segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21934: Notas de leitura (1342): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Após anos de prisão, com a saúde abalada mas sempre combativo, Henrique Galvão evade-se do Hospital de Santa Maria e parte para o exílio. Ficarão dignos de nota: (i) a tentativa de uma sólida aliança oposicionista de Delgado e Galvão, será sonho quimérico, a prazo irão desavençar-se, Galvão é anticomunista feroz e tem uma conceção muito sui generis do Império, acredita em Estados multirraciais, será exatamente isso que dirá numa Comissão da ONU, não entusiasmando os legados africanos; (ii) o assalto ao paquete Santa Maria correrá mundo, será sempre uma notícia para o Estado Novo; (iii)nhaverá o desvio de um avião da TAP na linha Casablanca – Lisboa, mais uma inquietação para Salazar, aquele ano de 1961 será horrível do princípio ao fim. 

E no Brasil, mesmo escrevendo febrilmente, Galvão está cada vez mais sozinho, não tem o acompanhamento da família a não ser sob a forma epistolar. Vai perdendo a lucidez e desaparecerá em junho de 1970.
 
É uma das figuras mais complexas da Oposição, ele que era dado como um indefetível de Salazar, que fora um dos forjadores do 28 de maio de 1926, ele que irá aparecer associado, como muito poucos outros, ao feitiço do Império, terá a coragem de denunciar na década de 1940, a corrupção e a escravatura que se praticavam nas mais ricas Colónias, incomodou-o o regime que o foi ostracizando. E não se pode estudar a vida colonial portuguesa nesse período sem conhecer os seus explosivos relatórios que deitam abaixo as teses miríficas da multirracialidade, a que Salazar se agarrou para lançar o país na tão longa Guerra Colonial.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (3)

Beja Santos

“Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro, 2011, é a biografia de uma das figuras mais polémicas de um apoiante de Salazar e do Estado Novo que se insurgiu e se constituiu como um dos mais ferozes adversários do ditador.

Acompanhámos o itinerário deste entusiasta de Salazar e do Estado Novo, escritor febril, polemista, inspetor superior de Administração Colonial, organizador de feiras coloniais, caçador exímio, deputado, organizador de exposições e congressos, primeiro diretor da Emissora Nacional. 

Na segunda metade da década de 1940, Galvão elabora relatórios que desvelam corrupção, compadrio, escravatura e miséria, nomeadamente em Angola, Moçambique e S. Tomé. Gradualmente, será ostracizado e desmotiva-se com Salazar, descrê que o Estado Novo leve por diante um projeto ardoroso para a mística imperial, enfileira-se na Oposição, engendra um bizarro projeto de golpe de Estado, será preso e aqui se inicia um calvário celular que culminará com a sua rocambolesca fuga do Hospital de Santa Maria, em janeiro de 1959. Mesmo preso, escreve obras de toda a espécie, traduz, é um epistológrafo compulsivo.

Pede acolhimento na Embaixada da Argentina, a sua escrita tem verdadeiramente ácido sulfúrico, como é o caso da Carta Aberta a Salazar, que começa deste modo:

“Pois é verdade, meu caro Manholas Júnior: evadi-me das tuas garras, dos teus ódios incansáveis, da tua Gestapo todo-poderosa e seus algozes, das tuas mordazes, dos teus juízes e tribunais especiais, dos teus tiranetes enriquecidos e condecorados, dos teus bordos tubarões e idólatras mercenários, das tuas ‘notas do dia’ e ‘notas oficiosas’, do teu exército de ocupação e respectivos generalecos, das tuas prisões e campos de concentração, do teu mercado de favores, dos teus discursos sem resposta, das tuas mentiras magistrais, da tua corte de vampiros e cretinos, dos teus venais e pederastas, dos teus negreiros, dos teus eufemismos tartufescos, da tua Oligarquia, da tua Fazenda, do teu Rebanho.”

Falando de si, afirmava com orgulho: 

“Nunca fui desleal para com o adversário político nem persegui humildes ou vencidos – mas ataquei de frente alguns vilões cujas mãos tu havias enchido de varas”.

E parte para a Argentina, aqui o seu trabalho político era desinteressante, não existia uma comunidade de imigrantes significativa. Neste período, corresponde-se regularmente com Humberto Delgado, este está no Brasil, onde cria o MNI – Movimento Nacional Independente, para o qual arregimenta pessoas da sua confiança, caso de Galvão. Este começa a escrever no jornal da Oposição, o Portugal Livre.

Em abril de 1960, germina a ideia de assaltar o paquete Santa Maria, Galvão ajudara a criar o DRIL – Directório Revolucionário Ibérico de Libertação, a que se juntaram alguns galegos comunistas e anarquistas. O plano era assaltar a pérola da marinha mercante portuguesa, com cerca de 600 passageiros e 370 tripulantes, que fazia a rota Lisboa – Miami. 

Os 24 combatentes do DRIL embarcaram no Santa Maria em La Guaira, na Venezuela, e outros em Curaçau, começava o assalto que seria revelado pela imprensa mundial, mobilizando várias forças aéreas, era uma verdadeira bomba no palco da opinião pública mundial. 

Após negociações, os assaltantes abandonam o paquete no Recife, o recém-eleito Presidente Jânio Quadros acolheu Galvão. Dias depois, em Luanda, dá-se o assalto à 7.ª Esquadra da PSP, estão envolvidos a UPA e o MPLA, não houvera qualquer relação entre os dois acontecimentos, o assalto ao Santa Maria não tivera qualquer ligação com o desencadear da subversão em Angola.

Os últimos anos de vida de Galvão terão forros de dramatismo. Nunca se quis ligar aos movimentos de libertação, germinou uma tese própria, evolutiva, de que as colónias portuguesas fariam parte de uma ampla federação e que seriam países multirraciais, será ultrapassado pela corrente revolucionária. Aliás, a rotura de Delgado com Galvão virá a dar-se com as divergências de opinião quanto à colaboração com os comunistas e à independência imediata das Colónias. 

Galvão irá a Marrocos mas nunca estabelecerá contatos com a CONCP – Confederação das Organizações Nacionalistas nas Colónias Portuguesas, Galvão não estava disposto a aceitar a autodeterminação nas Colónias. É neste contexto que com o apoio de Palma Inácio, Camilo Mortágua e outros se desvia um avião da TAP, que partia de Casablanca para Lisboa, isto em 10 de novembro de 1961, lançaram-se panfletos e regressou-se a Casablanca.

A vida no Brasil tece-se de intrigas e divisões, Galvão não para de escrever, pede apoios internacionais, nas Nações Unidas acabará por ser ouvido. Galvão, apoiado pelo Comité Pró-Democracia em Portugal, irá apresentar um pedido ao Presidente da 4.ª Comissão das Nações Unidas para ser ouvido relativamente aos territórios ultramarinos. A diplomacia portuguesa insurge-se, e em 9 de dezembro de 1963, Galvão chegou à ONU para ser ouvido como peticionário. Tudo irá decorrer numa atmosfera um tanto surreal. Perante mais de 100 delegados, Galvão defendeu que se os dirigentes democráticos portugueses fossem libertados e Salazar renunciasse ao poder, se encontraria uma solução para a situação Angola – Moçambique, no sentido de uma espécie de autonomia birracial para os territórios ligados a Portugal. Os delegados africanos não mostraram entusiasmo. Mas o Estado Novo sofreu um revés, um oposicionista fora escutado por uma Comissão das Nações Unidas.

Galvão vai-se afastando do realismo político, quebram-se todas as alianças, vão morrendo companheiros da primeira hora, Delgado é assassinado, Galvão continua a escrever em O Estado de São Paulo, mas vai adoecendo, embora obcecado com a ideia de invadir Portugal, a lucidez esvai-se, vai viver no Sanatório da Bela Vista onde Mário Soares o irá visitar em 1970, onde em 25 de junho ele deixou o mundo dos vivos.

