quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22448: In Memoriam (403): João Dinis (1941-2021), ex-sold cond auto, CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65), e empresário em Bafatá, há mais de meio século... Morreu ontem de Covid-19, em Bissau (Patrício Ribeiro).


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > Outubro de 2015 > A nossa amiga e grã-tabanqueira Adelaide Barata Carrêlo com o João Dinis, empresário, antigo militar português, da CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65), integrada no BCAÇ 513 (com sede em Buba). Vivia na Guiné desde 1963. Natural de Alvorninha, Caldas da Rainha (conterrâneo do cardeal José Policarpo, 1936-2014), casou em janeiro de 1972, aos 31 anos, com a Célia, de 18 anos de idade. O casal teve 3 filhos (um rapaz, falecido aos 25 anos, e duas raparigas mais velhas a viver em Portugal).


Foto (e legenda): © Adelaide Carrêlo (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de dezembro de 2009 > 15h13 > O João Graça, médico e músico, fotografado com a Célia Dinis e o filho, Bruno, no seu estabelecimento, o restaurante "Ponto de Encontro".  O filho, que vivia com o casal, viria a morrer, prematuramente, aos 25 anos, por volta de 2013,
  vítima de acidente. Morreu no avião que o transportava para Portugal para receber tratamento. Ironicamente, o João  Dinis more em Bissau por falta de recursos hospitalares para tratar a Covid-19.

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >   Agosto de 2016 >  O casal Célia e João Dinis, portugueses das Caldas da Rainha e proprietários do restaurante “Ponte de Encontro”,num almoço em que participou o Patrício Ribeiro, cliente frequente da casa. Aliás,  os principais clientes eram portugueses e outros estrangeiros ligados à ONG ou  empresas com proprojectos  na 
Gurine Bissau. Era uma figura muito popular. Tinha umais sacola de condução automóvel em Bafatá desde 1968.

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >  4 de abril de 2017 > Os camaradas Monteiro e Cancela, com o casal Célia e João Dinis, portugueses das Caldas da Rainha e proprietários do restaurante “Ponte de Encontro”, onde almoçámos.

Foto (e legenda): © A. Acílio Azevedo (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > Fevereiro de 2017 > O casal João & Célia Dinis. Fotogramas do vídeo "O que é feito da Guiné-Bissau ?", que passou na  TVI, mo Jornal das 8, em 25 e 26 de fevereiro de 2017.( Reproduzido com a devida vénia. )



1. Mensagem do Patrício Ribeiro (português, natural de Águeda (1947), criado e casado em Nova Lisboa (hoje Huambo), Angola,  ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. XX, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda; membro da nossa Tabanca Grande, com mais de uma centena de referências no blogue):


Date: terça, 10/08/2021 à(s) 19:05
Subject: Dinis, morador em Bafatá, já foi.
 
Luís,

O Dinis de Bafatá, (residente em Bafatá há muitas décadas) faleceu hoje no hospital Simão Mendes em Bissau (Hospital Central), com Covid-19. (*)

Vai ser transladado para o Cemitério de Bafatá.

Existem diversas referências a ele, no blogue. (**)

Natural de perto das Caldas da Rainha, foi para a Guiné como militar e por lá ficou até hoje. Estava na casa dos 80 anos. Estive há pouco mais de 2 semanas com ele em Bafatá. Almoçamos e jantamos juntos durante 3 dias.

Tinha fugido da pandemia em Portugal para a Guiné, há poucos meses, onde tinha estado algum tempo em exames médicos. Como em Portugal não tinha recursos financeiros, dizia que nunca recebeu um cêntimo do Estado Português. Diziam-lhe, na Segurança Social que,  como era residente na Guiné, não tinha direito, nem ele nem sua mulher.

Voltou para a sua escola de condução e o seu pequeno restaurante em Bafatá, gerido pela sua mulher, Célia.

Estava cheio de projetos: pertencia à direção da Associação dos Antigos Combatentes Portugueses da Guiné, que continuam a lutar por aquilo que acham que têm direito. Recebeu um abraço do Marcelo em Maio último, quando da sua visita a Bissau.

Como militar, esteve muito tempo na zona de Cacine, pois era condutor e andava com o seu Unimog e com o guincho, rebocando as árvores da estrada, que os outros cortavam durante a noite, na estrada de Cacine para Guiledje.

Falei com eles, assim como com outros, por todo o lado, que havia Covid que deviam usar máscara e distanciamento, mas parecia que eu andava a pregar para as matas de cajueiros que não nos ouvem.

P.S. Neste ano de pandemia, é o quinto português antigo e amigos, dos residentes na Guiné que lá ficam.

Um abraço á família

Patrício Ribeiro

impar_bissau@hotmail.com



2. Comentário do editor LG:

Ficamos sempre sem palavras quando morre alguém nosso conhecido, amigo e/ou camarada. Foi, de resto,o que escrevi no poste P16428, de 28 de agosto de 2016, quando apresentou o João e a Célia Dinis à Tabanca Grande:

(...) Ficamos sem palavras... A milhares de quilómetros de Portugal, essa é seguramente uma "casa portuguesa"... E de repente salta-nos à mente a letra e a música da Amália, tão "maltratadas" antes do 25 de abril... No fundo, podia parecer que esse famoso fado, da Amália, era o elogio, miserabilista, da pobreza honrada associada ideologicamente ao Estado Novo...

Camarada e amigo Patrício Ribeiro, diz ao nosso camarada João Dinis e à sua companheira Célia que eles já ganharam o direito de figurar, a partir de hoje, e com todo o mérito, no quadro de honra da Tabanca Grande, passando a ser os grã-tabanqueiros nºs 724 e 725. 

Diz-lhes que é a nossa singela homenagem, a do blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné, não só ao seu portuguesismo como também à sua grande capacidade de trilhar as duras picadas da vida, e de sobreviver as todas as minas e armadilhas. O seu exemplo comove-nos e honra-nos... 

Um abraço fraterno para todos os demais "tugas" de Bafatá. Um xicoração para ti, que és o "pai dos tugas" da Guiné-Bissau" (...)

Para a Célia, filhas e demais família do nosso camarada João Dinis vai um grande abraço solidário nesta hora difícil. O João e a Célia eram um caso extraordinário de resiliência e de amor à Guiné-Bissau, terra que fizeram sua.

3. Os "últimos tugas" de Bafatá > João e Célia Dinis: “Portugal era um atraso de vida em comparação com a Guiné” (Excerto do "Público", de 13/4/2013)

(...) Na casa de João e de Célia nunca faltava fruta enlatada, vinho Casal Garcia e pelo menos dez garrafas de whisky “do bom” para receber as visitas. Durante anos, puderam ter na Guiné-Bissau uma série de luxos que na chamada "metrópole" eram ainda uma miragem. Esses foram outros tempos. Hoje todos os gastos são controlados. Bebem vinho do mais barato e só comem bacalhau ou queijo quando algum amigo os visita. A vida obrigou-os a uma cambalhota do 80 para o oito, mas nem por isso deixam de falar com alegria, com um brilho nos olhos e esperança no futuro. A bola é para chutar para a frente e apesar de Célia ter 58 anos e João 71, não duvidam que ainda vão conseguir marcar golo.

João e Célia Dinis são dos portugueses que há mais tempo vivem na Guiné, chegaram numa altura em que “tudo era bonito, não havia falta de trabalho e tinham uma vida mais que boa”. João foi o primeiro. Chegou em 1963 como militar. Gostou tanto que ficou e já como funcionário da administração do porto de Bissau acenou aos colegas da Companhia [de Artilharia] 496 [Cacine e Cameconde, 1963/65] , Batalhão  [de Caçadores] 513, que viu partir num navio . “Não troque os números, são muito importantes para se algum amigo dessa altura me quiser telefonar”, pede ao PÚBLICO.

Só voltaria a Portugal em Setembro de 1971. “Estava há nove anos sozinho e ia com o objectivo de casar, mas não podia ficar muito tempo. Tinha de resolver o problema rapidamente e graças a Deus consegui”. Conheceu Célia num baile e meteu logo conversa. “Ó menina, não se importa que a gente vá bailar um bocadinho? Mas olhe que eu vivo em África há muitos anos, já não sei bem dançar as músicas de cá...”, perguntou-lhe. A resposta foi afirmativa. Casaram no dia 9 de Janeiro 
[de 1972] e dia 20 vieram juntos para a Guiné. Célia tinha 18 anos e Dinis 31.

Nessa altura, tudo lhes corria bem. Dinis era dono de duas escolas de condução e, alguns anos mais tarde, Célia decidiu abrir o restaurante Ponto de Encontro, que mantém até hoje em Bafatá (no centro-norte do país). “Era uma cidade espectacular, estava tudo pintadinho, arranjadinho. Se vissem esta avenida e aquela ali em baixo. Lindas, lindas. As pessoas juntavam-se para fazer piqueniques, remo, ir ao cinema. E as lojas? Tinhas de entrar só para ver, mesmo que não comprasses. Era uma coisa que atraía. Portugal era um atraso de vida em comparação com a Guiné”, descreve Célia.

O Ponto de Encontro servia mais de 70 almoços por dia e Célia chegou a ter de pedir aos tropas para tomarem conta da filha enquanto despachava o mais depressa possível os almoços. Não tinha mãos a medir. Agora há dias em que não faz cinco mil francos CFA (7,50 euros). De 17 empregados passou para dois e mesmo assim queixa-se que a receita não cobre as despesas. Podiam-se ter ido embora depois do 25 de Abril de 1974. Chegaram a vender tudo, mas os guineenses não os deixaram partir: "Não, não se vão embora porque ninguém vos vai fazer mal. Vocês também não fizeram mal a ninguém.”

“Se eu tenho ido depois da independência, era um senhor em Portugal. O meu cunhado ainda me disse para montarmos uma escola de condução, se eu o tenho ouvido... Teria muito mais dinheiro, mas não tinha esta terra”, projecta Dinis. É um apaixonado pela Guiné. Quando ia a Portugal de férias, não queria ficar mais de 15 dias, “chegava para ver a família”. “Só desejava voltar àquelas pessoas que me conheciam e, do mais pequeno ao maior, me chamavam pelo nome. Nem sequer consigo dizer o que menos gosto neste país porque gosto de tudo. Até das faltas, fomo-nos habituando a elas”.

Foi depois de 1974 que tudo piorou. Durante dez anos ainda viveram bem mas, pouco a pouco, as coisas começaram a escassear. Primeiro faltaram o queijo, as batatas e os chocolates. Até que acabou tudo. “Foi um processo: apetecia-me beber uma garrafa de vinho Casal Garcia e não havia, mas ainda se podia comprar Dão. Quando o Dão acabou, tínhamos o Pias...”, recorda Dinis.

Às vezes perguntam-lhe como consegue viver assim. Ri-se e responde: “Tu também cá estarias se tivesses vivido o que eu vivi. Tínhamos uma vida mesmo bonita. Luz 24 horas por dia, boas estradas, tudo limpo. Onde é que os portugueses comiam pêra enlatada? A nossa bebida era whisky com água das pedras, a cerveja era só para acompanhar as ostras e os camarões”.

A Guerra Civil, em 1998, foi o golpe fatal para a Guiné: “Foi desde aí que deixámos de viver como portugueses na Guiné e passámos a ter condições de vida semelhantes à de um guineense: a ter de carregar água, andar a pé...”, conta Célia.

Apesar do Ponto de Encontro estar quase sempre vazio e dos poucos alunos da escola de condução demorarem mais de dois anos a pagar (a carta custa menos de 150 euros), apesar de dizer que agora já estava na altura de voltar a Portugal, não é isso que Dinis sente. Quando fala das suas dezenas de projectos, quando diz que as coisas vão melhorar – e di-lo muitas vezes como se a sua vida pudesse durar o dobro da do comum dos mortais –, a Guiné é sempre o palco principal da sua felicidade.

As saudades das duas filhas são mesmo o que mais pesa a Célia e Dinis. Há oito anos que não as vêem e há netos que ainda nem conhecem. Mas já lá vai o tempo em que uma viagem a Portugal custava cinco mil francos CFA e a família se juntava toda para passar as férias grandes.

Custas-lhes terem trabalhado a vida toda e não terem nada. “Nem cá nem lá”. Entregaram-se à Guiné e é a ela que pertencem. Por isso, sempre que pensam regressar perguntam “para fazer o quê". “Tenho direito à reforma porque fui militar e funcionário público de Bissau, mas na altura que a porta estava aberta não pude ir a Lisboa e agora está fechada a cadeado. Lá as pessoas vivem lado a lado, mas não se conhecem. Aqui sou o professor, dou cartas de condução desde 1968, ensinei pessoas que já morreram”, gaba-se Dinis.

Célia também tem medo do regresso mas confessa já estar cansada de levar a casa e o restaurante às costas. “Dizem que Portugal está mau mas para nós é um mundo de rosas. Não há dinheiro, é verdade, mas aqui também não há. Lá não se compra mais, compra-se menos, mas não sentes saudades de comer. Abres a torneira e tomas banho de chuveiro. E aquelas auto-estradas todas direitinhas? É uma alegria”, diz num português que já mistura com sotaque crioulo.

Por agora, só têm uma solução: aguentar. “Ando há muitos anos com a palavra esperança na ponta da língua mas ainda não a encontrei. Penso vir a ter uma vida boa na Guiné. Hoje não temos, não saímos de Bafatá há anos. Mas se calhar ainda vamos conseguir ter um carrinho melhor para ir a Bissau dar o nosso passeio. Dançamos, ao toque da música. Se a música saltar, também saltamos. E bem alto”, deseja Dinis. (...)


Fonte: Sofia da Palma Rodrigues > Guiné: entre o paraíso e as saudades de Portugal > Público, 13/04/2013 - 08:02 (Excerto reproduzido com a devida vénia)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22429: In Memoriam (402): 1.º Cabo Miliciano Fernando Pacheco dos Santos, da CART 2673, caído em combate, em Empada, no dia 7 de Julho de 1970 (Juvenal Danado, ex-Fur Mil Sapador Inf)

(**) Vd. postes sobre o João & Célia Dinis (Bafatá):

5 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14120: Manuscrito(s) (Luís Graça) (43): Notas à margem do documentário de Silas Tiny, "Bafatá Filme Clube", com direção de fotografia da Marta Pessoa (Portugal e Guiné-Bissau, 2012, 78')

30 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16431: Álbum fotográfico de Adelaide Barata Carrêlo, a filha do ten SGE Barata (CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71): um regresso emocionado - Parte VIII: Bafatá, o restaurante "Ponto de Encontro", da Célia e do João Dinis, os nossos mais recentes grã-tabanqueiros

27 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16423: Recortes de imprensa (80): Os "últimos tugas" de Bafatá: João e Célia Dinis, entrevistados pelo "Público", em 13/4/2013... O nosso camarada João Dinis, hoje empresário, vive na Guiné desde 1963. Pertenceu à CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65)

29 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16428: Convívios (766): Os "tugas" de Bafatá... Agosto de 2016, restaurante "Ponto de Encontro", do casal Célia e João Dinis a quem prestamos uma emocionada homenagem (Patrício Ribeiro, Impar Lda)

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22447: Efemérides (351): Ainda e sempre o naufrágio no rio Geba, em 10/8/1972, em que perdemos três camaradas (Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494 / BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/1974; agora em férias prolongadas nas "Arábias")


 

Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2014). Todos os direitos reservados. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).





1. Mensagem enviada hoje, às 9h09, pelo nosso coeditor Jorge Araújo  (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), e agora de férias prolongadas nas "Arábias" 


 

Caros Camaradas,

Os meus Bons Dias desde as «Arábias».

Faz hoje quarenta e nove anos (1972.08.10-2021.08.10) que vários elementos do contingente militar da CART 3494, a terceira unidade de quadrícula do BART 3873, tiveram de “mergulhar”, sem o desejarem, nas águas revoltas, escuras e lodosas do Rio Geba, na região do Xime/Bambadinca (Sector L1), 
onde, por efeito da falta de bom senso mesclado com alguma improvisação, perderam a vida três jovens milicianos, naquele que ficou gravado como o «Naufrágio do Geba».

Ao recuperar esta horrenda efeméride que a todos marcou, naturalmente mais aos que viveram e sobreviveram à experiência, quero prestar a minha sentida homenagem aos que pereceram naquele acidente náutico: 

José Maria da Silva Sousa
Manuel Salgado Antunes
Abraão Moreira Rosa.

Para compreender a trágica ocorrência devem-se ler os postes:

Com um abraço de amizade e muita saúde,
Jorge Araújo

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22421: Efemérides (350): Fez 55 anos, em 30/7/1966, que parti para o CTIG, no T/T Uíge, para ir formar em Bolama o Pel Caç Nat 54... Estive depois em Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas (José António Viegas, fur mil art, 30/7/1966 - 22/9/1968)

Guiné 61/74 - P22446: Passatempos de Verão (26): A cabra Joana de Nhacobá e o cão Tigre do Cumbijã, uma fábula que pode ser entendida como uma metáfora das relações coloniais do passado (Lucinda Aranha)


1. Mensagem de , Lucinda Aranha (, nossa amiga e grã-tabanqueira, escritora, filha do Manuel Joaquim dos Prazeres, o homem do cinema ambulante no nosso tempo, na Guiné, autora de uma biografia ficcionada do pai, a que chamou "romance":  "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", Alcochete, Alfarroba, 2018, 165 pp.; tem página no Facebook, Lucinda Aranha - Andanças na Escrita.

É também autora do livro "No Reino das Orelhas de Burro", recheado de histórias e memórias dos tempos em que o seu pai viveu, em Cabo Verde e na Guiné, desde os anos 30 até 1972. Tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue e integra a Tabanca Grande desde 15 /4/2014 (Vd. poste P12991).

Data - terça, 3/08, 12:29
Assunto - Desafio aos/às nossos/as escritores/as: a fábula da cabra Joana e do cão Tigre


Luís, tudo bem?

Recebi o teu repto e estive para não responder por dois motivos. O primeiro respeita à fase horrível por que estou a passar, desde Março perdi três irmãs, um sobrinho por afinidade ( nenhum com Covid) e uma outra irmã fracturou um joelho e o colo do fémur. O segundo porque não me via a fazer pesquisa pelo Boletim Cultural da Guiné para me inspirar nos hábitos dos animais africanos.

Finalmente e até para tentar arejar a cabeça lembrei-me de escrever um pequeno texto que, embora passado em Portugal, pode, penso eu, ser entendido como uma metáfora das relações coloniais entre Portugal e a Guiné. Tens toda a liberdade, não me ofenderei se entenderes que não cabe no Luís Graça & Camaradas da Guine.

Enfim, foi o que saiu. Tu dirás de tua justiça  
Beijos saudosos e até um dia destes. Lucinda Aranha


A cabra Joana e o cão Tigre

por Lucinda Aranha


Matreiro, o Tigrado estava de tocaia à presa, a atrevida cabra Joana, uma pérfida dada ao latrocínio.

Quando lhe dava na real gana, lá vinha ela numa expedição de saque,  atacando a propriedade dos donos de que ele, cão cumpridor, se via como fiel guardador. Invariavelmente impunha-lhe pesadas derrotas com os seus ataques de supetão, de bate e foge.

Mas hoje não o havia de fintar. Estava preparado para dar uma lição àquela guerrilheira lusitana. Hoje é que iam ser elas : a grande gulosa havia de ver as verdes e tenras alfaces da Florinda por um canudo. Hoje é que havia de provar no corpo os seus dentes afiados, quais bisarmas. E com os olhos semicerrados, antevia com deleite o momento em que a poria definitivamente KO. Ela havia de saber o que era a paz tigre à romana.

Nestas cogitações, salta do nada a cabra Joana para a surtida habitual. O Tigrado investe e, num segundo, as suas expectativas de vitória saem goradas. Como sempre, ela finta-o, pula pelas serras e montes, arrastando-o, cego de fúria, numa corrida feita de trambolhões até o fazer dar com os costados num baixio onde cai feito prisioneiro.

– Com que então vais pelas nossas galinhas todo ancho como se fosses o pai da tua dona nas caçadas pelos matos da Guiné! – invetiva-o a Joana, enquanto o Tigrado tentava em vão saltar da sua prisão. – Aprende: todos temos de ser respeitados e termos a liberdade de fazermos o que queremos e como queremos. Muitas galinhas pagaram os teus donos aos meus e nem por isso eles te perseguem. Não dão eles volta e meia aos teus donos boas tronchas e até uns anhos? Porque és tão ganancioso?

Em transe tão aflitivo, o pobre cão cai em si.
– Tens razão, Joana, agora enxergo a minha soberba, realmente eu era um egoísta. Só via os meus interesses e os dos meus donos, achava que os dos outros não contavam.

Com dois coices, a cabra rebentou a cancela escancarando-lhe o portão da prisão e lá foram os dois serra acima, uma cabriolando, o outro correndo em grande companheirismo e cumplicidade.

Lucinda Aranha

2. Comentário do editor LG:

Querida amiga Lucinda:

Antes de mais, a minha solidariedade na dor pela perda dos teus entes queridos, as tuas manas cujas pequenas grandes vidas tu evocaste, com tanto talento e fina ironia no teu livro "O homem do cinema". 

A capacidade de fazer o luto faz parte da nossa condição humana. Desde que nascemos e temos consciência de nós e dos outros, aprendemos a lidar com a perda (, de que a morte é a mais dolorosa e irrversível). 

Quanto à versão que me mandaste, da fábula da Cabra Joana e do Cão Tigre, não podia ser mais original. Estou-te grato, em meu nome e em nome da Tabanca Grande. Espero que os nossos leitores a saibam ler e queiram comentar. 

Por outro lado, é bom saber de ti, depois de tantos meses de silêncio, em grande parte imposto pelas contingências da pandemia de Covid-19 (, que não nos deixou, por exemplo, concretizar a ideia de poderes vir à Lourinhã falar do teu livro e das memórias do teu pai).

Recorde-se o ponto de partida, real: A cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada pelo PAIGC, no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores. Foi levada, a Joana, para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o "Tigre de Cumbijã", mascote do pessoal. 

Não sabemos como esta história acabou, a pequena, insignificante, história destes dois animais domésticos, só sabemos, pelo Joaquim Costa,  que estavam vivos quando o aquartelamento de Cumbijã foi entregue ao PAIGC, em 7 de agosto de 1974. Em todo o caso,  sabemos também que não fazem parte da História com H Grande. (**)
Vd. também: 

1 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22422: Passatempos de Verão (24): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 2: "Ao que parece, nem os macacos se salvaram" (Joaquim Costa)

31 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22420: Passatempos de Verão (23): A cabra Joana de Nhacobá e o cão rafeiro Tigre de Cumbijã: fábula 1: "Não se pode servir dois senhores ao mesmo tempo" (Luís Graça)

30 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22417: Passatempos de verão (22): A fábula da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã, obrigados a coexistir pacificamente até ao final da guerra

(**) Vd. poste de 29 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22413: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago (Op Balanço Final)

Guiné 61/74 - P22445: Notas de leitura (1370): Prefácio de Ricardo Figueiredo ao livro "Um caminho a quatro passos", de António Carvalho


Capa do livro do António Carvalho, 
"Um caminho de quatro passos" (2021)



Prefácio

por Ricardo Figueiredo



Num final de tarde, do mês de Maio, recebi um telefonema do amigo e camarada de armas, António Carvalho, com um pedido específico para lhe prefaciar o seu livro. Confesso que a minha primeira atitude foi no sentido de recusar tão honroso convite mas, perante a sua insistência, não consegui argumentos para a manter.

Conheci o António Carvalho, no Grupo do Café Progresso, das Caldas à Guiné – um grupo de antigos combatentes da Guiné, de que ambos fazemos parte – que religiosamente se encontra, desde pelo menos o ano de 2007, às segundas quarta - feiras de cada mês, para uma reunião de “trabalho” gastronómico e cultural, onde o exercício da catarse é feito de forma coletiva e em que a camaradagem se aprofunda cada vez mais, sublimando a amizade construída nos campos de batalha.

Culto, de um humor provocatório, sagaz, e humilde na sua postura, o António Carvalho já nos havia comunicado que andava muito empenhado em escrever um livro que retratasse a sua Medas.

Caracterizado pelo rigor, investigou, até com alguma razão de ciência, as várias narrativas que constituem o seu livro, buscando aqui e ali a certificação das suas afirmações, ora visitando para consultaas bibliotecas ou até mesmo o cemitério e os arquivos jornalísticos da época.

Sendo uma quase biografia, não deixou de trazer, à memória das gentes das Medas, algumas das figuras mais marcantes que o tempo fez esquecer, reabilitando até o excomungado sacerdote que, um dia, atraiçoado pelo desejo do sexo oposto, quebrou o celibato, caindo nas garras de um Código Canónico impiedoso e se viu discriminado por alguns dos seus pares.

Não esqueceu as dificuldades, o glossário utilizado pelos seus habitantes, pintando, expressivamente, nos seus textos, os quadros da época com uma proximidade tal que nos envolve na leitura.

O António Carvalho, como muitos milhares de jovens nascidos entre 1940 e 1954, viram as suas vidas condicionadas durante cerca de 14 anos, pela Guerra do Ultramar, que durou entre os anos de 1961 e 1975, sujeita à mobilização para cumprimento do então Serviço Militar Obrigatório (SMO) para cumprir serviço numa das Províncias em guerra – Angola, Guiné ou Moçambique.

Acabou mobilizado para a Guiné, após uma rápida formação, na especialidade de enfermeiro. Aí chegado, para além do que por si é narrado, no capítulo que lhe dedicou, desenvolveu um trabalho não só no serviço de saúde, a sua área específica, como também na área social e psicológica. 

Na área da saúde, como enfermeiro de guerra, não só acudiu à população militar, como à civil, designadamente os nativos, com todas as suas carências naturais, mas também no tratamento de ferimentos graves e até já infectados pelo desleixo ou incapacidade dos infectados. Muitas vezes substituindo-se ao médico, por ausência deste ou do seu distanciamento geográfico. Na área social e psicológica, pelo acompanhamento que dava aos seus pares e aos próprios nativos, aturando os desabafos de uns e de outros, com a paciência de Job.

Finalmente, como também aconteceu a muitos dos jovens, que viveram o 25 de Abril de 1974, fez uma incursão pela vida política, chegando a presidente da Junta de Freguesia de Medas, lugar que desempenhou com todo o saber em prol dos seus fregueses, por cerca de duas décadas.

Resta-me agradecer-te, António Carvalho, pelo esforço, dedicação e coragem em escreveres este livro, que muito honrará as gentes das Medas, estou disso certo.

Ricardo Figueiredo

Antigo Combatente da Guiné

[ex-Fur Mil, 2.ª CART/BART 6523, Cabuca, 1973/74; advogado]


Mensagem, enviada com data de ontem, às 15h50, pelo  António Carvalho (ex-Fur Mil Enf, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74;  também carinhosamente conhecido como o "Carvalho de Mampatá", natural de Medas, Gondomar; antigo autarca):



Caro Luis, junto te remeto a capa do meu livro, para usares como entenderes. 

A venda do livro será sempre depois da apresentação que ocorrerá no dia 11 de Setembro pelas 11 horas, na Tabanca dos Melros. Não excluo a hipótese de o vender, em futuras visitas à Tabanca da Linha e à Tabanca do Centro.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22444: Notas de leitura (1369): “Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura", por Ângela Benoliel Coutinho; edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro de 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,

A dissertação de doutoramento de Ângela Benoliel Coutinho visou colmatar conhecidas e reconhecidas lacunas sobre os dirigentes do PAIGC: extração, profissões, famílias, aferir diferenças entre a primeira e a segunda geração de combatentes. A autora não esconde um móbil principal que é procurar desfazer o que ela chama um mito da hegemonia cabo-verdiana no PAIGC. Como se verá, bem procura mas não alcança. A História tem destas vicissitudes que é comprovar a veracidade dos factos pelos comportamentos políticos posteriores. 

Os combatentes guineenses tinham duas razões de tomo para desconfiarem da sigla da unidade Guiné Cabo-Verde: tiveram séculos de patrões cabo-verdianos e não gostaram; e foram fundamentalmente dirigidos até 1980 de acordo com uma lógica que davam por inaceitável. Trabalho com bastantes méritos, mas surpreende como é que se edita a seco uma tese defendida em 2005 quando, no entretanto, surgiu muita outra documentação de elevada pertinência. Não teria sido útil publicar a tese de 2005 com comentários a investigações posteriores que trouxeram, iniludivelmente, apreciações distintas à que a autora defendeu, então?

Um abraço do
Mário



Os Dirigentes do PAIGC, da Fundação à Rutura,
por Ângela Benoliel Coutinho (1)


Beja Santos

Este livro resulta da tese de doutoramento em História da África Negra Contemporânea, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne. A sua tradução para português, nos dias de hoje, obriga-nos a questionar se não devia ser objeto de um texto complementar decorrente da importante bibliografia publicada nos últimos treze anos. Logo Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa, António Tomás, Daniel Santos e Tomás Medeiros. Mas também Piero Gleijeses que estudou a presença cubana na luta armada; a entrevista de José Vicente Lopes a Aristides Pereira, com data de 2012, A Criação e Invenção da Guiné-Bissau por António Duarte Silva, mas há mais. 

Um olhar sobre a História é por definição sempre datado, mas publicar treze anos depois um documento destes sem um comentário acerca de investigações posteriores que podem pesar nas conclusões então produzidas, parece-nos um tanto bizarro.

A que se afoitou Ângela Benoliel Coutinho? Ela responde: 

“O presente estudo debruça-se sobre as trajetórias dos fundadores do PAIGC e dos membros do seu Comité Executivo de Luta. Interrogar-nos-emos acerca do recrutamento destes dirigentes, mais precisamente o recrutamento geracional, geográfico, de género, social, procurando também saber que formação tiveram, tendo em vista as suas atividades de direção política”

Mostra-se entusiasta pelo cruzamento de diferentes disciplinas, tendo como núcleo central a Sociologia Política e organiza o seu trabalho sondando a primeira geração dos dirigentes do PAIGC, a longa e progressiva tomada do poder pela segunda geração dos dirigentes do PAIGC, discreteia sobre heróis ideólogos após a independência, o que aconteceu aos revolucionários no poder e elabora as conclusões.

É de lamentar que ao referir a organização política do PAIGC traçada no Congresso de Cassacá não extraia a mais devida das considerações: o poder militar ficou, a partir desse momento, custodiado, totalmente dependente do decisor político. Durante anos, o cérebro da estratégia, tanto militar, como organizacional, política e diplomática, foi Amílcar Cabral; Aristides Pereira era o pontífice da logística e Luís Cabral o dirigente que funcionava como uma antena no Senegal. Há que tirar ilações desta cúspide, eles foram os verdadeiros dirigentes e interlocutores dos comandos militares.

Quanto à fundação do PAIGC, sabe-se que há dados obscuros, e de há muito. Quem esteve presente em 19 de setembro de 1956 é uma verdadeira incógnita; Julião Soares Sousa avança mesmo que era fisicamente impossível Amílcar Cabral ter assistido àquela reunião; e quanto à existência do PAI continua a pertinência da pergunta porque é que Amílcar Cabral nunca falou dele em sessões públicas ou na sua correspondência até 1960.

Para a investigadora, temos um conjunto de fundadores, nascidos entre 1923 e 1930, Aristides Pereira, Amílcar Cabral, Júlio Almeida, Fernando Fortes, Luís Cabral e Elysée Turpin. Eles podem ter sido todos fundadores mas para a história do PAIGC o que conta são os irmãos Cabral e Aristides Pereira, três homens extraídos da cultura cabo-verdiana, e a autora desenvolve mesmo as respetivas genealogias, releva a importância do Liceu Gil Eanes no Mindelo, o papel de Baltazar Lopes da Silva e da revista Claridade e interroga-se mesmo de quem influenciou quem no meio universitário lisboeta, Dalila Mateus ouviu Marcelino Santos sobre leituras e intercâmbios ideológicos, não parece haver dúvida que a grande plataforma de encontro foi o Centro de Estudos Africanos, funcionava na Rua Ator Vale, em pleno Bairro dos Atores, em Lisboa.

A autora aborda as fugas e as partidas para o exílio, não há uma palavra para Rafael Barbosa e o seu determinante papel dirigente nesse período decisivo de 1960 a 1962.

Estamos agora na segunda geração dos dirigentes do PAIGC, os combatentes. Oiçamos a autora a propósito do recrutamento dos militantes no mundo obscuro da clandestinidade:

“Considerámos que existiram duas fases cruciais de recrutamento deste grupo de dirigentes. A primeira diz respeito ao início da sua militância no PAIGC, enquanto a segunda ocorreu no interior do próprio partido, tratando-se do seu recrutamento na qualidade de dirigente deste. A fim de compreender a primeira fase em causa, visto a falta de estudos sobre o PAIGC e a indisponibilidade de fontes do partido, apoiámo-nos em vários outras fontes: processos da PIDE / DGS, entrevistas, relatos de vida publicados e obras ou estudos publicados”.

Concluiu que o recrutamento dos dirigentes ocorreu durante um período muito curto, primeiro em Conacri e depois no Senegal. Esclarece que os militantes do PAIGC que agiram no espaço político sob domínio português e que não fugiram durante este período, não fizeram carreira até ao topo da direção política do PAIGC. 

A maioria dos militantes que chegaram à direção política do movimento entre 1963 e 1967 já se encontravam na cena política africana e já tinham sido recrutados pelo PAIGC pelo menos até 1962. Luís Cabral, em entrevista à autora, enumera-os: Rafael Barbosa, Victor Saúde Maria, Carlos Correia, Francisco Mendes, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira, Nino Vieira, Abdulai Bari, Pascoal Correia Alves, Tiago Aleluia Lopes, Otto Schacht, Vasco Cabral, todos guineenses, e Abílio Duarte, Silvino da Luz, Pedro Pires, José Araújo e Osvaldo Lopes da Silva, todos cabo-verdianos. 

A autora dá pormenores sobre o seu recrutamento, as suas trajetórias, profissões e atividades antes de entrarem na luta armada e as conclusões são de há muito conhecidas: os cabo-verdianos eram estudantes universitários; com estudos universitários só o guineense Vasco Cabral, todos os outros guineenses eram pequenos funcionários, em casas comerciais ou organismos do Estado.

A autora não esconde a intenção em pretender demolir a tese da hegemonia cabo-verdiana, como se esta se revelasse em percentagens, e o equilíbrio fosse patente. A questão de fundo é tratada veladamente: a decisão ideológica e política, a orientação militar estava a cargo de três líderes políticos, competindo a Amílcar Cabral todas as grandes decisões: os combatentes na fase de arranque eram todos guineenses. 

Com o evoluir da luta armada e a deslocação dos cabo-verdianos para o interior da Guiné deram-se substanciais alterações. Refere-se igualmente a quase ausência de mulheres da direção, a exceção mais relevante era Carmen Pereira, havendo figuras de prestígio como Titina Silá, Dulce Almada, Francisca Pereira e Ana Maria Gomes, isto quanto a uma primeira geração. Há também uma exposição sobre as fugas dos militantes cabo-verdianos, vamos ficar a conhecer a sua genealogia.

A obra “Os Dirigentes do PAIGC” é uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, novembro de 2017.

(Continua)

Carlos Correia, imagem retirada do Arquivo Amílcar Cabral / Fundação Mário Soares, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22425: Notas de leitura (1368): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22443: Memória dos lugares (424): a bela e interminável praia de Varela, a 5 horas de Bissau... (Patrício Ribeiro)


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia norte > A cana de pesca do Patrício Ribeiro


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul > Quilómetros de praia, que continua a ser bela e aprazível, apesar das alterações climáticas.


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 >  Peixe coelho
 

Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca de Iale > Maio de 2021 > Casa tradicional felupe 


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca de Iale > Maio de 2021 >  Casa sem palha 
 

Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca de Iale > Maio de 2021 > Casa com palha nova


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca de Iale >  Maio de 2021 > Casa ao entardecer, às 6h30

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Patrício Ribeiro: português, natural de Águeda (1947), criado e casado em Angola, com família no Huambo, antiga Nova Lisboa, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. XX, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.

É o português que melhor conhece a Guiné e os guineenses, o último dos nossos africanistas: tem mais de uma centena de referências o nosso blogue; Tem também uma "ponta", junto ao rio Vouga, Agueda, onde se refugiou agora, fugindo da pandemia de Covid-19: "irreformável",  já levou   a 2ª dose da vacina contra a Covid-19,  para poder voltar àquela terra verde-rubra que tem sido a sua paixão de uma vida.


1. Mensagem de Patricio Ribeiro:

Data - 8 de agosto de 2021, 20:53  


Assunto - Fotos de Varela

Luís, conforme solicitas, envio diversas fotos que tirei recentemente pela Guiné, (vou enviar por diversas vezes).

Depois do Almirante me ter mandado chamar a Lisboa para apanhar o “2º vírus”, lá fui tirar as fotos ... Dormi em: Bissau, Varela, Bolama e Bafatá, algumas noites.

Tive que passar 15 noites seguidas na mesma cama (com o bicho). Portanto, não consegui tirar mais que umas dezenas de fotos, nos meus passeios por estes lados.

Junto fotos tiradas em Varela, no final de maio, 2021. Na bela e interminável praia, durante as minhas pescarias para o tacho, ou para a grelha. Lá não há supermercado, ou sabes pescar, ou abres latas de atum, embora já haja 3 hotéis, a funcionar!

Praia de água quente, 32º antes das chuvas, com muito distanciamento, sem ninguém por perto e como podem ver, toda a praia livre, nesta época do ano.

A água vai avançando uns bons cm por ano, para dentro de terra; há uma grande erosão e leva as árvores que estão perto da praia e areia do solo. Acontece na época das chuvas.

Fala-se num projeto para combater esta situação … fala-se …

Estrada até Varela desde Bissau, 5 horas!!!

Outras fotos, tiradas às casas dos Felupes na Tabanca de Iale – Varela, casas muito bonitas. Todas com quintal e horta. Eles preservam muito as árvores, ao contrário de outras etnias. Eles são os donos do Chão de Varela, (são outras histórias complicadas).

Aproveitei a estadia para encomendar palha, tecer a palha, cobrir novamente a palhota. Esta nova palha, deve aguentar mais uns 5 anos. Ver fotos, p.f.

Com as alterações climáticas, nos últimos anos tem havido nesta zona, tornados na época das chuvas, que têm danificado tudo o que encontram pela frente, inclusive árvores antigas.

Recomenda-se a quem quiser apanhar sol, água do mar quente, distanciamento “natural” e sem máscara, passar uns dias a beber cerveja ou vinho de palma, uma viagem até Varela …

Não deve é conviver muito, para ter um teste negativo e poder voltar quando pensa, o que não está a acontecer, a muito boa gente amiga …

Luís, agora já ando noutros trabalhos [na ponta do Vouga, em Águeda]:  aplicar calda bordalesa nas videiras e nos tomates; a regar a horta etc, etc …

Abraço

Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Guiné-Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com

2. Comentário do editor LG:

Sobre Varela temos mais de meia centena de referências no blogue. Ver também a carta de Varela (1953), escala 1/50 mil.
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Nota do editor:

domingo, 8 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22442: Agenda cultural (779): "Um caminho de quatro passos", o livro autobiográfico do António Carvalho (ex-Fur Mil Enf, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), a ser apresentado na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gomndomar, no próximo dia 11 de setembro


1. Mensagem de  António Carvalho (ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), também carinhosamente conhecido como o "Carvalho de Mampatá", natural de Medas,  Gondomar.

Data - terça, 3/08/2021, 23:13  

Assunto - O meu livro " Um Caminho de Quatro Passos"

Caro Luís Graça:

Acabou de sair do prelo o meu livro (*). Será apresentado na Tabanca dos Melros, no sábado, dia 11 de Setembro, pelas 11 horas. (**)

Muito gostaria de contar com a tua presença, para além de outras razões, também pelo teu papel primordial na fundação e gestão da Tabanca Grande dos Combatentes. Pretendo, oferecer-te um exemplar do meu livro,  ainda antes da respectiva apresentação, para que dele faças o uso que entenderes. 

Podes ainda, se achares por bem, divulgar a data da sua apresentação, através do blog da Tabanca Grande, bem como dizer dele o que te aprouver.

Preciso por isso que me indiques o teu endereço.

Com um abraço e votos de saúde .

António Carvalho

2. Comentário do editor LG:

António, primeiro que tudo deixa-me dizer-te da minha felicidade por teres pronto o teu livro de que fomos os primeiros, no nosso blogue,  a publicar uma série de excertos (**). E, em segundo lugar, da honra que senti pelo teu convite para a sessão da apresentação na Tabanca dos Melros. 

Infelizmente, não me vai ser possível deslocar-me nessa data até à tua terra, e à nossa querida Tabanca dos Melros. Nas próximas seis semanas, no mínimo, estou aqui preso,  na Lourinhã,  a fazer fisioterapia, a recuperar a massa muscular das minhas pernas e a fazer treino de marcha. É previsível que em outubro ou  novembro vá à "faca"... Por ora, ando de canadianas,,,

Mas terei todo o gosto em escrever uma ou mais notas de leitura do livro de que me vais mandar um exemplar, autografado, para a minha morada.  (Já conheço a fazer versão final em formato pdf, que tiveste a gentileza de me mandar há dias.) Vais por certo encontrar uma ou mais pessoas (a começar pela tua filha, o Ricardo Figueiredo, ou alguém dos "Unidos de Mampatá"...) que poderão abrilhantar, muito melhor do que eu, a sessão de lançamento do teu livro que tem um título tão sugestivo, "Um caminho de quatro passos". 

Obrigado, António, ficamos todos muito  orgulhosos, aqui na Tabanca Grande, por mais este passo que tu dás na picada da vida, cheia de minas e armadilhas, mas também de boas oportunidades para sermos criativos, felizes e solidários.... E gratos à vida!.  

Vai ser uma festa de arromba o convívio no dia 11 de setembro de 2021, na Tabanca dos Melros. Um abraço para todos os Melros e para o régulo Gil Moutinho.

PS - Num próximo poste publicaremos já o prefácio, da autoria do teu e nosso amigo e camarada Ricardo Figueiredo, para além  do teu posfácio.

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

24 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa

22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados

17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo

15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...

(**) Último poste da série > 5 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22435: Agenda cutural (778): "Os Roncos de Farim", de Carlos Silva (Porto, 5 Livros, 2021): lançamento do livro, na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, no próximo dia 14, sábado

sábado, 7 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22441: Estórias do Zé Teixeira (50): Amores em tempo de guerra - O sonho da Luisinha (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Em mensagem do dia 4 de Agosto de 2021, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um dos seus contos, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":


Amores em tempo de guerra

Um sonho terrível acossara a Luisinha naquela noite, depois de um jantar entre colegas da faculdade de Medicina. Tinha sido organizado pelo Jorge, que considerava o seu melhor amigo, para comemorar as vinte e três primaveras com que fora privilegiada pela vida. Gostava muito de conversar com o Jorge e, na realidade, o Jorge encontrava na Luisinha a fonte da sua paixão. Discreto e tímido como era, não ousava tentar aproximar o seu coração ao da jovem eleita, por medo de ser rejeitado. Amava-a no silêncio da sua alma, seguia-lhe os passos religiosamente, procurava todas as oportunidades para conversar com ela e era correspondido.
Luisinha era uma rapariga aberta e comunicativa. Tinha prazer em cultivar amizades, mas não deixava espaço para a aproximação. O seu compromisso com o Zeca era sagrado. Porém, o Jorge foi-se insinuando e conseguiu penetrar no âmago do seu coração. Nas conversas perdidas no vazio do tempo com o Jorge, enquanto esperava Zeca, descobriu que cada um de nós carreteia uma mochila doada ao nascer e nos acompanhará pelo tempo fora. Nela é depositada toda a nossa história. A história que cada um escreve no dia a dia da sua vida, que será tanto mais leve quanto mais soubermos acomodar dentro dela, as nossas melhores escolhas para o quotidiano que ousamos viver, apartando tudo que não nos serve ou pode prestar-se a ser empecilho à nossa felicidade. Cabem lá os sonhos que nos enchem a vida, mesmo aqueles que se dissiparam no tempo, os projetos de um futuro na construção da felicidade a que temos direito, renovados em cada dia que parte. Sobretudo cabem lá as decisões sensatas e a sua concretização. Atos e ações que leve, muito leve e agradável o seu transporte nos fazem sentir realizados. Mas também as decisões insensatas que a tornam mais pesada e difícil de carregar vida fora.

Sem se aperceber, a jovem candidata a médica pediatra, cometera na noite anterior um ato profundamente insensato. Deixou que o coração do Jorge se aproximasse demasiado do seu coração e ficou presa. A sensualidade própria da juventude libertou-se das amarras que ela continha dentro dela, pelo amor que dedicava ao Zeca desde tenra idade. A um amor proibido e indesejado pelo seu pai que com o tempo se transformou numa linda paixão, agora ressequida pela ausência forçada por exigências da Pátria, se contrapõe outro amor alimentado pela presença contínua na sua vida de estudante, de um jovem extremamente cortês e delicado, bem-parecido e, como ela, abonado financeiramente. O coração a traíra numa noite que devia ser de felicidade. Na realidade fora rica pelo convívio, pela quentura da amizade sentida e pelos momentos selados naqueles beijos de apaixonado que recebera e retribuíra, mas os amargos que se levantaram depois abafaram toda a festa.

Zeca apareceu-lhe no sonho e levou-a a caminhar até aos tempos de criança A sua timidez nos primeiros dias de escola, talvez pelo pouco convívio com crianças da sua idade. Timidez que o Zeca ajudou a fazer desaparecer com o seu sorriso, suas brincadeiras e aventuras. Viu-se a caminhar, em pleno verão, pelo jardim do Parque Verde do Mondego de mãos unidas, dedos entrelaçados, tanto quanto os seus corações, embalados pela suave música da água do rio ao lamber as margens sequiosas enquanto dos seus lábios saíam promessas de amor eterno. A noite em que o afeto que os unia se transformou num vulcão e a elevou ao céu, fazendo-a sentir-se mulher de corpo inteiro. Noite em que ambos se desvirginaram num puro ato de amor jamais conjeturado, surgiu-lhe no meio do sonho, a atormentá-la. Um momento tão belo na sua vida que era a maior e melhor fonte de alimento do seu amor pelo Zeca vem pedir-lhe ‘contas’ pelo seu gesto impensado com Jorge no calor daquela noite. Acontecera poucos dias antes do Zeca partir para a Guiné, numa certa noite fria de abril, em que o calor dos seus corpos unidos pela paixão os traiu, nos seus propósitos de se manterem virgens para dar mais vida à noite de núpcias que vislumbravam com esperança, no regresso do Zeca e foi tomado pelos dois, como sinete branco que os iria unir na separação forçada que se avizinhava. O Amor que nutria pelo Zeca e representava tudo para ela estava ferido. A profundidade do seu pensamento, a visão positiva que ele tinha do mundo. A forma como encarava os problemas e com que a humanidade se debatia; a relação entre a riqueza de alguns a contrapor-se à miséria de muitos o fazia sofrer profundamente e empenhar-se nas lutas proibidas e secretas dos moradores das ilhas do Porto por habitação condigna. Eram estes os valores que o Zeca carregava na sua mochila e que a faziam sentir-se mais rica e aprofundava o amor que os unia.

Ao acordar Luisinha sentiu-se envergonhada de si mesma. Sentia-se numa prisão a quatro braços e não conseguia abrir caminho para se libertar.

