Mostrar mensagens com a etiqueta Casamansa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Casamansa. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24494: Notas de leitura (1599): A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se retomam as teses do historiador Carlos Lopes quanto à necessidade de ter sempre em conta, quando se estuda a história da Guiné-Bissau e a definição das fronteiras de 1886 o que era o Kaabu do século XIII ao século XVIII, como não se pode iludir a historicidade e os dados vitais do Kaabunké, a despeito das divisões criadas pelas potências coloniais. O Kaabú, herdeiro do Império Mali, desintegrou-se no século XIX mas a sua herança é um dado permanente que ultrapassa as fronteiras criadas por fatores exógenos, daí as manifestações independentistas no Casamansa, tentativas de golpes de Estado, circulação de produtos agrícolas em toda a região, resistências camponesas ao pagamento de impostos, as importantes correntes migratórias e a explosão cultural com origem na cultura Kaabunké. Como diz o historiador, há que encontrar uma fórmula para que nesta região de África se consiga integrar os espaços em harmonia com a sua história.

Um abraço do
Mário



A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes

Mário Beja Santos

Numa pesquisa recente na revista Soronda, n.º 10, de julho de 1990, na revista Lusotopie, n.º 1-2, L’Harmattan, 1994, encontrei dois importantes artigos de Carlos Lopes, o primeiro referente ao Kaabú do século XIII ao século XVIII e quais as suas relações de poder, o segundo alusivo aos limites históricos de uma fronteira territorial – o que aproxima ou demarca a Guiné Portuguesa da Guiné-Bissau.

Para Carlos Lopes é indubitável que o estudo da estrutura do estado da Guiné-Bissau leva a constatar que existe um cruzamento de várias conceções de poder: uma tradicional, da qual os Malinké ou Mandingas seriam talvez a principal raiz, uma outra ligada ao desenvolvimento de certos aspetos sociopolíticos durante a luta de libertação nacional, e ainda uma outra que obedece ao modelo clássico exógeno de Estado. Portanto o estudo de relações entre o poder antigo e o moderno. A estrutura do Estado Malinké situa-se na Gâmbia, no Casamansa e na Guiné-Bissau atuais, contribuíram de uma forma decisiva para que se possa fazer um estudo pormenorizado do que foram as estruturas políticas Kaabunké. Este espraiava-se entre a Gâmbia, o Casamansa, Cacheu, Geba, Corubal, Nunez e Pongo. Os navegadores dos séculos XV e XVI registaram esta região do Norte da Gâmbia e os cursos de água que ofereceram boas condições para a navegação, até aparecerem os obstáculos do Futa-Djalon. Era um território onde o eixo económico andava à volta da orizicultura de mangal, havia uma pequena indústria de extração do sal; o ouro de Bambuk também desempenhou um papel importante no desenvolvimento da região. Os rápidos existentes nos rios Gâmbia e Corubal garantiam fronteiras naturais que protegiam as rotas comerciais.

Observa o autor:
“Muitos historiadores consideram, no entanto, que esta região constituía uma espécie de beco sem saída do mundo Malinké, pois ela era apenas o ponto ocidental mais extremo do Império do Mali. Quando, no século XVII, o Mali desaparece completamente da cena, o Kaabú encontra-se no seu apogeu. A influência Malinké torna-se também cultural, e o grande processo de malinkização vai ser uma das grandes originalidades do Kaabú. Os viajantes que visitaram a região descrevem uma forte dominação Malinké, sem, no entanto, muitas vezes fazerem referência ao centro político deste poder – o Kaabú era o provável herdeiro da riqueza comercial que estava na origem do poder maliano”. E um tanto à semelhança do seu trabalho para tese de doutoramento, Carlos Lopes enumera a decadência do Kaabú no século XIX, a estrutura social existente no Kaabunké, as razões da decadência. Assim chegamos a um argumento muito caro a Carlos Lopes, a herança política Kaabunké, uma conceção original da relação espaço e poder.

E escreve:
“É possível constatar que as estruturas atuais dos estados atrás citados (Gâmbia, Senegal, Guiné Conacri e Guiné-Bissau) continuam impregnadas das inter-relações construídas pelo Kaabú ou (a partir do século XIX) em oposição à existência deste. Embora a ideologia da construção nacional na Guiné-Bissau seja sobretudo obra dos crioulos, isso não devia impedir o estabelecimento de certas alianças étnicas em função da história antiga dos povos da região. A memória contemporânea esquece-se que os sistemas políticos tradicionais outorgavam pouca importância ao controlo territorial centralizado. No sistema de gestão do Kaabú a regra de ouro era a descentralização. A territorialidade ganha uma dimensão política com a reestruturação do espaço imposta pelas novas formas de troca introduzidas pelos europeus, nos fins do século XVIII. É nesse momento que o Kaabú perde o seu controlo político, mas a sua influência histórica não será apagada facilmente”.

No que toca aos limites históricos da fronteira territorial, o historiador lembra que defende uma hipótese que não é muito popular: a de que a existência das delimitações territoriais atuais tem contribuído para historicidades cruzadas entre o que é hoje a Guiné-Bissau, Casamansa e Gâmbia. Neste seu trabalho, o autor argumenta que o território da Guiné-Bissau é uma realidade ainda mais artificial do que a Guiné Portuguesa. Existem fundamentalmente duas formas de ler a realidade guineense: uma privilegia a componente exógena baseada na presença e historiografia europeias, outra concentra-se na historiografia endógena, obviamente que esta colide com a anterior. Quanto à tese exógena, tem a ver com a presença europeia cinco séculos num território chamado Rios da Guiné, presença europeia de Portugal, França, Inglaterra e Holanda, isolados ou associados do comércio transatlântico. Logo os navegadores portugueses fizeram distinções na região entre o norte da Gâmbia e os chamados rios do Sul.

O modelo exógeno leva os líderes africanos a pugnarem por uma conjugação de progresso, modernidade e desenvolvimento de acordo com o modelo ocidental. Foi o tratado luso-francês de 1886 que dividiu o espaço Kaabunké e procurou uma identidade para a Guiné Portuguesa. O Movimento de Libertação Nacional jamais utilizou argumentos de extensão territorial, só reivindicava a unidade política com as ilhas de Cabo Verde que obviamente nada têm a ver com o espaço Kaabunké. A defesa que a direção do PAIGC fazia baseava-se numa historicidade limitada a referências coloniais, enfatizando que os dois territórios foram geridos por uma mesma administração cuja sede se encontrava na ilha de Santiago. Ora, jamais existiu em terra firme continental um qualquer controlo territorial português. “A base ideológica justificou a construção teórica do movimento nacionalista, tal como todos os exemplos africanos deste tipo, era uma base que não podia ser articulada à existência de uma nação. A nação, tal como concebida pelo movimento nacionalista, não só se baseava no território de 1886 mas também nas estruturas que o justificam”. Tal tese assentava no credo propugnado pelo modelo ocidental e dava muito jeito às elites crioulas oriundas de Cabo Verde e da Guiné.

Passando para a tese endógena, esta é naturalmente inovadora mas muito polémica. “Trata-se de demonstrar a necessidade de perceber os fenómenos sociopolíticos da Guiné-Bissau e da região onde está inserida, a partir de uma historicidade endógena, que minimiza a relação com o exterior. É possível constatar aquilo que a tradição oral Mandinga tem vindo a martelar desde sempre: que do século XII até meados do século XIX, o território entre os rios Gâmbia e Nuno foi dominado por estruturas políticas Mandingas, primeiro criadas, depois herdeiros dos Estados do Alto Níger, nomeadamente do Império do Mali”.

O autor dá como provado que os povos desta região resistem à estruturação do seu espaço e às atuais fronteiras que o dividem, e dá exemplos que vão desde a manifestação independentista no Casamansa, aos golpes de Estado, ao recurso das línguas francas da região, à tensão militar constante nas fronteiras, às correntes migratórias, à explosão cultural, nomeadamente musical com origem na cultura Kaabunké – exemplos que demonstram que os Estados e os seus espaços estruturados não estão a ser respeitados. Segundo o autor, cabe aos intelectuais africanos o papel de conceber os argumentos que permitirão uma solução para estas irracionalidades, de modo a existir em África a integração de espaços em harmonia com a sua história. Reconheça-se como é bastante interessante esta argumentação de Carlos Lopes de o endógeno ser muito mais forte e permanente que o exógeno.

