco desprevenida. Já não vínhamos em adequado dispositivo de progressão, como as circunstâncias até aconselhariam, mas sim em magote. A GMC - a auto-metralhadora - vinha apinhada de soldados, dependurados ou sentados de qualquer jeito sobre os guarda-lamas dianteiros. Eles já não acreditavam que o IN aparecesse e assim aproveitaram as últimas centenas de metros para descansarem as pernas e relaxar o conturbado espírito. Lembro-me então da boa disposição reinante em todo o pessoal.

A temida operação tinha começado logo ao romper do dia daquele domingo. O inimigo começou a massacrar bem cedo. A confiança e o cansaço apoderaram-se então da malta; Olossato já estava ali tão perto... Alguns pagariam então bem caro a sua descontracção e desatenção.

Tudo começou com um grande estrondo na cabina da auto-metralhadora onde ia eu, o Capitão e o Fontes.
- Foi uma bazookada - disse eu instintivamente ao Capitão.

Este, de expressão dura e fria, desfechava agora os tiros da metralhadora naquela orla onde se alojava o inimigo. Os rebentamentos continuavam aqui e acolá. Na situação em que nós fomos apanhados, a reacção não foi muito rápida o que favoreceu o inimigo e que por certo fez parte da sua táctica. O pânico estabeleceu-se e alguém disse para dentro da cabina da GMC:
- O nosso Furriel Silva morreu.

Não quis acreditar... a confusão e o estado emocional da malta, alterado, tirava discernimento, e instintivamente ripostei:
- Morreu, qual carapuça, apanhou algum estilhaço e vocês já dizem que morreu.

A emboscada continuava e os bombardeiros (que belo trabalho!) não paravam de lançar bombas aqui e acolá de forma arrojada. O fogo era geral e pleno.

Afinal o tempo que eles demoraram a aparecer foi uma táctica, constataríamos nós. Os rebentamentos continuam sem cessar, eram os da aviação, eram os nossos, eram os deles. Entretanto o Capitão, a meu lado, sangra da cara e de um braço. Dois pequenos estilhaços feriram-no, embora que superficialmente.

Mas, e para desespero nosso, as munições começam a faltar! Partimos do quartel bem apetrechados, com caixas de cartuchos em tudo que era bolso do camuflado, como prevenira o Capitão, mas as emboscadas foram tantas que estávamos quase sem munições.

Que situação! Já alguns feridos, ainda um pouco afastados do quartel, poucas munições e o inimigo a não dar sinais de ceder, pelo contrário.

Pelo rádio o Fontes pede auxílio para o Olossato e então mais munições chegam rapidamente através de um GComb da 566 que nos vem reforçar também. Tive a oportunidade de ver um Cabo desta Companhia, de metralhadora Dreyse na mão, a peito descoberto e em cima do capot da GMC, com os dentes cerrados, fazer fogo e a dizer entre dentes:
- Estupores que eu desfaço-vos, só se não puder.

Ele só pedia carregadores para a metralhadora. Aquela metralhadora vomitava balas atrás de balas. Que valentão, disse para cá comigo.

Até que a emboscada, a pouco e pouco foi acabando. Ouvia-se agora um ou outro tiro esporádico da parte deles; uma última rajada nossa de resposta e foi o fim.

Era quase noite quando entramos no Olossato. A Companhia estava extenuadíssima.
- Os feridos, onde estão? - perguntei eu.

Alguém me apontou um Unimog. Passei pelo Furriel Enfermeiro Ludgero, que chorava e me dizia que o Silva morrera. Saltei para a viatura e então tive uma terrível visão. No chão da carroçaria jaziam uns poucos de corpos envoltos numa toalha de sangue. Uns gritavam de dores, outros de desespero e, entre eles, de olhos vidrados, estava o Silva. Todos se mexiam, menos o Silva, que inerte, parecia completamente alheio ao cenário que o rodeava. O Silva estava morto. Sucumbiu logo ali na emboscada. “
- Não viveu nem um minuto - disse depois alguém.

Ao atirar-se para o chão como era normal (norma militar), o fez com tanto azar que cobriu com o corpo uma granada de mão inimiga lançada na fracção de segundo anterior.

Que quadro comovente aquele!

Mas aquilo eram consequências do que andávamos para ali a fazer. O Vidago, desesperado, deitado de bruços no chão dava murros neste. Enfim reacções de todas as maneiras e feitios, mas todos comungados da mesma desolação e da mesma consternação.

Encostados aqui e ali, ninguém falava, ninguém comentava o que quer que fosse, depois na messe. Cabisbaixos, olhando indefinidamente, cada um de nós parecia meditar e sofrer à sua maneira. Lágrimas corriam nas faces de alguns e os nossos colegas da 566 confortavam-nos como podiam, pois também já tinham sentido na pele a morte de colegas e conheciam bem aquelas horas subsequentes às fatalidades, que eram de profunda tristeza e revolta.

A noite caiu então sobre aquele fatídico e triste dia, e a noite, negra, pôs tudo ainda mais negro.

Aquele dia ficaria marcado para sempre na nossa retina, aquele dia que nós, perpetuamente chamaríamos de O DIA MAIS LONGO.

O corpo do Silva foi instalado numa dependência de uma pequena casa, perto da casa do Chefe de Posto. Fizeram-se turnos para velar o corpo. Ao outro dia chegou o cangalheiro, vindo numa Dornier de Bissau. Pouco tempo depois, o Silva jazia numa simples e rudimentar urna chumbada.

