segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22424: Passatempos de Verão (25): Uma fábula diferente: o gato Olossato e o cão Maquezão em tempo de cólera (Paulo Salgado, ex-alf mil cav op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)


Guiné-Bissau > Região do Óio > Maqué > 20 de Novembro de 2006 > Poilão, árvore sagrada, habitada pelos irãs... Mais uma chapa do famoso poilão de Maqué. Tirada pelo nosso camarada Carlos Fortunato, ex-Fur Mil da CCAÇ 13 (Os Leões Negros), na sua viagem de 2006 à Guiné-Bissau e à região do Óio.

Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Maqué > 2006 > " O mais belo poilão que conheço da Guiné" (Paulo Salgado) [. na foto, o Paulo Salgado, sentado, e Moura Marques, de pé, ambos antigos militares da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72].

Foto (e legenda): © Paulo Salgado (2006). Todos os direitos  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região do Oio > Olossato > CCAV 2721 (1970/72) > 1970 > O Alf Mil Cav Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde. Mais tarde, tornar-se-ia administrador hospital e gestor de saúde (em Portugal, Guiné-Bissau e Angola).

Foto (e legenda): © Paulo Salgado (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Paulo Salgado (ex-alf mil cav op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72); é natural de Moncorvo, e membro da nossa Tabanca Grande, desde 18 de setembro de 2005; manteve, no nosso blogue, uma colaboração regular, com pelo menos duas séries, em 2005/2006, quando esteve em Bissau à frente do Hospital Nacional Simão Mendes: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) e Bombolom II (ver aqui através do marcador Bombolom); tem mais de cerca de 110 referências no nosso blogue; é autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier",


 
Date: domingo, 1/08/2021 à(s) 21:38
Subject: Uma fábula diferente
 

Meu Caro Luís e meus caros camaradas editores, todos desta Tabanca, afinal, 

Junto uma fábula antecedida de uma introdução.
Uma saudação amiga. De camarada.

Paulo Salgado

O 'Maquezão' e o 'Olossato'

por Paulo Salgado



Não vou contar uma fábula tradicional. As fábulas que escrevi para o meu neto – 4 Fábulas para o Pedro – levaram-me até a Esopo e, certamente, a La Fontaine. Sempre a ideia da moralidade daqueles autores, carregada de ideias utilitárias... 

Aquela de a raposa estar à conversa com o corvo, ou de a lebre apostar com a tartaruga, ou da formiga trabalhadora a dar um raspanete à cigarra, apenas lembraria a fabulistas mais castigadores do que solidários – penso eu. Quis dar uma outra versão ao meu neto. Aos meus netos. (*)

Aliás, é na esteira de Alçada Baptista que se deve entender que as fábulas, mais do que premiar ou castigar, poderão servir para provocar solidariedades…O Zeca (1929-1987), que faria anos neste dia 2 de Agosto, dizia que "a formiga no carreiro ia em sentido contrário"…

O que se passou no Olossato por volta de Setembro de 1970 foi o seguinte: grassou a cólera. Foi preciso andar a proceder a higienizações menos espaçadas, e alargar à tabanca a necessidade de limpeza e de cuidados de remoção de lixos (algo que equipas mistas de militares e população faziam diariamente). E mais: era preciso 'acabar' com alguns cães e gatos escanzelados e cheios de doenças. Uma matança era exigida.  O alferes encarregado do feito teve o cuidado de ser ético na 'limpeza' de animais doentes. (Hoje, o PAN revoltar-se-ia…). (**)

Entra aqui uma conversa entre o cão 'Maquezão' e o gato 'Olossato' – duas criaturas que não se davam muito bem, mas que encontraram um forte motivo para se aliarem num momento de visível e tormentosa aflição.

O 'Olossato', gato finório, que frequentava a casa do comerciante abastado, foi procurar o 'Maquezão':

 Sabes, andam a dar cabo de cães e gatos. É hora de nos entendermos. Proponho que nos acoitemos em Cansonco onde está uma tabanca que não ardeu totalmente. E se fugíssemos à mortandade, nós que estamos sadios? É que um humano anda com um instrumento e pode não distinguir os animais doentes dos animais sadios.

 Claro, 'Olossato'. Vamos até perto da floresta. Os dois havemos de arranjar maneira de sobreviver, até que nem precisamos de muito conforto…é claro que tenho um humano que me faz festas e vou sentir a falta dele, paciência – aquiesceu o 'Maquezão'.

E lá foram os dois. De vez em quando, espreitavam ao povoado para ver como paravam as modas. Apesar de terem coelhos e ratos e passarada com fartura, que caçavam com êxito, aliando-se na tarefa de sobrevivência, sentiam a falta de outro convívio…

Um dia, entraram pela entrada que vem de Farim, cortada por causa das minas…o cavalo de pau estava desviado. Bem nutridos, limpos. E os humanos reconheceram-nos…

 Vês, 'Maquezão'?! – segredou o 'Olossato'.

E sorriram…

Nota: 'Maquezão' vem de Maqué – um posto avançado (?) do aquartelamento; 'Olossato', o nome da bela tabanca/aquartelamento Olossato.

_________


(**) Vd. poste de 10 de julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (3): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

(...) Comentário de L.G.:

Alberto: É uma história fabulosa!!!... Manda mais, temos tão poucas referências aos primeiros tempos da guerra... Dá-me mais elementos sobre a tua companhia. E fala-nos da Bambadinca desse tempo. Como sabes, eu estive lá em 1969/71, seis anos depois de ti... No meu tempo tanbém havia muitos cães, famélicos e vadios... Não nos deixavam dormir... Um dia, às tantas da noite, pegámos num jipe, nas pistolas Walther, e matámo-los todos... Ainda hoje essa cena me incomoda... Evoquei-a ou tentei exorcizá-la num dos meus poemas, Esquecer a Guiné (...).

(...) Nessa noite nem o pobre do Chichas, que era a nossa mascote, escapou da morte anunciada.

Segundo esclarecimento posterior do Humberto Reis [vd. poste de 17 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - P62 Op Noite das Facas Longas ], meu camarada da CCAÇ 12 e meu companheiro de quarto em Bambadinca, "o cão, que dormia à porta do nosso quarto, era o Chichas, alcunha vinda do 2º sargento corneteiro do BCAÇ 2852, que também era o Chichas. O condutor do jipe nessa Noite das Facas Longas era o major de operações do BART 2917 (o tal que mandou ir para lá a mulher quando se casou) e o assassino... fui eu".