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Mapa da sociedade Mandinga, 1906
O korá
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24484: Notas de leitura (1598): "Memórias Duma Vivência em Ambiente de Guerra", por José Inácio Sobrinho; Edição de Autor, 2019 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24369: Notas de leitura (1588): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
A descrição desta segunda viagem trouxe uma inevitável polémica entre os historiadores dos Descobrimentos, não há consenso sobre as paragens cabo-verdianas que ele regista. Atenda-se que ele umas vezes fala do Cabo Verde continental, na primeira viagem faz até uma bela apreciação paisagística, esta segunda viagem leva-o até ao rio de Gâmbia, é certo e seguro que o Infante D. Henrique lhe pediu para explorar a costa abaixo, e assim o vemos no batizado Cabo Roxo, depois o Casamansa e depois o rio Grande ou Geba, onde ele deu conta do macaréu, coisa que nunca vira. É um mercador, percebe-se sem dificuldade que anda ali a desempenhar o papel de cronista, o registo que faz nas suas viagens prima pela curiosidade do seu olhar, tem conhecimentos de Náutica, fascina-se com a vegetação, com os animais e as aves, teme a aproximação das caravelas da terra, de vez em quando é patente a hostilidade quando chega. Quando acabamos esta saborosa leitura e sabemos que virão um Lemos Coelho, um André Donelha, um Duarte Pacheco Pereira, um André Álvares d'Almada, rendemo-nos a este espírito curioso, alguém que já tinha mundo e que mercadejava no Mediterrâneo e que regressa à sua terra onde exercerá cargos políticos. É uma peça-chave da nossa tão fecunda literatura de viagens, talvez a reportagem mais viva que guarda a historiografia deste projeto henriquino em que Cadamosto embarcou, pois não disfarça que também queria enriquecer.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

A segunda viagem de Luís de Cadamosto aconteceu em 1456, ele e Antonieto Usodomar armaram duas caravelas e rumam para o rio de Gâmbia, partem com o agrado do Infante D. Henrique. “Saímos do lugar chamado Lagos, com vento próspero, e pusemos o rumo para as Canárias. Sendo o tempo favorável, não nos preocupámos de tocar nas ditas ilhas, mas navegámos em seguida para o Sul e com a corrente da água, que impetuosamente seguia para Sudoeste, andámos muito”. Assim chegaram ao Cabo Branco, foram colhidos por um forte temporal, mudaram de azimute, e depois avistaram terra, nada sabiam daquelas paragens. Começaram por uma ilha desabitada: “Havia imensa quantidade de pombos. No alto da montanha tiveram vista de três outras grandes ilhas de que não tínhamos dado conta, porque uma nos ficava a sotavento da parte do Norte, e as outras duas estavam na mesma linha, do lado oposto, da parte do Sul, também na nossa derrota, e todas à vista umas das outras”. E depois chegaram à vista das outras ilhas, correram ao longo da costa, desembarcaram, encontraram tartarugas, percorreram o rio. “À primeira ilha onde desembarcamos, demos o nome de ilha da Boa Vista, por ter sido a primeira vista da terra naquelas partes; e a esta outra, que nos parecia a maior das quatro, demos o nome da Ilha de Sant’Iago, porque fomos lançar âncora nela no dia de S. Filipe e Sant’Iago”. E daqui partiram para um lugar chamado Duas Palmas, entre Cabo Verde e rio de Senegal e assim chegaram ao rio de Gâmbia, não encontraram oposição de ninguém, encontraram uma ilha e puseram o nome de Sant’André, prosseguiram viagem pelo rio Gâmbia, apareceu alguém que percebia do intérprete que tinham levado que lhes disse que aquele país era Gâmbia, e que o seu principal senhor era Forosangoli, que vivia a nove ou dez jornadas, este senhor dependia do imperador do Mali, mas que havia muitos senhores menores, disse mesmo que os levaria a um deles chamado Batimansa, oferta que agradou aos navegadores.

Chegados ao destino, enviaram um presente ao senhor Batimansa, uma camisa. “Mandámos-lhe a dizer que tínhamos vindo de mandado do nosso Senhor, o Rei de Portugal, cristão, para travar com ele boa amizade e para saber se precisava das coisas dos nossos países, que todos os anos o nosso Rei lhas enviaria, e com muitas outras palavras”. Permaneceram onze dias naquele local, receberam muitas visitas, havia gente que queria vender coisas. “As coisinhas que nos traziam eram algodões, fiados de algodão e panos de algodão feitos à sua maneira. Traziam também muitos macacos e babuínos grandes e pequenos. Também traziam gatos de algália e peles deles para vender”.

Dá-nos um quadro bem curioso das almadias e do modo de remar. E tece também considerações sobre os usos e costumes, e não deixa de falar do clima: “Esta terra é muito quente, e quanto mais se anda para o Sul tanto mais parece pedir a razão que as regiões sejam quentes; e sobretudo neste rio havia muito mais calma do que no mar, por estar povoado de muitas árvores e muito grandes. Da grandeza destas digo que estando nós a fazer aguada numa fonte junto à margem do rio, havia uma árvore grandíssima e muito grossa; porém, a altura não era proporcional à grossura, porque julgámos que tivesse de altura uns 20 passos, e a grossura, mandando-a medir, achámos umas 17 braças de circunferência, no pé”.

Também muito saborosa é a descrição que faz dos elefantes, deram-lhe a comer carne de um deles, achou-a dura e desenxabida. “Trouxe um dos seus pés e parte da tromba para o navio, e também muitos dos cabelos do corpo, que eram pretos e compridos um palmo e meio e mais; e tudo, juntamente com parte daquela carne que foi salgada apresentei depois em Portugal ao dito Senhor D. Henrique, que as recebeu como grande presente, por serem as primeiras coisas que tinha recebido daquele país, descoberto por indústria sua”. Volta a fazer comentários sobre as coisas que viu no rio de Gâmbia, e põem-se ao caminho para Casamansa, onde também havia um senhor chamado Casamansa. Daqui partiram para o Cabo Roxo, chegaram depois à boca de um rio de razoável grandeza, deram-lhe o nome de rio de Sant’Ana, continuaram e encontraram outro rio a que puseram o nome de São Domingos, e assim chegaram à boca de um grandíssimo rio, que julgaram ser um golfo. “Estivemos sobre a embocadura deste grande rio, ou Rio Grande, dois dias, e a Estrela do Norte aparecia aqui muito baixa. Neste lugar encontramos uma grande contrariedade, que não há em outro lugar, pelo que pude ouvir, e foi que, havendo aqui maré de água enchente e vazante, como em Veneza e em todo o poente, e enquanto em toda a parte cresce seis horas e baixa outras seis, aqui cresce quatro horas e baixa oito, e é tão forte o ímpeto da corrente da dita maré, quando começa a encher, que é quase incrível, porque três âncoras na proa mal nos podiam segurar, e com esforço, e momentos houve em que a corrente nos fez fazer à vela à força, e não sem perigo, porque tinha mais força do que as velas com o vento”. Cadamosto, sem o saber, estava a experimentar o macaréu, será provavelmente esta a primeira descrição feita por um europeu deste fenómeno da natureza.

E deste modo finaliza a sua segunda viagem: “Partimos da embocadura deste grande rio para voltar a Portugal, e fizemo-nos em direção àquelas ilhas, que estavam distantes da terra firme umas 30 milhas. Chegámos a elas, são duas grandes e algumas outras pequenas. Estas duas grandes são habitadas por negros e são muito baixas, mas abundantes de belíssimas árvores, grandes, altas e verdes. Também aqui não pudemos falar, porque não nos entendiam, nem nós a eles, e partindo dali, fomos para os nossos países dos cristãos, para os quais, por nossas jornadas, tanto navegámos, que Deus por sua misericórdia, quando lhe aprouve, nos conduziu a bom porto”.

Texto de inexcedível beleza e de uma incontornável riqueza para esta literatura de viagens encetada no século XV.


Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
____________

Nota do editor

Último poste da série de2 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Continuamos na companhia de Luís de Cadamosto, chegou-se até ao rio de Gâmbia e regressa-se a Portugal. Esperem agora pela segunda viagem, desta vez vai até à região do Batimansa, rei Mandinga, continuará a viagem para Sul até alcançar o rio Casamansa, depois Cabo Roxo, rio de S. Domingos ou Cacheu, chegará ao rio Grande, o outro nome dado ao rio Geba. A etnologia mas sobretudo a literatura de viagens ficarão com uma dívida enorme com este jovem mercador veneziano sempre atento aos usos e costumes, ao funcionamento dos mercados, às culturas, à postura do comer, à prática religiosa, vimos aspetos muito saborosos da sua digressão pelo país de Budomel, como Cadamosto discute sem acrimónia aspetos religiosos com um muçulmano, a sua curiosidade sempre desperta pelos animais e pelas aves, revelou-se o narrador que seguramente irá influenciar os continuadores das viagens que se seguirão à sua, tome-se a narrativa destas duas navegações como um dos mais espantosos guias de viagens de todos os tempos.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

O jovem veneziano Luís de Cadamosto, por acaso do destino, veio parar a um porto algarvio, o Infante D. Henrique soube da sua existência, conversaram e pouco depois partiu uma caravela a caminho do Cabo Branco, Cadamosto era mercador e soou-lhe bem a expetativa de fazer bons negócios na África Negra que já aqui se descreveu como viu os arquipélagos da Madeira e das Canárias, passou por Arguim e neste exato momento, depois de nos contar como vivem os azenegues, os pardos, chegou ao país de Budomel, segundo os especialistas estão aqui algumas das descrições fulgurantes de alguém que não era cronista mas que tinha um olhar apurado para ver os locais e as pessoas. Começa assim:
“Passei o dito rio de Senegal com a minha caravela, e navegando cheguei ao país de Budomel, lugar distante do dito rio cerca de 800 milhas pela costa, a qual é toda terra baixa e sem montes. Este nome Budomel é título de senhor, e não nome próprio do lugar. Neste lugar me detive com a minha caravela para tirar língua deste senhor, embora tivesse recebido informação de certos portugueses que tinham tido trato com ele, de que era pessoa e senhor de bem, e em quem se podia ter confiança, e realmente pagava o que tomava”.

Cadamosto não vai desprovido, leva cavalos, pano de lã, trabalhos de seda mouriscos e algo mais. Budomel veio ao seu encontro, convidou-o para sua casa, o veneziano deu-lhe sete cavalos com os seus arneses. “Antes de partirmos, presenteou-me logo com uma rapariga de doze para treze anos, muito linda, por ser muito negra, e disse que ma dava para serviço da minha câmara; aceitei-a e enviei-a para o meu navio”. Budomel pôs ao serviço de Cadamosto um seu neto, chamado Bisboror, acolheu-o quase todo o mês de novembro. E aproveita a oportunidade para descrever usos e costumes. “O rei deste reino só tem aldeias de casas de palha, e Budomel era senhor de uma parte deste reino, que é coisa pequena. Não são senhores porque sejam ricos de tesouros ou de dinheiro, porque nada disso têm; mas podem-se chamar verdadeiramente senhores de cerimónias e de séquitos de gentes, pois sempre estão acompanhados e reverenciados por muitos, e são muito mais temidos pelos seus súbditos que os nossos senhores daqui”.

Descreve a casa de Budomel, as mulheres, as gentes que o servem, as cerimónias de que usa o rei ao dar audiências, oram em conjunto na mesquita, discutem a fé sem qualquer ponta de fanatismo, veja-se o que se passou depois de algumas orações na mesquita: “Quando tinha acabado, perguntava-me o que me parecia; e por ter muito prazer em ouvir falar das coisas da nossa fé, dizia amiúde que lhe narrasse algumas, de forma que eu lhe dizia que a dele era falsa, e que os que lhes mostravam tais coisas ignoravam a verdade; e estando presentes aqueles seus árabes, reprovava a lei de mafoma, e mostrava ser a nossa fé verdadeira e santa, enquanto eu fazia desgostar aqueles seus mestres da lei. Do que este senhor se ria, e dizia que julgava fosse boa a nossa fé e não podia ser diversamente, porque Deus que nos tinha dado tantas coisas boas e ricas, tanto engenho e sabedoria, não teria deixado de nos dar também boa lei”.

Descreve o modo de comer, fala das produções do reino, de como se lavra, fala-nos dos animais que ali existem e deslumbra-se com os elefantes: “É animal que não ataca o homem se este o não ataca; e o modo de o elefante atacar o homem é dar-lhe com a trompa comprida uma pancada tão forte de baixo para cima que atira com ele às vezes quase como um tiro de seta”. Deslumbra-se igualmente com as aves e dá-nos um quadro como funciona o mercado dos negros e das coisas que aí negoceiam:
“Aqui vinham homens e mulheres do país, de quatro ou cinco milhas ao redor, porque os de mais longe iam a outros mercados; e nestes mercados compreendi muito bem que esta gente é pobríssima pelas coisas que levavam ao mercado a vender, que eram algodões, mas não em grande quantidade, fiados também de algodão, panos de algodão, legumes, azeite, milho, gamelas de madeira, esteiras de palma e um pouco de todas as outras coisas que usam para viver (…) Estes negros, quer os homens quer as mulheres, vinham ver-me por maravilha; parecia grande coisa ver cristãos e não menos se admiravam da minha brancura que do meu traje, que era ao uso da península hispânica um jubão de damasco preto e uma capa por cima; olhavam para o pano de lã que eles não têm e para o jubão, e muito se admiravam; alguns me tocavam as mãos e os braços e com saliva me esfregavam para ver se a minha brancura era tinta ou carne e vendo que efetivamente era carne ficavam maravilhados”.

São olhares alargados que passam pelos cavalos, os costumes das mulheres, os instrumentos musicais. Depois encontra Antonieto Usodomar, um genovês que vinha com duas caravelas, já saiu do país do senhor Budomel, resolveu ir mais adiante, passou Cabo Verde (em território africano), encontrou no alto mar o genovês, justifica porque é que Cabo Verde é assim chamado e entra em nova descrição, a dos Barbacinos e dos Serreres, estamos na África Negra, mas estes dois povos não estão sujeitos ao rei do Senegal. “São homens muito negros e bem encorpados, a terra é bastante rica de bosques e abundante de lagos e de águas, e por isso se consideram muito seguros, não sendo possível entrar nela senão por passos estreitos; por isso não temem nenhum senhor circunvizinho, e aconteceu muitas vezes, em tempos passados, que alguns reis de Senegal quiseram fazer-lhes guerra para os subjugar e sempre foram derrotados pelas duas nações, quer pelas frechas ervadas (flechas envenenadas), quer pelo país ser muito áspero".

Assiste à crueldade de ver trucidar alguém que manda a terra, resolve não mexer e prossegue viagem, a próxima etapa é o país de Gâmbia. Há encontro com gente que vem em canoas, mas não comunicam. Entra finalmente no rio Gâmbia, chega gente, desta feita há cumprimentos, e o comentário de Cadamosto é precioso:
“Suspenderam eles a remada e levantaram os remos para o ar, ficando a olhar para nós, como para coisa maravilhosa; e examinando-os também, julgámos que poderiam estar, quando muito, 130 a 150 negros, que nos pareceram homens belíssimos de corpo, muito pretos, todos vestidos de camisas brancas de algodão, com chapelinhos brancos na cabeça, quase à moda dos tudescos, salvo que de cada lado tinham uma espécie de asa branca, com uma pena no meio do dito chapelinho, quase como querendo dar a entender que eram homens de guerra. À proa de cada uma das almadias estava um negro, em pé, com uma adarga redonda no braço, que nos parecia ser de couro; e, assim, nem eles atirando nem nós fazendo movimento algum contra eles, foram-se aproximando, e chegados a eles, sem outra saudação, largaram os remos e começaram todos a atirar com os arcos. Os nossos navios, à vista do assalto, descarregaram da primeira vez quatro bombardas. Ao ouvi-las, pasmados e atónitos pelo grande estrondo, os negros largaram os arcos, e olhando uns para um lado, outros para o outro, estavam admirados de verem as pedras das bombardas ferirem a água junto deles; e ficaram muito tempo a olhar para elas, mas, não vendo outra coisa, perderam o medo ao estrondo e, depois de termos atirado muitos tiros, pegaram nos seus arcos e começaram novamente a atirar com grande ardor, aproximando-se dos navios um tiro de pedra. Os marinheiros começaram a alvejá-los com as suas bestas e o primeiro que descarregou foi um filho bastardo daquele gentil homem genovês, que feriu um negro no peito, que logo caiu morto na almadia. Ao ver isto, tomaram os seus aquela frecha e consideraram-na muito, quase maravilhados daquela arma; mas nem por isso deixaram de a atirar aos navios vigorosamente, e as das caravelas a eles, de forma que em pouco tempo foram mortos muitos negros, e dos cristãos, graças a Deus, nenhum foi ferido”.

