segunda-feira, 8 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19956: Historiografia da presença portuguesa em África (167): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - Parte I


Guoleghal, a ave mensageira do conto de Canhánima (Sancorlã) e de Fuladu ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina). Conhecida na Guiné, coloquialmente, como ganga... Havia muitos na grande bolanha de Bambadinca. (*)

Foto (e legenda): © Armando Pires (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Cherno Baldé, com data de 1 do corrente:

Conforme prometido, junto envio mais um texto fruto de algumas notas de leitura feitas à volta da figura mítica, entre os fulas, de Alfa Moló e a criação do reino de Fuladu. Neste texto faço sobressair a importante figura de El-Hadj Omar (Foutyou) Tall, que as crónicas sobre Firdu e sobre Fuladu conferem o papel primordial no levantamento da população fula contra os soninquês pagãos (mandingas) do reino de Gabu na segunda metade do séc. XIX.(*)

Espero que tenha interesse e possa ser publicado no nosso blogue da Tabanca Grande.

Com os melhores cumprimentos, Cherno Baldé




2. Notas de leitura (**):

ALFA MOLÓ E O MITO FUNDADOR DO REINO DE FULADU - Parte I

por Cherno Baldé


Em Junho de 2010, no poste P6661 (*), falando sobre os acontecimentos ocorridos no regulado de Sancorlã, nos períodos de antes e após independência (1903-1974), tinha escrito:

“Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana dos últimos séculos, nada acontecia por acaso. Tudo se fundamentava e se justificava, partindo de pressupostos de ordem mística que, aparentemente, estariam na génese de todos os acontecimentos, fossem eles bons ou maus, fossem de natureza política, económica ou social, sempre explicados a partir da conjunção de determinados factores de ordem mística, muitas vezes sob a forma de pactos com seres invisíveis ou simplesmente entre indivíduos ou grupo de pessoas e cujo (in)cumprimento poderia ser sancionado ou premiado a seu justo valor e no devido tempo ».

Estes, eram tempos em que não havia só um Deus, mas muitos deuses, não havia só uma crença, mas uma pluralidade delas, tempos em que a África ainda não se orientava por Meca ou pelo Vaticano, mas sim através dos deuses (Irãs) que habitavam ao seu lado e com os quais podiam falar na sua própria língua.

Os povos que habitavam no reino mandinga de Gabu, mesmo se chegaram em tempos diferenciados, com origens diversas e viviam sob condições sociais diferentes, tinham em comum o facto de partilharem o mesmo espaço sócio-económico e ambiental, obrigando-os, necessariamente, a uma interação económica e mestiçagem cultural constante. Nessas condições, deveras adversas, que os indivíduos fossem de puro sangue (se o termo faz algum sentido) ou que fossem de sangue mestiço ; que fossem homens livres ou de condição servil, as identidades não eram imutáveis, mas submetidas a uma permanente construção, como foi o caso da família de Alfa Moló Baldé.

[Recorde-se: (i) Gabu foi a capital do Império Kaabu (também conhecido por Ngabou ou N’Gabu), um reino Mandinga que existiu entre 1537 e 1867 na chamada Senegâmbia, região que abarcava o nordeste da atual Guiné-Bissau, mas que se estendia até Casamança, no Senegal. 

(ii( Antes disso, Gabu, ou Kaabu, fora uma província do Império Mali que se tornara independente depois do declínio do império. 

(iii) No século XIX, os fulas estabeleceram a sua supremacia na região, pondo fim ao domínio de Kaabu. 

(iv) Durante o período colonial a cidade passou a ser designada por Nova Lamego, mas recuperou o seu nome tradicional após a independência do país." Fonte: Gabu (região). In: Wikipédia, com a devida vénia...]

(i) A chegada e a instalação de familias Fulas no território mandinga de Gabu

Segundo Abdarahmane Ngaindé, os mandingas do reino de Gabu enquanto guerreiros e esclavagistas, tinham construido fortins (tatas),) cobrindo este grande espaço territorial. Citando Michel Benoît, ele escreve :

 "Uma provincia, muitas vezes, não era mais que um tata instalado no meio da floresta que algumas famílias de pastores fulas percorriam com as suas manadas de gado bovino" (Benoît 1988, 510). 

Esta ocupação descontinua do território e a facilidade de instalação dos pastores fulas permitiam amplo aproveitamento do espaço para a criação itinerante dos seus animais.

Os especialistas da história do império de Gabu não são unânimes quanto à data exacta da chegada das primeiras vagas de famílias fulas nesta região de África Ocidental. As testemunhas, quando solicitadas, perdem-se sempre nas neblinas de longas histórias invocadas com muita emoção, mas pontuadas de muitas fantasias e imprecisões. As migrações, dizem, teriam sido feitas por escalas incessantes, facto que dissipa e impossibilita qualquer tentativa de descrever em detalhes a origem e percurso exacto desta ou daquela vaga de habitantes fulas.

Todavia, é sabido que as populações fulas de Fuladu são de origens diversas, podendo-se dinstinguir as originárias de Macina (actual Mali) ], como é o caso da família do autor destas linhas, o Cherno Baldé], de Bundu e Futa-Toro (actual Senegal), assim como do Futa-Djalon (Guiné-Conacri). A chegada desta última categoria é mais recente e data da segunda metade do séc. XIX.

Alguns autores, tais como Mamadu Mané ou Djibril Tamsir Niane, pensam que uma parte desta população se teria fixado nesses territórios com as primeiras vagas mandingas cuja chegada remonta aos séculos XIII/XIV, baseando-se num provérbio popular entre os mandingas segundo o qual "quando um mandinga chega de manhã, invariavelmente, o fula chega à tarde".

No entanto, pensam outros, é bem possível que tenham chegado um pouco mais tarde do Futa-Djalon na sequência das repressões que se seguiram à tomada de poder dos letrados muçulmanos, contra as populações pagãs a quando da revolução teocrática de 1725 (Ngaide, 1998).

De notar que estes movimentos de populações fulas para esta região foram muito semelhantes à digressão conduzida pelo célebre Coli Tenguella que chegou ao Futa-Toro (Senegal) em 1512 para fundar o primeiro reino fula dos Denyankês, tendo atravessado o Futa-Djalon e o actual território da Guiné-Bissau onde teria tido confrontos com os Biafadas, atravessando o rio Corubal (para os fulas o rio Corubal é Mayôh-Côli, isto é, rio Coli, em homenagem ao lendário chefe fula que teria abandonado o Mali, após a morte do pai «Tenguella Bâ », durante o reinado de Askia Mohamed),  o que teria favorecido o aumento da população fula, juntando-se aqueles que ja lá estavam.

A abundância de pastagens,  aliada à existência de extensas bacias hidrográficas, permitiram-lhes consolidar as suas bases económicas e sociais em todas as províncias que os acolheram, reforçadas pelos dons e oferendas aos príncipes e aos diferentes governadores (Farins) dos clãs mandingas reinantes naquelas províncias. Mais tarde e paulatinamente, eles se sedentarizam e se  passaram a dedicar-se, também, a uma agricultura pouco extensiva aos cuidados dos seus escravos ou servos, a fim de garantirem seu sustento.

Em conclusão, diz-nos Ngaidé Abdurahmane, poder-se-ia dizer que, desde finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, os fulas, chegados em vagas sucessivas, predominam em várias províncias de Gabu e as riquezas destas mesmas províncias dependiam, em larga medida, do número destes últimos. Isto é confirmado, diz-nos Ngaindé, pelo testemunho de Francis Moore [c. 1708 - c. 1756],  citado por Mamadou Mané. Este autor sublinha que « …sem estes estrangeiros (os fulas), os mandingas correriam o risco de passar fome, pois eles tiram deles todo o seu sustento » (F. Moore, 1978).