Acrescento eu: esse tal major era conhecido como o B.B. [hoje cor art ref Jorge Vieira Barros  e Bastos],

Guiné 61/74 - P22423: Casos: a verdade sobre... (26): Forças Armadas Portuguesas, 1961/74: Nº de desertores, refractários e faltosos



Nº de desertores das Forças Armadas Portuguesas, no período de 1961/73  (Fonte: Cardina e Martins, 2019, p. 46)


1. O número de desertores, refractários e faltosos da guerra do ultramar / guerra colonial foi durante muito tempo (e continua a ser)  objecto de especulações e até de polémicas, por falta de investigação historiográfica compreensiva.(*)

Nos últimos cinco anos temos já dados, se não consolidados, pelo menos mais aproximados...  A metodologia da sua recolha é, porémm discutível, já que se baseiam  apenas em fontes administrativas (Excército). O investigador Miguel Cardina, da Faculdade de Coimbra,  aponta hoje para um número  de desertores da ordem dos 9 mil, podendo todavia essa estimativapecar por defeito. Um aspeto relevante: a deserção dá-se, na maioria dos casos na "metrópole# e não nas "frentes de combate", o que já há muito sabíamos  que respeitava ao CTIG.

 Embora sejamos um blogue de antigos combatentes, onde não cabe a figura do desertor como membro do nosso coletivo , isso não nos impede de falar sobre o assunto e de procurar saber mais sobre os desertores das Forças Armadas Portuguesas, no período de 1961 a 1974, em que durou a guerra, a par dos refractários e dos faltosos... 

Aliás, sobre este descritor, "desertores", temos mais de uma centena de referências...

De vez em quando o tema vem à baila, como recentente num artigo do investigador da Universidade de Coimbra, Miguel Cardina, publicado no "Público" de que tomamos a liberdade de reproduzir um excerto, para conhecimento dos nossos leitores.

2. Recortes de imprensa: 

Miguel Cardina, "Público", 30 de Julho de 2021 > Guerra à guerra: as oposições e a contestação anticolonial (Com a devida vénia)

https://www.publico.pt/2021/07/30/politica/noticia/guerra-guerra-oposicoes-contestacao-anticolonial-1972307

(...) Um estudo que efetuei, juntamente com Susana Martins (Miguel Cardina e Susana Martins, “Evading the War. Deserters and draft evaders of the Portuguese army during the colonial war”, E-Journal of Portuguese History, 2019, n.º 17/2):

(i) aponta para a existência de cerca de 9000 desertores (com lacunas pontuais em certos anos e ramos militares), a maioria deles desertando ainda em Portugal;

(ii) devendo a isso associar-se um número estimado de refratários na ordem dos 10 a 20 mil jovens;

(iii) e de faltosos à inspeção que rondará os 200 mil jovens - ou seja, perto de 20% dos rapazes chamados à inspeção na então metrópole, neste caso a partir de dados do próprio Exército.

Muitos deles não recusavam a guerra a partir de um posicionamento ideologicamente explícito e eram alheios às discussões políticas nas oposições. 

Além disso, nem todos os faltosos à inspeção o fizeram certamente para escapar da guerra: uma parte viria mesmo a regressar ao país para cumprir o serviço militar. No entanto, e como os trabalhos de Victor Pereira sobre a emigração têm sublinhado, é também possível ver estes trânsitos como parte das estratégias de resistência infrapolítica das classes populares. 

Com efeito, no gesto de emigrar intersetavam-se, frequentemente, as questões relativas ao sustento material e à busca de oportunidades de vida no exterior com o escape a constrangimentos de outro tipo, entre os quais, na vida dos jovens, pesava com especial relevo o fantasma de ser mobilizado para combater numa guerra distante. (...)

[  Revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG    ]

3. Comentário do editor LG:

Fizemos uma primeira leitura, a correr, do artigo supracitado, de resto disponível aqui (em português do Google e no original em inglês, e também em formato pdf). Merece uma nota de leitura, e uma análise mais fina, quando tivermos disponibilidade de tempo. Para já limitamo-nos a reproduzir, com a devida vénia, um resumo (gráfico, acima)  dos dados relativos aos desertores por ano e por local (Portugal e os 3 teatros de operações).

Recorde-se que o Código de Justiça Militar de então definia como desertor aquele que se ausentava, indevidamente,  num prazo superior a oito dias, da unidade militar a que pertencia. As razões (e as circunstâncias) da deserção seriam naturalmente complexas, mas em princípio significavam a "recusa" da guerra.

Outra categoria estudada são os refratários (mancebos que faziam a inspeção mas que fugiam antes da incorporação militar), que não devem ser confundida com a dos faltosos (os que nem sequer faziam a inspeção militar). 

Entre 1967 e 1969 (os dados de que se dipõe),  cerca de dois por cento dos jovens,  chamados à inspeção,  foram considerados refratários: 1402 (2,26%) e 1967; 1268 (1,79%) em 1968; e 743 (1,09%) em 1969.  Não se dispõe de dados para os outros anos
.(Fonte: Cardina e Martins, 2019, p. 46).

Quanto aos faltosos, e de acordo com dados de 1985, do Estado-Maior do Exército, seriam da ordem dos 200 mil, no total,  no período entre 1961 e 1974 (Fonte: Cardina e Martins, 2019, p.47).

 Se os desertores e os refractários são um fenómeno mais próximo da "recusa" da guerra, a questão dos faltosos tem que ser vista no âmbito mais vasto do fenómemo da emigração.

domingo, 1 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22422: Passatempos de Verão (24): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 2: "Ao que parece, nem os macacos se salvaram" (Joaquim Costa)


1. Dando continuidade aos nossos devaneios de verão, aqui vai mais uma versão da história fantástica da  cabra Joana e do cão rafeiro Tigre, contada aos meninos da escola,  desta vez da lavra do escritor minhoto de contos infantis Joaquim Costa, com residência oficial em Fânzeres, Gondomar (*)




A cabra Joana e o cão Tigre

por Joaquim Costa


Era uma vez, numa terra distante, de uma beleza que se entranhava no corpo e alma, como a areia no corpo  numa tarde de vento na praia,. 

Aqui viviam duas famílias desavindas por causa de uma bandeira (quando forem mais crescidos vão perceber porquê… ou talvez não). Uns eram a família IN, que viviam em Nhacobá, outros a família Tigre, que morvam em Cumbijã.

Os arrufos eram constantes com investidas ousadas a casa uns do outros,  tentando a expulsão dos mesmos.

Entretidos nestes arrufos,  os DDT,  os Donos Disto Tudo (ou melhor, os Donos Daquilo Tudo, daquela terra), decidiram (,sem consultar ninguém, ) que os Tigres investiriam em força sobre a família IN, impondo a sua lei.

Assim foi, mas com perdas irreparáveis e inocentes de um lado e do outro.

Como é comum, desde os primórdios, quem vence tem direito aos despojos: Arroz, cigarros, fósforos (que se acendem riscando na sola da bota, em estilo John Wayne), livros escolares com mensagem estilo Estado Novo (mas cujos heróis eram outros) e... uma cabra que chamou a atenção pela sua indignação pela invasão da sua privacidade,  levantando as patas a qualquer um sem receios.

Esta irredutível cabra passou a fazer parte do despojos,  pelo que acompanhou os Tigres de volta a casa, em Cumbijã. 