Os atacantes recuam e depois procuraram chegar à fala com eles por meio de intérpretes, dizem quem são e de onde vêm, desejavam ter amizade e boa paz com eles. Responderam os da terra que tinham notícia como nós tratavam os negros do Senegal, tinham por certo que os cristãos comiam carne humana e que compravam os negros só para os comer, e que por isso não queriam de forma alguma a amizade de quem vinha e que nos queriam matar a todos, e depois de toda esta conversa fugiram para terra e assim acabou a guerra. Cadamosto e o genovês saem dali, vão na direção de Cabo Verde para voltar para Portugal. Ainda faz uma descrição primorosa da astronomia e aqui acaba a primeira navegação. Vamos agora falar da viagem seguinte, aquela em que chegaram a algumas ilhas de Cabo Verde, isto já em 1456.

(continua)

Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
São duas belas traduções, acrescendo que a edição francesa, da categorizada Chandeigne, que tanto prestigia a cultura portuguesa vem acompanhada de comentários e notas de grande mérito, tornam ainda mais esclarecedoras as narrativas deste jovem veneziano que foi seduzido pela proposta do infante D. Henrique de ir até ao Senegal e à Gâmbia, acabará por fazer duas expedições, e sendo ainda assunto de grande polémica acabou por descobrir algumas das ilhas de Cabo Verde. Importa insistir que ele não era cronista, daí o colorido do seu estilo e a completa liberdade de expressão, que iremos depois ver nos seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto. Poucas obras do século XV podem ombrear com Cadamosto, ele viajará até ao Casamansa e ao Rio Grande, irá mesmo descrever o fenómeno do macaréu. É um autor inesquecível, tenho grande satisfação em trazê-lo aqui numa revisitação.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que o nome de Luís de Cadamosto é aqui referenciado, mas o facto de se ter encontrado uma tradução de 1944, do Instituto para a Alta Cultura e edição francesa de 1994, Edições UNESCO e Edições Chandeigne, obviamente com a riqueza de um tradutor italiano, por um lado e edição francesa cheia de pormenores, por outro, tudo concorre para voltarmos à fala com este jovem patrício veneziano que em 1455, no decurso de uma escala involuntária no Sul de Portugal, se deixou convencer pelo Infante D. Henrique para uma viagem a África. O que mais nos toca nestas narrativas é que o olhar de Cadamosto não é de um cronista oficial, ele era um mercador sem preconceitos, um jovem homem cheio de curiosidades a quem repugnava a efabulação, revela-se dotado de uma surpreendente abertura de espírito. A prova disso são os seus testemunhos: a descrição de paisagens e peripécias da navegação alterna com as da vida quotidiana dos berberes azenegues e os negros da Guiné, o que vai conferir à narrativa um grande interesse etnológico. Os seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto Bisboror ficaram célebres do seu bom humor e da sua vivacidade. E importa não esquecer que as viagens de Cadamosto estão na primeira linha dos testemunhos ocidentais da África Negra.

Abre a descrição da primeira viagem com uma certa eloquência: “Fui eu, Luís de Cadamosto, o primeiro que saí da mui nobre cidade de Veneza para navegar o mar Oceano, fora do estreito de Gibraltar para as partes do meio-dia, nas terras dos negros da baixa da Etiópia”. Assume que vai falar de um outro mundo. Apresenta-nos o Infante D. Henrique e as explorações náuticas a que se dedicava, elogia as caravelas, não esconde que queria trabalhar para adquirir meios e situa o encontro com o Infante: “Embarquei nas nossas galés de Flandres, saímos de Veneza em 1454, navegámos por nossas jornadas até que nos encontrámos na Península Hispânica. E encontrando-me, pelo tempo contrário, no Cabo de S. Vicente, deu-se o caso de não muito longe dele estar o referido senhor Infante D. Henrique numa povoação vizinha chamada Raposeira”.

O Infante convoca-o, quem o procura leva amostras de açúcares da ilha da Madeira e de sangue de drago. Ocorre o encontro, o infante faz-lhe a proposta de partir à procura de novos mundos, apraza-se um contrato, arma-se uma caravela nova, era patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, em 22 de março de 1455 rumam para a Madeira, passam por Porto Santo pois a ilha da Madeira onde ele descreve as coisas que aqui se produzem. Partem da Madeira para as ilhas Canárias, outra descrição preciosa e depois navegam para o Sul, como ele escreve na direção da Etiópia, chegam a Arguim, fala no deserto do Sara e diz: “É muito grande, a travessia demora 50 a 60 dias a cavalo. Este deserto vem beber no mar Oceano, na costa, que é toda arenosa, branca e seca; é terra baixa, toda igual e não mostra ser mais alta num lugar que no outro, até ao Cabo Branco”. Aproveita para falar dos peixes e de povoações por onde passam as caravanas que vêm de Tombuctu, quanto a quem ali vive eram maometanos que vagueiam pelos desertos e são homens que vão às terras dos negros. “São em grande número e têm grande abundância de camelos, nos quais levam o cobre e a prata da Berberia e outras coisas para Tombuctu e para as terras dos negros, e daí trazem oiro e malagueta que trazem para cá. São homens pardos, e vestem umas túnicas brancas sobre o corpo. Os homens trazem um lenço à mourisca na cabeça e andam sempre descalços”.

Cadamosto refere as operações da feitoria de Arguim, fala nos Azenegues que trata como homens mulatos e que habitam em alguns lugares da costa que fica para além do Cabo Branco. Ele refere o império Melli, seguramente o império Mali, dizendo que há muito calor, que não há no dito país animais quadrúpedes e que os Árabes e Azenegues adoecem e morrem devido ao grande calor. O sal era a mercadoria mais apreciada e descreve com enorme vivacidade os termos de um comércio mudo, os mercadores não se viam uns aos outros. “Visto o sal, põem uma quantidade de oiro na frente de cada monte e voltam para trás, deixando o oiro e o sal, e retiram-se. Voltam os negros do sal, e se a quantidade de oiro lhes não agrada, deixam o dito oiro com o sal, e voltam para trás, após o que vêm os outros negros do oiro, e levam o monte que encontram sem oiro; e aos outros montes de sal tornam a pôr mais oiro, se lhes parece, ou deixam o sal. E deste modo fazem o seu comércio sem se verem uns aos outros, nem falar-se, por um longo e antigo costume”.

Cadamosto quer saber mais sobre as gentes do império do Mali, outra descrição curiosa. Voltando aos Azenegues (pardos ou mauritanos), dá pormenores: “Nesta terra dos pardos não se bate moeda alguma, todo o comércio deles é trocar coisa por coisa, e duas por uma, e desta maneira vivem”. E assim chegamos à descrição do rio de Senegal, pensa-se que era o Níger, já tinham passado o Cabo Branco e assim chegaram à terra dos negros: “Cinco anos antes que eu fizesse esta viagem, este rio foi descoberto por três caravelas do dito Infante que entraram dentro dele, e fizeram paz com estes negros, de maneira que começaram a fazer comércio”. E prova da muita ignorância que ainda havia quanto à cartografia, veja-se o que ele escreve sobre o rio de Senegal: “Este rio, segundo dizem os sábios, é um ramo do rio Gion que vem do Paraíso Terreal, ramo que foi pelos antigos chamado Níger, e vai banhando toda a Etiópia e a aproximando-se ao mar Oceano, onde desagua e faz muitos outros braços e rios, além deste de Senegal. Outro ramo do dito Gion é o Nilo, que passa pelo Egito e desemboca no nosso mar Mediterrâneo. Esta é a opinião daqueles que têm dado a volta ao mundo”.

Chegou à terra dos Jalofos, conta como se elegem os reis do Senegal e como se vive:
“Este rei é semelhante ao dos Cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem e pobríssima, e não há cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha, pois não as sabem fazer de paredes, por não terem cal nem pedras para as construir. O rei não tem rendimento certo de tributos, mas todos os anos os senhores da terra, para que se dê bem com eles, lhe fazem presentes de alguns cavalos, que são muito apreciados por haver falta deles, e fornecimentos de cavalos, e outros animais, como vacas e cabras, legumes, milho e coisas semelhantes. Mantém-se este rei também de roubos, que manda fazer a muitos escravos, quer no país, quer no dos vizinhos. Desses escravos se vale por muitos modos, sobretudo em cultivar certas possessões que lhe são reservadas e também vende muitos deles aos azenegues e mercadores árabes que aí chegam com cavalos e mais coisas; e vende outros também aos cristãos, depois que eles começaram a negociar mercadorias naqueles países”.

Diz que a religião destes negros é a maumetana, mas não estão muito firmes na fé. E dá-nos um texto vivacíssimo quanto a trajes e costumes dos negros: “Esta gente quase toda anda sempre nua, exceto um coiro de cabra posto em forma de braga, com que cobrem as suas vergonhas. Mas os senhores e os que podem um pouco vestem camisas de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros. As mulheres fiam e fazem panos de um palmo de largura, e não sabem fazê-los mais largos porque não sabem fazer os pentes para os tecer, de forma que cozem juntos quatro ou cinco daqueles panos de algodão, quando querem fazer algum trabalho largo”. Observa a natureza das guerras e do armamento usado, guerra entre vizinhos, não trazem couraças, só têm escudos redondos e largos, usam azagaias que são dardos ligeiros, dardos que têm um palmo de ferro lavrado com barbas miúdas e usam também alfanges mouriscos que fazem com o ferro da Gâmbia. “As guerras deles são muitíssimo mortíferas, por estarem desarmados; os seus golpes não falham, e matam-se tanto como feras, e são muito atrevidos e bestiais, pois que em qualquer perigo antes se deixam matar do que fugir, ainda que possam fazê-lo”.

E passa o rio Senegal e chega ao país do Budomel.

(continua)
Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24343: Notas de leitura (1585): "Os Manuscritos de R.", por Jaime Froufe Andrade, segunda edição de Novembro de 2019, um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24071: In Memoriam (468): Historiador Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023), Professor Catedrático Aposentado da Universidade de Coimbra (Mário Beja Santos)

IN MEMORIAM

Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023)

Mário Beja Santos

Conheci Armando Tavares da Silva quando um dia, inopinadamente (sem prévio aviso) me abriu a porta do meu gabinete de trabalho, onde eu fazia voluntariado, na Praça Duque de Saldanha, estávamos em 2016, vinha ajoujado de um cartapácio, apresentou-se, fiquei a saber que era professor catedrático reformado, presidente da secção Luís de Camões da Sociedade de Geografia de Lisboa, que andara aturadamente no Arquivo Histórico Ultramarino, fora desperto pelos assuntos guineenses graças a um avô marinheiro que andara na guerra do Churo, em 1904, trouxera muitas memórias, decidiu-se por aprofundar, documento puxa documento e escreveu uma obra de referência “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926”, obra recheada de imagens e cartografia, viria este tão prodigioso esforço a ser premiado pela Gulbenkian.

São centenas e centenas de páginas que começam na transformação da Guiné em província independente de Cabo Verde, meticulosamente vão sendo reveladas as atividades dos primeiros governadores, é o caso da guerra do Forreá, os incidentes do Casamansa, a delimitação de fronteiras (depois da convenção luso-francesa de maio de 1886), as intermináveis rebeliões, a indisciplina dos Papéis de Bissau, as tentativas de pacificação, com destaque para a governação de Oliveira Muzanty, as campanhas de Teixeira Pinto e o processo de Abdul Indjai, a governação de Vellez Caroço, o drama de heróis insurretos como Graça Falcão, a monopolização do comércio pela Casa Gouveia.

Não me cansei de louvar este levantamento monumental, uma singularidade na historiografia da Guiné colonial, tivemos a nossa querela a propósito das suas considerações finais quanto a legadas divisões em permanência entre militares e comerciantes, e mantive como mantenho sérias dúvidas quanto a todas as benevolências que ele atribui à campanha de Teixeira Pinto em Bissau, conducente à chamada pacificação definitiva de 1915. São arrufos entre estudiosos, mal ficaríamos se não houvesse divergências quanto ao olhar da sociedade e da política num certo período em análise.

A Guiné perde um investigador histórico de gabarito, foi colaborador do nosso blogue, deixou obra em várias instituições como a Sociedade de Geografia de Lisboa, o Instituto Português de Heráldica e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal.

Curvo-me respeitosamente pela sua memória, pela companhia que nos trouxe e pelo acervo admirável que deixou sobre um importante período da nossa presença na Guiné.


********************

- Os editores e a tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, lamentam a morte do insigne Historiador, Professor Armando Tavares da Silva, nosso confrade, endereçando aos seus familiares as mais sentidas condolências.

O Prof Armando Tavares da Silva deixa uma prestimosa colaboração neste Blogue, onde tem 52 referências, dando-nos a conhecer, no seu último livro publicado, a história política e militar da presença portuguesa na Guiné no período compreendido entre 1878-1926.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3492 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Procurei nos Anais do Clube Militar Naval, no âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, artigos assinados por oficiais da Marinha. Encontrei um texto sobre a definição das fronteiras, a importante comunicação de Teixeira da Mota, logo em janeiro de 1946 dado como certo e seguro que Nuno Tristão fora frechado por Mandingas, mas na região do rio Gâmbia, aquela expedição não chegara a terras da Guiné; e por último uma apreciação muito desgostosa do Contra-Almirante Aprá que participara nas operações na península de Bissau em 1894 e que ficara consternado com a falta de preparativos do Governador, segundo Aprá perdera-se a oportunidade de ficar a dominar os povos residentes na península de Bissau.

Um abraço do
Mário



Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947)

Mário Beja Santos

Compulsando números antigos da prestigiada publicação "Anais do Clube Militar Naval", detive-me nos 76 e 77 anos da publicação, 1946 e 1947, respetivamente. Logo com o artigo intitulado "As Fronteiras", escrito pelo Capitão de Mar-e-Guerra Tancredo de Morais. O oficial começa por referir os limites que André Alvares de Almada, no seu Tratado Breve, tratado de 1594 propõe para a região da Senegâmbia, teoricamente território ocupado pelos portugueses: do rio Senegal à Serra Leoa. Ao tempo, esta Senegâmbia era uma espécie de morgadio de Cabo Verde. Os portugueses reconheciam a soberania dos régulos que lhes vendiam os escravos. A questão dos limites vai complicar-se com a chegada dos holandeses, que não encontraram qualquer resistência, que se estabeleceram em Arguim e depois na Goreia, ilha que ninguém defendia – aqui ficaram até 1677, data em que uma esquadra francesa os expulsou. Os ingleses estabeleceram-se na Serra Leoa, não houve qualquer reivindicação portuguesa. Os nossos diferendos diplomáticos serão com a Grã-Bretanha por causa da questão de Bolama e com a França quando esta procedeu a uma ocupação insidiosa do Casamansa. O autor dá-nos um resumo do envio de protestos para Paris e para o Senegal, a diplomacia francesa chegou ao descaro de informar que tinham sido os primeiros a chegar… Honório Pereira Barreto, sempre franco e leal, não deixou de descrever o que era a presença portuguesa em Ziguinchor: “Ziguinchor tinha 7 soldados, era defendida por uma paliçada e uma artilharia desmontada. Devia a sua conservação à família Carvalho Alvarenga. O seu comércio, que era importante, achava-se nas mãos dos franceses, depois que se havia estabelecido em Selho”.

O autor não deixa de chamar a atenção que a reação diplomática à ocupação britânica foi tíbia e insegura. Em vez de se apresentarem factos da ocupação desde o século XV, o mais que se pôde obter foram documentos que datavam do reinado de D. José. E menciona a sentença arbitral do presidente dos EUA, Ulysses Grant. As fronteiras definitivas vão surgir na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, mas os franceses ainda irão exigir, no processo de sucessivas retificações, mais algumas porções de terra.

Ainda em 1946, no número de março a abril, merece o devido relevo a referência à conferência que Teixeira da Mota proferiu em Bissau em 6 de janeiro desse ano, na abertura do V Centenário da Descoberta da Guiné. Com subtileza, o autor traça em longo preâmbulo considerações sobre a verdade em História, e a obrigação de ir desmantelando tabus e mitos. Era na época dado como assente que o primeiro descobridor que chegara a Guiné fora Nuno Tristão, aparece agora um oficial da Marinha, um jovem historiador, ainda por cima ajudante do Governador, a dizer que nada se passou assim. Descreve a descida progressiva da costa ocidental africana, a passagem do Cabo Bojador em 1434, no ano seguinte o mesmo Gil Eanes e Gonçalves Baldaia iniciaram a exploração da Mauritânia e chegaram a Angra dos Ruivos; e no ano seguinte o mesmo Baldaia foi ao Rio de Ouro e à Pedra da Galé. Seguem-se expedições em 1441 em que aparece pela primeira vez o nome de Nuno Tristão; em 1443 são descobertas as ilhas de Arguim e das Garças , foi um dado fundamental para o projeto henriquino, ergue-se em Arguim uma feitoria, tudo por causa do negócio do ouro; no ano seguinte, o cavaleiro-navegador Lançarote descobre mais ilhas, chegava-se à costa da Mauritânia, era a Terra dos Negros; em 1444, Diniz Dias avançava ao longo da costa dos Jalofos e descobria o Cabo Verde – os portugueses aproximavam-se das fontes do ouro. No Senegal e no Cabo Verde souberam pelos Jalofos que perto, para o sul, corria um largo rio, o rio Gâmbia, onde também abundava o ouro. Em 1446 larga do Algarve uma caravela capitaneada por Nuno Tristão, leva a bordo 30 homens. Chega ao Cabo dos Mastros, Nuno Tristão e os 30 homens embarcam em dois batéis, são cercados por canoas de indígenas e atingidos por flechas envenenadas, Nuno Tristão é uma das vítimas mortais. E Teixeira da Mota conclui: “Nuno Tristão não passou na realidade do Estuário Salum-Jumbas, que é propriamente um conjunto de braços de mar que se estende por algumas dezenas de milhas um pouco ao norte da foz do Gâmbia. Os indígenas que mataram Nuno Tristão eram Mandingas. Nuno Tristão não esteve, portanto, em 1446 em território atualmente português, mas traçou o destino que fosse ele o primeiro português a encontrar gentio de uma das etnias que pululam a Guiné Portuguesa. Quis o destino que esse contacto se manifestasse da forma brutal que o caracteriza. Os poderosos imperadores do Mali, que lá muito para o Oriente, das margens do Níger, em Niani, sua capital, dirigiam os vastos domínios, ignoravam talvez a existência daquele chefe mandinga. Enquanto a grandeza mandinga entrava no ocaso levantava-se a portuguesa”.

Temos por último o artigo intitulado "A Companhia de Guerra da Marinha na Campanha da Guiné de 1944", aparece no 77.º ano, número de janeiro e fevereiro de 1947, assina A. Aprá, Contra-Almirante. Ele refere-se à companhia de guerra da Marinha que embarcou em Lisboa no transporte África, isto em fins de março de 1894, passou o mês de abril em Bissau apetrechar-se, havia que comprar chapéus de palha em Cabo Verde, fizeram-se a bordo polainas, bornais de lona e manteve-se a atividade física e os preparativos militares com exercícios diários no ilhéu do Rei. A Guiné era um distrito militar autónomo, quem iria conduzir as operações era o governador, o Coronel de Artilharia Vasconcelos e Sá. A coluna saiu de Bissau a 10 de maio, foram considerados importantes aspetos logísticos como o recrutamento de carregadores para transportar água e munições. O efetivo da companhia era 259 homens; tinha uma seção de metralhadoras com 25 praças e 1 oficial, 1 médico com 3 enfermeiros e 6 maqueiros, participava ainda uma seção de administração naval. E relata que tudo começou numa confusão na distribuição de cargas pelos carregadores, só se pôde partir às 8 da manhã, avançaram sobre Antim, fazendo fogo sobre o objetivo, só perto dele é que se verificou resistência, quando se chegou a Antim a povoação estava completamente vazia. Começou a falta de água, os rebeldes só apareciam dando tiros isolados. Depois das 2 da tarde chegou a ordem de retirar com as devidas precauções, esta companhia de guerra da Marinha veio acompanhada por uma companhia de Angola. Verificou-se uma enorme agitação porque os carregadores procederam a saque, isto quando havia punhetes para transportar, e o contingente militar acusava fadiga, e temia-se que os rebeldes atacassem a qualquer momento. Regressou-se ao acampamento de Antim depois de 7 horas de marcha, não havia a menor provisão de água e a refeição preparada era um autêntico desastre só no dia seguinte é que apareceu água e um rancho decente.

Aguardavam-se ordens para que esta companhia de Marinha saísse do Alto de Antim e avançasse sobre Antula. Houve troca de impressões sobre a ordem de marcha, à tarde veio ordem do governador dizendo que era tarde para começar a marcha sobre Antula e no dia seguinte chegava a notícia de que o mesmo governador considerava ser suficiente o castigo dado ao gentio; mais tarde regressou-se à praça de Bissau onde se embarcou no navio África. E o contra-almirante Aprá termina com uma apreciação altamente crítica:
“Assim terminou a campanha de 1894, mandada acabar por quem direito. Foi incompleto o serviço? Sim. Mas foi a primeira vez que uma força europeia de uma certa importância entrou em operações de guerra na Guiné. Nada estava preparado, não havia planos, organização, nem se pensou em abastecimentos.
Se tivesse havido um verdadeiro Estado-Maior, e serviços administrativos regulares, se tivesse havido um modesto serviço de transportes e não estivessem na mão de carregadores gentios que só marcham com as forças para matar, roubar e incendiar, enchendo-se de despojos e abandonando as nossas cargas, tenho o pressentimento que a companhia de Marinha que, no dia 10 de maio, tinha ganho um verdadeira ascendente sobre o gentio fugia apavorado com o nosso avanço, essa companhia sozinha tinha feito ocupação da ilha de Bissau. Do exposto se concluí que a coluna organizada em 1894 não foi encarregada da ocupação militar da ilha de Bissau, foi como diz o Governador e o Governo Central concordou, um castigo dado ao indígena pelos altos de selvajaria anteriormente praticados. É a este ponto que quero chegar, não pode considerar-se um desastre que em campanha me parece ser sinónimo de derrota”
.

E assim termina a colaboração alusiva ao V Centenário da Descoberta da Guiné nos Anais do Clube Militar Naval.


Uma bela fotografia de Andrea Wurzenberger captada na Guiné, com a devida vénia
Um comboio de embarcações comerciais no rio Geba
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23700: Historiografia da presença portuguesa em África (338): Viagens por alguns títulos do Boletim Geral das Colónias (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23640: Notas de leitura (1497): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Livro de referência, pela organização cuidada, pelo elevado acervo documental diplomático manuseado, releva aspetos essenciais do que se viveu na Guiné, de 1962 a 1974. Referi em texto anterior que o autor repete erros de apreciação quanto à governação de Schultz, não consultou fontes primordiais; é o primeiro investigador a ignorar o argumentário do PAIGC, muito apreciado na época de que Spínola e a PIDE estavam envolvidos no assassinato de Cabral, não havia coragem para denunciar o segredo de polichinelo de que os guineenses não tolelariam ser governados sob alçada cabo-verdiana, durante anos vendeu-se uma conspiração montada pela PIDE para infetar as consciências em Conacri e chegou-se ao desplante de pôr à frente da intentona Momo Touré, um guerrilheiro libertado em 1969 e que fora criado de mesa no restaurante Pelicano, isto sem questionar como é que este senhor iria mobilizar pelo menos largas dezenas de sediciosos, muitos deles altos quadros do PAIGC. Mas esta mitologia fez voga, era um excelente pretexto para esconder a realidade. Futscher Pereira foi bastante cuidadoso a tratar as relações diplomáticas com o Senegal e revela as diferentes tentativas de Marcello Caetano de chegar às negociações com o PAIGC, a partir de fevereiro de 1974. Obra de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


A Guiné no importante livro de Bernardo Futscher Pereira, Orgulhosamente Sós (2)

Mário Beja Santos

Orgulhosamente Sós, A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira [foto à direita], Publicações Dom Quixote, 2022, asseguro-vos, é uma obra de referência, muito bem sistematizada, o ponto focal, em diacronia, é uma área que o investigador domina. Trata-se de um trabalho de pesquisa e organização de grande solidez e onde um olhar sobre as relações internacionais correspondentes à guerra que travámos em África regista os dados fundamentais da luta de libertação e a permanente resposta portuguesa. O autor trata este livro como uma crónica, onde se “procura apresentar uma narrativa coerente deste período centrada na história diplomática, mas abarcando os principais aspetos políticos e militares que a enquadram”. Considera que uma visão completa deste período carece ainda de uma história militar pormenorizada das guerras coloniais. Adverte-se o leitor que quer neste texto como no anterior circunscrevemos a análise aos comentários do investigador exclusivamente no teatro da Guiné.

Estamos agora em 1971, as relações com o Senegal deterioram-se com as incursões de forças portuguesas em Casamansa, o PAIGC não abranda a onda de hostilidade. É neste contexto que Rui Patrício, o ministro dos Negócios Estrangeiros recebe uma carta de Spínola propondo um virar de página na politica portuguesa para a Guiné, escrevendo mesmo “a ninguém restam dúvidas de que o problema da Guiné não é passível de solução exclusivamente limitar” e que, “numa guerra deste tipo, as operações militares apenas se destinam a criar as condições à solução de fundo”, e “essas condições estão criadas, pelo que, do ponto de vista militar, se me afigura impossível ir mais além”. Spínola preconizava uma consulta ao povo da Guiné. “Spínola considerava que a sua ação apenas serviria para ganhar o tempo necessário para encontrar uma solução política e diplomática do conflito”. Irá expor essa tese a 7 de maio no Conselho Superior de Defesa Nacional, incomodará muita gente, o Governo não estava disposto a ir tão longe. Lúcido quanto à impossibilidade de uma vitória militar, Spínola empenha-se numa tentativa de negociação com o PAIGC, recorre a um colaborador de confiança, o chefe da PIDE em Bissau, Fragoso Alas, e a um intermediário como Mário Rodrigues Soares, considerado capaz de passar recados. É assim que é aprazado o encontro com Senghor, 18 de maio de 1972. Não há documentação que comprove que Amílcar Cabral desse o beneplácito a tais negociações. Depois das conversações com Senghor Spínola vem a Lisboa, Marcello Caetano contrariou todos os seus propósitos, alegando que a sociedade portuguesa não estava preparada para esse passo. É o início da rotura das relações entre os dois, Spínola irá escrever a Caetano dizendo que só existem duas alternativas, “ou uma viragem de ordem política ou uma prolongada e inútil agonia”.

Spínola irá ainda encontrar um alto dirigente senegalês, escreverá no seu livro de memórias País Sem Rumo que em outubro de 1972 Amílcar Cabral sugeriu um encontro com ele em território português. E o autor refere que a ausência de documentos não permitem esclarecer a consistência desta proposta. É exemplar a correspondência trocada entre Spínola e Marcello Caetano, e ficará para a história o seguinte comentário de Caetano: “para a defesa global do Ultramar, é preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado pelos terroristas, abrindo o caminho a outras negociações”. Caetano supunha que iria haver uma derrota militar na Guiné que manteria intactas todas as possibilidades de defender o resto dos territórios. Falhadas as negociações, também Senghor tirou as suas ilações, passou a dar todo o apoio às atividades do PAIGC no Senegal. Importa referir que entre 2 e 8 de abril, três diplomatas ao serviço da ONU, acompanhados por dois funcionários do secretariado da mesma organização, percorreram a zona de Catió e Quitafine, confraternizado com as populações.

Estamos chegados ao assassinato de Amílcar Cabral e é bom que se diga que Bernardo Futscher Pereira é o primeiro investigador a justificar os acontecimentos fugindo à propaganda do PAIGC pôs a correr, estabelecendo ligações diretas com Spínola e a PIDE, e que teria havido até uma operação tenebrosa envolvendo a Marinha portuguesa. O autor faz avultar o ressentimento secular dos guinéus contra os cabo-verdianos, os cabo-verdianos eram oriundos da pequena burguesia ao passo que os guinéus eram essencialmente camponeses sem instrução. “O PAIGC contava com cerca de 6000 guerrilheiros, quase todos guineenses. Cabo-verdianos seriam talvez uma centena, quase todos dirigentes”. Fala nos indícios de comprometimentos de figuras como de Nino Vieira e Osvaldo Vieira, é sabido que toda a documentação decorrente dos inquéritos desapareceu sem rasto. A liderança do PAIGC preparou a resposta, ela virá, com toda a sua brutalidade, graças ao míssil terra-ar Strella, o ataque a Guileje e a Guidaje. Costa Gomes visita a Guiné no rescaldo destes empates, apresenta como única alternativa “a adoção de uma manobra visando o encurtamento da área efetivamente ocupada, evitando-se, desse modo, a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira”. Como o autor observa, Spínola concordou com o diagnóstico, mas recusou pura e simplesmente aplicá-lo.

Há agora o esforço frenético para encontrar armas compatíveis com a escalada do armamento, pretende-se comprar uma bateria antiaérea para a eventualidade de haver ataques com MiG-17. Para agradecer a cedência das Lajes na guerra do Yom Kippur, Kissinguer, não podendo fornecer diretamente os mísseis Red Eye encontrou um intermediário israelita. “Portugal acabou por encomendar 500 mísseis a Israel que, no 25 de Abril, esteavam na Alemanha Ocidental à espera de serem expedidos para Lisboa. Costa Gomes e Spínola cancelaram a encomenda.”

Futscher Pereira desvela igualmente as negociações tentadas à última hora por Marcello Caetano: negociar com o PAIGC a independência da Guiné. Alude aos acontecimentos de janeiro de 1974, a ofensiva sobre Copá e Canquelifá, a ida do diplomata José Manuel Villas-Boas a Londres, foi o MI6 que serviu de intermediário, o chefe da delegação guineense era o ministro dos Negócios Estrangeiros Vítor Saúde Maria. “Os guineenses exigiam negociações Estado a Estado e o reconhecimento de Portugal do Governo do PAIGC no exílio. Villas-Boas não estava obviamente habilitado a responder. Ficou agendado novo encontro, mas não antes de maio. Marcello Caetano procurava também outros canais. A 5 de abril, Pedro Feytor Pinto foi enviado a Paris, onde se encontrou com Jacques Foccart, o todo-poderoso monsieur Afrique do Eliseu, a quem pediu ajuda para mobilizar Senghor e Houphouët-Boigny para esta tentativa de última hora de negociar com o PAIGC. Iniciaram-se também preparativos para um encontro entre Bethencourt Rodrigues e Senghor.”

Aqui findam todas as considerações sobre a Guiné, insiste-se que se trata de um documento altamente probatório, indiscutivelmente um olhar refrescado sobre o que foi a diplomacia portuguesa que demonstra inequivocamente que não estávamos “orgulhosamente sós”.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23628: Notas de leitura (1496): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23557: Notas de leitura (1479): "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", por Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada; Sinapis Editores, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a esta reportagem sobre os desafortunados onze meses de conflito político-militar que abanou a Guiné pelos alicerces. Há qualquer coisa de drama shakespeariano neste presidente Nino que vai sendo gradualmente deixado só, obrigado a recrutar uma tropa de choque de gente desempregada, os "Aguentas", e que na hora da capitulação, em maio de 1999, é trazido pelo embaixador português que o foi encontrar transido de medo numa instituição da Igreja Católica. Samba Bari, há que reconhecer, escreve meticulosamente todo este rol de eventos, de entendimentos e acordos ruidosamente celebrados e rasgados no dia seguinte, isto enquanto a Junta Militar se vai apoderando do país e recebendo cada vez mais apoio popular. Há pontos da historiografia guineense em aberto e nenhuma investigação até hoje explicou como este tirano odiado em 1999, exilado em Portugal, regressa em 2005 e é espetacularmente recebido, desarvorando uma nova fase belicista, com um corolário de assassinatos, de que ele próprio será vítima. E dentro do nevoeiro continuam as estruturas do PAIGC, estes quadros indecifráveis que se odeiam uns aos outros e querem alcandorar-se a postos que lhes sirvam a ganância, e o mistério ainda fica mais completo porque o povo lhes dá o voto.

Um abraço do
Mário



Um guineense usa a reportagem para contar o conflito político-militar de 1998-99 (2)

Beja Santos

O conflito despoletado em 7 de junho de 1998, na sequência da demissão imposta por Nino a Ansumane Mané, ainda por cima com a grave acusação de que o lendário Bric-Brac contrabandeava armas para os sublevados do Casamansa iria estender-se por penosos onze meses, com ondas de terror, populações em fuga, movimentações diplomáticas em catadupa, acordos celebrados e rapidamente violados. Samba Bari, um guineense que vivia no estrangeiro na época deste conflito político-militar que deixou sequelas até ao presente, elaborou em jeito de reportagem A Guerra de Bissau, Sinapis Editores, 2018. Não esconde que a leitura de todos estes acontecimentos relacionados com devastação e gradual empobrecimento da Guiné-Bissau pode contribuir para que mentes abertas saibam extrair ensinamentos positivos para uma retoma que obedeça a reconciliação, perdão e sentido de um desenvolvimento a pensar nos mais carenciados.

Das razões antigas e próximas do conflito, Samba Bari dá-nos uma síntese. Há uma omissão no seu olhar que não é incomum aos guineenses, até hoje, que eu saiba, não se analisou a fundo a natureza social do PAIGC e dos seus quadros após o golpe de Estado de novembro de 1980. Uma liderança despótica, onde pululam favoritos e o receio de políticos concorrentes, recheada de casos de corrupção, com a destruição a frio de todos os projetos e muitas das infraestruturas provindas da era de Luís Cabral, obrigatoriamente que leva à constituição de fações e projetos com largas diferenças. Nesta nova classe política não há estudos efetuados, os quadros do PAIGC e a sua visão do Estado permanecem no nevoeiro.

O autor passa em revista as primeiras hostilidades, as tentativas de mediação, os tiros de artilharia que vão arrasando embaixadas e hospitais, as iniciativas para criar corredores humanitários, fica bem claro que Nino Vieira ainda manda na península de Bissau, está cercado pela Junta Militar, angariou ódios com o pedido da intervenção estrangeira, até os velhos combatentes da luta armada voltaram a pegar em armas. As fidelidades a Nino vão-se quebrando e pelo passar dos meses a Junta Militar vai-se assenhoreando do resto do país.

Elencam-se as negociações diplomáticas e os compromissos que ninguém irá respeitar. Ansumane Mané torna-se mediático, recebe jornalistas estrangeiros a escassos quilómetros do Palácio Presidencial, circula livremente entre Bissalanca e o Cumeré. Os senegaleses tornam-se odiados, pelos crimes praticados, pela violência das suas destruições, numa atitude bárbara devastaram cerca de dois terços do património histórico da Guiné-Bissau, guardado e conservado no INEP. Em agosto, falhado o memorando de entendimento assinado pelo governo guineense com a Junta Militar, sob os auspícios, entre outros, da CPLP, a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) consegue obter temporariamente tréguas, toda a sociedade civil guineense se movimenta a reclamar paz. A hostilidade ao Senegal passa para a França. Vem a lume a notícia de que o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês possuía um relatório exclusivo sobre o regime de Bissau, com informações incendiárias: a situação caótica da administração pública; a fraude nas eleições presidenciais e legislativas de 1994; o estado de penúria em que se encontravam as Forças Armadas; o desvio de muitos milhões de dólares durante o processo da troca do peso para o franco CFA; os assassinatos políticos (com os nomes das vítimas e dos seus carrascos); a corrupção generalizada dos membros do governo em ligação com o mundo dos negócios; o tráfico da droga, a venda de passaportes a grupos do crime organizado internacional… Há desmentidos, mas para a opinião pública não há fumo sem fogo.

Sucedem-se os precários cessar-fogos, viaja-se para Banjul, Abidjan, Sal, Abuja, assinam-se papéis que são rasgados no dia seguinte. Nino não quer perder poder mas toma consciência que o seu mando é precário e circunscrito, aceita em Abuja que se forme um governo de unidade nacional, contrafeito aceita o nome de Francisco Fadul para primeiro-ministro. Novas peripécias, de novo a violação do acordo. E no último dia de janeiro de 1999 os canhões voltam a despejar metralha sobre Bissau, o Hospital Simão Mendes foi severamente atingido, falta material médico, marcam-se tréguas para que mais habitantes abandonem a cidade. As duas únicas emissoras ativas na Guiné, a Rádio Nacional e a Rádio Bombolom clamam pela guerra, é preciso aniquilar a parte contrária. A comissária europeia Emma Bonnino viaja até à Guiné e na sua presença Nino e Ansumane Mané prometem voltar à paz. O governo de unidade nacional toma posse, insiste-se na saída dos senegaleses, apela-se a que a CEDEAO nomeie outra força de interposição.

Fadul vem à Europa, pede apoios, à volta da Guiné as tensões não param: é o Senegal e o Casamansa, são os receios de Dacar de ver denunciado o acordo de partilha da zona comum de exploração petrolífera, em que Nino se rendera claramente aos interesses do Senegal; são os interesses da França em intervir em Bissau, quer proteger a Elf na Guiné; a própria Guiné Conacri saíra totalmente humilhada no assalto a Fulacunda quando a população pôs o contingente do país vizinho em fuga. Nino, cada vez mais isolado, recruta gente desempregada como tropa de choque, são os “Aguentas”. A 6 de maio, a Junta Militar exige a redução desta guarda pessoal de Nino, ele rejeita categoricamente, reforça-a e reequipa-a. Foi a última gota de água, as tropas da Junta Militar investem sobre Bissau, em menos de 24 horas assumem o controlo da cidade e todo o território guineense. Escreve o autor que num derradeiro ato de desespero das tropas fiéis a Nino Vieira, um bombardeamento criminoso e indiscriminado fez trinta vítimas, as quais se haviam refugiado num centro de formação profissional mantido pela Igreja Católica no Alto Bandim.

Infelizmente, o resto é história bem conhecida, pilhagens, incêndios, mais humilhações para os franceses, Nino refugia-se na embaixada de Portugal, a Junta Militar triunfa. Segue-se o seu reconhecimento, há o gesto de pacificação, os “Aguentas” não serão perseguidos; Malam Bacai Sanhá, Presidente da Assembleia Nacional Popular, é empossado como Presidente da República interino, Francisco Fadul recusa perseguições a Nino, este recebe asilo político em Portugal. Mas os sobressaltos irão continuar e os episódios mais recentes não são verdadeiramente abonatórios. Kumba Yalá ganhará as eleições presidenciais, novo desastre; Ansumane Mané confronta-se com novo poder, acabará executado a sangue-frio. Indo por aí fora, em 2005, Nino regressa à Guiné e será reeleito, seguem-se assassinatos em cadeia até chegar a hora do seu, em 2009. Verdadeiramente, a normalização democrática só chegará em 2014 com a eleição de Jomav, se bem que o seu mandato tenha tido um final um tanto turbulento, é um tempo de paz, em que se irá revelar a heterogeneidade de tendências dentro do PAIGC, o tal mistério sobre o qual não há nenhuma investigação que permita dizer quais as tendências dominantes dentro desse partido político que continua errático e sempre com conflitos internos ininteligíveis para os estudiosos e para o povo guineense.

____________

Notas do editor:

Vd. poste de 22 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23544: Notas de leitura (1477): "A Guerra de Bissau, 7 de Junho de 98", por Samba Bari, um guineense diplomado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada; Sinapis Editores, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): as aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."