domingo, 26 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22572: Notas de leitura (1384): "Tempo das coisas", tempo de viver, tempo de morrer... A pungente despedida de Renato Monteiro (1946-2021): 31 poemas escritos de rajada na noite de 3 para 4 de julho de 2021 (Luís Graça)

 

"Livro de quem adivinha o tempo das coisas e que quer deixar, ainda, aos amigos algumas palavras. Pediu-me para o editar. Com um clique encontram as palavras e sei que lhe ouvem também a voz." (Margarida Miranda Monteiro, in Página do Facebook de Renato Monteiro, 23 de julho de 2021)

 


Dedicado ao neto, de 15 anos, Carlos Monteiro, filho do Daniel Monteiro, que de vez em quando perguntava ao avô porque é que ele não escrevia... Escreveu 31 poemas, escassos dias  antes de morrer e pediu à sua mulher, Margarida (Guida, toda a vida) para mandar um exemplar a uma lista restrita de amigos...



Índice dos 31 poemas


"O comboio". o últmo poema (pág. 33): é mesmo um poema de despedida... sob a metáfora do comboio que chega e não chega, "muita terra, pouca ou nenhuma".


"Só", pág. 12. Sem nunca vir mencionada a palavra "morte", ao longo destes 31 poemas,
ela está todavia presente do princípio ao fim. É um homem, de um tremenda lucidez, que sabe vai morrer nos próximos dias, quando o coração parar de bater de vez... E sabe que o fim não tem retorno. E, pior que tudo, que é o ato mais solitário da vida.


"Veneno", pág. 4. O soro, o inútil soro, agora veneno, num corpo que não será múmia... Não há aqui autocomiseração, mas auto-ironia. Ácida.


"Sede", pág. 24.  A metáfora da água que já não dessedenta...


"Coração", pág. 18. O coração já exterior ao corpo, sal-ti-tan-do 
como um inútil boneco de corda.


"Bate bate bate", pág. 29...E que bate, já por nada nem ninguém.


"Arroz de cabidela", pág. 20. Uma metáfora cruel.


"Letras", pág. 23. A incomunicação total ou final. 


"Guida, pág- 14. O último poema de amor. Guida, sempre,  até sempre! Faz os tempos da guerra  que lhe mandava cartas de amor/humor com recortes de letras de jornal...



"Liberdade", pág. 17.  Ah! a liberdade de já não esperar coisa nenhuma!... A liberdade encerrada para balanço final, o do deve e haver da vida.


"Paragem", pág.  26.  O tempo em que tudo pára, mas a paixão da fotografia,
essa, fica expressa em muitos álbuns,  E a paixão da escrita, mesmo que não nos salve. Nada nos pode salvar quando chegarmos ao fim da picada.


"Tempo", pág. 3. O tempo sem mais tempo, o nada, 
um relógio sem ponteiros.



1. O Renato Monteiro (1946-2021) (*) será sempre,  para 0s nossos leitores, o misterioso "homem da piroga" cujo nome  eu procurei durante várias décadas (, desde que, em Contuboel, em 18 de julho de 1969, eu parti para Bambadinca com os meus camaradas da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, e ele com os seus, os da CART 2479, futura CART 11,  com destino a Nova Lamego).

O Monteiro (,aliás Renato), aqui na foto, com o Henriques (, aliás, Luís Graça), no rio Geba, em Contuboel, em junho/julho 1969... Não sei quem era o terceiro elemento da "tripulação", talvez o Cândido Cunha. Éramos três "desalinhados " do sistema, despejados sem saber como no Centro de Instrução Militar de Contuboel, em pleno "chão fula"...

Ao fundo, a ponte de madeira onde o Monteiro poderia ter morrido, sem também ninguém saber como, numa tarde de julho de 1969. Deu um mergulho, temerário,  e ficou preso na represa, feita pela estacaria de madeira da ponte. Desensarilhou-se no último fôlego de vida. Uma  cena dramática que eu nunca mais esquecerei na vida. Nascido à beira beira-mar, eu não sabia nadar,  nem nunca mergulhei num rio ou braço de mar da Guiné (, por trauma da infância, provocada pela estúpida praxe do dia de São Bartolomeu, o 24 de agosto, em que os adultos batizavama os putos na água revolta e salgada do Atlântico).

 Perdi-lhe o rasto em 18  de julho de 1969,  mas não o rosto, durante 36 anos... Afinal,ele vivia a escassas centenas de metros da Escola Nacional de Saúde Pública, na Av Padre Cruz, onde eu tive um gabinete de trabalho desde 1985.

Reencontrámo-nos, uma ou outra vez, telefonávamos com alguma regularidade (três ou quatro vezes por ano...), trouxe-o para o blogue (não sem alguma resistência da sua parte...) mas perdi a oportunidade soberana de o levar à Lourinhã, para beber um copo, a ele e à sua Guida, com o Mar do Cerro à nossa frente. 

A doença (uma temível DPOC) e a morte, no "annus horribilis" de 2021, em 9 de julho, trocou-nos as voltas... Tendo-me recusado a dizer-lhe "adeus, descansa em paz" (a fórmula ritual do noticiário necrológico), disse-lhe apenas "Até um dia qualquer, meu bom amigo e camarada, num reencontro imediato do 3º grau, na nossa ou noutra galáxia"...

Foi homem e artista de múltiplos olhares e "fotografares" (, feliz títuo de um dos seus blogues): as gentes e as paisagens do Bairro da Graça (onde mora a minha netinha) ao Cabo Carvoeiro, da Trafaria a Cascais, da Quinta Grande a Vila Franca de Xira, do Algarve ao Alentejo, dos ciganos aos cabo-verdianos, dos pescadores do Tejo aos putos da rua, do pessoal das "barracas" aos operários da Lisnave, aos velhos, aos cidadãos anónimos, aos estrangeiros, afinal, "nós outros" (outro feliz título de outro dos teus blogues)...

Deu rosto a muita gente sem rosto, sem voz, sem história, e mais mundo haveria para fotografar se não fora tão curta e ingrata a vida, em plena pandemia... Chorei a sua perda e voltei a emocionar-me quando a Margarida Monteiro, a Guida, me telefonou a pedir a minha morada: o Renato deixou, por imprimir, uma espécie de testamemto poético, febrilmente escrito na noite de 3 para 4 de julho. (**)

Em 22 de agosto, escrevi à Guida por mensagem do telemóvel: 

"Querida amiga,  recebi o livrinho e já o li e reli. Pungente. Um grande documento humano e uma pequena grande obra-prima da poesia em português.Vou ver se consigo por estes dias publicar uma nota de leitura no blogue. Obrigado por tudo. Abraço para os teus homens. Chicoração para ti. Dorme bem. Luís."

E a 2 de setembro, mandei-lhe nova mensagem: 

(...) "Tenho pena de não ter convivido com o Renato e na prática não te ter conhecido na vida dele. Ainda me chegou a manifestar o seu desejo de eu lhe escrever um texto para um álbum fotográfico. A vida, afinal,  é tão curta para as nossas agendas e sonhos. Nunca fui a uma exposição dele!!!...  Ofereceu-me um dos seus álbuns. Manda o livro ao Valdemar Queiroz. "(...) 

Li e reli o livrinho, "O tempo das coisas". Em cada um dos poemas, fiz uma anotação a lápis, com a avalição numa escala de  um (*) a cinco (*****).   A seleção que fiz a acima é dos poemas de que mais gostei, numa primeira leitura. E inseri-os por uma ordem que é mais lógica do que que cronológica. (»»»)

(***) Último poste da série > 23 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22565: Notas de leitura (1383): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte I (Luís Graça)

sábado, 25 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22571: Os nossos seres, saberes e lazeres (469): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (17): As três pancadas de Molière… Silêncio, o espetáculo vai começar! (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
O acervo do Museu Nacional do Teatro e da Dança é gigantesco (contava em 2011 com 300 mil espécies, seguramente que hoje tem muito mais, doações não faltam), uma museologia e uma museografia de topo asseguram ao visitante um panorama altamente esclarecedor deste espólio enormíssimo: figurinos, muitos deles saídos das mãos de alguns dos nossos maiores artistas; trajes de cena verdadeiramente representativos da história do teatro, estão ali as companhias mais marcantes, exemplares de cenografia, maquetes, retratos, desenhos, caricaturas, recorde-se que a coleção de fotografias do Museu Nacional do Traje é inextinguível (mais de 150 mil espécies), cartazes, equipamentos técnicos. Agora, no piso superior, o visitante tem mostras do Museu da Dança e os investigadores podem ter acesso a uma biblioteca/centro de documentação visto que o museu reúne uma das coleções da bibliografia teatral de maior dimensão do nosso país. É uma esplêndida viagem pelas artes do espetáculo, porque se percorre este museu como se estivéssemos num palco ou num proscénio ou acesso aos bastidores, estão ali peças icónicas como o pastel de Columbano Bordalo Pinheiro que retrata o ator e escritor Augusto Lacerda, a cadeira de Garrett, o órgão de luzes do Teatro Nacional de São Carlos quando ele foi reequipado em 1940, o busto da Amália, indumentária luxuosa, não se pode pedir mais para este espaço do Palácio Monteiro-mor, mas até se tem direito a percorrer o aprazível parque, um dos mais belos oásis de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (17):
As três pancadas de Molière… Silêncio, o espetáculo vai começar! (o teatro é o escaparate de todas as artes, Almada Negreiros dixit)


Mário Beja Santos

Almada teve as suas razões fundadas para dizer que o teatro é o escaparate de todas as artes. Como escreve José Carlos Alvarez no livrinho que dedicou a este museu, Quid Novi Edições, 2011, “Se tomarmos como exemplo a montagem de um espetáculo de Gil Vicente ou de Shakespeare, facilmente observamos que nele estão envolvidos a literatura e a poesia, a dança, a música, as artes plásticas, a fotografia, a arquitetura, para além da carpintaria, da costura, das técnicas de palco, das luzes, etc. A criação de um espetáculo teatral resulta sempre de um trabalho coletivo”. É o resultado desse trabalho coletivo que o Museu Nacional do Teatro e da Dança expõe, de um acervo monumental sempre a crescer, e na posse de um grande arquivo das artes do espetáculo, é a instituição de referência na museologia e na história das artes do espetáculo em Portugal.
O livrinho de José Carlos Alvarez, de preço altamente acessível, desvela ao leitor a heterogeneidade deste acervo: figurinos, trajes de cena, cenografia, desenhos, retratos e caricaturas, postais ilustrados, cartazes, programas e bilhetes, pintura e escultura, música, teatros de papel, peças de mobiliário e teatros, equipamentos técnicos. É um deslumbramento, o visitante está sempre numa cena, há registos sonoros, imagens em movimento e a surpresa é ver a enormidade de talentos portugueses e estrangeiros que contribuíram para a grandiosidade do teatro em Portugal: Leitão de Barros, Tom, Maria Adelaide Lima Cruz, Paulo Ferreira, Bernardo Marques, Mily Possoz, Maria Keil, Lucien Donnat, Octávio Clérigo, António Casimiro, Mário Cesariny, João Vieira, José de Guimarães, Almada Negreiros, Pedro Calapez.
Os núcleos museológicos são impressivos e sugestivos, pense-se nos trajes de cena, nas artes da cenografia, no que nos é mostrado em retrato, desenho ou caricatura. Foi por aqui que começámos.


Vasco Morgado, Busto em Bronze de Martins Correia, exterior do museu
Máquinas de Cena para o espetáculo de rua Romagem de Agravados, de Gil Vicente, apresentado pelos Criadores de Imagens, Caldas da Rainha, 2002, exterior do museu
A Última Ceia dos Polichinelos, Manuel Amado
Cadeiras do velho cineteatro Éden, 1920
Imagem curiosa do Teatro D. Maria II, fim da primeira metade do século XIX, o Rossio era completamente plano

Como o que se mostra é de uma imensa riqueza, é uma profusão cuidadosamente selecionada, se seguirmos as sugestões de José Carlos Alvarez devemos deter-nos em cartazes que falam por mil palavras, cartazes ou programas de espetáculos. Ele selecionou a Mãe Coragem de Bertolt Brecht, em que Amélia Rei Colaço escreveu que foi um sonho que não lhe foi consentido, a Censura não permitia Brecht.
Não deixa de nos impressionar, até porque está em lugar de destaque do primeiro piso, a chamada Carreira de Garrett que, ao que consta, o escritor usava quando assistia a espetáculos no Conservatório. Esteve na sua última casa, na Rua de Santa Isabel. A seguir à sua morte, o rei D. Fernando II comprou-a e levou-a para o Palácio da Pena. A sua segunda mulher, a Condessa d’Edla, convenceu o rei a oferecê-la a Gomes de Amorim, este legou-a ao Conservatório e daqui veio para o museu.


A cadeira de Garrett

Há retratos de divas e de divos e trabalhos de pintores célebres, como o retrato que Columbano fez de Augusto Lacerda, ator, dramaturgo, professor e crítico teatral. Observa José Carlos Alvarez: “A técnica do pastel permite que Columbano se distancie do esquema pictural que carateriza a sua obra retratística a óleo. Por outro lado, o fundo da pintura contrasta com esse esquema porque o pintor optou por uma tonalidade de camurça que o aproxima do da tertúlia da Cervejaria Leão de Ouro, uma mancha branca e difusa envolve e destaca a figura, o traje é esboçado de forma esquemática com um certo sentido de inacabado. No rosto do ator concentra Columbano toda a sua técnica, sobretudo na modelação dos traços, tratados com uma sensibilidade e subtileza que escapam a muitos dos seus retratos a óleo e a sinceridade direta do olhar do ator resulta da simplicidade do traço que aproxima esta obra da prática do desenho”.
A atriz Ilda Stichini (1895-1977)
Retrato do ator e escritor Augusto Lacerda, pastel de Columbano Bordalo Pinheiro, 1889 Há peças iconográficas que seguramente atrairão o visitante: a bengala de Palmira Bastos, os trajes desenhados por Almada Negreiros, as belíssimas maquetes, um espantoso órgão de luzes, mas os trajes de cena são de enorme riqueza, estão dispostos por núcleos, ligados a diferentes companhias, José Carlos Alvarez lembra-nos o Núcleo Paula Rego, um conjunto de cerca de uma dezena de trajes e adereços por ela criados para o bailado “Pra Cá e Pra Lá”, estreado em 1998 pelo Ballet Gulbenkian, no auditório daquela fundação, que representa um dos raros trabalhos da pintora para as artes do palco, aparece integrado numa importante coleção de trajes para ópera e bailado doados pela Gulbenkian. Núcleos não faltam, para além das companhias que fazem história obrigatória no teatro, há os núcleos Amália Rodrigues, Ivone Silva, Filipe La Féria, das atrizes Maria Matos, Laura Alves, Milú, Eunice Muñoz, Luísa Maria Martins e ainda trajes de cena de Carmen Dolores, Maria do Céu Guerra, Companhia Rafael de Oliveira, Leónia Mendes, Lia Gama, Mário Viegas e Paulo Renato.
A gloriosa, a voluptuosa, a sumptuosa indumentária, requintes cénicos do século XIX que chegaram ao século XX
Maquete do Teatro Apolo que ainda conheci no Martim Moniz, em miúdo, antes da terraplanagem daquela imensidão que deu lugar a casebres comerciais
A arte do cartaz, este saído do talento de Fred Kradolfer
Uma peça indispensável no camarim, aqui o ator transmuda-se, a maquilhagem acentua o personagem
Recordo este espetáculo, estive lá na noite em que Maurice Béjart pediu um minuto de silêncio pela morte de Robert Kennedy, “vítima do fascismo e do imperialismo”. A companhia foi imediatamente posta na fronteira, Salazar justificou-se em Conselho de Ministros. Vi Américo Thomaz aplaudir Béjart, mesmo depois de um minuto de silêncio. Coisas da vida.

Para além do percurso pela exposição permanente, o visitante pode deleitar-se com o espaço exterior, esculturas, A Romagem dos Agravados inspirada na obra Tentações de Santo Antão, de Bosch. José Carlos Alvarez recorda que o museu tem uma pequena coleção de bustos de autores e atores dramáticos, de grande valor artístico, criações, por exemplo, de Soares dos Reis, Martins Correia ou Francisco Simões. Que dizer mais? Este museu é de visita obrigatória, está sediado no Palácio do Monteiro-mor na Estrada do Lumiar 10, a entrada é de preço módico e grátis para quem tem o cartão do antigo combatente.

Três imagens do Parque do Monteiro-mor, quem visita o Museu do Teatro ou o Museu do Traje tem direito a este refrigério, vale a pena passar aqui um bom bocado da tarde, trazer um livro ou umas revistas e ouvir o sussurro das águas, é um prazenteiro complemento a quem visita um dos museus

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22553: Os nossos seres, saberes e lazeres (468): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (9) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22570: Casos: a verdade sobre... (28): a CCAÇ 1546 e o Mareclino da Mata: uma mentira colossal (Domingos Gonçalves, ex-alf mil inf, CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)


Guião da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887 (Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta
1966/68):


1. Memsagem de Domingos Gonçalves, ex-alf mil inf, CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68):

Data - 24 set 2021 16:17


Assunto - CCaç 1546 / Marcelino da Mata


Prezado Luís Graça;

Tomo a liberdade de enviar este pequeno texto, que poderá ser publicado, caso se enquadre nos objectivos editoriais do Blog

A publicação, pelo colega Carlos Silva do livro sobre os "Roncos de Farim", e a não inclusão no mesmo da referência ao recambolesco, despudorado e inventado episódio, da libertação dos homens da companhia de caçadores 1546, presos pelo PAIGC no Senegal, trouxe para a ordem do dia a personalidade do Marcelino da Mata.(*)

Sobre a mentira colossal em causa só posso dizer que a mesma constitui um ultraje para os homens da citada unidade militar, como para a generalidade do exército português. (**)

Com efeito, quer na Guiné, quer em Angola e Moçambique, penso que ninguém apanhou soldados portugueses à mão.

Soldados portugueses aprisionados houve-os sim, em Goa, mas num processo que lhes permitiu uma rendição digna, e um tratamento de acordo a lei internacional



(Lisboa, Oficina do Livro, 2012. 192 pp.)


Claro que a medalha da vida humana tem duas faces. No caso do Marcelino. uma dessas faces está, de facto, vheia de actos valorosos. Mas, infelizmente, a outra face está vazia. Nessa face vazia falta o humanismo, o respeito pelos vencidos, o respeito pelos direitos humanos, pela verdade, etc.

Com tudo isto pretendo só louvar o colega Carlos Silva, que conseguiu manter o rigor dos factos, mantendo o seu trabalho limpo ao não mencionar a façanha em causa, inventada pelo suposto Rambo da Guiné, e que faz parte do muito lixo informativo que circula na internet. 

A designação "O Rambo da Guiné" aparece no livro "Heróis do Ultramar" (de Nuno Castro), onde o Marcelino da Mata, mentindo, descreve essa façanha. (***)

Domingos Gonçalves
____________

Notas do editor:

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22569: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
A relação de Jules com Noémie é muito estreita, Jules veio bastante deprimido até às suas férias em Lisboa, a visita foi uma verdadeira lavagem da alma e ele descreve à irmã aqueles dias prodigiosos de uma cidade com mais de oito séculos de portugalidade, com os seus bairros típicos a caminho da gentrificação, a preocupação de Paulo de lhe mostrar a cidade e os miradouros, gostou dos museus, das igrejas, adorou os comes e bebes, enterneceu-se com aquela casa pejada de quadros de todos os tamanhos, fotografias espalhadas por todas as divisões, encantou-se com a varanda virada para quintais onde primam flores e árvores de fruto, deliciou-se com os serões, Annette nunca perde oportunidade, é uma cronista assumida, de continuar a escrever os relatos da comissão do Paulo, às vezes há um olhar lacrimejante do protagonista, noutras vezes Annette e Paulo dão gargalhadas, Jules a tudo assiste, sente a ternura que atravessa a vida daquele casal, sente-se parte integrada na felicidade da mãe, como conta a irmã. Esqueceu-se de lhe dizer que foi a primeira viagem, ele ainda não sabe mas regressará muito mais vezes a Lisboa, sempre feliz pelos doces regressos e por ver sempre a sua mãe tão feliz. Também se esqueceu de dizer que tinha prometida uma visita à Feira da Ladra, que ainda não aconteceu.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Segunda e última carta de Jules Cantinaux para a mana Noé:

Chère Noé, muito provavelmente irás ler as minhas notícias quando eu já estiver na Bélgica, acordei com uma empresa de La Louvière, três semanas de trabalho em artes gráficas, no entretanto irei estabelecer contato telefónico contigo. No seguimento do que te escrevi, todos aqueles sete dias da minha estadia foram ocupados com os programas que fiz com o Paulo e a mamã. Ele ofereceu-me um livrinho chamando-lhe raridade para bibliófilos, é um livro sobre Lisboa com data de 1940, o autor do texto chama-se Norberto de Araújo e as ilustrações são de Maria Keil, esta conheci-lhe a azulejaria quando andámos no Metropolitano. Paulo ofereceu-me a edição em francês, além de um guia moderno, tem um conjunto de propostas de passeios, como é evidente não percorremos tudo, como te disse na carta anterior, visitei a Sé Catedral, o castelo de S. Jorge, a igreja e o Largo do Menino de Deus, a Graça, uma parte da Mouraria, estivemos num largo muito amplo chamado Campo dos Mártires da Pátria; como também terás visto na carta anterior, demos uma volta pela Madragoa, estivemos no Museu Nacional de Arte Antiga e fomos ao miradouro onde se vê o porto de Lisboa e a outra margem do Tejo. No dia seguinte percorremos Estoril e Cascais, era inevitável passearmos pela zona de Belém, vi no Mosteiro dos Jerónimos um claustro soberbo, passeámos à beira do Tejo e é impressionante o panorama que se avista da Torre de Belém.

Paulo insistia que devíamos voltar ao casco histórico e por isso saímos de manhã cedo e viemos até ao Terreiro do Paço, é um bom hectare de terreno, cercado de construções relativamente homogéneas, o Paulo referiu-me que estiveram ali muitos ministérios e seguimos por uma rua chamada Rua da Alfândega, ele queria mostrar-nos outra preciosidade do que aqui se chama estilo manuelino, um tardo-gótico do reinado de D. Manuel I. Ainda se pensou em voltar a Alfama, onde estivemos no primeiro dia, mas o Paulo queria mostrar outro lado do casco histórico, o Chiado, já estivera no café A Brasileira, agora foi a vez de irmos ao Largo do Carmo, voltámos a subir e entrámos numa igreja de nome São Roque, nunca vira esplendor igual, a mamã estava boquiaberta diante de uma capela chamada de S. João Baptista cujos materiais vieram diretamente de Roma. E seguimos para mais um miradouro, São Pedro de Alcântara, outro panorama esmagador sobre a cidade, atravessámos outro bairro antigo, de nome Bairro Alto, mas antes estivemos num local chamado Solar do Vinho do Porto a degustar esta saborosa bebida, sentia-me profundamente feliz não só pelo que estava a ver e que era uma inteira surpresa mas por sentir a alegria esfusiante da mamã, o seu olhar carinhoso para este seu bem amado português.

Lembro-me, querida Noé, de há uns bons anos atrás termos conversado sobre a solidão em que vivia a mamã, sempre nos pareceu que aquela maratona de viagens como intérprete camuflava a solidão, do que me foi dado entender depois da separação ela parecia resignada talvez ao papel de avó ou de se relacionar com mulheres da sua idade a caminho da velhice. Posso constatar a toda a hora que ela e o Paulo se entendem admiravelmente, como adiante te contarei como a história em que os dois gargalhavam sobre um episódio passado num hospital.

Os últimos dias foram para eu conhecer a Lisboa moderna. O Paulo gosta muito de Arte Deco e levou-me a uma igreja chamada de Nossa Senhora de Fátima, tu não podes imaginar o esplendor dos vitrais, senti-me esmagado num espaço destinado a batismos, eu conhecera este artista, de nome Almada Negreiros, quando num passeio na zona portuária o Paulo nos levou à Gare de Alcântara, fiquei siderado com aqueles painéis. Estes últimos dias já andámos sempre no carro do Paulo, ele queria mostrar-nos a Lisboa Oriental e o que se projetara construir com a exposição de 1998 que deu origem a uma zona moderna chamada Parque das Nações. Novo passeio à beira do Tejo, surpreende a estrutura da ponte que construíram de nome Vasco da Gama, ajardinaram espaços e temos ali uma zona de lazer magnífica. Visitámos bairros antigos da Lisboa Oriental, muito decadentes, há sinais de que estão a surgir novas construções, mas a um ritmo lento. Passámos por um local chamado Xabregas e o Paulo disse-me que no próximo passeio irei visitar um museu só com azulejos, e que depois desta visita perceberei porque é que Portugal é a potência nº 1 à escala mundial do azulejo.

Tenho muito mais coisas para te contar, saíamos sempre de manhã e regressávamos ao entardecer, o Paulo insistia em confecionar as refeições para nós, num espaço agradável na varanda com belos quintais. E sempre bem-dispostos íamos conversar para a sala, acompanhados de infusões de gengibre ou menta, a mamã muito disciplinadamente com o dossiê da tal guerra da Guiné nas mãos, dele extrai uma agenda onde toma freneticamente nota das conversas havidas com o Paulo. Creio que te contei que ele viera a Bissau para várias consultas mas impunha-se um tratamento mais cuidado para repor os sonos, meteram-no num serviço de Neuropsiquiatria numa divisão com três camas, os seus dois vizinhos eram pessoas altamente perturbadas, felizmente que a carga de medicamentos era de tal modo forte que passava uma boa parte do dia a dormir, havia a rotina dos preceitos higiénicos e das refeições, uma hora de visitas por todo o hospital, onde ele descobriu que os militares feridos se mediam com os danos corporais dos outros, uma vez viu alguém quase feliz por só ter perdido uma perna, foi neste ambiente de permanente discussão entre um capitão e furriel, tudo numa divisão em que as paredes tinham a brancura da cal, havendo uma janela ao alto com um discreto gradeamento, camas com colchas brancas destoando de um chão de pedra marmoreado que se irá passar um episódio em que me vi também a gargalhar com a mamã e com o Paulo, tratava-se da visita de senhoras benemerentes, Paulo falou na Cruz Vermelha e no Movimento Nacional Feminino, primeiro entraram as senhoras da Cruz Vermelha, traziam aerogramas, revistas um tanto puídas, os doentes tinham recebido instruções rigorosas para ter as mãos esticadas fora dos lençóis e da coberta e que não se atrevessem a qualquer dito inconveniente a tais senhoras de alto coturno.

Tudo parecia que ia correr bem, com as senhoras da Cruz Vermelha comportaram-se como três surdos-mudos, as senhoras devem ter pensado que eram doentes muito mortificados, e também com uma expressão mortificada saíram. Entraram as senhoras do Movimento Nacional Feminino, quem capitaneava a delegação era a mulher do comandante militar, mostrou-se afável, pronta a contatar as famílias, parecia a provedora do doente. Paulo e o furriel que escapara fisicamente incólume de um sistema de minas antipessoal olhavam seraficamente para o teto, mas o capitão parece ter perdido a tramontana, saiu da cama em pijama e gritou para as senhoras que estava ali como um prisioneiro de guerra, houvera uma cabala sinistra para o remover do seu posto de oficial de informações, que as senhoras o ajudassem prontamente, aqueles dois companheiros de quarto eram totalmente indesejáveis, o tal furriel não passava de uma máquina falante e apontando para o Paulo, em tom desdenhoso, disse que aquele menino de coro, com este arzinho de quem não parte um prato, não passava de uma fera adormecida, um hediondo criminoso, bastava saber que comandava pretos, deve ter sido escolhido pelos seus maus fígados, e gritava para as senhoras “tirem-me daqui, tirem-me daqui!”, as senhoras recuaram e fugiram, o zelador, o 1º cabo Morais discursou-lhes à bruta, iam ter todos um castigo. Querida Noé, ríamos os três, o Paulo era quem ria mais.


A mamã perguntou ao Paulo o que se seguia depois deste episódio do tratamento em Neuropsiquiatria, dois dias depois daquele despautério com as senhoras benemerentes o psiquiatra deu-lhe alta, levava umas mezinhas para conforto. Juntou os trastes, foi buscar a guia de marcha, ainda andou dois dias por Bissau à deriva antes de um avião o deixar em Bafatá. Percorre a cidade agradado por se sentir só, na messe de oficiais come e, em vez de ir diretamente para o grande dormitório que dá pelo nome de Vaticano III, passeia-se, escreve, regressou o gosto pelas leituras, voltou ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e comprou livros. Parte ao princípio de uma tarde de Bissalanca, durante a manhã fez compras para os seus bravos soldados. Durante o voo faz contas ao trabalho que o espera, recebera vários aerogramas dos seus colaboradores Ocante e Cascalheira, anda tudo numa rotina. Sente que a sua comissão se encaminha para o fim, já se deu a mudança de batalhão, sabe pois que irá encontrar novas caras. Mas grandes surpresas ainda o esperam, até que nos primeiros dias de agosto é conduzido ao porto do Xime, metido numa LDG, numa estranha viagem em estado de espírito contraditório, dilacerado pelo apartamento e a sonhar pelos desafios que o esperam. A mamã tomou nota de tudo. E momentos houve em que eu sentia que também fazia parte daquele romance da vida daquele casal que me parecia o mais surpreendente ao cimo da terra. O resto contar-te-ei de viva voz, irei de La Louvière a Uccle quando me convidares, minha querida irmã. Bisous, comme toujours, bien à toi, Jules.

(continua)

O BNU chegou a Bissau e instalou-se na Avenida da República, foi conhecendo melhorias, depois da independência foi ministério
Muralha da fortaleza da Amura noutros tempos
Portal manuelino da Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, Rua da Alfândega, Lisboa
Igreja de São Roque, a sumptuosidade entre o Chiado e São Pedro de Alcântara
Painéis de Almada Negreiros na Gare de Alcântara
Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos
Rua da Madragoa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22550: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (70): A funda que arremessa para o fundo da memória