Aqui quem reinava era o cão rafeiro Tigre,  pelo que, no dia da chegada, a cabra foi apresentada ao rei. Não foi um encontro fácil e só não se chegou a vias de facto dada a pronta atuação da guarda pretoriana.

Esta irredutível cabra ganhou a simpatia de toda a população, ou quase,  já que em todo o lado há ovelhas ranhosas em qualquer rebanho.

Tinha esta irreverente cabra, de seu nome Joana,  4 predadores:

(i) O rei Tigre que nunca aceitou partilhar o protagonismo com este estranho animal (, contudo, neste caso,  não se sabia quem era o predador de quem);

(ii) O vagomestre Ferreira, que tratava dos comes & bebes, e  que fitava a Joana com os olhos vermelhos de quem já a está a ver a ser esfolada e transformada em estilhaços de carne para o arroz;

(iii) Os três agricultores improváveis , estes com razão, já que a Joana não resistia às viçosas alfaces, saltando a cerca das três hortinhas, e  lambusando-se toda com a frescura das mesmas com a compreensível indignação dos proprietários das plantações.

Na defesa da Joana passou a haver, 24 sobre 24 horas, um guarda-costas, armado de G3 com bala na câmara.

Foi assim que a mesma resistiu até ao dia em que os Tigres abandonaram a  sua casa, no Cumbijã,  a caminho de Bissau, para apanhar o barco (que os levaria finalmente a sua terra de origem),  e em que todos, sem exceção, verteram uma lágrima, já com saudades da cabra Joana e do cão Tigre.

Não se sabe o que aconteceu depois, mas teme-se que esta história, infelizmente, dos relatos que foram chegando aos Tigres, não tenha acabado nada bem...

Ao que parece,  nem os macacos se salvaram....

Joaquim Costa

30 de julho de 2021 às 17:00

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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

Guiné 61/74 - P22421: Efemérides (350): Fez 55 anos, em 30/7/1966, que parti para o CTIG, no T/T Uíge, para ir formar em Bolama o Pel Caç Nat 54... Estive depois em Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas (José António Viegas, fur mil art, 30/7/1966 - 22/9/1968)


Foto nº 2 > 30 de julho de 1966 > O fur mil art José António Viegas, de rendição individual, Pel Caç Nat 54, no T/T Uíge, a caminho de Bissau.


Foto nº 3 > Lisboa > 30 de julho de 1966 > Cais da Rocha Conde Óbidos, com a ponte sobre o Tejo, ao fundo, e ainda em construção... "Com o meu conterrâneo Manuel Viegas"



Foto nº 4 > Agosto de 1966 > A bordo do T/T Uige > Sala de jantar dos sargentos > O fur mil art José António Viegas é o último da mesa, do lado direito. "Já partiram alguns", acrescenta na legenda.


Foto nº 5 > CIM Bolama > Agosto de 1966 > No IAO com o Pel Caç Nat 54 que, três semanas semanas, seguirá para Mansabá (1)



Foto nº 6 > CIM Bolama > Agosto de 1966 > No IAO com o Pel Caç Nat 54 que, três semanas semanas, seguirá para Mansabá (2).


Fotos (e legendas): © José António Viegas (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 


1. Mensagem do nosso amigo e camarada José António Viegas [ ex-fur mil art,  Pel Caç Nat 54 (Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas, na altura, colónia penal); vive em Faro; é um dos régulos da Tabanca do Algarve; tem cerca de meia centena de referências no nosso blogue]:

 
Date: sexta, 30/07/2021 à(s) 00:00
Subject: 55 Anos da partida para a Guiné (*)

30 de Julho de 1966:  acordo cedo  no Depósito Geral de Adidos, faço o saco venho p'ra parada, o reboliço de tropas é muito, resolvo ir tomar o pequeno almoço fora, desço a Calçada da Ajuda , paro num  (,uiosque em frente ao Museu dos Coches (, que hoje já não existe o dito quiosque),e tomo o meu pequeno almoço nas calmas. 

Nisto para meu espanto chegam duas moças amigas que viviam em França e, de repente, sem mais preâmbulos , dizem: "Zé, tu não vais para a guerra, a gente tem tudo preparado, amanhã estás em Paris"...

Começamos a discutir e elas não me conseguiram convencer, acabaram por ir embora zangadas e só voltamos a fazer as pazes 15 anos depois e, aí, sim, levaram-me a Paris. 

Acabou o pequeno almoço  vou andando para o cais , entrego a minha guia ao P.M. e subo as escadas para o navio, depois de ter ido ao beliche, venho á amura ver aquele espectáculo das formaturas e os gritos das famílias, espectáculo que se prolongou por 13 anos.

Depois do navio largar,  tento encontrar algumas caras conhecidas pois  não ia integrado em companhias. No primeiro dia de navegação encontro o meu conterrâneo Manuel Viegas e depois na messe alguns camaradas do curso.

Foram 5 dias de boa navegação. Chegado ao cais a Bissau encontro outro conterrâneo o Júlio, já falecido, que me diz: "Então, menino vem prá guerra"... E mete-me no Jeep e leva me a dar uma volta por Bissau e de seguida fomos para os Adidos.

Três dias depois embarcamos na Bor e fomos para Bolama, onde nos foi entregue o Pel Caç Nat 54. Depois de 3 semanas de adaptação, lá seguimos para Mansabá onde começou a nossa aventura, seguiu-se Enxalé, Missirá, Porto Gole, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas.

Voltei a 22 de Setembro 1968, 25 meses depois. (**)

José A. Viegas
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Fotos: Legenda;

1- Ordem Serviço Mobilização (ques e reproduz a seguir, pág. 38)
2-Viajando no Atlântico
3-Com o meu conterrâneo Manuel Viegas
4- Na messe, já partiram alguns
5 e 6 - No C.I.M. Bolama 




Ordem de Serviço de Mobilização > CTIG > O. S. nº 32, de 13Agos66-. Destinado ao CIM Bolama, o fur mil art nº 7926665, José A. Viegas, do BC 8 (Elvas), recebeu o nº 2176/C.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de agosto de  2020 > Guiné 61/74 - P21224: Efemérides (333): Foi há 54 anos que parti para o CTIG, no T/T Uíge, para ir formar em Bolama o Pel Caç Nat 54 (Jose António Viegas)

(**) Último poste da série > 30 de junho de  2021 > Guiné 61/74 - P22327: Efemérides (349): Recordando o dia 24 de junho de 1622, a vitória de Macau sobre os holandese, hoje dia da cidade (Virgílio Valente, ex-alf mil, CCAÇ 4142/72, Gampará, 1972/74)

sábado, 31 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22420: Passatempos de Verão (23): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 1: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo" (Luís Graça)



Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > Diz o Joaquim Costa: "Oj encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre”... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo."... Mas segundo o Luís Graça, esta história  terá acabado mal... Foto acima: um típico pratod e chanfana, cortesia da RTP.