Zé Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22408: Estórias do Zé Teixeira (49): Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Guiné 61/74 - P22440: Os nossos seres, saberes e lazeres (463): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Eu sou do tempo em que o Jardim Botânico pertencia à Faculdade de Ciências de Lisboa, ainda não sabia que o local se chamava Monte Olivete num espaço denominado Cotovia. Espaço de ensino de grandes tradições, aqui houve ensino jesuítico e Colégio dos Nobres, depois Escola Politécnica, foram atraídos jardineiros estrangeiros, para aqui convergiram coleções raras, grandes investigadores que deram renome a este jardim através da escola, houve um sério apoio político e científico, basta pensar em Andrade Corvo e no Conde de Ficalho. Dado o tesouro que representa o seu património está classificado como Monumento Nacional desde 2010. Não deixa de assombrar como espaço bem encenado, já não se entra pelo portão esquerdo, mas pelo portão direito do que é hoje o Museu de História Natural e da Ciência, parece que vamos a uma representação teatral no Teatro da Politécnica, hoje espaço reabilitado da velha Associação dos Alunos da Faculdade de Ciências, estamos num patamar superior, dragoeiros e cactos soberbos não faltam, há bancos para mirar à volta, em determinados ângulos temos mesmo as fachadas de prédios da Rua da Escola Politécnica, ali a menos de uma centena de metros viveram durante dezenas de anos o historiador José-Augusto França e o poeta Alexandre O'Neill, é um dos troços da chamada Sétima Colina que vai do Cais do Sodré ao Largo do Rato. Jardim com uma beleza imensa, por isso mesmo vamos ainda juntar mais algumas imagens e comentários na próxima semana.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (10)

Mário Beja Santos

O Jardim Botânico, hoje adstrito ao Museu Nacional de História e da Ciência, monumento nacional desde 2010, tem uma longa história na pesquisa científica, na medida em que estes jardins botânicos nasceram fundamentalmente para ensinar e investigar. Ao tempo da Escola Politécnica, que sucedeu ao Colégio dos Nobres e ao ensino jesuítico, o jardim integrava a Faculdade de Ciências. É longo o historial da formação de coleções de grande valor com espécies trazidas de todo o mundo, árvores e plantas vão sendo dispostas em diferentes patamares e daí o visitante encontrar sensíveis diferenças de temperatura enquanto sobe ou desce este esplêndido Jardim Botânico, concebido como horto com papel insubstituível na investigação botânica pura e aplicada, e como tal não é de estranhar possuir campos destinados à experimentação, estufas, entremeados de lagos, caminhos de pura fruição…

No início do ano de 1837 foi instituída a Escola Politécnica e a Lei determinava a existência de um Jardim Botânico. Foram encarregues da sua execução vários peritos credenciados, vieram jardineiros estrangeiros, ao tempo era estreita a ligação com o Jardim Botânico da Ajuda, este hoje dependente do Instituto Superior de Agronomia. Os peritos foram juntando coleções, foram feitas aquisições, houve doações de vulto de cidadãos nacionais e estrangeiros para fazer obras no jardim. Grandes políticos e estudiosos como Andrade Corvo ou Conde de Ficalho ficaram ligados a esta fase de instalação. Aqui e ali iam surgindo problemas novos, foi o que aconteceu em 1887 com a abertura do túnel da linha dos caminhos-de-ferro, o Túnel do Rossio, que intercetava a parte inferior do jardim. Há hoje obras que contam todo este histórico, é uma leitura que permite entender o valor incalculável que aqui se exibe a estudiosos e ao público.

O leitor mais curioso encontra no Google informação pertinente sobre a vastidão deste património. A diversidade de espécies é imensa (entre 1300 e 1500), a organização do espaço ajardinado é fascinante nos seus recantos e declives, o olhar passa rapidamente de aves monumentais e de grande porte para arbustos exóticos, e as palmeiras estão praticamente omnipresentes, vindas de todos os continentes, e daí a sensação que experimentamos de termos ingressado num mundo tropical.

As cicadáceas são um dos ex-libris do Jardim. Autênticos fósseis vivos, representam floras antigas, que na maioria se extinguiram e que só em jardins botânicos se conservam. O Jardim é particularmente rico em espécies tropicais originárias da Nova Zelândia, Austrália, China, Japão e América do Sul, o que atesta as peculiaridades dos diferentes microclimas criados neste Jardim pela implantação topográfica em que se insere. Na classificação como Monumento Nacional em 2010, integra-se todo o património artístico (esculturas) e edificado que nele se encontra: Observatório Astronómico da Escola Politécnica, Edifício dos Herbários, Estufas, Palmário, e antiga estufa em madeira.

Mas porquê colocar o Jardim Botânico neste local? Este lugar era conhecido no passado como Monte Olivete, tinha já mais de dois séculos de tradição no estudo da Botânica, iniciado com o colégio jesuíta da Cotovia, aqui sedeado entre 1609 e 1759. Aqui se escreve no que vem nos textos divulgativos que encontramos na internet.

A enorme diversidade de plantas recolhidas pelos seus primeiros jardineiros, o alemão E. Goeze e o francês J. Daveau, provenientes dos quatro cantos do mundo em que havia territórios sob soberania portuguesa, patenteava a importância da potência colonial que Portugal então representava, mas que na Europa não passava de uma nação pequena e marginal. Edmund Goeze, o primeiro jardineiro-chefe, delineou a “Classe” e Jules Daveau foi o responsável pelo “Arboreto”.

A elevada qualidade do projeto, bem ajustado ao sítio e ao ameno clima de Lisboa, cedo foi comprovada. Mal acabadas de plantar, segundo o caprichoso desenho das veredas, canteiros e socalcos, interligados por lagos e cascatas, as jovens plantas rapidamente prosperavam, ocupando todo o espaço e deixando logo adivinhar como, com o tempo, a cidade viria a ganhar o seu mais aprazível espaço verde e o de maior interesse cénico e botânico. Em pleno coração de Lisboa e em forte contraste com o seu bulício, as cores e as sombras, os cheiros e os sons do Jardim da Politécnica dão recolhimento e deleite.

A maior intervenção na área do Jardim ocorreu no final dos anos 30 e princípios dos anos 40 do séc. XX, por influência do então diretor Ruy Telles Palhinha: a primitiva ordenação sistemática do plano superior do Jardim foi substituída pelo agrupamento das espécies em conjuntos ecológicos.

As coleções sistemáticas servem vários ramos da investigação botânica, demonstram junto do público e das escolas a grande diversidade de formas vegetais e múltiplos processos ecológicos, ao mesmo tempo que representam um meio importante e efetivo na conservação de plantas ameaçadas de extinção.

Autênticos fósseis vivos, representam floras antigas, que na maioria se extinguiram. Hoje, são todas de grande raridade, havendo certas espécies que só em jardins botânicos se conservam. O Jardim é particularmente rico em espécies tropicais originárias da Nova Zelândia, Austrália, China, Japão e América do Sul, o que atesta a amenidade do clima de Lisboa e as peculiaridades dos microclimas criados neste Jardim.

Na esteira do que acontece na generalidade dos jardins botânicos, também este Jardim, em estreita colaboração com os restantes departamentos do Museu desenvolve, em permanência, ativos programas de educação ambiental, para os diferentes níveis etários da população estudantil e oferece visitas temáticas guiadas.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22419: Os nossos seres, saberes e lazeres (462): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (2) (Mário Beja Santos)