Após o 25 de abril, será alvo de evocações e em 10 de junho de 1991 foi condecorado postumamente com a grã-cruz da Ordem da Liberdade.
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Notas do editor

Poste anterior de 15 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21904: Notas de leitura (1340): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21909: Notas de leitura (1341): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte I - O direito, o dever, o prazer... e a dor da memória (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P21933: No céu não há disto...Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (21): A Broa de Milho à Moda do Minho... e as sopas de vinho verde tinto (Joaquim Costa, V. N. Famalicão)


A broa de milho à moda do Minho...à moda da minha mãe


Foto (e legenda): © Joquim Costa  (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar:


Data: segunda, 22/02/2021 à(s) 12:53
Assunto: O pão de milho e as sopas de vinho

 
Caro Luís, amigos e camaradas, em resposta à tua sugestão (*), aproveito para dar voz ao pão de milho, moído nas bucólicas azenhas espalhadas por toda a região do Minho, dando continuidade às minhas memórias de Paz.


As minhas tamanquinhas, a broa de milho… 
e as sopas de vinho verde tinto

por Joaquim Costa


Terminado o verão, era altura de preparar o inverno, pelo que a minha mãe me levou com ela à feira para comprar umas chancas novas e uma masseira (recipiente em madeira para dar “Coça” à massa para a fornada de pão) já que a velhinha de várias gerações se estragou.

O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos que precisavam a bom preço bem como um pouco de divertimento e convívio fugindo, por ,algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:

  • venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas a saltarem de mão em mão (Durante toda a tarde nunca a malga era lavada e todos os amigos que chegavam eram convidados a uma “golada” ; (a Sara era chamada frequentemente para repor o tinto com a frase: "Sara! lave com a mesma água !");
  • se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;
  • onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes (um menino que nasceu com 3 cabeças e um homem que matou a mãe à facada e foi morto com uma cornada de um boi em defesa desta);
  • onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;
  • onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;
  • onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;
  • onde não faltava, nos dias de calor, a “águadeira”, com o seu cântaro de barro a vender copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;
  • onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.

Antes de irmos às minhas chancas a minha mãe ainda comprou uma “masseira” nova para amassar a farinha para as fornadas de pão que cozíamos no forno caseiro uma vez por semana. 

A Sexta Feira era o dia mais esperado. Dia de cozer uma fornada de pão para toda a semana. Para além de ser o único dia da semana em que se comia pão fresco, era o dia das sopas de vinho (sopas de cavalo cansado), e da bôla com carne. Com o pão a sair do forno quentinho e estaladiço partia-se com a mão, ainda a queimar, para uma malga onde se embebia em vinho tinto. Ficava em descanso durante umas horas e ao fim da tarde era um regalo ver todos os meus irmãos a “lambuzarem-se” com tão extraordinária iguaria.

Eu não ficava de fora e tinha direito a uma pequena tigela, onde deitava um pouco de açucar. Não estava autorizado a beber vinho mas estava autorizado, uma vez por semana, a comê-lo (gostava mesmo daquilo). Eram as sopas de vinho e uma cebola pequena aberta com dois golpes preenchidos com sal e acompanhada com pão de milho quentinho que eu mais adorava.

Outra iguaria que fazia as nossas delícias era uma bôla, espalmada, onde se colocavam pequenos pedaços de carne de porco entremeada. Ia ao forno com a carne onde se derretia a gordura que dava um sabor divinal à bôla.]

Ao contrária dos nosso netos, que julgam que tudo o que aparece nas superfícies comerciais é feito na fábricas, no meu tempo, quando comia um “naco” de pão de milho sabia, melhor do que ninguém, como se chegou e este momento tão extraordinário de saborear esta dádiva da natureza.

A minha casa era rodeada por campos onde se cultivava, alternadamente, milho e centeio, acompanhando, maravilhado, os milagres da natureza:

  • acompanhava o lavrar a terra, ainda com a charrua puxada por uma junta de bois;
  • acompanhava a sementeira manual com gestos precisos e elegantes;
  • abria a janela todos os dias de manhãzinha e ver o que a natureza tinha tinha feito, durante a noite, à sementeira;
  • assistia à rega do milho abrindo e tapando carreiros, com a ajuda de uma enxada, onde passava um pequeno regato de água;
  • caminhava por entre o milho, cortando uma espiga, ainda verde, para assar na lareira da cozinha;
  • fumava os primeiros “cigarros” com as barbas de milho já secas enroladas em papel de mortalha;
  • participava na apanha do milho, fazendo o trajeto para a eira em cima dos carros de bois;
  • participava nas magníficas, e tão esperadas, desfolhadas, com muitas cantorias acompanhadas pelas tradicionais concertinas, muito vinho e presunto. O clímax destes momentos era quando alguém desfolhava um milho rei, com os rapazes em êxtase dando beijos às raparigas solteiras;
  • assistia à malha do milho com gestos preciso, coordenados e elegantes dos malhadores;
  • acompanhava o moleiro carregando sacos de milho do lavrador até ao moinho de água, construído num ribeiro afluente do Ave e acompanhava-o no regresso já com os sacos cheios de farinha;
  • assistia e ajudava ao levar em braços do moleiro até à sua carroça, puxada por um elegante e inteligente cavalo, depois de adormecer, bem jantado e bebido, e, dar uma pancada no cavalo que o levava direitinho até casa, escolhendo o melhor caminho para não acordar o patrão.

Depois, de todas estas tarefas, tudo ficava nas mãos da minha mãe:
  • Amassar a farinha numa masseira de madeira, fazendo uma reza e benzendo várias vezes a massa já devidamente posta em sossego, depois de uma valente coça;
  • Aquecer o forno com caruma e carqueja apanhada nas bouças vizinhas (altura em que as matas estavam sempre limpas);
  • Meter toda a fornada no forno já quente e limpo, utilizando uma gamela de madeira para dar forma à broa;
  • Fechar o forno, tapar todas as frinchas com um material, que me escuso de desvendar evitando ferir a sensibilidade de leitores mais suscetíveis, e mais uma reza e umas benzeduras.

Depois o milagre acontece... com o pão, que “Deus” amassou... na malga embebido em vinho tinto

“Amem"

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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21922: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (20): O pão nosso de cada diz nos dai hoje, diz a "chef" Alice... E se for de farinha de trigo de Barbela, do Moinho de Avis (Cadaval, Montejunto,1810), ainda melhor!

Guiné 61/74 - P21932: Os nossos camaradas guineenses (46): O Jobo Baldé, o padeiro de Missirá e depois do Mato Cão, Pel Caç Nat 52, ferido ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), e que sonhava vir para Lisboa e trabalhar na panificação...

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/70)  > 1969 > O sold Jobo Baldé, ao tempo do alf mil Mário Beja Santos, comandante do pelotão. Veio de Galomaro, Cossé, em 1969. Ofereceu-se como voluntário para fazer o pão no destacamento. 

"Esta é a primeira fotografia do Jobo na sua padaria: ele amassa cheio de vontade o nosso primeiro pão; veio um mestre do Cossé ensinar a fazer o forno; ele amassa num cunhete de granadas de bazuca mas do que gosto mais é a determinação do seu olhar, há ali um mundo de sonhos que ninguém, parecia, iria parar. Honra ao trabalho, amassarás o teu pão com o suor do teu rosto." (*****)

Foto (e legenda): © Beja Santos (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Chamava-se Jobo Baldé, recorda o seu antigo comandante, o Mário Beja Santos. Era "o padeiro de Missirá, empreendedor topo de gama, sacrificava todos os seus lazeres para fazer pãozinho para a população civil".  (*)

E acrescenta o nosso camarada e colaborador permanente: "Revejo sempre esta fotografia com orgulho e olhos humedecidos. O Jobo prepara o pãozinho num cunhete de granadas de bazuca. Enviei esta fotografia à minha noiva e digo: 'Jobo, o padeiro que Rossini esqueceu para as suas óperas'...