A Joana e o Tigre (1973). Foto:
cortesia de Joaquim Costa


1. Já temos pelo menos  dois textos, em resposta ao nosso desafio,  lançado no poste anterior desta série, "Passatempos de verão" (*)


Fábula 1: 
"Não se pode servir dois senhores 
ao mesmo tempo"

por Luís Graça



Sou a cabra Joana de Nhacobá. Minha terra fica no sul da Guiné-Bissau, na região de Tombali, dizia minha dona.

Já não cheguei a conhecer a Guiné-Bissau. Sou do tempo dos “tugas”. Tive um amigo, o Tigre do Cumbijã, um cão rafeiro,  que pertencia aos “tugas”. Mas ele era tão guineense quanto eu.

A minha história é triste. Fui apanhada pelos “tugas” quando bombardearam com aviões e atacaram por terra a minha querida tabanca, Nhacobá. Fui levada para Cumbijã, como prisioneira.  Não me trataram mal, a princípio. Mas, no fim, acabei morta e cortada aos pedaços num alguidar, coberto de vinho do Cartaxo (, não havia vinho do Dão, dizia o malvado do cozinheiro.)

Se bem percebi pelas conversas que marcaram os últimos minutos da minha vida, queriam fazer, comigo, um prato “tuga”, horrível, a que chamavam “chanfana”, da cor do alcatrão. Uns desgraçados de uns milícias aproveitaram a minha linda pele para fazer um ou mais jambés.

Não fui morta à moda dos fulas, degolada. Deram-me um tiro de pistola Walther, 9 mm de aço. Fechei os olhos. Não quis ver a cara do carrasco. Não sei se era branco ou negro. No quartel havia milícias.  Estava nervosos, e com pressa.

A minha história é triste mas também tem um lado exaltante e até heróico. Dizem que eu vim de um tabanca mais a norte, ainda no quarto crescente da lua da guerra. No início da luta, o Cabra Matcho Nhô Vieira chegou lá e disse: “Partido manda pessoal procurar abrigo nas matas do Cantanhez que tem árvore grande. Se não, vem avião ‘tuga’ e lança bomba e mata povo”. 

Eu era pequenina, ainda de leite. Mas minha dona trouxe-me ao colo para a nova morança.  Só me lembro de Nhacobá onde cresci e por onde passava coluna grande do Partido com armas e bianda. Manga de canseira.

Um dia dei leite para Cabra Matcho Nhô Vieira que estava com febres. Ele ficou muito agradecido e deu ordem: “Ninguém faz mal à cabra Joana. É uma grande combatente da liberdade da Pátria”. 

Todas as vezes que ele passava em Nhacobá (, raramente cá ficava,) ia-me visitar à minha morança e fazer uma festinha… Não sei se “tugas” sabiam desta história. Não deviam saber, se soubessem mandavam logo  lá o Marcolino da Mata para me apanhar à mão. O Marcolno também era um cabra matcho, dizia o povo de Nhacobá.  Odiava o Nhô Vieira, eram irmãos  da mesma tribo mas rivais. 

Um dia quiseram apanhar Cabra Matcho Nhô Vieira, mas em vez dele apanharam capitão cubano. Foi coisa dos paraquedistas de que tínhamos muito medo. Até que um dia manga de tropa cercou a tabanca, houve mortos e feridos, minha dona não conseguiu mais segurar-me. E um tal “tuga” Djoquim Costa me prendeu com corda grossa e me trouxe para Cumbijã. Vim  o caminho todo a dar marradas, até ficar exausta.   Chorei, nesse dia.  Cabra Matcho Nhô Vieira estava mais abaixo, na batalha do Guiledje, não me pôde defender nem salvar.

Fiquei no quartel dos “tugas”, em Cumbijã, mais de um ano. E confesso (, que os camaradas aqui não me ouvem!): fui lá feliz e diverti-me. Eu e o meu amigo, o cão rafeiro Tigre do Cumbijã. Só queríamos mesmo era brincadeira. E fazer estragos na horta dos "tugas".  Davam-me de comer mas eu também trabalhava. Dava leite aos doentes e limpava os chão do quartel: apanhava tudo o que fosse comestível,  de trapos a papel.

Um dia quis saltar o arame farpado para ir até à bolanha, desentorpecer as pernas, mas fiquei lá presa, no arame.  O cão rafeiro Tigre do Cumbijã foi a correr, a ladrar, chamar o “tuga” Djoquim Costa, que era o meu novo dono. Lá me safou. Levou-me à enfermaria. Furriel enfermeiro, manga de bom pessoal, cuidou de mim.

Acho que quase todos os "tugas" gostavam de mim. Até o general Caco Baldé foi ver a cabra do Cabra Matcho.  Mas havia alguns que andavam sempre a rosnar: "A fome é negra"...Nunca cheguei a saber qual era a cor da fome: se era negra para os brancos, ou branca para os negros.  Para mim, era de todas as cores. Eu sou cabra, não sou burrra...

Mas chegou a véspera do fatídico dia de entrega do quartel de Cumbijã aos camaradas do Partido. A data estava aprazada para 7 de agosto de 1974. 

Os “tugas” sabiam que o Cabra Matcho Nhô Vieira estava farto de procurar por todo o lado a sua cabra favorita. Que era eu. Com medo de alguma surpresa desagradável, ou contratempo de última hora, os “tugas” deram-me a sentença de morte. Não sei quem foi. E para mostraram que eram imparciais e justos como o  rei Salomão, ¥¥  mandaram matar também o pobre do meu amigo cão. A mim comeram-me, de chanfana. Ao Tigre do Cumbijã fizeram-lhe um funeral com honras militares e tudo. 

Quando chegaram os camaradas do Partido, para a entrega do quartel, perguntaram por mim. Os “tugas” responderam, cinicamente, que eu não fazia parte do inventário. E que por azar tinha saltado o arame farpado e pisado uma mina. O que era mentira. Eu era endiabrada mas não era suicida. 

Entregaram apenas um embrulho com os meus ossinhos, todos pretos. Sei, já no céu dos animais, que  o "tuga" Djoquim Costa, bom pessoal,  chorou por mim,  e que o Cabra Matcho Nhô Vieira também teve um grande desgosto. Como se tivesse perdido uma das suas mulheres. 

Em minha  homenagem, o Partido mandou-me inumar no Panteão Nacional, lá em Bissau, debaixo de um grande poilão, com uma placa a dizer o seguinte: “Aqui jaz a cabra Joana de Nhacobá, grande combatente da liberdade da Pátria”.

Moral da história,: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo.  Um dos dois fica mal servido".