Os feridos mais graves foram, depois de assistidos na nossa Enfermaria, evacuados para o Hospital Militar 241 de Bissau.

A Companhia estava então com o moral em baixo e já não saímos mais para o mato, contra o que estava programado. Apenas tivemos uma saída para Cansambo.

A operação de limpeza da estrada para o K3 saldar-se-ia com a perda do Silva e com ferimentos mais ou menos graves em 14 homens. O ferido mais grave era o Bezerra com um tiro num pulmão.

E regressamos a Bissorã. Todos, todos... menos um.

Chegados, encontramos ali o resto da Companhia. Tristes, taciturnos, conhecedores já dos acontecimentos no Olossato, os nossos camaradas que ali tinham ficado cumprimentaram-nos, numa saudação que podia ter sido de alegria, mas que não o era, pois um membro da nossa família tinha morrido, enquanto estivemos separados. O Sargento Silva, que era um dos que tinha ficado, era dos que mais exteriorizava a sua mágoa e tristeza. O falecido Silva era do seu Pelotão.

Os que tinham ficado em Bissorã tinham planeado uma recepção em grande à malta quando chegasse do Olossato. Fazia parte do programa a inauguração do Bar da nossa casa, mas nada se fez. Não havia moral para isso.

O Bar estava um brinco. O Sargento Silva tinha dado as ideias - e o trabalho - e com gosto requintado. A um canto, um balcão feito com troços de palmeiras colocados ao alto, revestidos a esteiras, portanto com um aspecto típico de África. Mesas e cadeiras feitas com as travessas de madeira dos barris de vinho em que os tampos das mesa eram feitas das tampas do bidões de chapa da gasolina. Tudo isto estava também muito bem pintadinho e com cores alegres. Tínhamos um bar muito requintado. Mas, tudo aquilo, pese o bom gosto, a surpresa e tal melhoramento, estava-nos a passar ao lado. O saudoso Silva era estimado por todos e a imagem dele só tarde se dissiparia dos nossos espíritos.

Um de Agosto de 1965 (O dia mais longo) não mais esqueceria, nem esquece aos militares da 816 (**).

Rui Silva
ex-Fur Mil
CCAÇ 816
Guiné
1965/67

3. Comentário de Carlos Vinhal

Parte desta zona me é familiar, também a calcorreei durante a nossa estadia em Mansabá.

No meu tempo, as estradas Mansabá/Bissorã e/ou Mansabá/Olossato, embora fazendo parte das cartas militares, não eram utilizadas. Manga de problemas. Julgo que o mesmo se passava com a estrada K3/Olossato, mas esta pertencia já à zona de acção da CCAÇ 2753, logo o camarada Vitor Junqueira tem mais informação do que eu. O certo é que as deslocações para Bissorã e Olossato, a partir Mansabá, se faziam por Mansoa. Não participei na Operação Bicho Bravo, mas fui uma vez a Bissorã, por Mansoa.
Ver foto 2.

Na HU da CART 2732, Cap II, pág. 32, Fasc XVII - Período de 01NOV a 30NOV71, Actividades, dia 10, consta:

Às 10h00, 02 GCOMB empenhados na Op. Bicho Bravo com a finalidade de fazer a ligação física entre Mansabá-Olossato. NT partiram de Bironque até à Bolanha de Bissancage. Seguiram para Norte de Coli Sare onde foram detectados 2 trilhos muito batidos, muita população e lavras em Binta 710.99. NT efectuaram vários golpes de mão capturando 5 mulheres e 5 crianças. Em 110500 (5 horas da manhã do dia 11) IN bateu com morteiros 82 e armas ligeiras a região acabada de percorrer sem consequências. Durante a progressão 1 elemento das NT adoeceu sendo evacuado do Olossato. Do Olossato para Mansabá NT deslocaram-se em meios auto em virtude do seu esgotamento, onde chegaram às 19h30

Esta Operação, teria como finalidade fazer crer ao IN que a tropa de Mansabá andava por onde queria, mas o certo é que este tipo de penetração nunca mais se repetiu. De salientar que esta ligação física se fez por uma picada, a partir do Bironque, em detrimento da estrada de Bissorã, a partir da qual se ia para o Olossato.

Cada um andava na sua vidinha, nós ouviamos perfeitamente actividade em Mansodé, mas quando lá chegávamos, nem vivalma. Coisa que não se explicava, mas a gente sabia que havia fuga de informações.

Já agora, peço-te Rui Silva que nos vás presentando com mais salpicos das tuas Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa. Abri uma série especialmente para ti. Ficas responsável pela sua continuação. Já mostraste que tens talento (literário) suficiente para nos emocionares com a reconstituição da duríssima vida de um militar em terras da Guiné, em especial na região do Óio, para mais na época em que lá estiveste (1965/67). Mas onde também havia lugar para o convívio, a boa disposição, o futebol, a camaradagem. Volta depressa.