"O Jobo tinha um fio de voz, quase ciciava, seguia bem perto do seu alferes. Escreveu-me anos a fio, também queria vir trabalhar para Portugal. Em Dezembro de 2010, procurei vê-lo. O Fodé Dahaba telefonou-lhe, não tinha dinheiro para se deslocar da região de Galomaro a Bambadinca, e nós não podíamos lá ir. Caí na asneira de lhe dizer que regressaria à Guiné, alguém ouviu, e é por isso que de vez em quando me escrevem para saber quando eu volto"… (*)

2. Mensagem do Beja Santos, com data de 29 de Setembro de 2006:

Caro Luís, a violência deste exercício ficou atenuada quando a Cristina me passou para as mãos as centenas de aerogramas que lhe enviei. Estou presentemente a arrumar por anos e depois passarei aos meses e dias. Até agora a memória não me tem atraiçoado, das cartas encontradas do período abordado vejo que há episódios humanos que merecem ser relatados.

E descobri algumas cartas dos meus soldados que te vou enviar pois eles enriquecem a histórias de todas as nossas relações afectivas, o português que se usava, o amor que se instalou entre os homens. Tu farás o uso que entenderes desta correspondência, tens plena liberdade para reproduzires como e quando for mais conveniente. (...) (**)

Exmº Sr Meu Alferes

por Beja Santos

Passou por aqui há dias o Queta Baldé, antigo soldado do Pel Caç Nat 52. É segurança nocturno numa empresa das redondezas, e de vez em quando vem partir mantenha. Trouxe-me uma carta datada de 1 de Janeiro, de Bissau, e assinada por Jobo Baldé. A fotografia dele já aqui apareceu, era o nosso padeiro a quem demos uma concessão de vender algumas fornadas de pão à população civil.

Na época das chuvas, não era possível trazermos os sacos de farinha na viatura e pedimos apoio aéreo. Lembro a ocasião em que um helicóptero nos largou a 15 metros de altura, sob a parada, um saco de farinha que tivemos de peneirar para tirar a terra... O Jobo escreve assim:

"Antes de mais desejo-te uma boa continuação de saúde e felicidade. Espero que não tenhas esquecido o Jobo. Olha Alfer Becha dos Santos você tinha-me dito vai me levar em Lisboa quando eu entrego a farda da tropa. Eu era o teu antigo padeiro em Missirá. Quero ir para Lisboa. Cumprimento para a sua família da casa. Jobo em Bissau, telefone 25-51-25."

Guardei outras missivas do Jobo. Por exemplo:

"Meu Senhor Alferes que eu queria dizer uma coisa que seja verdade porque meu mulher já pariu na nossa terra. Olha, ela pariu na segunda feira passada. Dá autorização a Jobo para ir a Galomaro"...

E outra:

"Querido Alferes, eu queria visitar meu familiar, empresta-me 500 ou 400 escudos pois tenho que fazer festa do filho e sem dinheiro eu fico com muita vergonha. Eu peço 4 dias de dispensa. Adeus".


3. O Jobo Baldé não vinha da formação inicial do Pel Caç Nat 52, ao tempo do alf mil Henrique Matos (Enxalé, 1966/68). Mas chegará ao fim. O Pelotão será extinto em agosto de 1974, era comandante o alf mil Luís Mourato Oliveira (***).

Demos de novo a palavra ao seu "biógrafo" (****):

(...) Depois do grande incêndio de Missirá, em 19 de Março de 1969, durante a reconstrução, deu-se azo à imaginação, alguns progressos foram possíveis no nosso ameaçado bem-estar. Para substituir Sadjo Baldé, um dos falecidos durante a flagelação, veio o Jobo, natural de Galomaro.

Não tínhamos padaria, e em conversa informal perguntei tanto no Pel Caç Nat 52 e do Pel Mil 101 se havia voluntários para as tarefas da padaria. Jobo ofereceu-se logo, e, moderno e polivalente, fez-me a seguinte proposta: Faria pão para a tropa dentro do seu horário, independentemente dos reforços, idas a Mato de Cão, colunas de abastecimento, emboscadas e operações; fora do serviço queria dedicar-se ao que hoje se chama o empreendedorismo.

E assim foi, ele era bem jovem e deu conta do recado tanto na actividade independente como nas tarefas marciais. Era um regalo o cheirinho a pão, a partir de Julho de 1969. A Missirá civil deu-lhe farta clientela, todo o pão alvo era escoado sem reclamações.

O Jobo ainda resistiu quando fomos para Bambadinca, em Novembro, queria ficar, mas ninguém no Pel Caç Nat 54 quis trocar com ele. Resignado, abandonou as lides da panificação" (...) (****)

Aqui fica o retrato possível de mais um nosso camarada guineense (*****), o improvável padeiro de Missirá (1969) e depois de Mato Cão (1973/74). Oriundo do Cossé, o seu sonho ainda era vir para Lisboa e ser padeiro. E se estamos a falar do mesmo militar, o Soldado Atirador Jobo Baldé 82068868, do Pel Caç Nat 52, ficamos também a saber que ele faz parte da lista dos feridos do Sector L1 ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), pormenor do seu CV militar que, se calhar, tanto o Beja Santos como o Luís Mourato Oliveira desconheciam. (******)
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Notas do editor:


(****) Último poste da série > 5 de junho de 2017  > Guiné 61/74 - P17435: Os nossos camaradas guineenses (45): Encontro no LNEC com o Augusto Delgado, ex-Fur Mil da CCAÇ 18, hoje Engenheiro Técnico (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21931: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte XII: atividade operacional, outubro/novembro de 1967, destaque para a Op Garraio, no Poindon-Ponta do Inglês, Xime


Guiné > Zona leste > Região dee Bafatá >  Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor do Xime > 1970 > CCAÇ 12 >  Vista aérea das matas do Xime, a partir do Heli AL III, Foto do riquíssimo álbum do meu querido amigo e camarada Arlindo Teixeira Roda (natural de Pousos, Leiria, a viver em Setúbal há décadas). Ao  tempo da CCAÇ 12 (1969/71), as operações ao Poindon / Ponta do Inglês davam sempre "embrulhanço".

Foto: © Arlindo Teixeira (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].




Brasão da 3ª CCmds (1966/68)





1. Começámos a publicar, em 17/11/2020, uma versão da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamego e Guiné, 1966/68), a primeira, de origem metropolitana, a operar no CTIG. (Hão de seguir-se lhe, até 1974, mais as seguintes: 5ª, 15ª, 16ª, 26ª, 27ª, 35ª, 38ª e 4041ª CCmds.)

O documento mimeografado, de 42 pp., que nos chegou às mãos, é da autoria de João Borges, ex-fur mil comando, já falecido (em 2005), e que vivia em Ovar. Trata-se de um exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória: Quanto mais falamos na guerra, mais desejamos a paz. Do amigo João Borges".

Uma cópia pelo José Lino foi entregue ao nosso blogue para publicação. (*)



História da 3ª Companhia de Comandos
(1966/68) (**)


3ª CCmds
(Guiné, 1966/68) / João Borges
Parte XII  (pp. 29-33)









(Continua)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21930: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (19): o nosso macaquinho de estimação, o Piquete


Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CART 2711 (1970/72) > 1972 > O macaco ("santchu"), um  babuíno, "macaco-cão"  que bem podia  ser o Piquete herdado, da companhia dos "Duros de Nova Sintra", pela 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra",  e de que aqui fala o Carlos Barros.
 