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22419: Os nossos seres, saberes e lazeres (462): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Fotogramos e adiamos, muitas vezes esquecemos, até àquele momento em que recebemos um severo aviso que pululam imagens a mais, então lá vamos lestos a preparar a limpeza. E quando tudo se espalha pelo ecrã do computador, rugimos de fúria, como foi possível ter tido tais deslumbramentos e tais omissões? E destarte aqui se têm preparado itinerâncias que metem culpabilização por ter omitido, esquecido ou negligenciado material captado para partilhar. Foi o que aconteceu, no caso concreto de hoje, com a visita, ainda decorriam as obras, nos passadiços da Ribeira de Quelhas, no Coentral Grande, Castanheira de Pera, em tempos idos, antes da coluna e das artroses se negarem à empreitada, aqui se subiu e desceu a contemplar este maravilhamento natural; e porque se visita a Feira da Ladra com uma certa regularidade nos alvores das manhãs de sábado, há um outro maravilhamento que nos acicata, olhar de frente o enfiamento entre a cidade e o Tejo, com Santa Apolónia pelo meio, aposta-se mais nestas imagens de inverno puro, este equívoco entre Lisboa noturna e o esplendoroso amanhecer, entre bruma e uma ficcionada camada de gordura; e visitara-se uma exposição sobre as moranças da Guiné e restaram imagens de outros lados do Museu de História Natural e da Ciência, até mesmo uma fotografia com sorrisos muito afetuosos; e guardara-se um remanescente de imagens de uma inesquecível exposição em Tomar. Avivam-se as saudades e partilha-se com os outros o que dessas saudades ficou, num estado de imensa cordialidade.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (9)

Mário Beja Santos

Parte-se para um evento, leva-se a devida carga de curiosidade, casos há em que previamente se estuda o que se vai ver, é regular a vontade de partilhar o que se olhou e viu, aquilo que ganhou sentido e merece alguma cogitação. Será porventura o caso destas imagens em que houve, digo-o sinceramente, a determinação de as pôr em ordem e mostrá-las aqui, o diabo tece-as, entrepõem-se outros misteres, perde-se o rumo ao que se guarda na câmara, e acontece o dia em que se abre no ecrã do computador este caleidoscópio, sente-se inicialmente um amargo de boca, ora, mais vale tarde do que nunca, toca de cerzir ajuntamentos de imagens.

Visitei cheio de curiosidade as obras em fase de conclusão dos passadiços da Ribeira de Quelhas. Por aqui passei a partir de 1995, fiz o fim do ano a conhecer as aldeias serranas da Serra da Lousã, alguém me disse que devia ir ao Alto do Trevim e descer aos Coentrais, se tivesse gosto em ver um esplendor natural bem singular. O que aconteceu, ao tempo ainda a coluna vertebral me permitia, com calçado apropriado, calcorrear por fragas e empenas e desfrutar as cascatas cheias de água, um murmúrio quase genesíaco. E quando soube que íamos ter passadiços, logo ali fui espevitado pela curiosidade, isto salvo erro à volta de maio de 2020, vivíamos o primeiro aceso da pandemia. O concelho de Castanheira de Pera apostava numa oferta de lazer e turismo, e assim se decidira um passadiço de madeira, 1200 metros na margem direita da Ribeira das Quelhas, bem próximo do Coentral Grande. As obras tinham-se iniciado em dezembro de 2019 e chegaram a bom porto. Com muita alegria, encontrei no blogue Vagamundos, um texto de apresentação que com a devida vénia se reproduz:
“Ribeira das Quelhas, com as suas magníficas cascatas e lagoas, é uma das maiores maravilhas naturais da Serra da Lousã. Até há bem pouco tempo, para conseguir desvendar os seus segredos, era imperativo fazer um dos trilhos mais exigentes da Serra da Lousã, com um pouco de escalada à mistura, ou então seguir o curso da ribeira através da prática do canyoning. Mas temos boas notícias para si: no verão de 2020 nasceram os Passadiços da Ribeira das Quelhas, tornando muito mais acessível a visita a um dos locais mais belos e selvagens da Serra da Lousã.
A Ribeira das Quelhas nasce na Nascente dos Seixinhos, numa das vertentes da Serra da Lousã, conhecida pelo nome de Santo António da Neve, nome que recebeu por ser o lugar onde outrora haviam poços de neve, que serviam para armazenar a neve do inverno e conservá-la até ao verão, à imagem do que se fazia na Fábrica do Gelo do Montejunto. Posteriormente o gelo era levado para a Corte portuguesa em Lisboa, para que se pudessem refrescar durante os quentes verões lisboetas (sim, nessa altura já gostavam de comer sorvetes e beber um whisky “on the rocks”).
Desde a sua nascente, todo o percurso da Ribeira das Quelhas é feito por entre quelhas rochosas e penhascos de xisto e granito, resultando em idílicas cascatas, cada uma com o seu poço de água cristalina, que convida a inesquecíveis mergulhos nos dias quentes de verão. O enquadramento paisagístico é simplesmente brutal!”
.


Sempre que me é possível, visito aos sábados ao amanhecer a Feira da Ladra, sonho em dar um pontapé e saltar uma pepita de ouro, o universo do bricabraque é extensível, vou sempre preparado para trazer os alfobres cheios ou vazios, só compro a gosto. Chegar ao amanhecer à Rua do Vale de Santo António, em pleno inverno, permite este espetáculo, é a noite iluminada, o Tejo ao fundo, o dia a clarear, com mais um quarto de hora aquele céu vai incendiar-se, será dia promissor, mas quem aqui tomou a fotografia ruma apressado à procura de pepitas, diademas sobre a forma de livros e toda aquela casta de traquitana que me adoça a existência, gostos não se discutem, o mais importante de tudo é sentirmos intimidade com esta pele que inventamos para decorar as nossas casas, para já não falar dos livros que são trampolins para a liberdade de espírito.
Fora visitar no Museu Nacional de História Natural e da Ciência uma exposição sobre as moranças da Guiné, era inevitável andar por ali a cirandar, foi o que aconteceu, entrei numa sala de aula do século XIX (aqui funcionou a Faculdade de Ciências, e aqui o incêndio devastador, em 1978, nos fez perder património de alto calibre). Contíguo à sala de aula, cujo teto me impressionou, funcionou uma zona laboratorial, só tenho pena da falta de luminosidade, e mais adiante captei um tema religioso, como, à saída da exposição, achei imensa graça a um desses temas de feira onde ainda hoje se podem tirar fotografias à la minuta e resolvi registar duas princesas sorridentes, a petiza estava bem feliz, exigira ver dinossauros e saía satisfeita.
Algures, entre novembro e dezembro de 2020, visitei a exposição Os Sítios da Pedra, no Complexo da Levada, em Tomar. Tudo me fascinou, considerei um achado a articulação perfeita encontrada por organizadores e artistas para pôr em diálogo o Nabão, uma construção multisecular, um aparato industrial, a pedra, a cantaria, o fascínio da escultura. Por ali cirandei para encontrar um móbil de todos estes sítios da pedra, naquele preciso lugar, com um curso de água a correr em permanência, um preciso lugar de origem templária e que marcou o fulgor da industrialização tomarense. Senti que aquela exposição era uma original sala de conversa de diferentes tempos, de diferentes misteres, operando silêncios mágicos, talvez uma brilhante homenagem a quem lava a pedra, desde a calçada à escultura artística. Muitos meses depois, deparei-me com estas imagens a que não dera destino e não hesitei em plantá-las aqui, saudando quem arquitetou esta bela exposição, mais a mais guardo Tomar no coração.