Fotos e legendas de CV
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Notas de CV

(*) Vd. último poste de Rui Silva, de 25 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3355: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (9): Ainda falando do Sarg Pil Av Honório (Rui Silva)

(**)Vd. postes anteriores do Rui Silva:

7 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3031: Convívios (70): Pessoal da CCAÇ 816, no dia 10 de Maio de 2008, em Viana do Castelo (Rui Silva)
17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2546: Álbum das Glórias (40): Equipas de Andebol do Benfica de Bissau e da Ancar em 1966 (Rui Silva)

18 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2279: Bissorã: As rondas nocturnas (Rui Silva, CCAÇ 816, 1965/67)

13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2103: Gente do Olossato (Rui Silva, CCAÇ 816, 1965/67)

3 de Junho de 2007> Guiné 63/74 - P1810: Convívios (14): CCAÇ 816 (Oio, 1965/67), em Joane, Famalicão, em 5 de Maio de 2007 (Rui Silva)

3 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1809: Base do PAIGC, em Iracunda, Oio: Eram quatro horas e meia da madrugada... (Rui Silva)

30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1711: Tertúlia: Apresenta-se o Fur Mil Rui Silva, CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67)

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3382: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (4): Rio Udunduma, destacamento do Xime

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > 1969 > Foto 6 > "Lembro-me de poucos momentos, desse tempo, a cores… Ponte do Rio Udunduma onde nos banhávamos e, à falta de um aparelho de pesca capaz, houvesse quem apanhasse peixe à granada… Vê-me, Luís, esse par de bidões, e diz-me se não são uma ternura!"...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > 1969 > Foto 8 > "Eis-me, quase de corpo inteiro e, considerando o meu aspecto, sem motivos para manifestações narcísicas… Estava mesmo estourado, depois do regresso de uma incursão pela mata. Em que dia? Foram de mais para saber qual".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > 1969 > Foto 9 > "Udunduma. Quem seria o dono da Piroga? Sei é que o rio era estreito e os putos que chegavam pela hora do almoço, na expectativa de umas sobras, acabavam por infundir-nos alguma tranquilidade… Ora, como poderia o IN flagelar-nos na presença deles? Mas a partir do entardecer, o coaxar das rãs era mesmo infernal!"...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > CART 2520 (1969/70) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > 1969 > Foto 18 > "A Ponte do Rio Udunduma não se vê, mas asseguro que ficava a um quarentena de passos. O soldado, pai da criança, passou por ali, com a sua mulher que confessa o propósito de abandonar o marido"...


Fotos (e legendas): © Renato Monteiro (2007). Direitos reservados (*)

(Continuação da publicação do álbum fotográfico do Renato Monteiro) (**)
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

(**) Vd. postes anteriores desta série:

13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3199: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (1): Contuboel (1968/69)

16 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3210: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (2): O mítico cais do Xime (1969)

2 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3263: Álbum fotográfico do Renato Monteiro (3): Xime, o sítio do meu degredo

Guiné 63/74 - P3381: O meu baptismo de fogo (21): 6 de Outubro de 1970, o primeiro contacto com a realidade das minas (Carlos Vinhal)

Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art.ª MA, CART 2732, Mansabá, 1970/72

Como tinha prometido, venho falar da minha outra experiência de baptismo de fogo (*).

O meu (segundo) baptismo de fogo

6 de Outubro de 1970

O Aquartelamento tinha sido atacado na noite de 5 de Outubro.

De manhã cedo havia que fazer o reconhecimento da zona envolvente, pois o IN esteve muito próximo e normalmente deixava pistas que de alguma forma serviam para recolher ensinamentos para o futuro. Além de tudo, por vezes, antes de retirar, o IN deixava armadilhas nos itinerários utilizados por nós e pela população. Esta acção competia ao Pelotão de Piquete.

Estava de Piquete o Pelotão do alferes Couto, que como eu, tinha o curso de Minas e Armadilhas.

Em virtude das vicissitudes do ataque, o Alferes Couto ter-se-á deitado muito tarde e descansado pouco. Manhã cedo saiu com o seu pelotão para o mato, apoiado pelo meu, o 3.º, comandado pelo Alferes Bento, para proceder ao devido reconhecimento.

Estando eu na altura impedido na Secretaria do Comando, não tinha actividade operacional. Não tenho a certeza, mas julgo que o alferes Couto tinha já alguma experiência na neutralização de minas, mercê da sua actividade operacional. O certo é que passado pouco tempo após a saída dos pelotões, ouviu-se um estrondo e quase de seguida, via rádio, foi pedida evacuação de um ferido e um morto, vítimas da explosão de uma mina antipessoal. Saíram imediatamente algumas viaturas para trazerem os sinistrados.

Quando regressaram, traziam o Alferes Couto já cadáver e o Alferes Bento com alguns ferimentos, pouco graves felizmente, vítima da mesma explosão (**).

Segundo a versão que correu posteriormente, o malogrado Alferes Couto, tinha já recuperado uma mina AP e porque tivesse encontrado alguma dificuldade em desarmá-la, chamou, para o ajudar, o alferes Bento. A detonação deu-se quando este ainda se dirigia para ele.

Acresce que por ordem hierárquica, na CART 2732, a cadeia dos operacionais na área das Minas e Armadilhas eram, o Alferes Couto por ser oficial, eu a seguir e por último o Sousa que tinha nota de curso inferior à minha.

Recolhidos os feridos e os restos do cadáver, havia que voltar ao local do incidente para continuar a neutralizar as outras minas detectadas. Claro que fui logo chamado pelo Comandante de Companhia para substituir o falecido e, mesmo com a farda n.º 2 fui ao mato acabar o trabalho.

Terá sido uma mina como esta, TMD-6, que vitimou o Alf Mil José Armando Santos do Couto em 6 de Outubro de 1970, primeira baixa da CART 2732 em combate.

Foto de David Guimarães © (2008). Direitos reservados.
Editada por CV


Mansabá, 11 de Outubro de 1970 > Cerimónia de homenagem ao malogrado Alf Mil Couto, falecido no dia 6. Na foto o 3.º Pel/CART 2732 a desfilar. Na frente o Cabo Corneteiro Oliveira Barge, seguido dos Furs Mil Nunes, Vinhal e do restante pelotão.

Chegado ao local fatídico, estavam assinaladas mais duas minas antipessoais guardadas por alguns militares com a cara mais assustada e preocupada que jamais tinha visto. Ao verem-me, traumatizados como estavam com a morte do seu alferes, desejaram-me as maiores felicidades e sorte do Mundo.

As minas levantadas davam prémio pecuniário a quem as detectasse desde que fossem levantadas, mas como o dinheiro não é mais importante que o risco de vida, eu tinha prometido a mim mesmo que jamais tentaria levantar alguma mina antipessoal. Depois do acontecido, mais convencido fiquei de que tinha a razão pelo meu lado.

Assim, comecei por juntar às minas detectadas, uns petardos de TNT, que iriam ser rebentados por detonadores pirotécnicos alimentados por cordão lento. Este cordão ardia à velocidade de 1 centímetro por segundo, ao contrário do rápido, cuja velocidade era de 1 metro por segundo. Normalmente fazia um chicote com cerca de 20 centímetros, para ter tempo de estender a manta e esparar calmamente deitado pela detonação.

Claro que isto exigiu que eu andasse por ali às voltas. Examinei tanto quanto pude o terreno por onde iria correr para me proteger enquanto o cordão ardesse e quando aquilo tudo rebentasse. Pus o pessoal em bom recato, peguei fogo ao rastilho e abriguei-me finalmente, esperando pela explosão.

Quando esta aconteceu, fui ao local ver os estragos e deparei que, em vez de duas crateras correspondentes às duas minas detectadas, tinha três. Na realidade não havia duas, mas sim três minas, sendo que a terceira não descoberta rebentou por simpatia e eu não a tinha pisado antes por mero acaso e sorte.

Quando regressei ao aquartelamento vinha tenso. Pudera, tinha sido o meu primeiro trabalho a sério e fi-lo logo a seguir a uma morte violenta. E o dia podia ter-me saído caro também.

A partir deste dia passei a ter actividade operacional. O Alferes Bento estava internado no HM 241 e, se a memória não me falha, o furriel Correia estava de férias na Metrópole, estando o Pelotão entregue só ao Furriel Nunes. Nunca deixei, no entanto de colaborar na Secretaria, mantendo a gerência dos bares como anteriormente. Além disto fiquei com a responsabilidade das actividades relacionadas com as Minas e Armadilhas na Companhia, coadjuvado pelo meu camarada Furriel Rui Sousa.

Bironque, 3 de Dezembro de 1971 > Fruto do trabalho de equipa. Os picadores detectaram esta TM46 e os técnicos, Vinhal e Rui Sousa, levantaram. Pela foto se nota que mais uma vez fui chamado de emergência ao mato, pois estou vestido com a farda n.º 2, divisas e tudo.

Mantida, 11 de Janeiro de 1972 > Levantamento de uma mina AUPS aquando da neutralizaçâo de todos os campos de minas implantados, à responsabilidade da CART 2732. Esta acção coincidiu com o fim de Comissão da CART.
OBS:-Não é pose. A foto é um instantâneo verdadeiro


Foto e legendas de Carlos Vinhal © (2008). Direitos reservados.

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Nota de CV

(*) Vd. postes de

29 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3378: O meu baptismo de fogo (20): Galo Corubal, em data incerta (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

11 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3293: O meu baptismo de fogo (7): Mansabá, 21 de Abril de 1970 (Carlos Vinhal)

(**) Vd. poste de 18 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P968: A morte do Alf Couto, de minas e armadilhas, CART 2732, Mansabá, Outubro de 1970 (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P3380: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (10): Quanda a guerra era com os copos... ou o elogio do Tosco, em Lisboa (Jorge Félix)

Jorge Félix
Ex-Alf Pilav Helis,
BA 12, Bissalanca,
1968/70,
hoje residente em Vila Nova de Gaia



1. Mensagem do Jorge Félix, com data de 27 de Outubro corrente:

Caro Carlos:

Se achares que o texto que segue pode ser postado ficarei satisfeito. Parece que ainda ninguém falou nesta vertente da Guerra.


2. Aquelas noitadas...

por Jorge Félix

Em 1969 a noite de Lisboa, tinha que ser à noite, escondia uma guerra que vou tentar recordar. Destaco três nomes: O Comodoro, o Café Gelo e o Tosco.

O Comodoro tinha a particularidade de receber o que de melhor tinha a Política de então. Da parte da tarde recebia os Velhos e de noite recebia a malta mais nova. (ponto final). Nos meus 20 anos aprendi muito no ninho dos Ballets Rose.

O Gelo vendia whisky a cinco escudos. Frequentado por Colonialistas, era o local onde se emborcava até mais não, mas onde se tinha que ter muito cuidado com o que saía da boca. Encerrava muito cedo.

O Tosco, meus amigos, o Tosco... era o local que mais fazia lembrar a ZOPS [zonas operacionais] de qualquer colónia em guerra.

Não eram pedidas evacuações pois já tinham sido evacuados. Só não havia tiroteio porque todos já eram vítimas. Ali só se matavam as mágoas, os desgostos, as vergonhas, as incapacidades...

No Tosco ninguém era bonito, todos se sentiam desfigurados.O Tosco era uma casa com gajas, pretas, mulatas e brancas (haviam brancas ?), que faziam de conta que percebiam de emboscadas e quadrícula, para na primeira volta da picada cravarem uma Taça.

No Tosco, apesar das meninas, o ambiente era de guerra. Era a Guiné , era Angola, era Moçambique, num tosco local, reunidos num só , a mostrarem as suas entranhas. Estranho, era palavra que não existia no Tosco. Tudo era possível, até falar de Deus...

No Tosco, ria-se muito, às vezes chorava-se. Havia muito barulho, havia música, havia como que por artes mágicas, silêncios sepulcrais. Até parece que alguns, sem o admitirem, nestas alturas sentiam medo.

No Tosco, apareceram os primeiros apanhados pelo clima.

O Tosco era muito pequeno e recebia gente muito grande. Do Exército, da Marinha e da Força Aérea, mas ninguém reparava. Ninguém reparava que todos eram deficientes. O choque pós-traumático ainda não tinha sido inventado.

No Tosco não havia lugar para certos gajos que nos ficavam a espreitar à saída.

O Tosco ficava na rua Conde Redondo, a meio da subida, onde o eléctrico proveniente da Estrela descarregava a lotação esgotada de deficientes das FA. Uns em cadeiras de rodas, outros de canadianas, outros às cavalitas, outros ...

Aqueles que alguma vez assistiram a este desembarque nunca o poderão esquecer. Mas se a chegada ao Tosco era dantesca, imaginem como era a partida.

Vou ficar à espera de alguém que queira acrescentar algo que me tenha escapado. Testemunha viva é um dos Conchas, músico que na altura era o proprietário e contratava as piquenas que nos iam aturando.

O Tosco recebia todos os dias umas dezenas de estropiados que faziam tratamento no Hospital da Estrela e tinham um mínimo de mobilidade.

Assisti a estes encontros no mês de Julho de 1969, altura em que também estive a ser observado pela medicina aeronáutica em Lisboa.

Parecido com o Tosco não havia mais nada.

Na Avenida da Liberdade, ali a 400 metros, ninguém sabia que existiam estes antros.

Felizmente que já não há razão para manter o Tosco activo.

Jorge Félix

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Jorge, pelo teu texto que é simplesmente antológico. Quando o último dos bloguistas postar o último poste, e nós decidirmos (ou alguém por nós decidir...) fechar o blogue, eu guardarei religiosamente o teu escrito. Por que ele é um verdeiro hino, de glória, de ternura e de humanidade, à noite lisboeta dos anos 60 onde, apesar de tudo, havia pequenos e inusitados espaços de liberdade, de afecto, de camaradagem. Não conheci o Tosco. Fico, depois de te ler, com uma intolerável, insuportável pena de nunca ter entrado no Tosco, de nem sequer ter ouvido falar do Tosco. Voyeurismo de sociólogo...

Infelizmente, também não encontrei nenhuma referência ao Tosco no Dicionário da História de Lisboa ou no Dicionário de História de Portugal (vd. as entradas Cafés, Prostituição, Tabernas, Tertúlias..). Objectos menores de temas menores para historiadores e sociólogos...

Do Café Gelo, e das suas tertúlias, sabe-se alguma coisa, por que era frequentado por literatos e artistas ligados ao surrealismo, por exemplo, gentes de outras guerras que não eram as nossas. Acabou ingloriamente, como muitos outros cafés, tabernas, bares e outros espaços públicos de Lisboa, catedrais do convívio, do lazer e da boémia, engolidos pela gula dos especuladores imobiliários, pela voracidade da banca, pelo desamor dos autarcas, ou muito simplesmente pela modernização que impôs a segregação sócio-espacial. Fomos expulsos do centro para a tristes periferias, as Porcalhotas, os Barreiros, os Montes Abraão...

Do Comodoro, também tenho uma vaga lembrança. Dos bares e cabarés da Praça da Alegria, ainda conheci um poucochinho. Mas do Tosco, meu Deus, ali no Conde Redondo... não, nunca ouvira falar! Imperdoável, Jorge!!!

Talvez o outro Jorge, o Cabral (o único, o autêntico, o verdadeiro, o nacional,o nosso..., que era um alfacinha de gema e um noctívago inveterado depois do seu regresso a penates, em 1971), te possa dizer algo mais sobre a geografia, a sociologia, a anatomia e a fisiologia da vida nocturna de Lisboa, ou mais especificamente sobre portos de abrigo como o Tosco (*), ali no Conde Redondo.

A verdade é que a guerra produziu uma desvairada fauna humana. Lisboa, capital do império, era então a grande cidade do export-import: exportava, para África, carne para canhão, e acolhia depois gente sofrida, ferida no corpo e na alma, estropiada, cacimbada, apanhada do clima, doente, revoltada, inadaptada, abandonada... Antros como o Tosco (como tu o qualificas) tiveram o seu papel, a sua função, o seu lugar: tinha que haver um lugar qualquer na cidade para os perdidos & achados da noite...

Isto não é dito por um qualquer de nós, bloguistas: é dito por um dos nossos glorios malucos das máquinas voadoras, o nosso Alf Mil Pilav Jorge Félix, que pilotava helis Allouette III, e que um belo mês do ano de 1969 estava em Lisboa, no 'estaleiro', a fazer exames de medicina aeronáutica (um luxo que não era, como o nome indica, para todos).

Concordo, entretanto, com o teu veredicto. Se a guerra acabou (e acabou mesmo, Jorge ?), já não há razões válidas para manter o Tosco activo. Acabou a guerra. Morreu o Tosco. Viva, apesar de tudo, a memória do Tosco e dos camaradas por lá passaram! (Sem esquecer as piquenas que nos aturavam e cuja função era despejar, nas nossas e delas taças e copos, as garrafas de champagne do Poço do Bispo e de uísque de Sacavém).

PS - Não é verdade, Jorge, que a gente não tenha já feito (ou tentado fazer) incursões por estes lados mais ínvios, mais intimistas, mais delicados, da guerra: os copos, o sexo, as tainadas, as loucuras, a solidão, o vazio das férias, a inadaptação do regresso... A nossa história também está por aí espalhada (e espelhada) na noite, nos copos de uísque marado e nas noites de amor barato, a começar por Bissau (**).

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

7 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3028: Eu, o Jorge Cabral, o António Graça de Abreu e... o Levezinho, no velho/novo Maxime, com os Melech Mechaya (Luís Graça)

5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3025: Os nossos regressos (7): Perdido, com um sentimento de orfandade, pelos Ritz Club, Fontória, Maxime, Nina... (Jorge Cabral)

13 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCC: Estórias cabralianas (8): Fá Mandinga no Conde Redondo ou o meu Amigo Travesti

(...) Na década de 80, dava aulas nocturnas numa Escola na Duque de Loulé e costumava descer a Avenida para tomar o Metro. Eis que uma noite, me vejo perseguido por um Travesti que me grita:- Meu Alferes! Meu Alferes! Alferes Cabral!... Tomado de terror homofóbico parei, negando conhecer a criatura, de longas pernas e fartíssimos seios. (...)

(**) Vd. alguns dos postes desta série, Estórias de Bissau:

(11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

6 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2556: Estórias de Bissau (16) : O Furriel Pechincha: apanhado ma non troppo (Hélder Sousa)

Vd. ainda:

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3379: Lançamento do Diário da Guiné, 1969-1970, O Tigre Vadio, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)



Capa e contracapa: Cortesia do editor (2008).
O Museu da Farmácia, o Círculo de Leitores e a Temas e Debates têm o prazer de convidar V. Exª para a sessão de lançamento do livro Diário da Guiné, 1969-1970, O Tigre Vadio, da autoria de Mário Beja Santos, que se realiza no dia 11 de Novembro, às 18.30, no Museu da Farmácia, Rua Marechal Saldanha, nº 1 (Bairro Alto).
O livro será apresentado por António Valdemar e Mário Lemos Pires.
Programa:
16.30: Cerimónia da doação de peças históricas ao Museu da Farmácia e visita
18.00: Espectáculo de Ko'ra (Braima Galissá)
18.30: Lançamento do livro
Será servido um porto de honra
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Nota de vb: artigo relacionado em
8 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2617: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P3378: O meu baptismo de fogo (20): Galo Corubal, em data incerta (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

O meu baptismo de fogo
Torcato Mendonça
ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo > 1968/69.



Tenho tentado recordar, quando, como e onde foi o meu baptismo de fogo.
A memória, tão pronta de outras vezes, nada me diz agora. Atraiçoa-me.

Leve, levemente, recordo, sem uma certeza ter sido logo na primeira Operação a solo, num dia de Carnaval. Se foi aí tratou-se de um assalto e destruição do acampamento inimigo do Galo Corubal.

Ou teria sido antes com algumas flagelações para os lados do Enxalé? Mas quando e onde foi ao certo? Não tenho a certeza, quando me vi debaixo de fogo.

Atrevo-me até a fazer uma certa analogia com a perda da virgindade, ou quase. Ou é logo trabalho completo ou pode ir aos poucos. Devagarinho, quase a perdê-la hoje, mais ou menos amanhã, um dia acontece e tudo estremece.

Salvo, as devidas comparações parece-me ter sido no Galo Corubal, o baptismo de fogo claro. A analogia atrás citada é problema íntimo…

Podia perguntar aos camaradas do Grupo ou da Companhia. Quase de certeza que foi no assalto ao Galo Corubal. Eu conto:

Avançamos devagar, devagarinho, o meu Grupo a fazer o assalto, os outros três a protegerem. Entrámos na mata, guia a indicar o trilho e, de repente, uma sentinela inimiga, sentada num palanque em cima de uma árvore detectou-nos. Lançou uma granada, felizmente não chegou ao destino, tudo estremeceu e seguiu-se o tiroteio breve e fraco. Esperámos um pouco e mandaram-nos regressar.

Pouco depois aí estavam os T6 e avançámos novamente. Claro que o INpôs-se a milhas. Revistámos rapidamente as “palhotas” e puxámos fogo a tudo o que poderia arder.
Decorreu tudo bem e fez-se a festa do baptizado. Se foi aqui…

Passado pouco tempo caímos em emboscadas, ataques ao aquartelamento e por vezes, a rotina levava a deixar andar.

De outras vezes, cuidado pois eram violentas demais. Os internacionalistas cubanos, davam uma ajuda aos libertadores da pátria e aí estava um arraial dos diabos.
Quantas horas debaixo de fogo? Não sei. Certo é que não me lembro do local do baptismo, digamos que foi no Galo Corubal num dia de Carnaval…

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Notas de vb:

artigos da série em 28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3377: O meu baptismo de fogo (19): Como, porquê e não só (Belarmino Sardinha)

Guiné 63/74 - P3377: O meu baptismo de fogo (19): Como, porquê e não só (Belarmino Sardinha)


1. Mensagem do camarada Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, 1972/74, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, com data de 28 de Outubro de 2008:

Caros Editores,
Estimados Camaradas,
Aqui envio descrito aqueles que foram o meu Baptismo e Crisma.
Vejam o interesse que eventualmente possa ter e, não lhe chamarei censura, deixo ao vosso critério a sua divulgação ou não.

Um Abraço
BSardinha

2. O Meu Baptismo de Fogo - Como, Porquê e Não Só

Tornou-se leitura diária este Blog/Local, como preferirem.

Nunca falei muito sobre este tempo e quando o fazia era apenas e só com camaradas, tivessem eles estado na Guiné, Angola ou Moçambique. Sempre achei não ser capaz de transmitir cabalmente o que vivemos ou obter de quem me ouvia a sensibilidade para um resumo de acontecimentos com que éramos brindados, não de uma queixa. Se havia a necessidade de libertar fantasmas que eventualmente existissem, quer pelos acontecimentos vividos ou simplesmente conhecidos, nunca me apercebi haver por parte da sociedade em geral esse interesse em ajudar. Não me refiro aos familiares, refiro-me àqueles que nos ouviam quase como obrigação num acto de consolo para com o desgraçadinho ou o apanhado, como muitas vezes disfarçadamente diziam. Talvez por isso nunca o tenha feito tão abertamente como agora neste espaço, se calhar nem com os meus filhos o fiz alguma vez, outros são hoje os tempos e os interesses, felizmente, embora devamos estar atentos aos políticos, especialistas a arranjarem-nos destas situações, mesmo em regimes como a dita democracia.

Talvez também nunca tenha dado grande importância a esta parte da minha vida na Guiné. Foi um assunto em que me vi envolvido, que era pessoal e intransmissível e altamente individual, só partilhado com todos os outros em igualdade de circunstâncias. Porém este Blog/Local tem-me levado a falar convosco e a poder contribuir para quem queira fazer um trabalho verdadeiro e sério sobre o que foi e como foram vividos pelos diferentes protagonistas esses 13 (treze) anos. Por tudo isso, só agora, falando ou escrevendo vou recordando situações e nomes, mas estou certo que coisas há que estão profundas ou mesmo apagadas na memória. Escrevi um dia: as coisas boas recordam-se, as más nunca se esquecem. Hoje não estou tão certo assim.

Nunca achei e continuo a achar pouco importante o que eu passei tendo em atenção as experiências vividas por muitos outros camaradas com quem privei. Mas não me escuso a deixar aqui o meu depoimento sobre como aconteceu o meu baptismo de fogo.

Mansoa, 1972, num dia de Setembro ou Outubro, tanto faz

Os dias eram iguais e as datas não eram coisa que me interessasse, tinham passado pouco mais de 15 (quinze) dias, de um período de 24 meses quando fui para Mansoa, não havia razão para pressas ou preocupações de tempo e muito menos para um registo. Estávamos no ano de 1972 e isso era quanto bastava, sabia que tinha passado já o meio do ano, pois tinha sido nessa altura que havia desembarcado na Guiné e passava já mais algum tempo que estava em Mansoa, seria talvez Setembro ou mesmo Outubro quando pelas, aproximadamente, 20h00 ou 20h30 se ouviu o primeiro rebentamento.

Inexperiente nestas matérias e por isso também mais inconsciente, procurei ver o que faziam os outros para lhes seguir o exemplo, foi assim que dei comigo debaixo de uma placa onde se encontrava o telex dentro do edifício de STM em Mansoa. Foram apenas uns quinze a vinte minutos, se calhar menos, tempo apenas suficiente para nos enviarem a mensagem, seis canhoadas, palavrão ouvido aos operacionais. Caíram todas fora do quartel, mas o pior para aqueles que lá se encontravam havia quase uma comissão, era que no mês de Julho, uma semana antes de eu lá ter chegado, haviam sofrido um forte ataque que deu cabo de parte de várias casas da vila e da bomba de gasolina. Tive oportunidade de ver os estragos.


Mansoa > Ponte sobre o Rio Mansoa.
Foto de J. Mexia Alves, editada por CV


Mansoa > Vista aérea do Quartel.
Foto de César Dias, editada por CV


Em Aldeia Formosa, sempre à hora do jantar

Como já referi em nota anterior, por dificuldades de entendimento com um furriel miliciano, fui transferido para Aldeia Formosa.

Não sei se estarei a falar da mesma zona que o nosso mestre Luís Graça refere não ser atacada, ou se isso reporta apenas à data que ele refere no comentário que faz no final da tradução do documento do PAIGC, mas os camaradas já lá colocados, quando cheguei diziam ser prato habitual e sofriam de alguma ansiedade se estavam muitos dias sem que houvesse um ataque ou flagelação, diziam poder estar o IN a estudar um plano para um ataque pior ao que que estavam já habituados.

Que me lembre, existiam neste quartel, Aldeia Formosa, além de duas anti-aéreas de 4cm mais duas ou três quádruplas, um Obus 14 e outro mais pequeno, salvo erro 11, não sou especialista de armas e posso estar a dar-lhes o nome errado tecnicamente, mas isso poderá ser confirmado por outros camaradas que por lá passaram ou pelos registos militares que certamente existirão .

Voltando à questão dos ataques, como a festa anterior tinha sido de pouco efeito e digamos sem interesse e tinha apenas o baptismo, foi-me possibilitado fazer o crisma e assim ver melhor como funcionavam estas coisas dos ataques aos quartéis. Nos três meses que passei em Aldeia Formosa averbei 9 (nove) ataques ao quartel, sendo um deles ao arame, por volta das 21h00 ou 22h00.

Como era habitual estava a entrar no bar do pelotão das chaimites, com quem fazia, por vezes, a ronda fora do quartel, quando ouvi um barulho que me fez olhar para trás e ver o céu cheio de luzes, balas tracejantes.

Tinham começado um ataque do lado de lá da pista de aterragem, sem que tivesse sido detectada qualquer movimentação ou rebentamento que provocasse o alarme.

Pouco depois começou a nossa resposta a esse ataque, mas as anti-aéreas quádruplas encravaram com excepção de uma manuseada por um experiente velhinho. Houve depois quem dissesse que tinham ido lá testar os periquitos que tinham chegado para substituírem os atiradores daquelas armas e que estas encravaram por terem feito fogo abaixo dos 0 graus.

Mas para mim, o pior, com excepção deste ataque nocturno ao arame, foi que todos os outros foram sempre próximo da hora do jantar ou quando este decorria. Embora não fossemos trajados com fatos de gala nem houvesse baile depois, fez que numa das vezes, ao despejar o prato para o caldeiro e correr para a vala, feita com bidões cheios de terra, tivesse despejado também as ferramentas da refeição, ou sejam, o garfo e a colher.

Considerado já um especialista que averbava no curriculum 10 ataques aos quartéis por onde tinha passado, regressei a Bissau e aí fiquei, até ir render a Bolama um camarada que ia de férias.

E porquê?

Tinha já passado mais de metade da comissão e tinha estado de férias da Metrópole.

O então 1.º Sargento Vasco, Chefe do Posto Director do STM em Bissau, havia-me pedido, ou mandado, levar-lhe um capacete para se passear de mota, dizendo-me qual o modelo e inclusive onde o deveria comprar, na altura, na esquina da Rua das Pretas com a Avenida da Liberdade. Como não se tinha chegado à frente com o dinheiro, na altura entre 1.500$00 a 1.800$00, nem via nele grande interesse em o querer pagar, quando regressei disse-lhe que estavam esgotados. Não gostou. Daí a ter-me oferecido para ir substituir a Bolama o camarada que ia de férias foi um passo.

Por outro lado pensei que se Bolama servia para gozarem as férias muitos dos que não iam à Metrópole, nada melhor do que eu ir até lá, era como sair de Lisboa ou Porto e ir passar um mesinho em Cascais ou Foz do Douro.

Chegado e instalado, num quartel de instrução militar destinado ou pelo menos na altura a recrutas, dos quais grande parte ou todos muçulmanos, onde a carne de porco não fazia parte da ementa e onde acompanhavam as refeições com leite, procurei o entendimento com o cozinheiro e levantava os géneros e confeccionava eu o tacho no espaço do STM.

Mas não tenho razão para me queixar do trabalho, talvez mais da falta dele, dormia todas as noites sem a preocupação dos turnos 00h00/04h00 - 04h00/08h00 - 08h00/12h00 - 12h00/16h00 - 16h00/20h00 - 20h00/24h00 obrigatórios em Bissau, estava mesmo de férias não fosse lembraram-se de fazer um ataque ao quartel, imaginem dois ou três rebentamentos e acabou, felizmente e sem consequências.

Depois deste nunca mais passei por outro, passados os 30 (trinta) ou 40 (quarenta) dias que estive em Bolama regressei a Bissau e ao Posto Director do STM até final da comissão.

Como poderão ver, tenho razões para me considerar um privilegiado em relação a muitos dos camaradas que dão o seu contributo a este Blog/Local e não vejo grande interesse nas minhas situações pessoais. Contudo, não deixarei de contribuir, modestamente, para o Blog/Local que, sendo do Luís do Vinhal e do Briote, nos reúne e permitam-me a ousadia, já é de todos nós.

Um abraço para todos.
BSardinha
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3365: O meu baptismo de fogo (18): Cufar Nalu, 15 Maio de 1965 (Mário Fitas, CCaç 763, Cufar)

Vd. postes de Belarmino Sardinha de

14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2942: O Nosso Livro de Visitas (16): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Guiné 1972/74)

17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2956: Tabanca Grande (75): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Guiné 1972/74)

1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3009: Com sangue na guelra: Nós e a mística dos comandos da 38.ª, em Mansoa (Belarmino Sardinha)

6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3026: Convívios (69): Pessoal do BCAÇ 3832, no dia 31 de Maio de 2008 na Covilhã (Germano Santos/Belarmino Sardinha)

10 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3047: Os nossos regressos (9): Uma viagem tranquila...(Belarmino Sardinha).

20 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3075: Estórias avulsas (19): Os cães da guerra (Belarmino Sardinha)