Foto ( e legenda): © Herlânder Simões (2008). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > 1972 > Entrada do quartel dos Duros de Nova Sintra, a CART 2711, 1970/72... É possível que este pórtico, "Rancho dos Duros", tenha sido inspirado pelos vizinhos, mais antigos, do "Rancho da Ponderosa", destacamento de Ualada, subsetor de Empada, ao tempo da CCAÇ 1587 (1966/68).

Foto (e legenda): © Herlander Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; (ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem mais de 2 dezenas e meia de referências




O macaquinho Piquete

por Carlos Barros


Quando a 2ª Companhia do BART 6520 chegou a “Nova Sintra”, um aquartelamento sito no Setor do Quínara, nos finais de julho de 1972, a Companhia dos “Duros” ainda permaneceram quase um mês, connosco, para nos ajudar à adaptação ao quartel e ao ambiente que nos rodeava.

Havia um mascote no destacamento de Nova Sintra, o Piquete, que era uma macaquinho muito brincalhão que andava sempre ao nosso colo, brincando junto ao paiol que se situava perto da Messe dos graduados, onde existia, em anexo, uma pequena cozinha, sob a responsabilidade dos soldados Cunha e “Bichas”.

O Piquete dançava, brincava, comia à nossa mão era um amigo sempre presente, embora tivesse os seus amigos preferidos como o furriel Mendonça, o “Bichas”, o Cunha e o Elias, o “Parafuso”,  que lhe davam muitas bananas. 

O furriel Barros e o furriel Gonçalves nem sempre brincavam com o piquete com o “receio mórbido” de serem mordidos, ao contrário de alguns soldados que o adoravam e faziam correrias curtas com ele, ao longo da parada…

Numa bela manhã, o Piquete desapareceu, sendo procurado por todos nós, em todo o destacamento,  e, infelizmente, deixou de ser visto, perante a nossa profunda tristeza.

Suspeita-se que, da pouco população existente em Nova Sintra, alguém o tivesse levado ou mesmo poderia ter sido  comido por algum animal selvagem ou morto e comido por membros da população que apreciava carne de babuíno.

Um manto de tristeza invadiu o nosso “quartel” e o Piquete nunca mais apareceu, e o seu desaparecimento permaneceu um mistério que perdurou durante o cumprimento de toda a nossa Comissão de Serviço.

Pensávamos que, num dia de cerrado “nevoeiro”, o Piquete iria aparecer e assim mantivemos esse espírito sebastiânico durante muito tempo, e que nunca se concretizou, por desespero nosso.

O Piquete deixou saudades porque era um animal carinhoso, meigo e um diabrete nas brincadeiras.

Ainda tivemos, um outro macaco baptizado de Parafuso que tinha sido apanhado numa armadilha e que era muito bravo e agressivo. Conviveu connosco uns tempos mas a sua domesticação foi difícil , tendo desaparecido sem contudo, deixar de saudades. Possivelmente, foi para o seu “habitat natural” ou para a barriga dos africanos…

Piquete  era Piquete, um animal dócil que nos deixou saudades-

A partir do seu desaparecimento, nunca mais compramos bananas aos africanos…

Nova Sintra , 24 de Julho de 1973 
 Carlos Manuel de Lima Barros
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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21898: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (18): Saia uma "rolada" para o jantar...

Guiné 61/74 - P21929: E os nossos assobios vão para... (3): O moderador e os intervenientes do debate da TVI sobre o Marcelino da Mata... (Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM)

1. Mensagem do nosso camarada  Belarmino Sardinha  (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74), com data de 18 de Fevereiro de 2021, com um artigo onde expõe o seu ponto de vista ao modo como foi tratada, na TVI, a memória do TCor Marcelino da Mata, recentemente falecido. Recorde-se que o Belarmino Sardinha, membro de longa data da Tabanca Grande, conviveu com muitas personalidades da nossa vida literária e cultural, por ter trabalhado uma vida inteira na Sociedade Portuguesa de Autores,


Sobre Marcelino da Mata e
outros que entretanto vieram a público


Tenho acompanhado minimamente todo o desenrolar do processo sobre a morte de Marcelino da Mata e lamentavelmente tenho lido ou ouvido algumas barbaridades iguais às que se diz terem sido feitas por ele.

Conheci pessoalmente Marcelino da Mata só depois do ano 2000, mas reconheci neste camarada de armas um homem vertical, directo e afável sem fantasmas ou queixumes como não vejo ser o caso dos seus detractores.

Estive na Guiné, na Arma de Transmissões do STM entre 15 de Junho de 1972 e 20 de Julho de 1974. Andei por Mansoa, Aldeia Formosa (Quebo), Bolama e Bissau e inevitavelmente ouvi falar e contar muitas histórias de Marcelino da Mata.

Lembro-me de alguns dos operacionais dizerem “hoje podemos dormir descansados, o Marcelino anda por aqui”, curiosamente não me lembro de nenhum referir que o Marcelino era um assassino ou que era um traidor, como me parece haver alguns depois do 25 de Abril de 1974, por opções e/ou oportunidades políticas.

Sempre foi falado o facto das tropas africanas, em especial os Comandos Africanos terem uma actuação mais radical por onde passavam, é um facto, em especial com as bajudas, mas isso tinha muito que ver com a idade… Não ficaram também lá filhos de militares brancos do continente?

O porquê da gota de água que faz transbordar o copo?

Assisti a uma conversa, não chamo debate e muito menos esclarecimento sobre Marcelino da Mata, na TVI 24 pelas 23H00 do dia 16 do corrente. Reconheço à TVI o papel de ter sido a única que, ao que se me deu saber, lembrar que tinha havido o funeral do militar mais condecorado do Exército Português, logo um militar ao serviço de Portugal. 

Não foi feliz a escolha dos intervenientes, um, honestamente, confessou algum desconhecimento sobre a figura que iam debater, enquanto o outro assumiu-se como um verdadeiro conhecedor da matéria.

Considero o que vi lamentável. Não posso deixar de manifestar aqui a minha opinião sincera e desinteressada sobre os protagonistas.

Conheci Fernando Rosas, sem que com ele privasse, mas conheci-o e tinha por ele, enquanto historiador, alguma admiração e até simpatia, já enquanto político parece-me medíocre. Filiado num partido que lhe proporcionou ser figura pública, parece-me tê-lo levado a voos para os quais não está preparado e ao esgrimir argumentos sem conhecimento e de forma politicamente tendenciosa, torna-se incompetente e suspeito nas suas análises históricas.

Não sei se Fernando Rosas fez o serviço militar, e se o fez, quando e onde. Como político desviou sempre a conversa dizendo que estavam a falar de Marcelino da Mata e dos seus crimes. Como o fazem os políticos, aproveitou-se de uma publicação, no Facebook, feita por um outro camarada que prestou serviço no gabinete jurídico militar em Bissau, Mário Barbot Costa, que na qualidade de escritor assina como Mário Cláudio, para dizer que tinha havido vários processos contra Marcelino da Mata, mas que todos tinham sido arquivados por ordem não se sabe de quem. É estranho não se saber de quem, mas enfim, isso serve para outro tema. Contudo mostrou total desconhecimento e ignorância sobre Marcelino da Mata, aproveitou-se e recorreu a outros para fazer o seu papel político e desenfrear um ataque torpe e mesquinho a quem nunca conheceu.

Sem qualquer pedido ou necessidade de defesa, uma vez mais e em minha opinião, conheci e privei por mais que uma vez com Mário Cláudio por questões profissionais e já fora da instituição militar, não digo que o conheça de forma a poder afirmar o que pensa, mas estou em crer que apenas disse o que disse para não endeusarem Marcelino da Mata, tanto assim que, segundo Fernando Rosas, começou por escrever que respeitava o combatente Marcelino da Mata, referindo depois ter havido processos arquivados. Não li o que escreveu Mário Cláudio.

Na qualidade de historiador e político, de forma séria, competia-lhe fazer um enquadramento histórico sobre as etnias guineenses e o seu relacionamento para depois falar da actuação de Marcelino da Mata. Talvez então pudesse falar sobre o ataque de que foram alvo e barbaramente assassinados três majores e um alferes, quando desarmados se deslocaram ao que seria um encontro com tropas do PAIGC, combinado secretamente e que visava o início de um cessar fogo…

Ribeiro e Castro ainda lembrou o que fizeram a Marcelino da Mata, depois de 25 de Abril de 1974 os esbirros políticos ligados a alguns partidos ditos de esquerda ou extrema esquerda e que em nada eram e foram diferentes dos seus antecessores da PIDE/DGS, mas não obeve qualquer reacção do seu interlocutor nem do moderador que, à deriva e sem mostrar conhecimento dos factos,  deixou navegar sem norte. Nada é comparável? Falamos depois de 25 de Abril de 1974. Talvez só não o tenham morto por receio, pois acredito não lhes faltar vontade e muito menos prazer.

Não quero deixar transparecer que Marcelino da Mata não fez ou não possa ter feito coisas execráveis e não merecesse até punição dentro da instituição que representava. Até para clarificação da posição de Portugal, mas tal como muitos outros processos foram, mesmo hoje em dia, arquivados.

Depois, não podemos e não devemos estar hoje a julgar procedimentos com 40 e muitos anos e fora do seu enquadramento. É verdade que um crime é sempre um crime, mas, como em todos os processos, algumas razões podem ter servido como atenuantes e, neste caso em concreto, a guerra, as etnias, a adrenalina ou calor vivido no momento, mas isso só quem os viveu realmente pode falar, para todos os outros não passa de filme.

Quando 'Nino' Vieira foi assassinado, num passado recente, talvez por ter chegado a presidente da Guiné, correu por aqui muita tinta a lembrar que tinha sido assassinado e falando sobre como ele tinha sido como aguerrido guerrilheiro que lutou pela sua terra e pelo seu povo etc. etc. etc. Ninguém se lhe referiu como assassino e ninguém falou sobre a bárbara forma como ficou retalhado. Isto só para comparação com Marcelino da Mata…

Também, quando Jonas Savimbi foi assassinado e nos foi apresentado como morto fez igualmente correr muita tinta nos nossos jornais, mas o politicamente correcto impede que isso se faça com Marcelino da Mata.

Estas duas notas servem para lembrar que se podia e devia falar sobre história e sobre as formas brutais e bárbaras como lutam entre etnias e até aproveitar para falar sobre temas como a mutilação genital feminina e outras práticas e tradições do povo africano no seu estado puro.

Há quem defenda que os anos passam por nós e nos tornam mais sábios e tolerantes, que os impulsos da juventude são corrigidos pelo passar dos anos etc. etc. etc. Não sei se será o que acontece com todos, a necessidade dos holofotes sobre si, a vaidade, ou outras razões de necessidade levam muitos a não conseguirem estar tranquilos e a obrigarem os outros a deixarem de estar.

Eu, e estou crente que muitos outros que passaram pela Guiné no período da Guerra, estão agradecidos à TVI por lembrar e falar sobre a morte de Marcelino da Mata, só lamento que não tenha sabido escolher melhor os elementos do painel e melhor preparado o moderador. Poderiam ter escolhido melhor as figuras do painel, mantendo as que quisessem, mas procurando outra ou outras figuras com conhecimento da operacionalidade de Marcelino da Mata, como, por exemplo, o Coronel Matos Gomes, igualmente figura pública com obra publicada, operacional em acções conjuntas, conhecedor e por certo, muito mais isento e assertivo nas palavras.

Resta-me desejar que Marcelino da Mata, finalmente, descanse em paz.

Um abraço,
Belarmino Sardinha

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20461: E os nossos assobios vão para... (2): A Liga dos Combatentes... O nome do infortunado ex-alf mil pilav Francisco Lopes Manso (1944-1970) ainda não consta do sítio da Liga dos Combatentes... Morreu em 25/7/1970, quando o heli AL III se despenhou nas águas do Rio Mansoa, transportando 4 deputados e um oficial do exército. O seu corpo nunca apareceu (António Martins de Matos / Luís Graça)

Guiné 61/74 - P21928: Blogues da nossa blogosfera (150): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (60): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


LES ANGLES

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ

Deslizar na brancura de Les Angles
é quase um sonho.
Um sonho cego mudo paralítico
sem a cor das pinceladas do céu franjado de arco-íris
cavalgando os altos cirros velozes e frios
incapaz de desfibrar o complexo estroma
que nos enlaça e entrelaça
num abraço de fogo e água
amor e raiva e mágoa
voando sobre o abismo serôdio de um beijo alheio
ridículo-lascivo criptogâmico-adolescente
que torna fria a madrugada e sem sol o acordar.
Alguma coisa eu perdi
lá no céu aqui na terra ou no mar
para não ser capaz de sonhar
com olhos palavras e pernas para andar.
Deslizar na brancura de Les Angles
é um sonho morto…doem muito os sonhos mortos!
Talvez em Villefranche de Conflent nas margens de La Têt.
Em Villefranche de Conflent encontrei-me com Chagall
eu mal o conhecia ele de mim nem sabia.
Enquanto o Nuno corria atrás do petit train jaune
eu voava atrás do sonho
mas Chagall nada me dizia.
Mal o conhecia
gostava dele
da frescura e da audácia
da sua enganosa realidade
mas naquele dia…!
Amores flutuando nos ares
silhuetas bizarras
criações poéticas
não me tocavam
soavam a falso.
Apenas uma frase me deixou pensativo
o nosso universo interior é a realidade
talvez mais real do que o mundo visível
mais real do que as pedras do que o frio e a pele arrepiada.
Sempre pensei que a infância marcara a minha vida
Mas onde vai a infância se bem corresse!
Nunca dela pensara fugir
ao contrário de Chagall.
Alguma coisa eu perdi lá no céu aqui na terra ou no mar
alguma coisa eu perdi que faz falta ao sonho para sonhar.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21899: Blogues da nossa blogosfera (149): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (59): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21927: Blogpoesia (720): "A gratidão"; "Senhor Guilherme - latoeiro" e "Casa do brasileiro", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


A gratidão

Aquela força anímica que tudo transforma e aproxima.
Um gesto simples e apropriado que une faz justiça.
Ninguém consegue tudo por si.
Todos fomos ajudados a aprender a andar a e a falar.
Estes instrumentos que não são de corda.
Vêm do coração.
Como o fogo que arde e aquece.
São nosso cunho e sinete.
A prova de que reconhecemos a quem nos faz bem.
Até os animais a sentem e a demonstram sempre, sem regatear.
Com risco da própria vida,
Se for necessário.
O mar que banha os corações e os incendeia.


Ouvindo Sherazade
Berlim, 19 de Fevereiro de 2021
17h54m
Jlmg


********************

Senhor Guilherme - latoeiro

Ali na Forca, um lugar de Varziela,
Ele tinha a oficina.

Maçaricos e folhas de Flandres,
Eram tudo que enchia as estantes.
Seu balcão, voltado para a estrada,
Permitiam-lhe que nada lhe escapasse
Do que se passava na estrada.
A Mikinhas era a mulher do Sr. Guilherme.
Pai do Francisco, Zeca, Esmeralda e do António.
As pessoas que iam para a Feira na vila
Davam-lhe os bons-dias.
Ele respondia sempre prazenteiro.
- Já passou a mulher da nota?
- Não. Ainda não.
- Safada! Passou lá na minha casa e nada!

- Meu pai precisava duns botões.
- Assim, tenho de ir eu à vila!...


Berlim, 19h34m
Jlmg


********************

Casa do brasileiro

Estou a vê-lo. Estatura baixa. Meia idade.
De bengala. A passar na estrada.
Tirando chapéu a quem o saudava.
Emigrou para o Brasil, naquela época.
Toda a gente enriquecia.
Princípios do século vinte.
O casal vinha cá uma vez por ano.
Até que um dia, o palacete, de azulejo grená,
Começou a emergir do chão.
Em pouco tempo, ficou como está.
À face da estrada. Apenas um jardim à frente.
Sobranceiro a umas vistas largas sobre a Serrinha e o Marão,
Lá longe.
Eu era bem miúdo.
Não me lembro de que alguma vez,
Nos falássemos.
Tinha dois filhos rapazes.
Conduziam um Skoda.
Um dia, o casal morreu de acidente.
A casa ficou em estado de abandono.
Só há pouco tempo, começaram a vender o recheio.
Para minha casa vieram uma cama de solteiro larga
E duas mesas de cabeceira.
Um casal que não fazia, nem bem nem mal.


Berlim, 14 de Fevereiro de 2021
17h19m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 14 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21897: Blogpoesia (719): "A fome"; "Casa da Tripa" e "O silêncio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21926: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (8): O casqueiro nosso de cada dia... ou a feliz história do Jobo Baldé, o improvável padeiro do Mato Cão, que nos matou... a malvada (Luís Mourato Oliveira,ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)


O Casqueiro Nosso de Cada Dia Nos Dai Hoje...


Foto (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O Padeiro de Mato Cão (*)

por Luís Mourato Oliveira


O pão é um alimento extraordinário que caso não tivesse sido criado há mais de 6.000 anos na Mesoptâmia, provavelmente a existência humana tivesse sido comprometida. Não conheço ninguém que não goste de pão nas suas múltiplas formas de fabrico e, em particular, nós, portugueses, não o dispensamos para acompanhamento ou mesmo como elemento principal de uma refeição.

Em Mato-de-Cão [ou Mato Cão] embora o efectivo dos europeus se limitasse a dez elementos, um deles tinha a “especialidade” de cozinheiro que também abrangia a de “padeiro”. Infelizmente tratava-se de uma pessoa com enormes limitações cognitivas, recordo-me que entre outras confusões achava que “valor declarado” e “louvor declarado” eram a mesma coisa e, não fora as grandes dificuldades de recrutamento da época , o nosso jovem “cozinheiro” seria certamente adstrito ao contingente de básicos.

Na cozinha, dada a simplicidade e a repetição dos menus, as coisas iam correndo, mas no que dizia respeito ao pão, o homem não se safava e a nossa dentição só resistia devido aos vinte e poucos anos de uso que tinha na altura e o produto do nosso padeiro só era tragável numas sopas de café.


Propus-me a alterar esta situação, para mim desastrosa, e com calma e paciência arranjei umas medidas para que ele respeitasse as quantidades de farinha e fermento, indiquei-lhe o tempo da levedar da massa, mas continuavam a sair pedras, ao invés de pães do nosso forno. A paciência perdida e um exemplar da padaria na cabeça do “cozinheiro/padeiro” que ia originando um traumatismo craniano no funcionário, levou-me a desistir de o transformar num padeiro capaz.

Ma, como o homem é criativo e sabe aproveitar as oportunidades, um soldado do pelotão [de caçadores nativos] 52, o Jobo Baldé, abordou-me com oportunidade e a sua habitual irreverência:
– Alfero, Jobo passa a fazer o pão para o pessoal!
– Não sabes fazer pão, Jobo, não te metas nisto que arranjas problemas.
– Jobo sabe fazer pão, alfero, deixa experimentar e vais ver.

Perante sua insistência e convicção e no desespero de não haver outra alternativa, resolvi experimentar as aptidões do Jobo para novo responsável da padaria. Expliquei-lhe as medidas para a farinha e para o fermento, o tempo para levedar, e ele atacou de imediato a nova função.

Não sei se por milagre ou se pelas aptidões inatas do Jobo, no dia seguinte quando este me chamou para ver o pão acabado de cozer, tive das grandes alegrias gastronómicas da minha vida. O pão estava quente, tinha crescido por obra do fermento e da forma carinhosa com a massa tinha sido tratada, o som da batida no “lar” parecia um tambor a acusar uma boa cozedura e o abrir a crosta estaladiça evidenciava um miolo macio, fumegante e com um cheiro delicioso. Regalámo-nos de imediato com pão quente e manteiga e o Jobo ganhou o lugar!

O Jobo estava feliz com a nova função e cumpria-a com pontualidade, brio e grande competência. Posteriormente ensinei-o a fazer merendeiras com chouriço e ele começou a produzi-las sem grande esforço de explicação. Quando as tinha cozido, trazia-me de imediato uma e eu recordava as que a minha avó fazia na Marteleira [, Lourinhã,] quando era dia de cozedura.

No que dizia respeito ao pão, tínhamos atingido, graças ao Jobo Baldé, a felicidade. O Jobo também estava feliz, era casado com uma mulher, bem mais velha, que ele herdara do irmão entretanto falecido. Embora esta mulher fosse divertida e senhora de um grande sentido de humor, já tinha perdido o fulgor e a beleza da juventude e o nosso amigo e saudoso Jobo Baldé, quando acabava de fazer o pão, tinha sempre visitas de exuberantes bajudas a quem ofertava uns pães a troco de inconfessáveis favores.

A felicidade conquista-se com pequenos acordos e cedências. Estávamos todos satisfeitos…até as bajudas. (**)



Luís Mourato Oliveira: lisboeta, vive atualmente na Lourinhã.
Foi o último comandante do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá (1973/74), 
pelotão que foi comandado por membros da nossa Tabanca Grande 
como  o Henrique Matos, o Mário Beja Santos e o Joaquim Mexia Alves.
Tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue.


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Notas do editor:

(*) Excerto do poste de 10 de novembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16706: De Cufar a Mato Cão, histórias de Luís Mourato Oliveira, o último cmdt do Pel Caç Nat 52 (2) - Experiências gastronómicas (Parte II): Restaurante do Mato Cão: sugestões de canibalismo ("iscas de fígado de 'bandido' com elas"), "pãezinhos crocantes com chouriço" e... "macaco cão [babuíno] no forno com batatas a murro"!...

(**) Último poste da série > 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21866: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis" (7): Receita caseira de Bourbon County, Kentucky, USA... Enquanto se aguarda a vacinação contra a Covid-19... (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)

Guiné 61/74 - P21925: Parabéns a você (1934): Veríssimo Ferreira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1422/BCAÇ 1858 (Saliquinhedim/K3, 1965/67)


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Nota do editor:

Último poste da série: 17 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21910: Parabéns a você (1933): António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) e Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 1426 (Geba, Camamudo e Cantacunda, 1965/67)

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21924: (Ex)citações (382): O 1º Cabo RD "Estraga a Tábua" que eu conheci em 1962, no então BC 10, mais tarde, RI 19, Chaves (E. Esteves Oliveira)


1. Mensagem do nosso leitor e camarada Esteves de Oliveira, que foi E. Esteves de Oliveira Ex-oficial miliciano de Infantaria, Guiné 1963-65, Angola 1965-66, Moçambique 1966, nascido em Angola, autor do blogue "A Sopa dos Pobres"


Data: segunda, 15/02/2021 à(s) 19:38
Assunto: O Estraga a Tábua

Caro Luís,


Que fantástico ler no post do Joaquim Costa a história do Estraga a Tábua, que eu conheci no BC 10 (mais tarde RI 19) em 1962, era ele então 1º. cabo RD [Readmitido] mas já senhor da alcunha - o homem era o faz-tudo mais desajeitado do Exército português, mas ia-se safando das porradas e das mobilizações (estas graças aos chamados autos de amparo). (*)

Do Forte de São Francisco também tenho boas recordações: quando por lá passei albergava duas companhias de recruta e os respectivos graduados - apesar de curta, a distância entre o Forte e o quartel dava-nos uma relativa independência, além de as inúmeras divisões desocupadas proporcionarem "actividades não curriculares" com algum conforto, comparadas com a do Ferreira, camarada do Costa. (**)

Um alfa-bravo do
Esteves de Oliveira
http://asopadospobres.aboutlisboa.com/
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21893: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira

(...) Foi neste moderno e agradável quartel que tive o grato prazer de conhecer o pai do malogrado e excelente jogador de futebol do FCP, Pavão, que teve morte súbita em pleno estádio das Antas no fatídico dia 16 de dezembro de 1973. (...)

Era sargento, excelente pessoa, mas rezava a história, no quartel e na cidade, sem grande jeito para os trabalhos manuais. Contava-se que um cão rafeiro apareceu no quartel e logo foi adotado por todos, desde o comandante ao soldado raso. Dado que o canino não tinha sitio para dormir e abrigar-se dos dias mais agrestes, foi decidido construir-lhe uma casota. Logo o bom sargento se ofereceu para a tarefa, tendo sido feita uma coleta para comprar a madeira necessária para a obra.

O homem comprou a madeira e muniu-se das ferramentas necessárias, nas oficinas do quartel, e dum projeto de casota elaborado por um habilidoso em desenho. Mede e volta a medir, corta aqui, corta ali, corta acolá, e montadas as peças nenhuma bateu certo com o projeto. Volta a medir a cortar aqui, a cortar ali e acolá, voltou a montar e ainda pior.

O comandante, que também tinha contribuído para a casota, ao fim de uns dias, vendo que o cão continuava a dormir em todo o sítio manda chamar o sargento para saber da casa do cão. O sargento, muito constrangido, e à espera do pior, lá foi contando as peripécias da construção da dita casota acabando por confessar que nem tinha casota nem tinha tábuas. O bom comandante, dando uma grande gargalhada, virou-se para o velho Sargento e diz-lhe: 

 – Ah!, homem do diacho, fizeste-me à tábua o que o diabo fez à coisa: para além de não construires a casota ainda me estragaste a tábua!...

E assim nasce a alcunha do Sargento Neves – O Estraga a Tábua. (...)

Guiné 61/74 - P21923: Os nossos seres, saberes e lazeres (437A): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (1): (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Insista-se que foram férias repartidas, não se andou por Ceca e Meca e Olivais de Santarém, mas deu para visitar Óbidos e muitas redondezas, Pedrógão Pequeno até à Serra da Estrela, regressando por Portalegre. Procurou-se não contar mais do mesmo, é verdade que já se teve com a neta nas Penhas Douradas, por outro itinerário, com paragem no Fundão e na Covilhã, desta feita assentaram-se arraiais em Manteigas, transformado em pólo irradiante. E aqui fica o registo de uma manhã em que se respeitou o folheto disponibilizado pelo INATEL de Manteigas, houve bom tempo com aquele frio montanhoso do costume, deu para nos maravilharmos com o Cântaro Magro, Nossa Senhora da Boa Estrela, o Vale Glaciário do Zêzere, e indo por aí fora chegou-se ao Poço do Inferno, isto tudo depois de estarmos no ponto cimeiro de onde se avista um encadeado de cordilheiras que pareciam vogar na bruma.
Assim se passeou por um mundo que tem pergaminhos na fundação da nacionalidade, os primeiros reis precisavam como de pão para a boca das ordens militares e das populações fixadas. Séculos adiante, já não era a mourama que intimidava, e daí os soberbos castelos, como o de Almeida, de onde se podia avistar a intrusão castelhana. Tempos passados que deram o português do presente.
Um abraço do
Mário


De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (1)

Mário Beja Santos

Ao passar pela vila de Manteigas, passei pelo serviço do Parque Natural da Serra, à cata de literatura. Enquanto bebericava um café, li uma brochura ali adquirida sobre o povoamento da Serra da Estrela na Idade Média. Os primeiros reis deram-se naturalmente ao cuidado de conceder forais e benefícios tanto às ordens militares como às populações, era vital a sua fixação. Manteigas consta que terá nascido em 1188, em período idêntico povoações do concelho da Covilhã, os concelhos da Serra da Estrela – Linhares, Guarda, lê-se no documento a importância que na época tinha Folgosinho e Valhelhas, o Zêzere era o ponto extremo do limite Sul. Aspeto curioso, desenvolvia-se junto a Seia a cultura do vinho já no século XI. O autor do trabalho, José David Lucas Batista refere a fala de Manteigas: “Insere-se nos falares setentrionais de Portugal, particularmente no referente ao concelho da Covilhã. Limito-me a dar algumas caraterísticas fonéticas como a diversificação em u – luguar, por lugar; puai, por pai; pué, por pé – em sílaba tónica. Registe-se ainda a ditongação em i e em u por influência das palatais ch e j, como em feicho, por fecho; couxo, por coxo; esteija, por esteja; louja, por loja”.
Esta serra onde se insere o Parque Natural vai lá de cima desde Celorico da Beira e desce até Tortosendo. Manteigas está situada no Vale Glaciário do Rio Zêzere, cresceu com duas paróquias, de Santa Maria e de São Pedro, a sua economia está ligada à pastorícia, aos lanifícios, à floresta e agora ao turismo. O mapa com propostas de passeios de toda a ordem é aliciante, e os chamados pontos de maior interesse dão pelo nome de Poço do Inferno, Cântaro Magro, Covão d’Ametade, Nossa Senhora da Boa Estrela, as Penhas Douradas e a Torre. Há tentações de viajar dentro do parque até Seia e Gouveia, mas em Roma é-se romano, primeiro o que à volta de Manteigas se oferece.
Rezam os folhetos que as paisagens são de uma beleza incomparável, fala-se imenso do verde. Começa-se aqui pelo escalvado, aquele alcantilado que é um dos motivos para passeios terrestres na Grande Rota do Zêzere. O rio começa no coração da Estrela e em Constância entra no Tejo, há pois 370 quilómetros que podem ser percorridos de bicicleta, de canoa ou a pé, dizem que é uma experiência única e memorável. Contemplamos demoradamente o bravio da pedra e a estrutura rala da vegetação, mais adiante iremos ao Vale Glaciário, deixamos o Poço do Inferno para depois, tentou-se a estrada, deu para perceber que a afluência é enorme, retrocedeu-se até à braveza destes maciços de pedra, até dá para imaginar que por aqui andou Viriato a fazer a vida negra às legiões romanas. E não me digam que esta beleza agreste não é de cortar o fôlego, não me digam que o Cântaro Magro não estarrece pela sua imponência e solidão.
Talhada na rocha temos Nossa Senhora da Boa Estrela, quantos pastores por aqui têm circulado benzendo-se e pedindo a proteção da Senhora? Contempla-se e dá para pensar se a parte é maior que o todo, isto é, o momento espiritual está na imagem ou se esta pode ser destituída do gigantismo da pedra e até do entalhe da escadaria. Muito provavelmente, as duas estão certas mas é o gigantismo da pedra que dá o ar solene ao formidável altar ao ar livre, a presença do divino neste maravilhamento natural.
Há muita coisa para ver, e convém não perder de vista que segue no grupo uma criança de nove anos que pergunta que se farta. Porque é que se chama Lagoa da Paixão? O que é que quer dizer Covão d’Ametade? O que é que tu queres dizer quando falas em afloramento granítico? Quando falas em cântaros, significa o quê? O pobre avô lá vai falando das faias, daquela água abundante que brota debaixo de cada pedra, procura ser mais terra-a-terra falando da planície arenosa de aluvião, vai apontando exemplos de biodiversidade, aponta para o pastoreio dentro do Vale Glaciário, a tal lição a céu aberto sobre os vestígios da última época de glaciação, recorda-lhe um passeio de há dois anos atrás até às Penhas Douradas, e é nisto que o olhar se fixa no que é a vegetação da serra no Outono, que cores de toda a paleta. Porque isto de andar pela natureza tem as suas cadências e tempos de calendário, há muito que se propõe ir na primavera até ao Parque Natural de Montesinho que dizem ter cores deslumbrantes quando rebenta a floração. Um dia há de ser, está prometido, vamos então até ao Poço do Inferno, a neta diz que sim e que depois quer almoçar.
Trata-se de um lugar singular da muita oferta que Manteigas propõe, entre lagoas, covões, vales, parques, miradouros e a estância de montanha das Penhas Douradas. Vem-se aqui por causa da cascata, não se pode ficar indiferente ao espetáculo da queda de água cristalina sulcando as rochas. Impõe-se o regresso, há que acalmar as fomes e o voto feminino ganhou, logo à tarde há que visitar um prodígio do lanifício, o burel, já está decidido, repousa-se um pouco e avança-se até às fábricas desse tecido único.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21896: Os nossos seres, saberes e lazeres (437): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (6): A despedida de Óbidos, regresso a Lisboa (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21922: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (20): O pão nosso de cada diz nos dai hoje, diz a "chef" Alice... E se for de farinha de trigo de Barbela, do Moinho de Avis (Cadaval, Montejunto,1810), ainda melhor!