Ainda não é ponto final para as itinerâncias de onde respiguei estas imagens avulsas, vamos de seguida para o Jardim Botânico, foi visita distinta daquela que se fez ao Museu de História Natural e da Ciência, precisava de luz clamorosa para toda aquela riqueza vegetal, e vão ver como fui muito bem compensado.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22400: Os nossos seres, saberes e lazeres (461): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22418: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XIII: Hamburgo, Alemanha Federal, 1967




Hamburgo > 1967 > O António Graça de Abreu e a sua namorada alemã
 


Hamburgo >  Ao centro, a imponente Rauthaus, a câmara municipal



 
Hamburgo >  O famoso Star Club, em Reeperbahn, onde os Beatles tocaram, em 1962,  antes de se tornarem famosos 



Hamburgo, > Jardim frente à janela do quarto

[ Texto e fotos recebidos em 16/7/2021] 
 

1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.


Hamburgo, Alemanha, 1967


A cidade de Hamburgo, nos meus dezanove anos, por causa da menina do Elba, loira e linda.

Bramfeld, a rua Steilshooperstrasse, o Stadtpark, encaminhar os meus passos. O senhor Balk, meu potencial sogro, nascido em Danzig, actual Polónia. Havia sido, então há vinte cinco anos atrás, soldado de Hitler, marchando, consumindo-se, combatendo na campanha da Rússia. Regressou vivo, sobreviveu à guerra. Falava pouco, saía de casa ao fim da tarde para, com amigos, se encharcar em schnapps, as aguardentes tedescas. Mas, com a minha quase sogra de Berlim, fez esta filha de olho azul e cabelos de ouro, doce e perfeita, meia de alabastro, meia de marfim, que me acompanhava e tomava conta de mim.

O Alstersee dividido em dois lagos, quantas vezes atravessado no frio do Inverno, à noite, com neve caindo devagar, no silêncio das águas geladas… Logo ali ao lado, levantava-se a imponência do rendilhado do poder na Rathaus, o palácio do município onde ainda havia judeus gerindo, governando.

Hamburgo, cidade hanseática, o rio Elba, o trato, o comércio, o saber fazer, o porto unido a todos os recantos do mundo.

Nesse tempo era a serena loucura, quase um ano na organizada e disciplinada Germânia, estudando alemão, trabalhando doze horas por dia numa espécie de restaurante, um Selbstbedienung encaixado na Hauptbanhof, a estação central dos caminhos de ferro.

Aos fins de semana, com a menina de Hamburgo, íamos dançar, unindo corpos e bocas no recato de uma discoteca romântica por detrás da Jungfernstieg, a rua central, ou, em alternativa, íamos pular, saltar com a batida das bandas de ocasião no Star Club, em Reeperbahn, onde os Beatles, recentemente, antes da fama, haviam tocado.

Recordo a visita à cidade de um decadente e obsoleto Xá da Pérsia. Grandes manifestações contra a sua presença, eu, entre estudantes alemães e muitos jovens iranianos a estudar em escolas de Hamburgo e Berlim, e os gritos "morte ao xá!".

Nos protestos, em Berlim, então sitiada entre Leste e Oeste, tiros da polícia e um jovem alemão assassinado [  em 2 de junho de 1967 ], de nome Benno Ohnesorg . (Vd. Wipedia:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Benno_Ohnesorg). Perfazia vinte anos, tal como eu. Os estudantes iranianos iriam em breve regressar a Teerão. Depois do ódio ao xá, reverenciariam o Aiatolah Khomeini. 

 No pequenino quarto alugado na pensão de Frau Hamm, um amor bonito para enfeitar os dias. Inge Balk e António, um infindável abraço luso-alemão. No Verão, a janela aberta para o respirar do jardim situado em frente, Planten un Blomen, plantas e flores.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22417: Passatempos de verão (22): A fábula da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, obrigados a coexistir pacificamente até ao final da guerra


Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre”... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.

Foto (e legenda): © JOaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. A foto da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, da autoria do Carlos Machado, é um espanto!... Um "instantâneo" muito feliz!...

Dá para os "miúdos da escola" (aqui ou na Guiné-Bissau) escreverem uma fábula sobre a "estupidez da guerra" ou qualquer coisa parecida... (O que é que será mais parecido com a "estupidez da guerra" ?  A guerra e a estupidez.).

Ou então dá, também, para os nossos leitores escreverem uma história para os seus  netos, partindo das suas memórias já muito esbatidas daquela terra, que era outrora era verde e vermelha, e estava a ferro e fogo... 

Leitores de Portugual, leitores da Guiné-Bissau, ou outros, que a "estupidez da guerra" é de todos os tempos e lugares... Fica aqui o desafio, retomando uma série, já antiga,  do nosso blogue, "Passatempos de Verão", ams inactiva desde 2017 (**).

A cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada  pelo  PAIGC,  no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores.

Foi levada, a Joana,  para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o "Tigre de Cumbijã", mascote do pessoal. Não sabemos como esta história acabou, a pequena, insignificante, história destes dois animais domésticos. 

Enfim, mais uma pequena história que não cabe na grande História com H. Ou será que cabe (ou devia caber) ?... Talvez um dia os senhores historiadores se lembrem de juntar, aos homens, as cabras e os cães, que os acompanhavam na paz e na guerra. Tal como os vírus, bactérias, parasitas, protozoários, fungos e bacilos que os dizimavam, aos homens e aos seus animais domésticos.

O Valdemar Queiroz comentou (**): 

"A cabra Joana e o cão Tigre,,, Até dava uma fábula, 'tá bem, mas atenção que as crianças são curiosas e poderiam atirar com: a Joana ao ataque e o Tigre encolhido. Ou os habituais reparos: mais uma a deitar abaixo a nossa tropa (um tigre) a encolher-se a um ataque no IN (uma cabra)." (...)

O nosso editor Luís Graça, mauzinho, também deu a sua dica (**): 

"Aposto que a cabra Joana acabou no prato dos Tigres do Cumbijã. Chanfana, de cabra velha. Mesmo nascida depois da guerra,  no final, em 1974,  já devia ser dura que nem um corno. Se assim foi, e o Joaquim confirmará, a pobre Joana terá sido um dos últimos despojos do império. Como a malta não comia cão (a menos que houvesse algum macaense na CCav 8351), o resultado só pode ter sido Tigre 1, Joana 0. Mas pode haver outras narrativas"...