Este testemunho do inglês F. Moore, é datado do início do sec. XIX (1804). Um pouco mais tarde, na segunda metade do mesmo sêculo, o residente francês em Karabane (Casamansa), E. B. Bocandé (1812-1881), oferece-nos um testemunho similar ao afirmar:

«…é em proporção do número de Fulas estabelecidos no seu território que os chefes das aldeias mandingas devem a sua força, poder, a riqueza e a consideraçao de que beneficiam, porque aqueles o dão presentes de forma continua".

Ainda, segundo Abdarahmane, citando um outro testemunho inglês, Joye Bowman Hawkins « Os fulas eram tratados como sujeitos sob dominação e, como tal, deviam pagar uma taxa anual pela utilização das zonas de pastagens. Nessas condições, cada família era obrigada a pagar um determinado número de cabeças de gado. Os chefes mandingas davam-se ao luxo de escolher os melhores animais da manada, às vezes de forma abusiva, o que tornava as coisas cada vez mais insuportáveis na perspeciva dos fulas" (Bowman,  1981), para os quais aqueles animais não eram simples animais, mas considerados como membros da própria família.

E, é neste mesmo sentido que Mamadou Mané sublinha:  « Porque eram detentores das riquezas materiais (gado e produtos agrícolas como algodão e milho) os fulas eram constantemente abusados e explorados mais que todos os outros, pela aristocracia kaabunké" (Hawkins, 1981 et Quinn, 1971).

Estes testemunhos, entre muitos outros deixados por administradores e aventureiros europeus em África, permitem fazer-nos ver, para além dos abusos recorrentes e das suas consequências sociais, o papel fundamrental que detinham os fulas no reino mandinga de Gabu.

A acumulação de vexames e a situação económica e social no interior do reino no periodo após a abolição da escravatura, pelos ingleses, e o consequente declinio do comércio atlántico, vão estar na origem da revolta que vai derrubar os alicerces do reino e afastar os mandingas dos seus territorios de dominio tradicional.


(ii) Alfa Moló e o nascimento do reino de Fuladu

« Os primeiros anos do reino de Alfa Moló coincidem com a constituição do reino (1867-1881). Durante este período o povoamento fula se reforça e as populações ocupam zonas bem determinadas no antigo reino Gabunké, espalhando-se através do território recentemente 'libertado'. A sociedade fula implanta-se progressivamente e os diferentes elementos da sua organização económica e social se estabilizam. A secunda fase (1881-1903) coincide com o reino do seu filho, Mussa Moló. Este período é caracterizado por uma guerra fratricida que opõe Mussa ao seu tio Bacar Demba e de seguida ao seu irmão Dicori Cumba. Será um período dominado pela recrudescência da violência e das destruições humanas que acompanham-no" (Abdarahmane Ngaindé, 1998).

A juventude de Alfa Moló, diz-nos Abdarahmane citando De Roche, parece ter tido "um carácter particular" (Roche, 1985) na medida em que numerosas fontes de informação confirmam que ele foi educado pelo seu mestre, Samba Egué, que não tinha um filho varão , pelo que considerava aquele como seu filho legítimo a quem, de resto, tinha dado o seu apelido, facto que explica os privilégios que Alfa Moló vai beneficiar durante a sua juventude.

Com efeito, ele teria sido educado como um nobre, beneficiando de toda a atenção requerida e, em vez de se ocupar do gado, ele gostava de se entreter nas lides de cavalos, as idas à caça e ao maneio das armas, actividades reservadas, exclusivamente, aos homens corajosos e também livres. Mais tarde, ele será um caçador destemido, tendo à sua volta auxiliares (aprendizes) aos quais ele introduzia na arte do ofício. Naquela época, os caçadores eram muito considerados, gozando de um grande prestígio, fruto da sua coragem para enfrentar os diversos perigos visíveis e invisíveis escondidos na floresta africana.

Mas, apesar de tudo o que se pode dizer sobre Alfa Moló, que seja de origem nobre ou servil, de nada diminui a importância e o valor da acção que ele e seus companheiros vão realizar e a notoriedade que ele vai adquirir no periodo subsequente. Todavia, o nome de Alfa Moló Baldé só entra, verdadeiramente, em cena depois da passagem de El-Hadj Omar Tall (mais tarde imperador do Sudão), o Marabu que vai estar na origem do mito que envolve o surgimento do reino de Fuladu e os seus principais protagonistas.

Guiné 61/74 - P19955: Parabéns a você (1650): José Zeferino, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 4616 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19945: Parabéns a você (1649): Jorge Ferreira, ex-Alf Mil Inf da 3.ª CCAÇ (Guiné, 1961/63)

domingo, 7 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19954: Blogpoesia (627): "Manhã de Domingo no 'Polo Norte'", "Chuva de adversidades" e "Caderno diário", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Manhã de Domingo no "Polo Norte"

Frente ao convento de Mafra.
Fervilha de gente sentada.
Mesas repletas.
A fila de espera vem lá de fora.
Ao balcão não há mãos a medir.
Bolos preciosos. Galões e cafés.
É Domingo.
As famílias se aliviam da tarefa do pequeno-almoço.
As crianças satisfeitas lambem os beiços e jogam na tablete.
Há os isolados que lêem a "Bola" ou o CM.
Atentos como se na escola.
Lá fora, já há disparos de turistas sobre o Convento, a partir das esplanadas.
Ao lado, já vende a tendinha do "pão de Mafra".
Mafra agora é colorida pelas ruas.
Era cinzenta e recheada de tropa, quando por cá passei, nos anos sessenta...

ouvindo Mozart: Complete Piano Sonatas
Mafra, Bar Polo Norte, 30 de Junho de 2019
11h13m
Jlmg

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Chuva de adversidades

Por vezes a vida é flagelada por uma chuva de adversidades.
Dentro e fora de nossas casas.
Vem fustigada pelos ventos desenfreados.
Está tudo errado.
Parece o fim do mundo.

Quando tudo parecia sorrir.
A estabilidade.
Filhos bem arrumados.
A casa paga.

Como um raio, vem a doença.
Tudo escurece.
Lá se foi o gosto.

Só há Um que pode ajudar.
Tudo comanda.
Fé e esperança.
Não se podem perder.
A chave está nas Suas mãos...

Bar 7momentos, arredores de Mafra,
1 de Julho de 2019
dia de sol duvidoso
Jlmg

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Caderno diário

Aquele encanto. Novinho em folha.
Com uma linha ou duas.
Para cópias e redacções.
Na capa se escrevia o nome.
Propriedade nossa.
Por cinquenta centavos.
Nele se aprendia a escrever.
E a aperfeiçoar a caligrafia escolhida.
Redonda ou inclinada.
Uma descoberta que nunca acaba.
Foi na primária e secundária, dentro.

Depois, se assenta ao nosso jeito.

A mim, só quando estudei grego.
Aqueles caracteres diferentes me encaminharam para a que ficou para sempre.
Não é redonda, mas também não é deitada.
Agora, com o computador, tudo ficou ultrapassado.
Se escreve directo. Com o teclado.
Facilita muito.
Com um clique apenas, se apaga ou emenda.

Mafra, 4 de Julho de 2019
19h20m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19933: Blogpoesia (626): "Inspiração", "Zona da arrebentação" e "Asas largas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guine 61/74 - P19953: O Cancioneiro da Nossa Guerra (11): o fado "Brito, que és militar" (Bambadinca, 1970, ao tempo da CCS/BART 2917 e CCAÇ 12) (recolha de Gabriel Gonçalves, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BART 2917 (1970/72) > Convívio no bar de sargentos, em meados 1970, ou em 30 de novemhro de 1970, no 38º aniversário do 1º sargento Fernando Brito; ou ainda, festa de Natal de 1970?

Inicialmente inclinava-me para a hipótese de ter sido em "meados de 1970", ainda estávamos em "lua de mel", os "velhinhos" da CCAÇ 12, e os "piras" do BART 2917, aqui representados, à direita,  pelo 2º Comandante, maj art José António Anjos de Carvalho, sempre fardado, hoje cor art ref, e à esquerda, pelo  1º srgt art Fernando Brito (1932-2014)...

As senhoras: à direita do Brito, a Helena, mulher do alf mil at inf António Manuel Carlão, do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (o casal vive hoje em Fão, Esposende); à direita do Anjos de Carvalho, a esposa do major art, Jorge Vieira de Barros e Bastos (mais familiarmente conhecido por Bê Bê, era o major de operações do comando do BART 2917; hoje cor art ref); e à sua direita, Isabel, a esposa do José Alberto Coelho, o fur mil enf da CCS/BART 2917 ) (o casal vive hoje em Beja).

Mas tudo indica que se trata da festa de aniversário do 1º Brito, em 30/11/1970, apesar de, nessa altura, as relações com o major art Anjos de Carvalho, a três meses de acabar a nossa comissão, serem  muito crispadas e tensas... Dias antes, tínhamos sofrido em brutal revés, no subsetor do Xime, com 6 mortos e 9 feridos graves (Op Abencerragem Candente)...

A CCAÇ 12, como companhia de intervenção, africana, estava adida ao comando do setor L1. Inclino-me mais para a festa de anos do 1º Brito, que era de facto um "senhor 1º sargento", e que mantinha com a malta da CCAÇ 12 uma "relação muito especial"... Se se reparar bem na imagem, o Brito  ostenta uma chucha, ao pescoço, sinal de que fazia anos...  38 anos!... A festa não poderá, pois, ter ocorrido nos primeiros tempos, após a chegada do BART 2917 a Bambadinca, que veio render o BCAÇ 2852 (1968/70), em finais de maio de 1970...

Na altura, estas eram as três senhoras, brancas, que existiam no quartel de Bambadinca (, não contando com a senhora professora do ensino primário, cabo-verdiana, que raramente era vista, mas que vivia dentro das nossas instalações militares, no edifício da escola, a dona Violete da Silva Aires). E não havia miúdos, a não ser os da escola e da população local... Os militares guineenses (da CCAÇ 12 e outras subunidades, como os Pel Caç Nat que estiveram connosco) em geral eram casados e tinham consigo as famílias mas fora do arame farpado, vivendo em Bambadinca ou em Bambadincazinho.

Foto (e legenda): © Vitor Raposeiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Coimbra > 2012 > O Fernando Brito, major art ref, (1932-2014) e o neto, Claúdio Brito,   finalista da Universidade de Coimbra, ano letivo de 2011/2012 (Cortesia do Cláudio Brito, da sua página no Facebook).

Foto (e legenda): © Cláudio Brito (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Fado "Brito... que és militar!"(*)

Letra: Tony Levezinho

[Adapt: Fado "Povo que lavas no rio"

[Música: Fado Victória, composição original de Joaquim Campos (1911-1981)


Letra:
Pedro Homem de Melo 


Criação de Amália Rodrigues, 1961] [Uma interpretação de Amália
pode ser aqui ouvida, no YouTube -ficheio apenas áudio]

Refrão

Brito, que és militar,
Que vieste p'rá Guiné,
Em mais uma comissão.
Na CCS ficaste,
Para aturar o Baldé,
A pedir-te patacão.


Fui ver à secretaria,
Por ouvir a gritaria
Que fazia confusão:
- Mim quer saco de bianda!
- Põe-te nas putas, desanda,
Que a mim cá têm patacão!

Filho da puta e sacana,
É o que eles te chamam,
Tenho a mesma condição:
- Mamadús, eu vos adoro,

Se for preciso eu choro,
Mas Patacão... é que não!

Refrão

Brito, que és militar,
Que vieste p'rá Guiné,
Em mais uma comissão.
Na CCS ficaste,
Para aturar o Baldé,
A pedir-te patacão.


[Recolha: Gabriel Gonçalves / Revisão, fixação de texto: LG]



1. Este fado faz parte do Cancioneiro de Bambadinca, logo, deve integrar o Cancioneiro da Nossa Guerra (**). 

Quem o salvou, do limbo do esquecimento, foi o Gabriel Gonçalves, o 1º Cabo Cripto da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Eu reconheci a letra e o autor da letra, o nosso querido amigo Tony Levezinho.

Quanto ao homenageado, era o Fernando Brito, o 1º Sargento da CCS/BART 2917, que chegou a Bambadinca, para tomar conta do Sector L1, em finais de maio de 1970, quando a malta da CCAÇ 12 já pertencia à velhice, com um ano de porrada e outro batalhão em cima (CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)..

O Fernando Brito (1932-2014) era um senhor, que se impunha não só pelo seu físico e pelo verbo fácil como pela tarimba e pela autoridade... Naturalmente, suscitava amores e ódios, devido à sua personalidade excessiva... Era sobretudo um grande sedutor... 

Tinha uma cultura acima da média, se considerarmos o meio social de origem dos sargentos do quadro. Fazia gala de referir-se à esposa, de ascendência ou de apelido russo, Natacha.

Fazia questão de sublinhar, perante os reles infantes, que pertencia à orgulhosa arma de artilharia. Quando ouvíamos um disparo de obus, no Xime ou em Mansambo, comentava ele:
- Lá se foi mais um fato completo, com gravata se seda e tudo!... (Era o preço de uma granada de obus 10.5; em Bambadinca, nesse tempo, não havia artilharia)...

Não sei porquê, criámos - os furriéis da CCAÇ 12, já velhinhos - uma relação de empatia com o nosso Primeiro Brito, o chefão dos periquitos da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

A nossa CCAÇ 2590/CCAÇ 12 tinha deixado cedo de ter 1º sargento (O Fragata, de cavalaria, foi tirar o curso de oficial, na Escola Central de Sargentos, em Águeda), sendo essas funções desempenhadas interionamente pelo nosso querido 2º sargento inf José Manuel Rosado Piça, alentejano dos quatro costados, grande cúmplice, grande camarada, grande compincha, grande amigo... [Tinha 37 ou 38 anos mas não se foi embora da Guiné sem levar o seu baptismo de fogo... Já no final, nos princípios de 1971, obrigámo-lo a ir ao Poindon, desenfurrejar as pernas e a G-3]...

Qualquer deles, o Brito e o Piça, alinhavam nas nossas noitadas, loucas, de Bambadinca. O Brito tinha, além disso, um "tabanca" (leia-se: uma morança, dentro do perímetro de arame farpado do quartel, mas na parte civil, junto aos correios, escola, casa do chefe de posto)... Era um refúgio, para nós... Íamos lá beber uns copos... Ele e o 2º comandante, o Anjos de Carvalho, não se coziam lá muito bem (, segundo ele me confirmou, mais tarde, ainda em vida)... Nós, por nosso lado, detestávamos o "militarista" do 2º comandante, o senhor professor da Academia Militar Anjos de Carvalho... Mas a "tabanca do Brito" provocava algumas ciumeiras, já que nem todos tinham acesso ao "sítio"... Só os amigos ou os que ele considerava como tais...

Há 43 anos, desde março de 1971, que deixei de ter notícias dele, do nosso "primeiro Brito"... Acabei por ter a felicidade de ainda o apanhar com vida, a um mês de ele morrer, subitamente, antes de completar os 82 anos... Falámos longamente ao telefone... Vivia em Coimbra, já viúvo. Era major, reformado. Fez ainda uma segunda comissão no CTIG, como 1º sargento [1ª CCAÇ / BART 6523 (Madina Mandinga, 1972/74)], antes de frequentar a extinta Escola Central de Sargentos, em Águeda.

Morreu em 19 de fevereiro de 2014. Era (é) o nosso grã-tabanqueiro nº 641. O seu neto Cláudio Brito honra-nos também com a sua presença na Tabanca Grande, com o nº 697.   
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9144: O nosso fad...ário (5): Fado Brito que és militar (Letra de Tony Levezinho, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

(**) Postes anteriores da série:

16 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19020: O Cancioneiro da Nossa Guerra (10): O fado "Tudo isto é tropa" (recolha de Gabriel Gonçalves, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

14 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18921: O Cancioneiro da Nossa Guerra (9): Os bravos de Bambadinca

29 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18692: O Cancioneiro da Nossa Guerra (8): A Balada de Béli (recolha de José Loureiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1790 / BCAÇ 1933, Madina do Boé e Béli, 1967/69)

19 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18537: O Cancioneiro da Nossa Guerra (7): "Marcha de Regresso" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)

16 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18528: O Cancioneiro da Nossa Guerra (6): "Os Homens não Morrem" (Recolha de Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/ 68)

28 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O Cancioneiro da Nossa Guerra (5): O hino dos "Unidos de Mampatá", a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18261: O cancioneiro da nossa guerra (4): "o tango dos periquitos" ou o hino da revolta da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (Silvino Oliveira / José Colaço)

27 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18259: O cancioneiro da nossa guerra (3): mais quatro letras, ao gosto popular alentejano, do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)

8 de novembro de 2017> Guiné 61/74 - P17944: O cancioneiro da nossa guerra (2): três letras do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71): (i) Os Morcegos; (ii) Estou farto deles, tirem-me daqui; (iii) Fado da Metralha

30 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17811: O cancioneiro da nossa guerra (1): "Asssim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude"... 4 dezenas de quadras populares, do açoriano Eduardo Manuel Simas, ex-sold at inf, CCAÇ 4740, Cufar

sábado, 6 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19952: Os nossos seres, saberes e lazeres (337): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Era meu firme propósito aqui falar de uma Bruxelas que ainda não se invocara em memórias anteriores. Desta feita, é uma peregrinação sentimental, uma amizade de quarenta anos, ele vai desfazer-se da sua casa e parte para uma residência, anda muita melancolia pelo ar. Então, ocorreu-me, por que não peregrinar como se fizera nessas visitas primigénias, a calcorrear e a pôr os olhos no que os guias turísticos promovem como as grandes belezas do património arquitetónico e natural? É o que está a acontecer, a vistoriar feiras da ladra, lojas de livros e discos em segunda mão, andando por praças e avenidas, batendo à porta de museus. Sabe-se lá bem porquê, havia momentos desta agridoce peregrinação em que me recordava dos tempos da Europália 1991, dedicada a Portugal, a adubadora das visitas, visitando Goa, o Brasil, o barroco, o azulejo, feliz pelos comentários que ouvia à comunidade internacional.
Tempos idos, mas a mesma Bruxelas me acolhe de braços abertos, e eu retribuo - há fidelidades que nos enlevam.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (4)

Beja Santos

Sempre que deambula pelo centro de Bruxelas, o viandante vai espreitar o Mercado Saint-Géry, uma construção que data de 1881, vem nos livros que na Idade Média aqui existiu uma capela dedicada a Saint-Géry, patrono da paróquia e antigo bispo de Cambrai, aqui perto corria o Senne, um rio que hoje se encontra entaipado. O que foi mercado de muitas vitualhas aparece agora recomposto no seu estilo eclético, é um belíssimo espécime da arquitetura dos mercados cobertos, o seu exterior é estilo neorrenascença-flamengo e o interior prima pela sua ossatura metálica. É um centro de lazer, de venda de materiais relacionados com urbanismo e ambiente, e tem uma área de exposições. O viandante senta-se e delicia-se com a vida ali à volta, dá gosto ver este mercado de galinhas e peixarias transformado num polo cultural de referência.


Outro ponto de passagem obrigatório é o Teatro de la Monnaie, uma das salas de música a que se agarra a sua memória, sempre que vinha aqui trabalhar ou em férias tratava de encontrar um espetáculo a seu gosto, e sorte não lhe faltou. Não há agora condições para encontrar um espetáculo que o deleite, questões de calendário, mas impressiona-o sempre a qualidade dos cartazes, desta feita trata-se de uma ópera do checo Leoš Janáček “Da Casa dos Mortos”.


O ponto de paragem obrigatório seguinte é Le Botanique, jardim de cultura, entra-se na imensa Rue Royale e logo o viandante se deslumbra com uma belíssima montra Arte-Nova, deu algum trabalho encontrar um ângulo com os carros a passarem rente, não é uma imagem muito bem sucedida, guarda-se o prazer de partilhar a satisfação de aqui se exibir uma montra ao gosto antigo, há seguramente restauro bem feito, a montra bem o merece.


A Coluna do Congresso é inescapável pela sua monumentalidade e pelo que simboliza na identidade belga, comemora a adoção da Constituição do país pelo Congresso Nacional, que se separou os Países Baixos Meridionais dos Setentrionais, em 1831 nascia a Bélgica e a Holanda ficou minguada de território. Vivem sem rancor, troçam-se mutuamente, como nos casos de países fronteiros.


Chegou a hora de entrar no Botânico, no esplêndido edifício e nos seus belos jardins. O edifício é o centro cultural da comunidade francesa na Bélgica, os jardins são altamente aprazíveis. Em 1826, era dos grandes projetos urbanísticos, destruíram-se as muralhas da cidade, e ainda sob o domínio holandês fundou-se a Sociedade Real de Horticultura, aqui nasceu o Jardim Botânico. O edifício é uma fachada neoclássica com uma rotunda central com cúpula, era a antiga estufa, tudo já desativado e transformado em salas de exposições. O terreno é um declive que permitiu a combinação de estilos: estilo francês, estilo italiano e tanques à moda inglesa. O parque está dotado de 52 esculturas que evocam o tempo, as estações, as plantas e os animais. Dentro da reorganização do espaço do edifício, é cativante ver estes sinais da modernidade, como se uma verdura fosse tomando conta das paredes, pronta a irromper em direção aos céus.




Passeou-se no interior como gato pelas brasas, tempos houve em que a programação cultural era extremamente aliciante, o viandante recorda exposições como a Arte-Déco nos transatlânticos, o ético e o jurídico na arte fotográfica, a própria banda-desenhada. O que está a dar são umas coisas minimalistas vendidas como o mais transcendente da contemporaneidade, vão gozar com a prima deles, com aquelas frases pomposas que vivemos numa época de saturação de sinais e da réplica das imagens, e mostram-nos uns panos crus pintalgados numa cordas de roupa, como certificassem um olhar inovador sobre a arte…


Chama-se a esta artéria Rue Neuve, é toda ela comércio da globalização, aqui encontramos a Zara, a H&M e todas as lojas Casa dos nossos centros comerciais. Já houve cinemas e casas de chá antes do exacerbamento da sociedade de consumo, é hoje assunto do passado. O viandante veio à procura da Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, tem um longo currículo de aqui se apresentar, senta-se e medita, depois mergulha noutra direção. Mas registou uma arte insólita, um jovem rodeado de vasilhames, até velhos baldes de tinta aproveitou, apresentou o seu espetáculo de precursão, esfalfava-se e extraiu sonoridades que nem as da banda da Guarda Republicana. E agradecia muito satisfeito os donativos.



Como em muitos outros espaços de culto, os antecedentes de Nossa Senhora da Finisterra têm largos séculos de outros santuários. A atual casa de culto é do século XVIII, são linhas barrocas bem marcadas pelo Renascimento Clássico, com ADN no barroco do Brabante, tem a sua elegância e o seu interior harmoniza bem a opulência com o convite à conversa consigo próprio.




Sejamos económicos nos rasgados encómios aos belos murais que Bruxelas oferece, sempre sonhadores, a remeter para formulações da banda-desenhada, alegrando a cidade, nunca a desfeando, o viandante vai atento a novas manifestações decorativas, dá por bem aproveitado o seu passeio. Há mais de quarenta anos que aqui vem com regularidade e nunca se cansa. É obra, e o viandante quer que o seu sonho prossiga.

E daqui se parte para o local icónico do centro de Bruxelas, a Grand-Place.

(continua)
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Notas do editor

Vd. poste de 29 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19928: Os nossos seres, saberes e lazeres (334): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19947: Os nossos seres, saberes e lazeres (336): As minhas loucuras no Porto... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

Guiné 61/74 - P19951: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXV: Manuel Malaquias Oliveira, ten pilav (Aveiro, 1939 - Moçambique, 1967)





1. Continuação da publicação da série respeitante à 
biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia). (*)

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à direita], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

Morais da Silva foi cadete-aluno nº 45/63, do corpo de alunos da Academia Militar. É membro da nossa Tabanca Grande, com o nº 784, desde 7 do corrente.
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sexta-feira, 5 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19950: Agenda cultural (692): O professor Eduardo Costa Dias apresenta o livro "Os cronistas do canal do Geba - O BNU da Guiné", de Mário Beja Santos, dia 10 de Julho de 2019, 4ª feira, às 15h00, no Palácio Conde de Penafiel, sede da CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Rua S. Mamede ao Caldas, 21 - Lisboa






Eduardo Costa Dias, Guiné-Bissau, ,
 Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008)
 6 de Março. Foto de LG.
1. Mensagem do professor Eduardo Costa Dias, membro da nossa Tabanca Grande desde julho de 2010, tem 20 referências no nosso blogue (*) [, foto à esquerda]


[Doutor em Antropologia Social, Professor jubilado do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, Investigador do CEI-IUL, Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa; tem desenvolvido trabalhos sobre Epistemologia das ciências sociais, Desigualdades sociais e identidades sociais e, no contexto africano, sobre a Questão fundiária, o Estado, as Relações entre os dignitários muçulmanos e o Estado, a Transmissão de saberes nas sociedades muçulmanas africanas, a natureza das Forças Armadas em África e a “Geopolítica” dos tráficos e rebeliões na região do Saara - Sahel e do Noroeste africano.]


Sent: Thursday, June 20, 2019 2:02:12 PM
Subject: Lançamento de "Os cronistas desconhecidos do canal do Geba: o BNU da Guiné"

No próximo dia 10 de Julho, às 15 horas, na sede da CPLP, Rua de São Mamede ao Caldas, nº 21,
o Professor Eduardo Costa Dias apresenta mais uma importante obra do historiador Mário Beja Santos sobre a Guiné-Bissau, desta vez sobre o acervo do Arquivo Histórico do BNU:


Os cronistas desconhecidos do canal do Geba: o BNU da Guiné

"Que documentação está ao alcance do investigador da História da Guiné no século XX, ainda no período colonial?

Há o acesso ao Arquivo Histórico Ultramarino, também as bibliotecas especializadas como a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, relatórios de governadores, um acervo de publicações com destaque para os boletins da Escola Superior Colonial ou as revistas da Agência-Geral das Colónias (depois Agência-Geral do Ultramar) e sobretudo o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Os livros são escassos, depois da independência há uma outra torrente de investigação e não se pode descurar a literatura da guerra, os investigadores guineenses são igualmente indispensáveis.

Mas jazia no então Arquivo Histórico do BNU uma tonelada de papel que se revela completamente distinta da literatura oficial, glorificadora e apologética: os relatórios dos gerentes do BNU em Bolama e Bissau desmontam traquibérnias, denunciam imoralidades, corrupção, a mais aparatosa bandalhice. Estes gerentes, sempre à espreita, legaram uma documentação espantosa, que se revela indispensável para o estudo da colónia da Guiné desde a I República até à independência.

O estudioso vai-se envolver num universo de intrigas, mão-baixa, falências calamitosas, informações detalhadas sobre a economia agrícola, sobre o início da insurreição que conduziu a mais de uma década de luta armada… momentos há em que estes relatos atingem o nível do burlesco, da ópera bufa, e em simultâneo eram enviados para Lisboa dados preciosos sobre a sociedade, a mentalidade colonial, os negócios da mancarra operados pela CUF e pela Sociedade Comercial Ultramarina. Mal sabiam estes cronistas desconhecidos que estavam a processar História (e que histórias!)." (**)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 18 de julho de  2010 > Guiné 63/74 - P6758: Tabanca Grande (231): Eduardo Costa Dias, antropólogo, CEA / ISCTE / IUL

Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A malta da BCAV 490 já está a beber o seu cálice de fel, o bardo Santos Andrade não pára de nos contar desditas, apanham-se armas na guerrilha, morre-se de ambos os lados, há sol inclemente, mosquitos cruéis, emboscadas e patrulhamentos, caminhamos para o final de 1963, em Bissorã, em 14 de janeiro irão todos do cais do Pidjiquiti até ao Como, começando por desembarcar na Praia de Caiar.
Faz-nos hoje companhia um escritor açoriano com vários regressos literários pela Guiné, desta feita "Braço Tatuado", conta-nos histórias avulsas, o drama central é o do Niza, que não se conformou que a sua Lena desse o dito por não dito, era uma espera longa demais, o Niza não suportou a rejeição, aqui temos o relato de toda a tragédia que chegou a Dunane num aerograma. Histórias de guerra que todos conhecemos. Mas aqui, a qualidade literária de Cristóvão de Aguiar impõe-se por si só.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (13)

Beja Santos

“Amigo Diogo Augusto
duas armas apanhou
foi este rapaz louvado,
bom serviço desempenhou.

Foi ao pôr do dia
que saiu o 1.º e o 3.º pelotão.
Junto ao senhor Capitão,
todo o pessoal seguia.
Ele nos carreiros os metia,
por entre qualquer arbusto,
muitas vezes, com muito custo,
avançavam pelas bolanhas.
Tem para contar muitas façanhas
amigo Diogo Augusto.

Até ser de madrugada,
numas tabancas estiveram,
mas dormir nunca puderam,
por causa da bicharada.
O Tavares, bom camarada,
muitas picadas levou:
o clarim adormecido ficou
a um canto encostado
e nesse dia o tal soldado
duas armas apanhou.

Quando os aviões chegaram,
voltaram à mata de Fajonquito
onde houve conflito
quando os bandidos os avistaram.
Ao 185 apontaram,
mas falhou a escorva do malvado.
Ele voltou-se para o lado
matando dois dos três.
E a 18 deste mês
foi este rapaz louvado.

O Furriel Pacífico se feriu
quase no último dia,
feriu-se um rapaz de Artilharia
quando a mina explodiu.
O pelotão de António Mestre seguiu
socorrendo o que se passou.
O Varela e o Joel alinhou
com o Diamantino, boa pessoa,
que entre Bissorã e Mansoa
bom serviço desempenhou.”

********************

Entrou-se na rotina da guerra, patrulha-se, fazem-se colunas, captura-se armamento, explodem minas. Refletia sobre as atividades da CCAÇ 675 em Binta, sob o comando do Capitão do Quadrado. E nisto a memória esvoaça para outras paragens que as de Bissorã ou Mansoa ou Farim ou Guidage, vai-se para o Leste, há um alferes que vive em Dunane, dá pelo nome de Arquelau de Mendonça, é o escritor Cristóvão de Aguiar, aqui será várias vezes invocado, hoje circunscrito a coisas que escreveu no seu romance “Braço Tatuado”, 1.ª edição em 2008:
“Os camiões estão estacionados em frente do ex-estabelecimento comercial de um libanês, transformado em edifício de comando e secretaria. Os motores aquecem, roncando. Tudo a postos: rações de combate, cartucheiras à cinta de cada combatente, sacos de campanha cor de azeitona, com alguma roupa interior, maços de cartas e aerogramas amarelos, a cor do desespero. Só falto eu. Acabei de atravessar a parada, ainda me vou demorar um pouco na secretaria, tenho de ultimar, com o nosso Primeiro Gervásio, a guia de marcha do pelotão: ‘Por ordem de S. Ex.ª, o Comandante-Chefe, segue para a sede do batalhão de Nova Lamego, onde aguardará ordem de marcha para Dunane, o Primeiro Grupo de Combate desta Companhia, a fim de reforçar, sempre que necessário, as forças estacionadas no sector militar constituído por Nova Lamego, Piche, Canquelifá e Buruntuma. Vai abonado, assim como todos os seus homens, de alimentação até hoje inclusive…”.
Um pouco antes, o autor já apresentara a CCAÇ 666, o mesmo número da Besta do Apocalipse, a última parte do Novo Testamento que revela o mistério de Deus julgando e destruindo o mal, a fim de implantar o Seu Reino sobre a Terra.
E apresenta-nos Dunane:  
“Fica num mamelão da planície que se alonga de Piche a Canquelifá. Pode-se avistar léguas de terra arborizada, por vezes concentrada em mata virgem, outras raleando nas lalas, ou despindo-se por completo nas bolanhas, rios secos que, na época das chuvas, se transmudam em pântanos onde o indígena cultiva o arroz, praticamente abandonado nesta zona de ninguém e armadilha para os grupos de combate que aí se atolam até ao pescoço”.

O autor é expedito em contar histórias avulsas, sem rigor de espaço e de tempo. Uma para exemplo:
“O Alferes Leite morreu cerca de um mês antes do regresso definitivo a Lisboa. Tinha o seu grupo de combate intacto – um pelotão independente de artilharia sediado no destacamento de Cambaju há cerca de dois anos. A zona era pacífica e assim havia de continuar por bastante tempo.
Passeavam-se pelas tabancas ao redor, mantinham estreitas ligações com a população indígena, composta sobretudo pelas etnias Fula e Mandinga.
Duas vezes por semana, às quartas e sextas, quase todo o grupo de combate ia ao rio abastecer-se de peixe. No destacamento só ficavam os rancheiros, o radiotelegrafista, o cabo cripto e os faxinas de serviço. O alferes acompanhava o grupo da coluna. Ele próprio conduzia o jipe, os restantes iam num Unimog velhinho e lá seguiam na sua rotineira missão piscatória. Em vez de se lançar a rede às águas, lançavam-se duas ou três granadas ofensivas que explodiam debaixo de água. Pouco depois, aparece à tona uma espessa toalha de peixes mortos. Escolhem-se os mais grados e de melhor qualidade e deixam-se os restantes para serem comidos pelos jacarés ou debicados pelas aves de rapina… Desta vez o Alferes Leite foi estraçalhado por um crocodilo. O calor chicoteava a pele tisnada e ele quis, como de costume, dar um mergulho para se refrescar. Mergulhou e nunca mais apareceu. Quero dizer, apareceram mais tarde os restos de uma perna e um pedaço de tronco. Vieram encaixotados para a metrópole”.

E irrompe o cenário da tragédia, o seu personagem chama-se Niza:
“Na mão direita a carta já desdobrada. Pelos vincos se nota que deve ter sido lida e relida. Procura em mim uma testemunha ou um confidente que lhe confirme ou arrede a teia das desconfianças urdidas no íntimo com babas suspeitas…
‘Ó meu alferes, faça-me o favor de ler esta carta e diga-me depois com toda a franqueza se a Lena não está, por meias palavras, dando o dito por não dito…’. Ao fim de a ler, fiquei com a certeza que estava. Mas não lhe disse. Procurei antes, à minha maneira, tanger-lhe os bordões de um invisível instrumento a ver se lhe arrancava o tom de outra melodia. Fui dizendo que tivesse calma. A Lena, notava-se nas entrelinhas da carta, gostava muito dele, só que estava cansada de esperar e tinha de esperar outro tanto e quem espera, meu amigo… Terminei a cantilena com um lugar-comum, desses que se lançam à água como bóia de salvação, ‘Hás-de ver, Niza, que na próxima carta ou aerograma tudo se compõe e ela muda o seu pensar, ora se muda. E o namoro fica de pedra e cal…’
O Niza desesperou, o alferes Arquelau de Mendonça apercebe-se que se chegou ao último acto quando viu o destacamento em reboliço, toda a gente a correr para se esconder, o Niza de arma apontada ameaçando quem ousa aproximar-se. Até o cozinheiro deixou os caldeiros ao lume. O Niza avisa que dispara se o alferes der um passo adiante. O alferes tenta parlamentar, o Niza ameaça, e despeja para o ar, em rajada, quase todo o carregador da espingarda. ‘O meu alferes é o maior culpado da minha desgraça; se me tivesse proibido de fazer a tatuagem, já havia remédio; agora que estou fodido não vou nem quero ficar sozinho – vão todos ficar fodidos comigo…’. Rasga a manga da camisa, aos palavrões principia a esfolar o local da tatuagem. Nesse instante caiem-lhe três homens em cima, o Niza é imobilizado. Segue para os serviços de psiquiatria do Hospital Militar. “Três dias após a chegada ao hospital, o Niza apareceu morto. Enforcou-se com os lençóis da cama. Quando o encontraram pendurado, já enegrecido, um dos furriéis enfermeiros, atraído pelo vermelho vivo do sangue ainda a escorrer-lhe do braço direito, ainda conseguiu soletrar as palavras insculpidas na pele – Amor de Lena...”

Inevitavelmente, este romance de guerra não escamoteia o horror que uma mina antipessoal provoca:
“De súbito, um estampido. Vem dos lados da dianteira da coluna. Num instinto adquirido, toda a gente se manda para o chão. Era a emboscada, já há muito esperada. Não se trata de emboscada. Tão só uma mina antipessoal que explode debaixo de um pé do Furriel Simões. Ao aproximar-me do local, deparo com um homem enegrecido, autêntico autóctone, e fico por momentos mais descansado... Num ápice se desfaz o momentâneo alívio. O sinistrado é mesmo o Furriel Simões. Ficou negro da explosão. Voou-lhe a bota do pé esquerdo juntamente com o pé. Procuram-se ambos, mas tal deve ter sido o sumiço que nunca mais se encontraram. Do tornozelo para baixo, não existe nada. Corre apenas uma bica de sangue. O furriel grita pelos filhos que deixou algures no norte do continente. Acode-lhe o furriel enfermeiro com uma injecção de morfina e estanca-lhe o sangue com os coagulantes que traz na bolsa dos primeiros socorros e enrole-lhe com gaze e uma ligadura a parte final da perna. Por fim, cai num sono de pedra. Vai agora estendido numa maca de campanha transportada por quatro homens”.

Em pinceladas largas, aqui se registam as memórias desse açoriano de S. Miguel, que em breve regressará à nossa companhia para se juntar ao bardo Santos Andrade que em breve nos irá contar a batalha do Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 28 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19925: Notas de leitura (1191): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (12) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19936: Notas de leitura (1192): “Cambança Final”, por Alberto Branquinho; Sítio do Livro, 2013 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19948: (De) Caras (132): Manuel Barros Castro, ex-fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65), natural de Fafe, nosso grã-tabanqueiro nº 793..... Assumiu a paternidade da sua filha guineense, Maria Biai Barros Castro (1964-2009): uma história aqui (re)contada por Jaime Silva


Manuel Barros Castro, nascido em Fafe, em 9 de outubro de 1940. Andou na escola Escola Industrial e Comercial de Fafe. Vive na sua terra natal.  Tem página no Facebook sob o nome de  Manuel Castro . Cinco anos depois do nosso convite, decidiu finalmente formalizar a sua entrada na Tabanca Grande. Senta-se, desde hoje, no lugar nº 793 (*).



O Manuel Barros Castro, quando jovem: é o primeiro da primeira fila, de cócoras, a contar da esquerda, de óculos escuros. Os restantes são amigos e/ou talvez familiares. Foto tirada em Cabo Verde ou na Guiné, s/d, da autoria de Guilhermino Teixeira. Faz parte do seu álbum (vd. página do Facebook do Manuel Castro).

Fotos (e legendas): © Manuel Barros Castro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A história de Manuel Barros Castro, natural de Fafe (**)

 por Jaime Silva

[, ex-alf mil para, BCP 21, Angola, 1970/72], prof educação física ref, e ex-autarca, que  viveu em Fafe há cerca de 4 décadas, e que regressou agora à sua terra natal, Seixal, Lourinhã] [, foto à esquerda]

1. O Manuel Barros Castro esteve na Guiné e pertenceu á Companhia Operacional Independente, de atiradores de infantaria,  a CCAÇ 414, sediada em Catió, onde o pessoal se instalou em tendas de lona. Era furriel miliciano e tinha a especialidade de enfermeiro.

Desembarcou em Bissau no dia 21.3.63 e regressou a Portugal a 4.5.1965 [, mais de dois anos depois].

Formou companhia em Chaves, a qual esteve mobilizada para Moçambique, sendo à última hora desviada para a Guiné.

Nas conversas que, entretanto, ele fez o favor de ter comigo (eu conhecia a filha, mas não conhecia o contexto que tinha gerado a situação), ao falarmos do nosso relacionamento com as mulheres africanas, disse-lhe eu, a determinada altura:

“Até porque havia algumas facilidades de relacionamento pela facto de algumas se oferecerem para ser as nossas lavadeiras”.

“Não. Ela não era a minha lavadeira. Houve empatia entre os dois. Eu, como enfermeiro, dava apoio à população, distribuía medicamentos e foi nesta circunstância que a conheci”, disse, emocionado. “Emociono-me, sempre que falo neste período da minha vida”.

A gravidez foi problemática e, apesar de a jovem ser acompanhada por dois médicos militares, teve que ir para Bissau por falta de condições [, em Catió].

Em Bissau, para onde a companhia, a CCAÇ 414, se tinha deslocado temporariamente, soube, por uma tia da jovem, que esta estava hospitalizada e numa das vezes qua a visitou perguntou-lhe se ela concordava em entregar-lhe a filha, ao que ela respondeu que “só queria que ela seja branca”. Era uma jovem sem instrução que, embora não fosse católica, concordou em batizar a filha.

Após 16 meses no mato [, desde abril de 1963],  a companhia, em vez de ficar em Bissau como estava previsto inicialmente, foi parar a Cabo Verde [, em 28 de julho de 1964], alterando os planos do furriel Castro. Disse que já tinha tudo preparado para instalar a filha, conhecida já como “a menina da companhia” e protegida da esposa do comandante da companhia [, o cap inf Manuel Dias Freixo].

A menina nasceu a 16 de maio de 1964 e foi-lhe dado o nome de Lurdes Maria Biai Barros Castro. A Mimi, para a família e amigos.

A companhia esteve nove meses em Cabo Verde e , durante esse tempo,  a Mimi esteve, primeiro, internada num orfanato em Bissau, por interferência do bispo de Bissau, depois ao cuidado da madrinha, uma senhora nativa que era funcionária nos CTT de Bissau, para quem o Castro mandava mensalmente uma pensão.

Alguns anos depois de ter terminado a Comissão [, em maio de 1965], a madrinha da Mimi veio a Portugal, em 1969,  trazer a menina, cuja mãe, entretanto, falecera.

A Mimi fez o seu percurso escolar em Fafe, tal como os irmãos (um irmão e uma irmã), concluiu a Curso de professores do 1.º ciclo do ensino básico e, infelizmente, faleceu com 45 anos em setembro de 2009, de doença incurável, quando trabalhava numa escola do concelho da Póvoa do Varzim, em Maceira da Lixa.

O Manuel Barros Castro disse-me, ainda, que sempre se revoltou contra a falta de responsabilidade daqueles camaradas de armas que não assumiram os filhos que deixaram por lá, e foram muitos, tanto na Guiné como em Cabo Verde,

Contou-me um episódio, relativamente recente, em que uma mulher guineense, a residir nos Estados Unidos, filha duma situação ocorrida na sua companhia,  e que tinha descoberto a morada do pai, fez questão de vir a Portugal encontrar-se com o pai no aeroporto, só para lhe dizer: “eu sou sua filha, aquela mulher ali é a minha mãe. Eu não quero nada de si. Vim só para o conhecer. Passe muito bem!" [...]

2. Deu-me mais alguns pormenores que eu não sabia:

A filha, a Mimi, era casada com um colega professor e deixou uma filha de 11 anos que está a ser educada pelo pai, claro, mas com grande apoio dos avós. Aliás, frequenta a escola em Fafe.

Voltámos a falar da mentalidade da época, dos preconceitos sociais em relação à “cor” da pele e à rejeição social, sobretudo nas aldeias do norte e interior do país, a dificuldade em aceitar casos destes. Diz que sentiu bem os “olhares” quando a filha chegou. Aliás, quando se referiam à filha, perguntavam-lhe: “Então como vai a sua filha adotiva”?...  Ao que o Manuel Castro, disse, respondia perentório: “Eu não a adotei. A menina é mesmo minha filha”.

Disse-me, ainda, que no dia do funeral da filha, a madrinha (de quem já te falei) esteva em Portugal e esteve presente. Pois as pessoas, ainda então, “cochichavam ao ouvido” e perguntaram-lhe, mesmo, se ela não seria a mãe. Teve que esclarecer que mãe já tinha falecido e que a senhora era a madrinha da Mimi.

Lembrei-me da história do meu colega de escola, do Seixal, Lourinhã, de quem já te falei [, poste P12709]. Quando me deu o seu testemunho, disse-me que, algum tempo após o regresso à metrópole, teve saudades e pensou seriamente em mandá-los vir da Guiné, ao filho e à mãe. Mas, disse-me (na presença de mais dois conterrâneos, um deles esteve na Guiné, também) que recuou, com medo do que iriam dizer as pessoas !

Como tu bem dizes, não se deve julgar.

A propósito, o Castro disse-me, hoje, que nos encontros da companhia alguém (que ele identificou) lhe perguntou: “Trouxe a miúda, porquê?".

Caro Luís:

Uma história de vida edificante, sem dúvida. É exemplar e merece ser conhecida. (***)

Abraço, Jaime.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P19946: Tabanca Grande (482): Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 414 (Guiné e Cabo Verde, 1963/65)

(**) Vd. postes de:

6 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12687: Filhos do vento (27): Manuel Barros Castro, natural de Fafe, fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65) teve uma filha, de mãe guineense,e que ele de imediato perfilhou, Maria Biai Barros Castro (1964-2009)... Uma história exemplar (Jaime Bonifácio Marques da Silva)

27 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12780: Filhos do vento (29): Ainda a história do Manuel Barros Castro, natural de Fafe, ex-fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65), e os preconceitos ainda hoje existentes (Jaime Bonifácio Marques da Silva)

(***) Último poste da série > 1 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P19935: (De)Caras (107): Um ninho de "lacraus", em Espinho, Silvalde, fevereiro de 1969, na véspera de partida para o CTIG (Valdemar Queiroz / Abílio Duarte, CART 2479 / CART 11, 1969/70)

Guiné 61/74 - P19947: Os nossos seres, saberes e lazeres (336): As minhas loucuras no Porto... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


Porto > Ponte da Arrábida > 17 de junho de 2019, 17h35 >  A subida às entranhas da Ponte da Arrábida - 65 metros, 162 escadas, 18 andares


Porto > Ponte da Arrábida > 17 de junho de 2019, 17h16 > O cimbre da ponte


Porto > Bairro do Aleixo > 17 de junho de 2019, 16h38 >  A demolição da torre 1


Porto > Bairro do Aleixo > 17 de junho de 2019, 16h42 > Um das "sala de chuto"...

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem do Virgílio Teixeira, com data de 17 de junho de que se publicam alguns excertos, dada a sua extensão, e a diversidade do seu conteúdo, tocando em vários pontos, incluindo um comentário ao poste P19894 (*):

[Foto à direita, o nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); é economista e gestor, reformado; é natural do Porto; vive em Vila do Conde; tem mais de 130 referências no nosso blogue] 

Caro Luís,

Está esclarecida a minha duvida, só mesmo quem já tivesse experiência de trás poderia ter tantos conhecimentos, e depois a História da Unidade completou tudo o resto. Já poderia ter dito, eu não sabia dessa faceta. Ias preparado para contar a tua história na Guiné. (*)

Eu fiz fotos, iniciei a minha aprendizagem ali na Guiné, e deixa que te diga, o meu Álbum não é assim tão raro, pois tenho visto ao longo deste tempo, fotografias de lhes tirar o chapéu, não vou aqui agora personalizar, eu acho as outras melhores, mas tenho consciência de que tenho algumas também inéditas, embora a maioria tenha como personagem principal, eu próprio.

Ao longo dos dois anos, digamos líquidos 700 dias, devo ter escrito, a uma média de uma carta diária, por vezes eram duas, e em média cada carta levava umas 10-20 folhas escritas à mão, só de um lado, pois o papel fino, escrito com caneta de tinta não permitia escrever no verso, isto no mínimo serão umas 7000 folhas, isto por defeito. Cada carta levava depois algumas fotos que eu ia despachando para mãos seguras, a minha namorada.

As minhas cartas eram enviadas em envelopes de avião, até não caber mais nada, por isso por vezes iam dois envelopes cheios. Acho que nunca escrevi mais do que um aerograma, só para ficar de lembrança, não havia aerogramas que chegassem.

Todos os dias, não havendo nada de especial para ‘namorar’ por carta, eu escrevia tudo o que se passava na minha Unidade, os pormenores de tudo, e com certeza até nomes que não me lembro. Este valiosíssimo espólio, foi por mim ‘esquecido’ estava todo guardado e bem guardado, foi pena não o preservar como devia, assim por um acidente doméstico, não de nossa conta, acabou quase tudo de ir para um grande bidon numa grande fogueira de São João, na década de 70, bem como inúmeras fotos e slides que nem me lembro dos temas.

Fiquei com 1000 fotos, e meia dúzia de cartas, e é agora que lendo algumas fui buscar assuntos que de outra forma nunca me lembraria. Ficou uma carta de Mafra, uma carta de Lisboa EPAM, outra carta de Chaves do BC 10, uma carta de Santa Margarida durante o IAO, e umas 3 a 4 cartas da Guiné, com datas e anos diferentes. Agora tenho estas bem guardadas.

Partilhar agora como dizes as nossas lembranças, para todo o mundo ler, não é bem assim, eu acho até que já me estiquei demais a escrever certas coisas, que faço ao correr da pena, sem nunca ler depois o que escrevo, por isso tenho levado ‘porrada’ de certos leitores [...].

Este fim de semana realizou-se aqui, em Vila do Conde, o 42º encontro nacional dos homens da Marinha, com direito a um concerto pela Banda da Armada, que gostei imenso. Depois a nossa fadista Mariza, deu um espectáculo fenomenal, não a conhecia ao vivo, carrega atrás dela um camião TIR com material e montes de colaboradores, foi pena ter de a ver de esguelha, com direito a estar de pé e lugar apenas para um pé, ao ar livre, sem pagar. Eu acho que com familiares na Vereação da Camara poderia ter lugar nas cadeiras dos convidados especiais, mas não, não sei porquê.

No Domingo, ontem, fui parar a um sítio por onde comecei a minha verdadeira carreira, há precisamente quase 50 anos, estamos nos arredores de Vila do Conde, 6 a 7 km, e à distância de 40 km do Porto, uma freguesia que não vou descrever o nome para não ferir ninguém. Há lá uma igreja, que é dominada por um sacerdote negro, a minha empregada que mora por ali, conseguiu convencer a minha mulher a ir lá, pois eles dizem, que em certos Domingos, na missa das 7 horas da tarde é ‘muito bonita’. A verdade é que estava lá uma camioneta de Fátima, cheia de fieis. [...]

Hoje, segunda feira,   de tarde vou carregar com a minha máquina, e vou fotografar as Torres do Aleixo, o Santuário da Droga do Porto, que eles começaram a derrubar sem eu saber, vi ontem na Televisão. E quero deixar isto para a posteridade. Ali vai nascer um empreendimento de luxo com maravilhosas vistas para o Douro e para a Foz.

Já lá tinha ido há uns anos, ver com os meus olhos, de fato e gravata, pasta de executivo nas mãos, passei pelo meio de tudo, não me agradou nada aquele cenário degradante a céu aberto, onde só passam os clientes, e a Polícia com vários carros e pessoal armado. Passei e ninguém me chateou, algumas pessoas quase não me deixavam passar, que era uma loucura e ainda com a agravante de ir de pasta… eu disse que não me metem medo, tinha de ver com os meus olhos aquilo tudo. Ainda bem que vai tudo abaixo, agora a questão é para onde vão assentar a sua praça e comércio.

Depois ainda voltarei a este assunto. (**)

Abraço,

Virgilio

PS - Acabei de 'sacar' algumas das 80 fotos feitas hoje no Porto nas 3 horas a andar a pé. Para mais tarde recordar.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19894: A galeria dos meus heróis (31): Fatumata, a gazela furtiva de Sare Ganá (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19946: Tabanca Grande (482): Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 414 (Guiné e Cabo Verde, 1963/65): senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 793

1. Mensagem, com data de 29 de Julho de 2019, do nosso camarada e novo tertuliano Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 414, Catió (1963/64) e Cabo Verde (1064/65), que se vai sentar no lugar 793 do nosso poilão:

Caro camarada,
Já várias vezes prometi entrar para o número dos célebres tabanqueiros e já consto dos amigos no Facebook.

Hoje resolvi definitivamente pedir a admissão no fabuloso blogue, para o que junto duas fotografias e me identifico:
Sou de nome Manuel Barros Castro, nascido em 09/10/1940, residente em Fafe e fui furriel miliciano enfermeiro, ao serviço da Companhia de Caçadores 414 na então Guiné Portuguesa, no período de 1963/1965.

Saudações de camaradagem
Manuel Barros Castro

Manuel Barros Castro - Catió


2. Comentário do editor:

Caro Manuel Castro, bem-vindo à nossa Tabanca Grande.
Pelo que descobri da tua 414, tu e os teus camaradas foram uns sortudos com férias nos melhores resorts da Guiné e Cabo Verde.

Gostaríamos que partilhasses connosco fotos e memórias escritas da tua comissão de serviço nas duas Províncias Ultramarinas, tu que neste Blogue tens duas entradas referentes uma bonita e exemplar história de vida[1]. Foste, melhor, és uma referência de verticalidade moral. Bem hajas.

Da CCAÇ 414 temos só as duas entradas correspondentes à tua história, pelo que ficas com a responsabilidade de engrossar, aqui, a história da tua Companhia.

Em nome dos editores e da tertúlia, deixo-te um abraço e os votos de saúde.
Ficamos aqui ao teu dispor para publicar o material que nos possas enviar.

Um abraço pessoal do
Carlos Vinhal


3. Sobre a CCAÇ 414:


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Notas do editor:

[1] - Vd. postes de:

6 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12687: Filhos do vento (27): Manuel Barros Castro, natural de Fafe, fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65) teve uma filha, de mãe guineense,e que ele de imediato perfilhou, Maria Biai Barros Castro (1964-2009)... Uma história exemplar (Jaime Bonifácio Marques da Silva)
e
27 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12780: Filhos do vento (29): Ainda a história do Manuel Barros Castro, natural de Fafe, ex-fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65), e os preconceitos ainda hoje existentes (Jaime Bonifácio Marques da Silva)

Último poste da série de5 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19859: Tabanca Grande (481): Abel Rei, ex-1º cabo, CART 1661 (Fá, Enxalé, Bissá, Porto Gole, 1967/68)... Autor do livro "Entre o paraíso e o inferno: de Fá a Bissá, memórias da Guiné., 1967/68"... Passa finalmente a sentar-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 792