Foto nº 1


 Foto nº 2


 Foto nº 3


Foto nº 4




Foto nº 5

Cadaval > Vilar > Vila Nova > Serra de Montejunto > 20 de agosto de 2015 > O nosso camarada e amigo Joaquim Pinto Carvalho levou-me, a mim, à Alice e mais uns amigos do Norte (o Gusto, a Nita e a Laura) até ao moínho do Miguel Nobre, no alto da serra... 

É conhecido como o moinho de Avis, tem mais de dois séculos de existência,,, Daqui vê-se, do lado do poente,  o oceano Atlântico, e do lado nascente, o rio Tejo e o estuário e, a sul, as serras da Arrábida e de Sintra, a norte as serras de Aire e Candeeiros... Dizem que é o mais alto da península ibérica, dos moinhos ainda a funcionar. O Miguel Nobre também é engenheiro de moinhos, uma arte e um ofício em risco de extinção, tal como a arte e o ofício de moleiro...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Foi com a farinha de trigo de Barbela, obtida neste moinho, que a "chef"Alice cozeu os absolutamente deliciosos pãezinhos que vemos nas fotos acima: uns com chouriço de porco preto e fatias de "bacon" (foto nº 1) e outros sem qualquer recheio... 

Tudo simples, cozido no forno a gás... Segredos ? Saber amassar um quilo e pouco de farinha (que tem um pequena percentagem de centeio), e usar o fermento q.b, deixar a levedar e...pôr ao forno (, que nem sequer é a lenha, como na Tabanca de Candoz).

Obrigado ao Miguel Duarte e aos "duques do Cadaval", régulos da Tabanca do Atira-te ao Mar (Porto das Barcas, Lourinhã), pela gentil oferta de um saco de cinco quilos de farinha (Fotos nºs 3 e 4).

O Moinho de Avis tem página no Facebook. E já teve direito a dois postes no nosso blogue, na época pré-covid, no já longínquo ano de 2015 (*).

Com a pandemia de Covid-19 a fazer um ano no próximo mês de março (!),  e com dois duros confinamentos gerais, continuamos aqui a  deixar algumas sugestões gastronómicas, nacionais e internacionais, apropriadas  às circunstâncias... Esperemos que elas contribuam também para o revigoramento  da nossa saúde física e mental...

Sabemos, de experiência própria, com 3 anos de tropa e de guerra, ao serviço da Pàtria, da Mátria e da Fátria, que não há um "bom moral na tropa" sem um bom rancho... E no rancho o pãozinho nosso de cada dia, esse,  não podia faltar... 

O famoso "casqueiro!... Faziam-se perigosas colunas para se ir buscar às sedes de batalhão os sacos de farinha que faltavam nas padarias improvisadas  dos nossos destacamentos e aquartelamentos no mato... Quantas belas (e algumas trágicas) histórias ainda haverá por escrever e publicar, aqui, no nosso blogue, sobre o Pão Nosso de Cada Dia Nos Dai Hoje!...

Como já temos dito, esperemos que os tempos que correm, com longos períodos trancados em casa, e muitas incertezas para o futuro, continuem  a ser  propícios à descoberta de talentos culinários dos camaradas e amigos da Guiné...

Vejam, caros/as leitores/as,  esta série como uma forma, bem humorada também, de diversificar a experiência de leitura do blogue e sobretudo nos ajudar  a combater a tão falada "fadiga pandémica"...  

Mandem-nos  fotos (com legenda...) das vossas habilidades como "chefs", para publicação nesta série, "No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande"...  É preciso voltar a indicar o email, que consta na coluna do lado esquerdo  ? Então aqui fica, mais uma vez, os endereços dos nossos editores: 




joalvesaraujo@gmail.com

luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com

2. Na página do Facebook de Adolfo Henriques pode ler-se o seguinte artigo sobre o trigo Barbela... que  reproduzimos na íntegra, com a devida vénia (e os nossos parabéns ao autor por manter viva a tradição da cultura do trigo Barbela):

Trigo Barbela, um trigo escravo

Variedade de trigo mole cultivada desde tempos imemoriais em todo o Portugal, a sua cultura só tem perdurado, essencialmente, no distrito de Bragança e, a partir de agora, na Maçussa [, concelho de Azambuja]. Vamos proceder ao seu cultivo e aqui acompanharemos todas as fases, desde o semear até á prova do pão. Será moído da maneira tradicional, bafejado pelos ventos que sopram na Serra de Montejunto, no moínho de Aviz, obra do amigo Miguel Nobre que domina a difícil arte de usar o vento com maestria. 

Com este trigo se faz o delicioso Cusco de Trás-os Montes, em tempos usado como substítuto do arroz ou da batata por exemplo, ou ainda os célebres doces do mesmo nome. Com efeito, a variedade tradicional Barbela reúne um conjunto de características que lhe proporcionam grande rusticidade e capacidade de adaptação a difíceis condições climáticas. 

A sua capacidade de produzir palha em quantidade e qualidade também contribuiu para a preferência dos produtores da região pelo Barbela, apesar das entidades responsáveis pela cerealicultura nacional não lhe terem reconhecido ainda o devido valor agronómico e comercial. 

Para além disso tem um teor muito baixo de glúten. A conservação da variedade tradicional Barbela pressupõe a preservação de um conjunto de conhecimentos e práticas agrícolas transmitidas ao longo de gerações de agricultores. 

Obrigado ao meu amigo João Vieira pelas sementes e a Ana Maria Pinto Carvalho e Associação Tarabelo, de Vinhais,  pelas informações que disponibilizam na internet sobre o Barbela. Mais notícias em breve !

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21887: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (19): O cardápio secreto do "chef" Tony (Levezinho) - Parte I: ainda não é verão (, mas um dia destes há de ser!), e já me está a apetecer uma saladinha de queixo fresco e uma paelha, com um bom branquinho...