E são essas narrativas, de preferência sob a forma de "fábulas", 
bem humoradas, mais ou menos infantis, politicamente incorretas, que esperamos da parte dos/as nossos/as leitores/as... 

Para já o poste não tem numeração (, será o P00000, volante, de modo a aparecer todos os dias em destaque na página de rosto do blogue). Queremos assim dar oportunidade (e visibilidade) aos nossos leitores para que os seus  talentos literários (incluindo a sua imaginação e sentido de humor) se manifestem, este fim de semana, de preferência sem quaisquer entraves nem  censuras...

Toda a gente já leu ou ouviu uma fábula do grego Esopo ou do francês La Fontaine... Fábula (latim fabula, -ae, conversa, lenda, conto, narrativa) tem várias aceções ou significados. Por exemplo: 1. [Literatura] Composição literária, em verso ou em prosa, geralmente com personagens de animais, com características humanas, e em que se narra um facto cuja verdade moral se oculta sob o véu da ficção.

Fonte: "fábula", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/f%C3%A1bula [consultado em 29-07-2021].



Mandem os vossos textos (, curtos, dois ou três  parágrafos, meia página A4) para os endereços dos nossos editores que estão de serviço neste final de julho / princípio de agosto do ano da (des)graça de 2021:

(i) Luís Graça (Lourinhã):

luis.graca.prof@gmail.com

(ii) Carlos Vinhal (Leça da Palmeira / Matosinhos):

carlos.vinhal@gmail.com


2. Operação Balanço Final, Região de Tombali, Nhacobá, Sector S2, 17 a 23Mai1973


Com a finalidade de ocupar Nhacobá, S2, em que intervieram forças das CCaç 3399, 3ªC/BCaç 4513/72, CCaç 18, CArt 6250/72, CCav 8351/72, 2° Pel Art (10,5 cm), 14° PelArt (14 cm), e 1 Pel/ERec 3431, quando se deslocavam no itinerário Cumbijã-Nhacobá, tiveram 2 contactos com o inimigo de que resultaram 7 mortos para este e 1 morto, 5 feridos graves e 9 ligeiros para as NT. 

Foram apreendidas ao inimigo 1 esp autom "Simonov", 3 esp autom "Kalashnikov", 1 esp "Mauser", l LGFog "RPG-7" e 1 gran de LPFog  "RPG-7", além de material diverso.

Três dias depois pelas 09H50 as nossas forças foram emboscadas por um grupo IN na região próxima de Guileje. As NT sofreram 1 morto, 1 ferido grave e 2 ligeiros. O inimigo sofreu baixas prováveis.


Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015), pág. 304

Guiné 61/74 - P22416: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (63): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
É muito estreita a ligação que se estabeleceu entre Paulo Guilherme e Gilles Jacquemain. Paulo tem neste seu amigo belga um confidente e um infatigável companheiro de trabalho. Gilles anunciou-lhe que iria fazer uma palestra a Lovaina-a-Nova e pede ajuda ao amigo português e este manda-lhe contributos sobre a alvorada e o desenvolvimento da sociedade de consumo. Só se voltarão a encontrar no outono, há agora um curtíssimo período de férias, um regresso para o final do ano letivo e Annette vem para Portugal passar o mês de agosto. Já é de supor que o regresso dela a Bruxelas a deixará numa grande infelicidade , sempre a ruminar qual a melhor solução para estarem mais próximos. Felizmente que ambos são realistas, ela sabe alguma coisa de rigoroso de como passa o mundo naquela primeira metade da primeira década do século XX, ele é professor e conta aos seus alunos que se entrou num tempo de hiper qualificação e hiper desqualificação, que o sistema educativo se revela incapaz de dar orientações eficazes para as escolhas profissionais, morreram os empregos para toda a vida, nunca no mercado do trabalho tudo foi tão contingente e aleatório. E Annette e Paulo têm os filhos nessas condições, daí a prudência com que gerem o seu arrebatado amor.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (63): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon cher Gilles Jacquemain, como chegarei a Bruxelas em data posterior à tua conferência no curso promovido pelo professor Thierry Bourgoignie, em que te concederam duas horas para palestrares sobre os desafios deste nosso novo século para um consumo solidário e mobilizador da cidadania, como tu me pedes algumas sugestões de acordo com as aulas que eu dou, limito-me a alguns conceitos do passado e do presente, e falarei em voz alta contigo, meu incondicional companheiro destas lides europeias sobre o que se pode prever para os anos seguintes.

Eu começaria em primeiro lugar por referir os tópicos da alvorada da sociedade do consumo, a linha de montagem e organização científica, os pilares da economia de escala, a porta aberta à fluidez do consumo, à industrialização e aos serviços, tudo com o concurso de um novo paradigma energético que não existira nas sociedades agrícolas que lhe precederam, o petróleo e a eletricidade. Podes inclusivamente referir que este prenúncio da massificação foi acompanhado de novas formas reivindicativas no trabalho, foi graças à coesão sindical que não só melhoraram as condições de vida como surgiu a higiene e a segurança no trabalho. Não te esqueças de dizer que este processo não foi linear, teve grandes avanços, no caso europeu, na Europa do Norte, tu és um belga e podes dizer com orgulho que no início do século XX a Bélgica tinha a quinta mais importante economia do mundo. No meu país, a sociedade de consumo só se confirmou na década de 1960, decresceu de forma impressionante a população agrícola, multiplicaram-se as pequenas indústrias e alguma grande indústria, proliferaram os serviços, com o turismo à frente.

Em segundo lugar, eu teria o cuidado de interpretar os saltos tecnológicos, falaria na evolução da comunicação e dos transportes, o cabo submarino, o telégrafo, a rádio, a televisão, o radar, o telefone, a progressiva rapidez nos transportes. Não se pode esquecer a referência à expansão económica dos Estados Unidos, ás descobertas da química que revolucionaram a indústria dos medicamentos, os produtos de higiene, a cosmética, o nascimento dos detergentes.

Em terceiro lugar, a questão ideológica da sociedade de consumo. Perante uma Europa em ruínas, no termo da II Guerra Mundial, as potências ocidentais entenderam-se rapidamente que para combater quaisquer tentações totalitárias era indispensável um modelo de democracia pluripartidária acompanhado de uma sociedade de consumo, emprego para todos, bons serviços de saúde, a apologia do consumo para todos. Assim nasceu a complexidade do mercado com os seus contratos, compras por recibo, publicidade avassaladora, plásticos, liofilizados, supermercados, viaturas para todos os preços, desde a Velosolex e a Lambreta, carros utilitários até às viaturas luxuosas. Foi necessário encontrar novas formas de gestão urbana e também mudou o nosso modo de vida: a dimensão da casa, os artefactos da cozinha, a democratização dos eletrodomésticos. E os governos de qualquer cariz ideológico obrigaram-se a aperfeiçoar o sistema educativo.

