De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.
O líder fundador do PAIGC discreteia sobre a organização, qualidades de liderança, vai falar seguidamente de independência de pensamento e de ação, quem pertence ao PAIGC e quais os seus deveres e direitos, o que é uma democracia revolucionária.
Começa por observar que “A Direção do PAIGC tem agido sempre na base de independência e de ação. Temos sido capazes e temos de ser cada dia mais capazes de pensar muito os nossos problemas para podermos agir bem e agir muito para podermos pensar cada vez melhor. Muitos camaradas não o têm feito ao nível das suas responsabilidades. Alguns têm-se limitado a agir sem pensar, e outros têm muitas ideias sem fazer nada na realidade. Temos de ser capazes de aliar estes dois elementos fundamentais: pensamento e ação, ação e pensamento”.
Refere as alianças africanas, destaca a luta de Angola e Moçambique, e de seguida a solidariedade internacional, releva os países socialistas, sem esquecer os países vizinhos a quem endereça um agradecimento. Muda de agulha, esclarece o que tem que mudar na organização e como funciona uma direção de vanguarda.
“Na nossa conceção, Partido é uma organização muito mais definida, muito mais clara. Partido é todo aquele que toma parte de uma dada ideia, num dado caminho. Movimento é uma palavra muito vaga. O nosso Partido talvez seja hoje ainda, na realidade, um movimento, mas o nosso trabalho tem de ser transformá-lo em Partido cada dia mais. Partido, porque nós entendemos que, para dirigir um povo para a libertação e o progresso é fundamentalmente preciso uma vanguarda, gente que mostra de facto que é a melhor e que é capaz de provar isso na prática. Durante a luta de libertação, muita gente tenta enganar, mas pouco a pouco é preciso definir a sua posição claramente como pertencendo àquela vanguarda, ao conjunto daqueles que são os melhores filhos do nosso povo”.
E porque luta o Partido, Cabral esclarece:
“Não queremos que ninguém mais explore o nosso povo, nem brancos nem pretos, porque a exploração não são só os brancos que a fazem, há pretos que querem explorar ainda mais do que os brancos. Nós queremos que o nosso povo se levante e avance e, se queremos que o nosso povo de levante, não são só os homens, porque as mulheres também são nosso povo. Aqueles que entenderem que a mulher tem direito de avançar, ter instrução, ir à escola como qualquer ser humano, para fazer qualquer trabalho, como ela é capaz de fazer; aqueles que entenderem bem que um homem, enquanto tiver três u quatro mulheres nunca será um homem de verdade e que não há nenhum povo que possa avançar com homens com quatro mulheres; aqueles que entenderem bem que se tiver uma filha não a pode vender, assim como não pode vender a mãe, que não é nenhuma escrava; quem entendeu que as crianças são os únicos seres a quem temos de dar privilégios na nossa terra, que são a flor da nossa vida, que por causa delas nós fazemos todos os sacrifícios para viverem felizes; aqueles que fizerem bem os trabalhos designados pelo Partido, ao serviço do nosso povo, é que são membros do nosso Partido e têm de mandar na nossa terra”.
Explica a natureza dos membros do PAIGC e como este deve negar toda a fauna de oportunismo, e dirige o seu pensamento para outra direção, a democracia revolucionária, ao seu entendimento.
“Temos de acabar com a mentira, temos de ser capazes de não enganar ninguém sobre as dificuldades da luta, sobre os erros que cometemos, as derrotas que eventualmente tenhamos e não podemos acreditar que a vitória é fácil. A democracia revolucionária exige que combatamos todo o oportunismo. Nós somos capazes de arranjar muitas desculpas. Por exemplo, há responsáveis cujo trabalho é desculpar a sua gente que não faz nada, procurar explicar à Direção do Partido por que razão não se faz nada: ‘dificuldades de terreno’; ‘as condições não são boas’; ‘o inimigo avança’; ‘há muitos bombardeamentos’, etc., etc., em vez de fazerem força, de trabalharem para vencer todas as dificuldades, porque uma luta é uma vitória permanente contra as dificuldades.
Temos de combater a tendência para amizades e camaradagens que não são para servir o Partido mas para se servirem uns aos outros, que não são do interesse do Partido e do nosso povo. Sabemos que há disso no nosso Partido. Temos de ser capazes de evitar as manias de certos camaradas de que, se eles saírem do posto onde estão, estraga-se tudo, acaba tudo. Ninguém é indispensável nesta luta; todos nós somos necessários, mas ninguém é indispensável. Se alguém tiver de ir, que se vá embora e, se a luta parar, então é porque ela não prestava. A democracia revolucionária exige que os responsáveis, os dirigentes, vivam no meio do povo, à frente do povo, atrás do povo. Ninguém no Partido deve ter medo de perder o poder. Muitos países caíram na desgraça porque os que mandavam tiveram medo de perder o lugar de comando. Nós não devemos ter medo de nada, devemos contar claramente a verdade ao nosso povo, aos nossos militantes, aos nossos camaradas e, senão ficarem contentes e poderem, que corram connosco, que nos ponham fora”.
E daqui rumou para a fidelidade aos princípios, o respeito aos princípios.
“A categoria de uma Direção ou de um dirigente está em saber aquilo em que deve ceder e aquilo em que não deve ceder. Nas relações com os militantes e com os combatentes há que ceder em certas coisas, mas sem ceder nos princípios. Por exemplo, não podemos nas Forças Armadas ceder nada em relação à disciplina, mas podemos ceder um bocado aos camaradas nalgumas coisas que não estragam o nosso trabalho, que não prejudicam os nossos princípios”.
Mudando de contexto, refere-se às modalidades de resistência, fala diretamente em eliminar tudo quanto seja um obstáculo ao progresso do povo, e fala explicitamente:
“Amanhã, não podemos aceitar na nossa terra os abusos e os privilégios de grupos ou grupinhos, se de facto queremos libertar o nosso povo. Temos de eliminar a ignorância, a falta de saúde e toda a espécie de medo, gradualmente”.
Aborda com brandura a questão das superstições e feitiçaria, dos medos, de todos os modos de escravatura.
“Já não aceitamos que se amarrem as crianças para lhes baterem. Não admitimos mais que na nossa terra se tratem seres humanos como cães”.