Data: 23 de Outubro de 2010 23:55
Assunto: A adaptação da Casa Gouveia (capitalismo)aos Armazens do Povo(comunismo)-Transformação muito imaginativa
A experiência socialista na Guiné com Luis Cabral, e a tentativa do mesmo socialismo com Vasco Gonçalves/Cunhal em Portugal, quase chegou a satisfazer a curiosidade daqueles que, como muitos de nós, olhavam para as economias de leste, como fruto proibido pelo salazarismo.
A malta em África, sem televisão nem jornais, criou um hábito de fazer zapping no rádio transistor, que corria emissoras em português desde Argel, BBC, rádio Tirana, Praga, rádio Moscovo e Voz da América, etc, mas dávamos muita preferência ao que vinha de leste.
Quando Norton de Matos em 1949 se candidatou a presidente da República, e desistiu in extremis, nas aldeias do interior a mesa de voto em geral era nas nossas escolas que hoje estão abandonadas. Os nossos velhotes, se não fossem comunistas ou do contra, iam votar no Craveiro Lopes, por aconselhamento do regedor, do presidente da junta, e do padre e talvez do professor.
Os que eram comunistas clandestinamente, que já tinham as melhores casas e as melhores propriedades classificadas e destinadas a ocupações por eles próprios, votavam, como se dizia naquele tempo, no contra. Previamente a PIDE encarregava-se de os engavetar e pô-los à sombra por uns dias se não acontecesse pior, como mais tarde vieram os relatos.
Passados uns anos, em 1958, quem tivesse 20 anos, via os mais velhos votarem no Américo Tomás, aconselhados pela União Nacional, pelos chefes instalados, e pelos que tinham medo ao comunismo. Os que eram do contra, por exemplo, uns colegas meus, votavam Humberto Delgado, porque aí o Salazar ia à viola e os funcionários que nunca eram aumentados, iam ganhar mais, diziam os menos politizados, e os mais politizados sonhavam que com o comunismo é que devia ser bom.
Falava-se que Humberto Delgado teve mais votos, mas houve falcatrua, e no caso de Angola onde se notava menos a presença da PIDE, havia euforia nítida a favor de Humberto Delgado. Mas uma ideia que ficou em toda a gente, em 1949 e em 1958, é que nem um general nem o outro eram anti-colonialistas declarados. Mas uma coisa hoje os livros confirmam o que se pensava nesse tempo, os socialistas/comunistas colaram-se a esses candidatos da oposição a Salazar. E já havia nos votantes do contra, muitos com ideias anti-colonialistas e pró-independência, no pessoal letrado das colónias.
Dizia-se que essas eleições «abalaram os alicerces» do Estado Novo. Mas o grande abalo deu-se em 1968, quando se partiu o pé da cadeira onde o Botas [, Salazar,] descansava , e passados poucos anos vimos, quem viu, a implantação do socialismo/comunismo na Guiné Bissau, com toda a naturalidade e sem a mínima oposição.
Em Angola e Moçambique não se pode dizer o mesmo, pois que o MPLA e FRELIMO tiveram os inconvenientes duma guerra bastante longa, e em Portugal deu-se o 25 de Novembro muito cedo, o que não deu a tranquilidade de que auferiu o PAIGC na Guiné e em Cabo Verde, onde o regime socialista se concretizou.
Guiné > s/d > Algures, em região sob controlo do PAIGC (ou "região libertada") > Um armazém do povo. Fonte: PAIGC. Segundo texto do Jorge Santos, membro da nossa Tabanca Grande, "O PAIGC promove a criação dos Armazéns do Povo por decisão tomada no 1º Congresso de 1964. O objectivo dos Armazéns do Povo, empresa geral de comércio de tipo estatal, era garantir o fornecimento de artigos de primeira necessidade à população das regiões libertadas e, por meio de troca, receber produtos agrícolas que deveriam em seguida escoar-se para o exterior, criando-se e desenvolvendo-se assim, progressivamente, a base de um comércio externo. O número de Depósitos dos Armazéns do Povo passou de 6, em 1964, para 16, em 1969". Fonte: PAIGC - História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde. Porto: Edições Afrontamento. 1974
Como Luis Cabral conhecia bem a Casa Gouveia e o semi-monopólio da mesma, apenas lhe passou a chamar Armazéns do Povo e passou a administração para o PAIGC. Todo o comércio que se praticasse, desde a mancarra exportada a tudo o que fosse importado, ou recebido por doações, passava pelos Armazéns do Povo.
Até parecia fácil como aquele regime (económico) funcionava, e Luis Cabral mostrava um àvontade na governação que parecia que tinha nascido para governar. No caso da produção agrícola interna e transportes fluviais, foi seguir simplesmente o procedimento do colon, que ele conhecia bem, e projectou um melhoramento dos acessos fluviais herdados do colon. Mandou reconstruir pontes cais de Caboxanque, Cadique, acostamento de Impungueda, Binta, e várias rampas para canoas.
Fez acordos de cooperação com técnicos de meio mundo para melhorar a produção de arroz, cajú, etc, e uma fábrica de transformação de produtos agrícolas no Cumeré, e até já tinha uma estrada projectada de Antula para o Cumeré sobre o canal do Ipernal. Não havia produtos à venda nas lojas dos portugueses e libaneses, era só prateleiras vazias, e quando os Armazéns do Povo tinham produtos para venda, fornecia essas lojas de venda a retalho.
Pode haver alguem eventualmente que duvide desta minha afirmação, mas desde já aviso que assisti a polícias perseguir mulheres e garotas, que frente à UDIB vendiam pequenas medidas de mancarra e camarão, que tinham que fugir para não perder o produto.
Vendo como o governo de Luis Cabral implantava o sistema comunista, num país em que o povo aceitava tudo o que lhe era imposto, inclusive as filas (formas) para adquirir o simples pão ou arroz, e até aceitava que os membros e famílias do PAIGC tivessem o privilégio de não ir para as filas do pão, era natural que houvesse algum tipo de revolta, mas tal não se manifestava. E até parecia não haver muita violência, pois que em cada fila, ou nas padarias, ou nas lojas, ou no mercado municipal, um único polícia era o suficiente para manter a ordem.
O governo e o PAIGC, ao fazerem a adaptação do sistema colonialista/capitalista ao sistema comunista, de um momento para o outro, tinha que haver alguma capacidade quer de autoridade como de capacidade governativa. A autoridade, essa, facilmente se encontrava na força militar do PAIGC. Mas a capacidade governativa donde vinha, se os guineenses eram na maioria sem escolaridade, e os mais estudados como os antigos estudantes do império, eram em número muito reduzido? E uma grande parte de gente guineense com mais preparação, não se deixou engajar pelo projecto de Amilcar Cabral?
Sem dúvida, para mim evidentemente, que Luis Cabral baseou a equipa governativa em gente de Cabo Verde, que temos que reconhecer, pelo que acontece com a governação de Cabo Verde, estavam bem preparados. E com a saída dos caboverdeanos em 1980, com o golpe de Nino vieira sobre Luis Cabral, foi o total descalabro. Porque com todos os problemas que houvesse com Luis Cabral e os caboverdeanos no governo, havia uma enorme credibilidade internacional que foi posta em causa, e a rotina governativa que já existia foi desfeita e não havia outra alternativa preparada.
Os caboverdeanos da maneira como vencem as dificuldades de governar uma terra como Cabo Verde, fariam coisas maravilhosas na Guiné, se não fossem as contradições que é evidente que existiam no interior do projecto do PAIGC. Vão morrendo alguns, Luis Cabral, Vasco Cabral, Nino Vieira, por exemplo, sem relatarem quais as virtudes e os defeitos daquele projecto, o que poderia explicar alguns acontecimentos antigos e modernos que se passam na Guiné, e poderia ajudar a resolver alguns problemas, se alguem publicasse a história dos bastidores de Conacri, Havana e Moscovo. Mas quem conhecesse o que pensavam os angolanos e caboverdeanos antes de a luta armada de libertação começar, desde funcionários públicos, estudantes ou comerciantes, sabia que eles diziam e pensavam que se governavam muito bem se a Metrópole os deixassem governar. Isto no caso do PAIGC e MPLA, não me refiro à UNITA e UPA (FNLA).
Indepententemente de concordarmos ou não que os diversos países africanos deveriam ficar independentes das metrópoles naquelas circunstâncias da guerra fria dos anos 50/60 do outro século, penso hoje que Angola e Moçambique e a Guiné tinham gente capaz de fazer das suas terras uns países de fazer inveja e que sabiam governar. Claro que também se sabe que os que podiam fazer daqueles terras, países sem guerras e com harmonia e prosperidade poucos ficaram nessas terras, sendo que a maioria está na Europa, Brasil e até na América e Canadá ou já morreram.
Menciono apenas Amílcar Cabral e Luis Cabral para dar o exemplo dos que podiam fazer coisas lindas. Mas em Angola e em Portugal conheci e conheço muitas figuras públicas que podia mencionar e que andam por aí no jornalismo e na política portuguesa.
Então quem há uns tempos atrás tenha trabalhado em empresas de construção civil em Portugal, via que era rara a empresa em que nas chefias não houvesse um engenheiro angolano ou moçambicano e técnicos de toda a ordem.
Mesmo na Guiné houve sempre muitos engenheiros e técnicos angolanos e moçambicanos nas empresas portuguesas que trabalhavam como portugueses porque fugiram da guerra e da política entre os movimentos vencedores(!) nas suas terras de origem. Poderia haver desentendimentos políticos e até algum tipo de ditadura como também houve em Cabo Verde, mas aqui entenderam-se sem haver guerra nem quente nem fria nem tiros nem assassinatos.
Mas sem dúvida que Luis Cabral quase conseguia realizar alguns dos sonhos de Amílcar: o socialismo e a unidade. Enquanto ele governou funcionava, pelo menos aparentemente, o socialismo/comunismo, penso que com todas as suas características, pelo menos no campo económico. Quanto à unidade que Amílcar falava, pelo menos etnicamente, parecia alcançada, apenas a unidade com Cabo Verde se saberá o que se passou, quando a história dos bastidores for publicada por aqueles que viveram por dentro dos mesmos.
Como tive ocasião de ser cumprimentado em grupos de trabalho, mais que uma vez pelo presidente da República da Guiné Bissau, Luis Cabral, em que o ouvi falar e senti o entusiasmo com que estava dedicado à Guiné, acredito que por ele, todos os sonhos de Amílcar Cabral se concretizariam.
Mas uma coisa que sem dúvida falhou no projecto do PAIGC, e de Luis Cabral, foi a falta de colaboração do povo, principalmente dos mais idosos que viviam de braços caídos durante todos aqueles primeiros anos de independência. Mas se com Luis Cabral o socialismo não entusiasmou, com Nino Vieira dilui-se bastante com gilas, industriais de madeira (madeireiros), importadores de vinho, empreiteiros, etc., até que foi dado por findo mais ou menos em 1990, tranquilamente.
Este testemunho do que vi não é documentado nem quantificado, apenas fotografado de memória e que se não tivesse visto e estado nas filas de pão e de peixe, mais de meio ano sem comer batatas (das nossas), matar a fome milagrosamente na pensão da Dona Berta, e os guineenses da Tecnil já não compareciam ao trabalho porque não tinham arroz (fome em familia), não é para condenar nem aplaudir o governo ou as ideias do PAIGC.
- Cara, si tu não larga tudo e vai, dentro de 5 minuto tu tá por tua conta!
Espero que um dia os guineenses oiçam a explicação porque tinha que ser como foi, e aí talvez aqueles que estão de braços caídos se entusiasmem.
Antº Rosinha
[ Fixação / revisão de texto / título: LG]
Nota de L.G.:
Último poste desta série > 11 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7112: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (6): As descolonizações exemplares. Visto em 1960-1980-2010