Creio que já estás em condições de fazer uma súmula de todo este processo desencadeado por décadas de crescimento em que nasceu espontaneamente um novo grupo de pressão que iria ocupar um campo de atuação totalmente distinto, fazendo exigências sobre os direitos que assistiam aos consumidores. Enquanto o mercado se inundava de produtos e serviços, surgiram inquietações e protestos: eram as próprias organizações científicas que anunciavam a retirada de aditivos alimentares tóxicos. Um gravíssimo acidente com um medicamento (Talidomida) que atingiu profundamente as famílias dessa Europa próspera obrigou à organização de um controlo do medicamento que é tão severo ontem como hoje; e surgiram protestos com as práticas comerciais irregulares, publicidade enganosa e sobretudo esta nova situação de que o consumidor não dispunha de informação nem formação com conhecimento de causa. Acho que é o momento propício de falares da mensagem do presidente John Kennedy ao Congresso, em 15 de março de 1962, em que referiu que por definição todos nós somos consumidores, passávamos a ter direitos. E dos Estados Unidos este movimento associativo estendeu-se a diferentes países da Europa Ocidental, surgiram associações de consumidores, mas muitos outros grupos reivindicavam a defesa do consumidor: famílias, movimentos sindicais, ligas femininas, cooperativas, tanto as de consumo como as de habitação. Passaram a exigir legislação, a constituição de organismos estatais que apoiassem o consumidor. E durante décadas foi graças a esta riqueza social que se estabeleceu um dinâmico movimento associativo que hoje está em visível quebra.

O quinto aspeto que me parece importante relevar é que independentemente da legislação que veio dar uma maior limpidez ao mercado é de que a tecnologia manteve o seu caminho imparável e muito cedo se pôs a questão de intervir em prol do ambiente. Tudo começou com os rios inquinados por produtos químicos, oceanos de espuma, contaminações dos fertilizantes, poluição atmosférica, cheiros nauseabundos resultantes de indústrias mal controladas. Só mais tarde se levantarão as questões de aproximação entre os consumidores e os ambientalistas, na década de 1980 os consumidores são confrontados com as chuvas ácidas e sobretudo com os rasgões da camada de ozono, e apontava-se o dedo a bens de consumo. A ciência encontrou respostas, caso do conversor catalítico para o automóvel e a mudança de componentes químicos nos aerossóis. Mas a relação consumo-ambiente manteve-se e continua a manter-se muito dúbia, por culpa de ambas as partes.

O sexto aspeto em que eu julgo que deves pôr um ponto tónico é que a sociedade de consumo de massas passou de uma fase da industrialização para a economia dos serviços e daquilo que se chamava o consumo semicolectivo para o consumo individualizado. Não se pode omitir que a partir de meados da década de 1970 as Comunidades Europeias passam a dispor de uma política informal de defesa do consumidor, verifica-se que a ecologia não é moda passageira e a Comissão Europeia foi favorável a apoiar o aparecimento de produtos ditos ecológicos.

O mundo mudara, falava-se em globalização, aumentara a esperança de vida, já se falava abertamente no aumento explosivo das despesas com a saúde, em novos critérios para as pensões de reforma, entrara-se numa sociedade de consumo e comunicação. É aqui que é indispensável uma referência à chegada do digital, ao desenvolvimento de uma sociedade de espetáculo. Eu daria aqui alguma ênfase às políticas dos consumidores na União Europeia, desde 1975 até ao dobrar do século, não iludindo de que a política dos consumidores passara a estar praticamente confinada às realizações do mercado único europeu.

Meu querido amigo, estou absolutamente seguro de que só tens a ganhar em fazeres acompanhar a tua exposição de algumas imagens comentadas e dares exemplos de como o consumo, enquanto causa de interesse público, está a esmorecer, o definhamento associativo é flagrante, os cidadãos delegam a defesa dos seus interesses ao Estado, e nem sempre com razão. Acompanhei, como tu, a tentativa do comissário David Byrne para criar um programa financeiro e de ação conjunta de saúde/consumidores, era a sua área de intervenção, ele pretendeu potenciar ambas, de forma sinérgica. Podes referir na tua conferência a contestação que houve, os lóbis da saúde e dos consumidores sentiram-se ameaçados, foi um arraial de protestos tal que o comissário recuou e cada política ficou no seu quintal. É mais ou menos neste ponto que estamos, é possível lançar alguns elementos de previsão, surgiram entidades regulamentadoras nos serviços elétricos, na concorrência, na saúde, os mercados interpenetram-se e sentimos que há uma expansão da sociedade em rede. O consumidor é camaleónico, funcional, empreendedor, pragmático. De um dia para o outro morrem escritórios com as suas secretárias e estantes, são substituídos pelos ficheiros do computador, morreram os clubes de vídeo, é impossível prever o que será a indústria do entretenimento daqui até 2010, mas podes falar na desmaterialização da economia, na redução dos rendimentos das novas gerações que chegam ao trabalho. E julgo que estando tu a falar para uma assistência de universitários em Lovaina-a-Nova tens tudo a ganhar em exaltar a formação permanente, o apoio ao movimento associativo que dê provas de ser diligente e verdadeiramente ligado à cidadania no consumo. Voilá, aqui tens uma síntese, escolhi-te algumas imagens, tens muitas ao teu alcance para tornar a tua palestra altamente sugestiva. Ainda pensei em propor-te alguns elementos ligados à cultura de massas, mas penso que o que vais fazer a Lovaina-a-Nova não é a sede própria, como me referiste que irás falar a professores em Liège no outono, se acaso julgares oportuno dou-te umas dicas sobre a educação do consumidor e a cultura de massas, tenho vários ficheiros organizados.

Muito provavelmente não nos veremos em Bruxelas. Annette e eu teremos uns dias de férias, imagina tu, vamos visitar cemitérios e penso que passaremos uns dias em pleno sossego numa praia do Mar do Norte. Cada vez mais penso na solidão em que se encontra Annette e eu próprio, continuo sem resposta, só sei que a amo desmedidamente e que é preciso um controlo enorme para manter este profundo afeto dependente das minhas viagens a Bruxelas ou nas férias dela. Vou procurar sossegá-la, passará todo o mês de agosto em Portugal, ela sente-se muito feliz aqui, temos obviamente a consciência de que os assuntos dos nossos filhos são prioritários e não podemos tomar decisões que possam corroer o precário equilíbrio em que se encontram. E conto sempre com a tua sensatez, os teus bons conselhos mesmo sabendo que o futuro a Deus pertence. Bisous enormes, interminable amitié, Paulo.

(continua)

Linha de montagem, ontem e hoje
Organização científica de trabalho, Charlie Chaplin no filme Os Tempos Modernos
Uma Europa em ruínas, vai ser ressarcida pela sociedade de consumo
O triunfo do consumo e do indivíduo
A coesão sindical foi imprescindível na luta pelas melhores condições de vida
Anos 1980, está em marcha o mercado ecológico, do desenvolvimento sustentável e dos direitos dos animais
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22397: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória