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quarta-feira, 1 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25466: Fichas de unidade (35): BCAÇ 2856 (Bafatá, 1968/70)




BCAÇ 2856  (Bafatá, 1968/70). Guião e brasão. 
Fonte: Cortesia de Carlos Coutinho (2009)

Ficha de unidade > BCAÇ 2856

Batalhão de Caçadores n.º 2856
Identificação: BCaç 2856
Unidade Mob: RI 2 - Abrantes
Cmdt: TCor Inf Jaime António Tavares Machado Banazol | 2.° Crndt: Maj Inf Virgílio Martins Raposo | OInfOp/Adj: Maj Inf Fernando Xavier Vidigal da Costa Cascais

Cmdts Comp:
CCS: Cap Inf Raúl Afonso Reis
Cap Art José Gamaliel Borges Alves
CCaç 2435: Cap Inf José António Rodrigues de Carvalho | Cap Inf Raúl Afonso Reis
CCaç 2436: Cap Inf José Rui Borges da Costa
CCaç 2437: Cap Mil Inf Celestino Castro Fontes
Divisa: "Nunca diga o inimigo não o vi" 
Partida: Embarque em 23out68; desembarque em 28out68 | Regresso: Embarque em 1out70

Síntese da Actividade Operacional

Em 2nov68, rendendo o BCav 1905, assumiu a responsabilidade do Sector L2, com sede em Bafatá e abrangendo os subsectores de Fajonquito, Contuboel, Geba e Bafatá.

Desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamentos, reconhecimentos, emboscadas e batidas por forma a impedir a infiltração e fixação do inimigo na zona, exercer a vigilância e controlo dos itinerários e promover a autodefesa e segurança das populações. Nomeadamente em reacções a ataques aos aquartelamentos e nas operações "Vitória Certa", "Alerta", "Impacto" e "Infalível", entre outras, demonstrou excelente capacidade ofensiva e prontidão das subunidades utiliizadas.

Dentre o material capturado mais significativo, salienta-se: 9 pistolas-metralhadoras, 3 espingardas, 65 granadas de armas pesadas e 2135 munições de armas ligeiras.

Em 13ag070, foi rendido no sector pelo BArt 2920, recolhendo seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***
A CCaç 2435 seguiu imediatamente para o subsector de Quinhámel a fim de efectuar a sobreposição e render a CCav 1649, assumindo em 18nov68 a responsabilidade do referido subsector, com destacamentos em Ilondé, Ponta Vicente da Mata, Ondame e Orne e ficando integrada no dispositivo do BCaç 1911, com vista a garantir a segurança e protecção das instalações e das populações da área.

Em 7dez68, foi substituída pela CCaç 1681 e seguiu para a zona Leste, a fim de render a CCav 1685, tendo assumido, em 14dez68, a responsabilidade do subsector de Fajonquito, com pelotões destacados em Cambajú e Sumbundo, este até finais de Jul69 e ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 20abr70, por troca com a CCaç 2436, assumiu a responsabilidade do subsector de Contuboel, com dois pelotões destacados em Sare Bacar.

Em 13go70, foi rendida pela CArt 2741, mantendo entretanto dois pelotões em Contuboel em reforço da guarnição local até meados de set70, tendo seguido para Bissau e depois para reforço do subsector de Nhacra.

Em 25set70, voltou a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A CCaç 2436 ficou inicialmente colocada em Bissau, substituindo a CCav 1650, ficando integrada no dispositivo do BCaç 1911, com vista à segurança e protecção das instalações e das populações da área.

Em 4dez68, foi substituída pela CArt 1689 e seguiu para Galomaro, tendo assumido temporariamente a responsabilidade do respectivo subsector, então criado na zona de acção do BCaç 2852.

Em 24dez68, foi substituída em Galomaro pela CCaç 2405 e foi colocada seguidamente em Contuboel, a fim de reforçar a guarnição local e assumir a função de subunidade de intervenção e reserva do sector, sob responsabilidade do seu batalhão, tendo tomado parte em patrulhamentos e acções nas regiões de
Quique e Caresse, entre outras e ainda na operação "Mabecos Bravios", do Agr 2957, de 2 a 7fev69.

Em 18fev69, com a saída da CCav 1748, assumiu a responsabilidade do subsector de Contuboel, com um pelotão destacado em Sare Bacar, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 20abr70, por troca com a CCaç 2435, assumiu a responsabilidade do subsector de Fajonquito, com um pelotão destacado em Cambajú.

Em 13Ago70, foi rendida pela CArt 2742, mantendo entretanto dois pelotões em Fajoquinto até meados de Set70, para realização de patrulhamentos e acções nas regiões de Caresse e Quenható e seguiu, por fracções, para Bissau, onde permaneceu a fim de aguardar o embarque de regresso.

*** 

A CCaç 2437 ficou inicialmente colocada em Bissau, em reforço temporário do BCaç 1911, a fim de colaborar na segurança e protecção das instalações e das populações da área.

Em 4nov68, rendendo a CCaç 1690, assumiu a responsabilidade do subsector de Geba, com pelotões destacados em Cantacunda, Sare Banda e Sare Ganá, este até princípios de dez68, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 13ago70, foi rendida pela CArt 2743, mantendo entretanto dois pelotões em Geba até à segunda semana de Set70, para realização de acções na região de Bucol-Mansaina e seguiu, por fracções, para Bissau, onde permaneceu a aguardar o embarque de regresso.

Observações: Tem História da Unidade (Caixa nº 111 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 121/123.

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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25179: Fichas de unidade (34): CCAÇ 797 (Tite, São João e Nhacra, 1965/67)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24807: Notas de leitura (1629): "Memórias de um Combatente na Guiné de 69/71", por Diogo Aloendro; 5livros.pt, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Um relato memorial de quem passou a sua comissão militar na região de Nova Lamego, conta os antecedentes, como se formou antes de ir para a guerra, desvela como aqueles pontos da região Leste passaram da acalmia à turbulência. É uma narrativa serena, não há para ali prosápias nem arroubos heroicos, o que o António Henriques de Matos desejava era preparar os seus soldados para terem a quarta classe, foi um sucesso completo. Manifesta um pleno orgulho em ter concluído em regime noturno o curso liceal e a licenciatura em economia, depois da vinda da Guiné, trabalhou num banco prestigiado mais de 40 anos, chegara a hora de pôr por escrito a sua vida militar e as suas recordações do Gabu.

Um abraço do
Mário



Memórias de um combatente na Guiné (1969-71), por Diogo Aloendro

Mário Beja Santos

Diogo Aloendro é pseudónimo de António Henriques de Matos, fez parte do BCAÇ 2893, pertenceu à CCAÇ  2618, e escreveu agora as suas memórias, 5livros.pt, 2021. Dá-nos conta da sua vida de furriel atirador desde a recruta nas Caldas da Rainha, a especialidade em Tavira, a passagem pela Amadora, a ida para Chaves formar batalhão, e depois toda a sua comissão na região de Nova Lamego. Deixa-nos belos parágrafos de profundo afeto por quem o tratou bem em Lisboa, para onde emigrou aos quinze anos, não esqueceu as vicissitudes da sua formação militar, as novas formas de camaradagem, largados na Serra do Caldeirão com alguns instrumentos de orientação e rações de combate, chuvas inclementes, e guardou memória de um episódio de terem andado por sítios inóspitos, ali estava todo encharcado e apareceu alguém a convidá-lo a entrar para secar a roupa e descansar um pouco, uma senhora convidou-o a ir ao quarto do filho e vestir um pijama. Observou que o quarto estava impecavelmente arrumado e com a cama feita, tinha numa das paredes uma moldura de um soldado, vestiu o pijama, entregou à dona de casa a farda encharcada, comeu um caldo à mesa com o casal. O filho tinha falecido havia dois anos, morto em combate na Guiné.

São parágrafos tocantes:
“O quarto mantinha-se tal qual ele o deixou na última noite que ele lá dormiu. Não estávamos preparados para tamanha desgraça. Levaram-nos o nosso filhinho que era tudo o que tínhamos Como poderemos suportar esta dor, sabe explicar-nos?
– Ninguém sabe explicar – desabafava a mulher – numa voz sofrida. Ninguém sabe, acrescentava, como que a pensar alto. Soletrava estas frases com os olhos tristes já sem lágrimas para verter, enquanto o seu homem a aconchegava no ombro pedindo-lhe, carinhosamente, força e ânimo para o ajudar também a ele, a suportar o desgosto.”


Ele não podia aceitar dormir na cama do filho, acabou por ir descansar num barracão onde havia palha no chão. E na manhã seguinte juntou-se aos seus camaradas para continuar a subir e descer na Serra do Caldeirão. Concluída a especialidade, foi enviado para Beja, depois para o Regimento da Infantaria 1, na Amadora, mobilizado para a Guiné foi formar batalhão em Chaves. Continuava a estudar, queria concluir o sétimo ano.

Em novembro de 1969 chega à Guiné. Descreve Nova Lamego, é ali que está a sede do batalhão:
“Era uma pequena cidade implantada ao longo de uma rua principal, que se confundia com uma estrada, à imagem do que aconteceu na formação das nossas aldeias e vilas. Aqui se encontravam algumas casas de betão, a sede da Administração, composta pelo Comando Administrativo. Para além deste edifício, havia uma casa comercial, um cineteatro e o quartel militar, um edifício colonial de dois pisos, que servia de instalação ao Comando do batalhão. Contíguo a este edifício na parte de trás, existia uma vasta área onde se localizavam as casernas e alguns espaços, como sendo um campo para jogar futebol de salão. Nestas casernas se instalaram duas companhias. Vivia-se então um estado de acalmia.
Não fossem as preocupantes notícias, trazidas pela tropa que aportava a Nova Lamego, onde se vinham abastecer, ou de passagem para os respetivos aquartelamentos, nada se passava naquele paraíso”.

Lê, escreve e estuda. Tendo ficado órfão de pai aos oito anos de idade, dedica-lhe uma elegia, uma conversa em voz alta no fulgor das recordações de quando era petiz, gostaria muito de um dia ir à Angola visitar-lhe a campa.

Cabe-lhe fazer patrulhamentos à volta de Nova Lamego, há um pelotão que está destacado em Canssissé, este a cerca de 40 km da sede do batalhão. Fazem-se patrulhamentos diários, o objetivo era impedir as movimentações dos guerrilheiros, recorda que Madina do Boé fora abandonada em fevereiro de 1969, ficara uma grande área a descoberto para infiltrações. Surgem situações inesperadas, por vezes caricatas, barulhos dentro da mata, pensa-se inicialmente que vai haver confronto com grupo guerrilheiro, afinal é um grupo de javalis que passa a tropel. Descreve minuciosamente esses patrulhamentos, perto e longe de Nova Lamego, os contactos com o inimigo são esporádicos. O comandante do pelotão entra em depressão, foi hospitalizado depois de uma emboscada, é ele que assume interinamente as funções de comandante.

Decide dar aulas aos soldados que ainda não possuem a quarta classe, constituíam a maioria, é por essa altura que o pelotão do Matos é destacado para Cansissé, descreve a povoação e o sistema defensivo, as casernas dos soldados eram feitas de lona, a situação era um pouco melhor para furriéis e alferes. Não perde oportunidade de descrever as alegrias no recebimento do correio. E dá a compreensível importância às aulas para se chegar ao exame da quarta classe. “Achei mais apropriado ter apenas uma sessão diária de duas horas em simultâneo para ambos os alunos, logo após o pequeno-almoço, o rancho da manhã. Tinha inscrito catorze alunos para a quarta classe e dois cabos e um soldado propunham estudar para fazerem o primeiro ciclo, ou seja, o primeiro e o segundo ano, a fazer num só ano. Do nosso pelotão de trinta soldados, vinte e sete e três cabos, pelo menos, catorze, não tinham a quarta classe”. E dá-nos conta de como implantou o método mais adequado e obteve apoio do batalhão para adquirir livros. A vida em Canssissé podia não ser o paraíso, mas não havia flagelações, não se esquece de nos contar as desinteligências e até homicídios entre civis. Fizeram-se obras, apareceu o heliporto. E de Canssissé regressam a Nova Lamego. Continua a estudar e irá fazer exames no Liceu Honório Barreto.

A vida calma naquela região do Leste da Guiné vai conhecendo sobressaltos. Chegou a hora do pelotão do Matos provar uma mina anticarro, felizmente sem danos mortais. As coisas parecem complicadas em Pirada e Buruntuma. Foi o que aconteceu quando o pelotão do Matos foi até Cabuca, tudo parecia estar a correr bem, não picaram no regresso, uma mina anticarro rebentou no rodado da GMC.

Já se passou um pouco mais de um ano da sua comissão, como muitos outros autores ele vai acelerar a prosa, descreve sumariamente a ação psicológica nas tabancas à volta de Nova Lamego, os patrulhamentos, há depois o ataque a Nova Lamego, aparecem os mísseis, e o Matos vai dar instrução a pelotões de milícias em Contuboel, experiência que lhe agradou imenso. Ainda voltou a Cansissé, a comissão está praticamente no fim, já estão no Cumeré a aguardar embarque.

Concluída a viagem, frente ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, sente a diferença do que vivera dois anos antes:
“Não voltaram ao cais os familiares dos camaradas que lá perderam a vida. O desespero, os gritos e desânimo de quantos, há dois anos se vieram despedir, contrastava com a alegria incontida, em cada abraço que se multiplicavam no cais da nossa esperança”.

Igreja de Nova Lamego, Foto Serra, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24799: Notas de leitura (1628): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24579: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (3): Abílio Duarte, ex-fur mil art, CART 2479 / CART 11, “Os Lacraus” (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) - Parte II


Foto nº 13  > Capa do álbum da minha saudosa mãe, "Honra e Glória"


Foto nº 14 >  A foto da ordem, a farda nº 1, emprestada...


Foto nº 15  > Eu e o famoso e afamado Pechinchado meu pelotão, o 3º, CART 2497 / CART 11 (1969/70); era  fur mil op esp, e desenhador na vida civil...
 

Foto nº 16 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2497 / CART 11 (1969/70) > O Abílio Duarte na messe, em Nova Lamego, decorada pelo Pechincha, lendo a revista brasileira "O Cruzeiro"...


Foto nº 17 >  Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2497 / CART 11 (1969/70) > Uma parelha de Fiat G-91 na pista de Nova Lamego


Foto nº  18 > Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel  > CART 2497 / CART 11 (1969/70) >1969 > Praia de Contuboel, no rio Geba





Fotos nº 19  e 19A>  Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2497 / CART 11 (1969/70) > Vista aérea de Piche... Pormenor do espaldão do obus, valas e abrigosSão visíveis, para além das instalações do perssoal e o perímetro de valas que circundavam o aquartelamento.

(...) Era um quartel novo, com razoáveis instalações para a CCS e para mais duas companhias operacionais. Tinha água canalizada e gerador elétrico. As instalações do quartel incluíam trincheiras, base de fogos do morteiro 81, três peças 11,4 e as habituais casernas, messe, cozinha e posto de socorros, tudo rodeado por arame farpado, com a respetiva Porta de Armas" (...)  (Mendes Paulo, maj cav, 1932-2006)...


Foto nº 20 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego ou Piche (?)  > CART 2497 / CART 11 (1969/70)  > Corte de cabelo, do soldado que, para mim, era um mistério: pessoa muito recatada, os outros obedeciam-lhe, sem qualquer dúvida; muito calmo, dialogante, julgo agora que ele era um líder religioso.


Foto nº 21 > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Setor L6 (Pirada) > Paunca >  CART 2479 / CART 11 ( 1969/70) > Cerimónia do Ramadão de 1970 em Paunca. Nesse ano o Ramadão começou a 31 de outubro e terminou a 30 de novembro.


Foto nº 22 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > CART 2479 / CART 11  (1969/70) > Algures  >  Uma aldeia atacada e destruída pelo IN...


Foto nº 23 > Guiné > Zona Leste > s/l  >    CART 2479 / CART 11  (1969/70)  > Algures no Corubal... Foto do 3º Pelotão: ao centro,  Abílio Duarte bebe água...   

(...) A nossa companhia foi constituída por soldados de 2ª linha, provenientes da evacuação de Madina do Boé, Cheche e Beli, ao sul do Rio Corubal.

Foi dada instrução militar, em Contuboel, donde se formaram duas Companhias de Fulas [CART 11 e CCAÇ 12] e um Pelotão de Mandingas, que foi depois enviado para a Zona de Bambadinca e Xime.

A nossa Companhia era comandada, pelo cap mil Analido Aniceto Pinto  [já falecido, trabalhou na Petrogal, com o Tony Levezinho, por exemplo],  que muito considero, pois alinhou sempre.

Depois da Formação e Juramento de Bandeira em Bissau, fomos colocados no Leste da Guiné como força de Intervenção subordinada ao Com-Chefe, e depois ao COP 5 de Bafatá.

Durante 14 meses de Operações Militares de toda a espécie, Nomadizações, Colunas, Emboscadas, Segurança na Fronteira com o Senegal, Apoio Logístico no conflito de Buruntuma (Fronteira com a Guiné-Conakri) e Apoio no Deslocamento de Rebeldes de Nova Lamego até à Fronteira com a Guiné, para o Golpe de Estado contra Sekou Touré [, Op Mar Verde], tudo foi feito com dignidade e honra" (...).




Fotos nº 24  e 24A > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Paunca  >   CART 2479 / CART 11  (1969/70) >  "Eu, dentro do possível, fazendo psico"...


Foto nº 25 > Guiné > Zona Leste > Regiáo de Gabu > Paunca>   CART 2479 / CART 11  (1969/70) >  "Refrescando-me no SPA de Paunca"... [O depósito de água é um bidão de gasolina da SACOR, Bissau]


Foto nº 26 > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Paunca>   CART 2479 / CART 11  (1969/70) > A nossa cozinha...



Foto nº 27 > Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Paunca> CART 2479 / CART 11 (1969/70) > Na suite do Ali Babá em Gabu (Nova Lamego).





Foto nº 28 > Moita, Praia do Rosário > 13 de maio de 2023 > CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus", 1969/70 > Convívio >  Um grupo de resistentes... O primeiro da esquerda para a direita, na primeira fila (sentados): eu, Abílio Duarte, o Pais de Sousa, o Manuel Macias, o Alf Martins e um camarada condutor, que agora não recordo o seu nome. De pé, e também da esquerda para a direita: o Pechincha, o Silva, o Reina, o Saraiva, o Artur Dias e o Cândido Cunha.

Fotos (e legendas): © Abílio Duarte (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda (e última) parte de uma seleção das fotos (*) do Abílio Duarte, ex-fur mil art MA, CART 2479 (mais tarde CART 11 e finalmente, já depois do regresso à Metrópole do Duarte, CCAÇ 11), "Os Lacraus" (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70).

Faz parte da Tabanca Grande desde 27/8/2010. Tem cerca de 7 dezenas de referências no blogue. Esteve no CTIG de fevereiro de 1969 e a dezembro de 1970.

Na CART 2479/CART 11 havia vários militares equipados com máquinas fotográficas além do Abílio Duarte, o ex-fur mil Cândido Cunha, o ex-1º ccabi trms Pais  (já falecido) e o  ex-alf mil Pina Cabral (também já falecido). Infelizmenmte destes quatro nomes, só o Abílio é membro da nossa Tabanca Grande.

Bancário reformado, residente na Amadora, o Abílio Duarte continua a fazer alguma fotografia, nomeadamenmte por ocasião dos convívios anuais dos "Lacraus". As fotos agora selecionadas são provenientes dos postes abaixo identificados (**)

2. Sobre a primeira máquina fotográfica Canon que comprou a bordo do T/T Timor, escreveu ele:

(...) Entrando na tertúlia das máquinas fotográficas, não quero deixar de deixar algumas palavras sobre a minha CANON.

Comprei-a a bordo do navio que nos levou à Guiné, o "Timor", e que me acompanhou em toda a comissão, tendo ido muitas vezes para o mato.

Foi a minha 1.ª câmara, que me despertou muito para a actividade de fotógrafo, e com ela tirei centenas de fotos e slides. Aprendi o que era abertura vs velocidade, grandes planos, campo de profundidade, etc.

Era uma máquina bastante resistente e tinha um bom estojo, que a salvou de muitas quedas, e apanhou bastantes chuvadas. Tive-a até bastante tempo depois de regressar, mas um dia caiu e já não teve conserto, para tristeza minha. (...)

Uma coisa que estranhei, quando estava na Guiné, é que quando mandava slides para revelar, para a Alemanha, nunca me desapareceu nenhum rolo, o que na altura me deixava bastante satisfeito. (...)


3. Comentário do editor LG (ao poste P15886):

(...) Abílio, então ouve lá: não sabes se as fotos "etnográficas" são de Piche, Contuboel, Nova Lamego ou Paunca...? Sei que passaste por muitos sítios, mas, vá lá, faz um esforço de memória... 

Eu sei que, quando a gente mandava a uma foto à família, não tinha a preocupação de mandar uma legenda completa... Uma foto era apenas uma forma de "prova de vida"... Se tivesse algum "exotismo", melhor... "Eu e bajudinha", "eu e o homem grande", "eu, junto ao rio Geba, a pensar no rio da minha aldeia"... E "já só faltam 600 dias para vos beijar e abraçar!"... O que eram 600 dias na vida de um homem, mobilizado para defender as costas dos grandes senhores do império?!...

Para a família, a milhares de quilómetros de distância, fazia alguma diferença que a gente tivesse em Paunca ou Piche?!... Coitados dos nossos pais, irmãos e amigos, eles sabiam lá onde ficavam esses lugarejos do fim do mundo!... Eles sabiam lá onde ficava a Guiné, a não ser que ficava a cinco dias de viagem por barco!... E que havia mosquitos, crocodilos e "turras"...

Tirando eles, os nossos pais, irmãos e amigos íntimos, quem dos restantes 10 milhões de portugueses se preocupavam connosco!?... Só quem tinha filhos ou irmãos ou amigos íntimos na Guiné, no ultramar, na guerra!... (...)

Vd. poste inicial da série > 15 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24555: Por onde andam os nossos fotógrafos ?  (1): Luís Graça

(**) Fotos selecionadas de:

17 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24321: Facebook...ando (28): Convívio anual da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) em que apareceu, pela primeira vez, o Pechincha, que já não via desde 1969 (Abílio Duarte)

27 de abril de  2016 > Guiné 63/74 - P16023: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte V: A FAP no Gabu

<> 

22 de maqrço de 2016 > Guiné 63/74 - P15886: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte II

16 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15862: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte I

31 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14103: A minha máquina fotográfica (17): Comprei uma Canon no navio "Timor" e andei com ela muitas vezes no mato... Tirou centenas de fotos e "slides" (que mandava para a Alemanha, para revelar) (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 11, Nova Lamego, Paunca, 1969/1970)

14 de julho de  2014 > Guiné 63/74 - P13399: Efemérides (164): O Ramadão de 1970 em Paunca (Abílio Duarte, ex-fur mil art, CART 2479 / CART 11, Os Lacraus, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

2 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12380: O que é que a malta lia, nas horas vagas (2): a revista brasileira, ilustrada, "O Cruzeiro" (Abílio Duarte, ex-fur mil art da CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

13 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11092: Álbum fotográfico de Abílio Duarte (fur mil art da CART 2479, mais tarde CART 11/ CCAÇ 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paúnca, 1969/70) (Parte II)

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23360: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (5): A principal fonte de energia (c. 85%) ainda é a proveniente da biomassa (lenha, carvão vegetal...)


Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Molhos de lenha, à beira da estrada, no K3. A lenha e o carvão são levados para Bissau para que não falte na época das chuvas na casa das famílias... 90% das famílias de Bissau ainda os utilizam como combustível nas suas cozinhas. Apesar do grande potencial do país em matéria de energias renováveis... 

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P23350 (*):

Em relação a foto acima reproduzida, e baseando-se em dados oficiais do Ministério da Energia e Recursos Naturais de 2018, estimava-se que o perfil energético da Guiné-Bissau fosse o seguinte: 
  • 70-72%: Lenha; 
  • 14-15%: Carvão vegetal com utilização de fogões tradicionais e melhorados; 
  • 10-12%: Electricidade e produtos petroliferos 
  • 1-4 %: Renováveis (energia solar). 

De notar que estes dados não são muito diferentes dos dados apresentados no estudo,  citado por Luis Graça,  da ONGD ALER,  de 2017 [Vd. excerto abaixo publicado, no ponto 2].

Apesar de haver varios projetos em carteira para a instalação de centrais fotovoltaicas no país, todavia ainda só funcionam em Contuboel, Bambadinca e Bissorã com alguns problemas técnicos e de gestão e, sobretudo, muitas queixas dos beneficiários,  seja pela quantidade/quantidade, seja pelas tarifas praticadas, num contexto de muita pobreza e onde quase sempre se esperava acontecer uma distribuição gratuita, à moda da Suécia dos anos 70/80. (**)

Cherno Baldé

2. Excerto de artigo> 4 de dezembro de 2017 > ALER - Associação Lusófona de Energias Renováveis > Notícia > Geogios Xenakis > Programa Comunitário de Acesso a Energia Renovável de Bambadinca “Bambadinca Sta Claro”
 
(...) Geograficamente localizada na costa ocidental da África, a República da Guiné Bissau é um pequeno país de 36.125 km2, com uma população total de 1,45 milhões de habitantes, 60% dos quais concentrados em áreas rurais (Recenseamento Geral da População e Habitação-RHPH de 2009). 

A vila de Bambadinca, com 6,4 mil habitantes está localizada na região de Bafatá, 120 quilómetros a leste da capital Bissau.

A taxa de acesso à eletricidade da população na Guiné-Bissau é muito baixa: segundo o Plano de Ação no Sector das Energias Renováveis[1], em 2010 a taxa era apenas 11,5%, enquanto que na região da África subsaariana esta taxa cresceu de 23% em 2000 para 32% em 2012 [2].

 Bambadinca era abastecida por geradores diesel até 2007 que, entretanto, se tornaram obsoletos deixando 95% da população da vila sem energia elétrica.

Neste contexto complicado, a TESE-Associação para o Desenvolvimento implementou entre 2011 e 2015 o projeto “Bambadinca Sta Claro” em parceria (...). (***)

No âmbito do Programa Comunitário de Acesso a Energia Renovável de Bambadinca – “Bambadinca Sta Claro” uma mini-rede decentralizada foi construída na vila de Bambadinca, tendo sido desenvolvido e implementado o modelo de gestão para garantir a sustentabilidade do sistema.

A solução técnica trata-se de um serviço de energia decentralizado (off-grid) constituído por uma componente dedicada à produção de energia elétrica e uma rede de transporte e distribuição dedicada à entrega da energia à comunidade. 

A produção é conseguida de forma híbrida, graças a painéis fotovoltaicos e a geradores diesel (Central Fotovoltaica Híbrida – CFH). O consumo noturno é satisfeito através de baterias e se for necessário pelos geradores, como backup. A CFH tem três grupos idênticos, de uma potência total de 312kWp. O sistema garante o fornecimento de energia 24h a Bambadinca, conseguindo uma baixa utilização dos geradores.

Para garantir a sustentabilidade económica e social do projeto, a gestão é sustentada por uma parceria público-comunitária e neste contexto foi criado o Serviço Comunitário de Energia de Bambadinca (SCEB). A comunidade local tem sido envolvida no projeto desde o início, tanto na elaboração do modelo de gestão como na definição das tarifas e dos modelos de faturação. Em paralelo, foram implementadas campanhas de eficiência energética e de segurança elétrica, a fim de sensibilizar a população em termos de comportamentos a adotar a respeito de gestão do consumo e de segurança.

O SCEB tem atualmente mais de 650 clientes, entre residenciais, comerciais e instituições, garantido eletricidade 24h/dia, principalmente graças a uma fonte de energia renovável. 

O acesso à energia permite aos habitantes de Bambadinca aceder de novo a várias oportunidades económicas e sociais em termos de empregabilidade e educação. O sucesso do “Bambadinca Sta Claro” demostra a viabilidade dos projetos de eletrificação decentralizada com energias renováveis na Guiné-Bissau, em consonância com as políticas do sector nas áreas de desenvolvimento de energias renováveis e de acesso à energia.

Georgios Xenakis | Responsável Setorial Energia e Coordenador de Projetos

[1] Plano de Ação Nacional no Sector das Energias Renováveis (PANER, 2010)

[2] Africa Energy Outlook, 2014.
___________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 14 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23350: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (29): Por terras de Farim - II (e última) Parte: gentes e lugares


segunda-feira, 7 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23054: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - III (e última) Parte: 14-15 de junho de 1998, "lar, doce lar"...


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Instrução Militar de Contuboel > CCAÇ 2479 / CART 11 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece (mas parece ser uma cara "familitar", a de futuro soldado da CCAÇ 12) ... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas, anorte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...
 
Foto (e legeenda) © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > c. 1972/74 > Rua principal de Fajonquito. Foto do álbum do José Cortes, ex-Fur Mil At Inf (CCAÇ 3549, Fajonquito, 1972/74 

Foto (e legeenda) © José Cortes (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


III (e Última) Parte - De 14 a 15 de junho de 1998:  
De Bafatá a Fajonquito


por Cherno Baldé (*)


8º dia, 14 de junho, domingo, Bafatá: recordações dos tempos de estudante e da OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi (1975/79)

Na tarde do dia 14 de junho de 1998, uma semana depois do inicio da guerra ( a 7 de junho), chegámos à cidade de Bafatá. E durante a viagem, para já, o único acontecimento de relevo tinha sido o facto do jovem condutor decidir voltar, ainda, até Nhacra antes de virar o rosto do camião para leste. 

Tive medo sim, por algum momento, por causa dos imprevistos e imponderáveis a que estava sujeito qualquer veículo equipado de motor e assente sobre um monte de ferralha e rodas de borracha. Se acontecesse alguma avaria ao camião seria uma grande desgraça para nós que voltávamos para trás depois de termos alcançado lugares seguros. 

Era uma aventura perigosa. Para me acalmar, dizia a mim mesmo que não havia razão para entrar em pânico e repetia isso várias vezes à minha consciência, mas sempre que olhava para as crianças o medo voltava a me invadir de novo.

Ao atravessarmos a ponte de Finete, perto de Bambadinca, entrámos na zona controlada pelos governamentais que, a acreditar naquilo que tínhamos visto no caminho, oferecia maior segurança as populações civis. Junto à ponte estava um destacamento de tropas da Guiné-Conacri e alguns tanques de guerra dissimulados no meio do arvoredo. Tudo novinho em folha. 

Depois de Bantandjan, finalmente, chegámos à cidade de Bafatá.

Mas antes, o camião atravessou a ponte sobre um braço do rio Geba, por onde corria a água turva carregada de material orgânico com que fertiliza as bolanhas nas suas margens, passou pela antiga fábrica de cerâmica, atravessou a rua Porto, passando pelo Liceu, o nosso velho Liceu onde está situado o memorial de Amílcar Cabral e foi parar no Bairro de Sintchã Bonódji, na saída para Gabú.

Sem contar com o número de pessoas que tinha afluído a esta cidade leste do país, fugindo da guerra de Bissau, não se notava qualquer diferença. Sim, Bafatá era ainda a mesma cidade de sempre, preguiçosamente estendida no dorso de um planalto meio adormecido que tínhamos deixado 27 anos atrás, quando partimos para continuar os estudos em Bissau (em 1979).

Esta cidade não será, certamente, a pior localidade da Guiné, mas para mim foi um inferno durante uns longos anos dos quais conservo uma péssima recordação dos tempos de estudante. Aqui, de rafeiro saído de um antigo quartel de brancos e filho querido de um lojeiro de uma pacata aldeia que, no fulgor da sua inocência, pontapeava o prato de farinha de milho que a avó lhe trazia à noite, tinha-se transformado num verdadeiro cão vadio. Nunca e em lugar algum tinha merecido tanto este animalesco cognome.

Lembrei-me de Boma (situada à frente do quartel), suas árvores frondosas e a água fresca das suas nascentes onde íamos esconder-se das brasas do calor que arrasavam os Bairros situados na parte mais elevada do planalto e a Ponte Nova e onde, também, íamos enganar a fúria das nossas fomes insaciáveis de estudantes sem tecto, fingindo estudar. 

O guarda da plantação de mangueiras e cajueiros nas profundezas de Boma cujo nome era Sekuel (1), nos conhecia de cor e deixava-nos assaltar a sua horta, na certeza de que não adiantava muito tentar impedir-nos. Era uma pessoa dotada de grande humanismo e de bom senso, vacilando entre as suas obrigações de guarda e os sentimentos de piedade para com crianças deserdadas. No princípio ainda tentou, mas rapidamente teria notado que, empurrados pela fome, a nossa insistência e capacidade de resistência eram fora do comum.

 Não tínhamos alternativa. Acabou por nos aceitar como se aceita a presença de animais roedores dentro da própria casa. De facto, durante mais de cinco anos, conseguimos sobreviver graças a nossa perícia em roubar e mendigar peixe e frutas, ora nos mercados ora nas hortas à volta da Cidade.

Foto à esquerda: OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi. Foto de perfil, página do Facebook (com a devida vénia...)


Ali estava Bafatá com os seus habitantes avaros e a sua juventude implacável que aceitava mal a invasão da mocidade mal fardada,  vinda das tabancas ao seu redor a quem apelidavam de mocidade treco (2). 

O certo é que, por qualquer razão, as nossas fardas destoavam sempre dos da cidade. Foi assim no tempo da mocidade portuguesa e foi assim com os pioneiros Abel Djassi. A farda era a mesma, mas a tonalidade das cores era sempre diferente. As meias, calções e sapatilhas não eram tão castanhos como se devia, a camisa era verde ou azul mas não tão verde ou azul como se devia e isto era motivo de chacota e de corre-corre entre os jovens incautos que tinham aceitado a aventura das paradas e acampamentos na cidade. Faziam-no de propósito, para se divertir.

Vindos de Contuboel, Gabú, Sonaco, Cossé, Pirada, Bajocunda, Paunca, Pitche, Bambadinca, Quebo, entre outras localidades, e abandonados numa cidade inospitaleira, o nosso bando era formado por jovens de todas as regiões, de todas as cores, com uma particularidade bem marcante. Todos tinham nascido e crescido com a guerra colonial e todos eram originários de antigos centros de aquartelamento de tropas portuguesas e muitos tinham aprendido as primeiras letras com soldados e oficiais portugueses.

Esta era, para todos os efeitos, a primeira geração formada nas escolas portuguesas dentro da comunidade Fula e talvez de todos os grupos étnicos (chamados gentílicos) na zona leste da Guiné-Bissau. 

A administração portuguesa só tardiamente (com o General Spínola), se tinha resolvido a seguir os conselhos de Teixeira Pinto, ainda no princípio do século XX, de criar escolas para os nativos em todos os postos militares, convencido que, a coragem e irredutibilidade do Guinéu estaria ao mesmo nível do seu obscurantismo (R. Pélissiér – História da Guiné).Mas, no fim, foram o PAIGC e a independência que colheram os louros da formação de quadros,  iniciada na década de 60 e acelerada a partir de 70.

Quando apanhavam um dos nossos durante os saques, os outros vinham em grupo ajudar o companheiro infeliz. Tínhamos regras a que éramos muito fieis, ajudar um ao outro e nunca faltar às aulas, com ou sem fome. Era a mesma lógica no enfrentar das situações de perigo e de necessidade. Roubar ou morrer de fome.


9º dia, 15 de junho, segunda feira, Fajonquito:  "lar, doce lar"...

A nossa estadia em Bafatá, não demorou muito, estávamos apressados. Dormimos uma noite e na manhã seguinte partimos para Fajonquito

Antes de partir, acompanhámos a Djenaba e as suas crianças a fim de apanharem o transporte que os conduziria até Bambadinca donde partiriam para a aldeia dos pais em Cacine, no sul do país. Despendi parte do meu dinheiro para os ajudar a alimentar-se durante o trajecto que seria, longo e, certamente, difícil nessa altura. (Distância Bambadinca-Cacine, 103 km).

Podia estar orgulhoso do meu trabalho, pois apesar das dificuldades, tinha conseguido tirar de Bissau duas famílias, ou seja,  10 pessoas. Também, já não restavam dúvidas que esta guerra iria durar. Foi com este pensamento que me despedi deles e da cidade de Bafatá, rumo à minha terra natal.

Engraçado, agora que estava a alguns quilómetros da minha tabanca, lembrei-me que o meu filho, nascido e criado na cidade, não sabia falar a nossa língua, como dizem os Fulas, era macaco que não sabia trepar

Também eu, alguns anos antes, não sendo filho de gente da cidade, quando me mudei para Bafatá, ainda não falava o crioulo. O meu filho fazia o percurso inverso num contexto e condições diferentes, porém, havia uma constante, era o mesmo país de sempre, a Guiné-Bissau como a Guiné de Cabo Verde, no desequilíbrio da balança, oscilando entre a guerra e a paz.
                                                                   
Bissau, de Junho a Dezembro de 2000
                                                                          
Cherno Abdulai Baldé
__________

Notas do autor:

(1) O sufixo el depois de qualquer nome na língua fula- Sekuel, Gadamael- Contuboel- significa pequenino e, logo, lindo. A beleza, entre os fulas, é algo intimamente associado ao que é pequeno, que não é grande.


5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22662: Fichas de unidades (21): CCAÇ 2592 / CCAÇ 14 (Bolama, Contuboel, Cuntima, Farim, Binta, Jumbembem, Canjambari, Saliquinhedim / K3, 1969/71)



Companhia de Caçadores nº  2592

Identificação: CCaç 2592

Unidade Mob: RI 16 - Évora

Crndt: Cap Inf José Luís de Sousa Ferreira

Divisa: -

Partida: Embarque em 24Mai69; desembarque em 30Mai69 | Extinção em 18Jan70

Síntese da Actividade Operacional

A subunidade foi constituída com quadros e especialistas metropolitanos e enquadrou pessoal natural das etnias Mandinga e Manjaca e ainda um pelotão da etnia Felupe, tendo efectuado a 2ª fase da instrução de formação no CIM, em Bolama [e em Contuboel, o pelotão de mandingas] e sido seguidamente utilizada em patrulhamentos, reconhecimentos e contactos com as populações da região.

Em 6Nov69, foi colocada em Cuntima [região do Oio, sector de Farim], a fim de substituir a CCaç 2529 como força de intervenção e reserva do BCaç 2879, tendo sido empregada em várias acções, patrulhamentos e emboscadas na linha de infiltração de Sitató.

Em 18Jan70, a subunidade passou a designar-se CCaç 14, sendo considerada subunidade da guarnição normal a partir daquela data.

Observações - Não tem História da Unidade.


Companhia de Caçadores nº 14


Identificação: CCaç 14

Cmdts: 

Cap Inf José Luís de Sousa Ferreira | Cap Inf José Augusto da Costa Abreu Dias | Cap QEO Humberto Trigo de Bordalo Xavier | Cap Inf José Clementino Pais | Cap Inf Mário José Fernandes Jorge Rodrigues | Cap Inf Vítor da Silva e Sousa | Alf Mil Inf Silvino Octávio Rosa Santos |  Cap Art Vítor Manuel Barata

Início: 18Jan70 (por alteração da anterior designação de CCaç 2592) | Extinção: 2Set74


Síntese da Actividade Operacional

Em 18Jan70, foi criada por alteração da sua designação anterior, integrando quadros e especialistas metropolitanos, e pessoal da Guiné, das etnias Mandinga e Manjaca e ainda um pelotão da etnia Felupe, que constituíam anteriormente a CCaç 2592.

Continuou instalada em Cuntima, nas funções de subunidade de intervenção e reserva do sector de Farim, com vista à actuação prioritária sobre a linha de infiltração de Sitató.

Após ter deslocado um pelotão para Farim, a partir de finais de Dez70, foi transferida para Farim em 20Fev71, depois de ter sido substituída, por troca, pela CArt 3331. 

Rendeu, na função de intervenção e reserva do sector, a CCaç 2533, com vista a realizar acções de contrapenetração no corredor de  Lamel. 

Destacou ainda pelotões para reforço temporário de outras guarnições, nomeadamente de Binta, de 25Abr71 a 12Jun71, Jumbembém e Canjambari.

A partir de 10Fev73, mantendo no entanto a sede em Farim e continuando orientada para a sua anterior missão assumiu, cumulativamente, a responsabilidade do subsector de Saliquinhedim, para onde deslocou um pelotão.

Em 2Set74, foi desactivada e extinta.

Observações - Tem História da Unidade a partir de Jan72 (Caixa n." 117 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pp. 382 e 634
____________

Nota do editor: 

Último poste da série > 7 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22607: Fichas de unidades (20): Batalhão de Comandos da Guiné (Brá, 1972/74), incluindo 1ª CCmdsAfr (1969/74), 2ª CCmdsAfr (1971/74) e 3ª CCmds (1972/74)

domingo, 24 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22655: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte X: "apanhado do clima", o fim da comissão e o difícil regresso à vida civil, em Coimbra (Jan - jun 1967)


Guiné > Região do Óio > Porto Gole > Fevereiro de 1967 > A melhor foto de que dispomos, no blogue, sobre o gen Arnaldo Schulz, governador e comandante.chefe (1964/68): aqui sentado,  ao lado do piloto do helicópetrio; pronto a partir depois de visita a Porto Gole;   no banco de trás, duas caixas de cerveja, Sagres e Cristal; à direita, o fur mil José António Viegas, do Pel Caç Nat 54, com camuflado paraquedista trocado com um camarada numa operação no Morés em outubro de 1966.

Foto (e legenda) : © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**). São onze ao todo os postes publicados no blogue, este será o penúltimo



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

Contuboel, 11 de Janeiro de 1967

Chegou alguma da tropa que nos vem render [, CCÇ 1500 / BCAÇ 1877, Fufar, Bolama, Cacheu, Teixeira Pinto Contuboel, 1966/67 ]. O Capitão Miranda, oriundo da Mealhada, também veio. Tenho dó deles. O restante pessoal só virá no dia em que nós daqui sairmos - de hoje a uma semana, que não há instalações para toda a gente. 

Neste momento procede-se à passagem de testemunho e das armas. Quando entreguei a minha, fiquei mais leve e mais livre. Mas sempre pensei que este dia há tanto esperado ficasse percorrido de uma alegria bem mais funda. Tanto a sonhei ao longo destes infindáveis meses, que ela quase toda se gastou e agora encolheu-se e ficou tristinha. Ando magro que nem cação. Estou convencido de que tenho uma ténia agarrada à parede dos intestinos. Quarenta e nove quilos é pouco! Já pedi um medicamento para o efeito no posto médico e vou tomá-lo.


Contuboel, 13 de Janeiro de 1967

Um dia inteiro em jejum, só a água, para que o medicamento produzisse efeito. Nada. Nem ténia nem outros bicharocos. Fiquei ainda mais fraco com a abstinência.


Bambadinca, 18 de Janeiro de 1967

Aqui, à beira do rio Geba, para embarcarmos logo à noite em batelões para Bissau. Amanhã tomamos o Uíge para Lisboa. Assim sem espingardas nem pistolas, parece que ficámos subitamente indefesos e nus. E temos medo. Sobretudo que nos ataquem das margens durante esta noite de viagem por aí abaixo, até Pijiguiti. Não seria a primeira vez. A escolta que vai connosco não daria para as encomendas. Nunca mais acaba o pesadelo, sofremos até à última gota.

Bissau, a bordo do Uíge, 19 de Janeiro de 1967

Veio o Governador 
[, e Comandante-Chefe, gen Arnaldo Schulz]a bordo despedir-se das tropas e agradecer-nos, em nome da Pátria, o nosso esforço, sacrifício e abnegação. Seja tudo por alma da Pátria!, disse-me nos meus fundos. Garantiu-nos no final da derradeira golada de uísque que, em matéria de guerra, deixávamos este rincão pátrio melhor do que o havíamos encontrado à chegada. 

Mentiu com todos os dentes! A guerrilha alastra-se cada vez mais. O Capitão da minha Companhia ficou em terra [, Cap Mil Cav António Tavares Martins,    substituiu o primeiro comandante da CCAÇ 800,   Cap Inf Carlos Alberto Gonçalves da Costa].

Ainda não completou o tempo de comissão e vai compensá-lo numa repartição qualquer. Nem fiquei triste nem contente, que, com esta magreza, se me esvaíram quase todos os sentimentos. Trouxe comigo o perdigueiro. Não houve qualquer problema na sua admissão a bordo. O Vila Velha, o meu guarda-costas, prontificou-se a tratar dele durante a viagem.


Lisboa, 27 de Janeiro de 1967

Não dormi isto sequer, com a ansiedade da chegada. Navega agora o navio Tejo adentro. Ainda é noite. Está frio lá fora e outro ainda mais gelado cá dentro em mim. Encontro-me no deck, enrolado num cobertor, à laia de capa de estudante de Coimbra que ainda sou. Vejo a ponte nova, Salazar chamada, e ao longe as luzes da cidade. Não me encantam nem me chamam. Ando de um lado para o outro e penso na vida e no futuro. E olho indiferente as luzes que se espelham, tremeluzindo, nas águas do rio. Serei capaz de vencer e de me vencer? 

Vou ter o meu filho no cais à minha espera. Com dois meses apenas. E talvez seja bom assim. Se tivesse entendimento, veria o pai já cansado e envelhecido e dardejando chispas de medo dos olhos fundos. Na flor da idade. Não minto. Vi-me no espelho quando me escanhoava pela última vez. Última, sim. É que daqui em diante vou deixar crescer a barba. Não foi promessa. Foi uma jura. E cada um tem direito à sua pancada. Mas sei as razões desta minha atitude, que, como todo o neurasténico que se preza, tenho explicação para tudo quanto me aconteceu ou porventura venha a acontecer-me. Um dia hei-de contar!


Tomar, 28 de Janeiro de 1967

Agora somos três e ficámos numa residencial junto ao rio Nabão. Logo de manhã cedo, tomei o pequeno-almoço e fui para o quartel novo, agora mais completo do que quando para aqui vim há dois anos. Ultimadas as formalidades de desmobilização, muito mais rapidamente do que pensava, principiei a sentir-me angustiado. Fiquei sem me perceber. Na hora há tanto ansiada em que me desligava do pesadelo, sentia-me em tremuras tais, que tive uma vontade urgente de pedir que me socorressem. Não foi preciso, que logo entrei em pânico. Levaram-me para a enfermaria e aí deram-me um calmante dos fortes. Ao fim de um quarto de hora, já estava mais calmo. 

Regressei à residencial, meio triste, cogitando na vida que tenho agora pela frente. E só então é que me lembrei que, antes de sair, havia tomado duas chávenas almoçadeiras cheias de café. Fui perguntar. Sim, era café puro e forte! Nem sequer posso tomar um dedal de café legítimo, que me dá tremedeira, quanto mais. E já não fiquei perturbado com a minha reacção pânica.

Estação de Fátima, 28 de Janeiro de 1967

Espero o comboio que me há-de levar para Coimbra, onde vou principiar uma nova fase da vida. Está um tempo esclarecido e a temperatura é amena. A alcofa com o meu filho está poisada no chão meio saibroso, meio areento da plataforma, ao ar livre. Dorme serenamente. 

Como não posso estar quieto, passeio com a Otília para trás e para a frente e vou-lhe traduzindo em palavras os meus receios no futuro. Estou deserto por me pôr à prova no campo académico. A minha obsessão é concluir o meu curso de letras. Sei que muitos que voltaram da guerra não o conseguiram. E eu? Chega o combóio. Pego da alcofa e subo para a carruagem. Fecha-se-me um pano de boca de cena atrás das costas.


Coimbra, 1 de Fevereiro de 1967

Entrei na Faculdade de Letras como um condenado. Encontrei no sexto piso o meu velho professor de Língua Alemã, o Doutor Helling, uma santa criatura, que, ao ver-me, se assustou. Não o soube disfarçar, que bem lhe vi o rosto perturbado. Ao fim do baque perguntou-me: 
- O minino sente-se mal, está doente? 

 Respondi-lhe que acabara de chegar da guerra colonial. E pelo que me disse a seguir, verifiquei que podia contar com ele. Sim, iria rever o meu alemão esquecido e, depois de me sentir bem preparado, apresentar-me-ia a exame. Com as regalias militares, posso fazer exame quando quiser. Miminhos da Pátria agradecida.


Coimbra, 14 de Junho de 1967

Os efeitos da guerra continuam e de que maneira. Tenho corrido um ror de médicos no intuito de obter algum alívio. Um professor da Faculdade de Medicina, a pedido do meu conterrâneo, Prof. Linhares Furtado, a quem consultei, descobriu que eu tinha, nos intestinos, um anchylostoma raríssimo. Bicharia da Guiné. 

Ficou contente pela descoberta e não me levou um tostão. Receitou-me um medicamento chamado Mintzol. É um líquido branco, espesso, que tomei por duas vezes, no mesmo dia. Ia morrendo da cura. Estive oito dias de cama, quase sem forças para articular uma palavra e em soltura constante.


Coimbra, 28 de Junho de 1967

Estava há dias estudando num cubículo que tenho no terraço de casa e me serve de escritório, quando a Otília lá entrou a perguntar-me o que queria que ela fizesse da minha farda camuflada, que trazia na mão para me mostrar. Andava em arrumações. Eram dez horas da noite. Havia fogueiras de São João no Largo de São Salvador, na Alta, nas traseiras da minha República. Passou-me um clarão pela cabeça e disse-lhe: 
- Deixa cá ver a farda. 

 Sem uma palavra, passou-ma para as mãos. Fardei-me e saí de casa, sem ouvir sequer um resmungo. Ao chegar ao Largo de São Salvador, o bailarico estava animado e meti-me na roda mascarado de guerreiro. O meu amigo Germano Rego Sousa, da República dos Corsários e aprendiz de psiquiatra [, também ele açoriano de São Miguel, acabou por  especiliar-se em patologia clínica, depois de fazer uma comissão como médico militar em Angola, 1969/71... ], também lá estava. 

Num fim-de-semana que vim passar a Coimbra, quando andava por Mafra, ofereceu-me um poema que começava assim:

Gosto de ti, poeta triste
Que cantas a saudade de mares não percorridos
E trazes o cheiro de estranhas terras
Que não descobriste [...].

Gosto de ti, poeta,
Que chegas com a mala abarrotando
De uma camisa e de um livro de poesia
E que esqueces às vezes a camisa,
Que essa, pode-se esquecer,
Mas nunca a poesia [...].

Quando me viu naquele preparo, fardado de guerreiro da guerra colonial, deve ter torcido o nariz e desconfiado da minha sanidade mental. Aproximou-se de mim. E, muito delicadamente, pediu-me que o seguisse até à República, que queria falar comigo. Falou, interrogou, como se me estivesse praticando psicanálise. Por fim pediu-me que no dia seguinte fosse à clínica onde trabalha com o Louzã Henriques 
 [ 1933- 2019, psiquiatra , etnógrafo, escritor. opositor ao regime de Salazar ], a de Santa Teresa, que me queria fazer testes. Fui. Vim de lá com um arsenal de amostras de medicamentos para tomar. Ando a cair de sono pelos cantos da casa e de mim.

(Continua)

[ Revisão / fixação de textos / imagem e legenda / links / notas entre parêntesis rectos / subtítulo, paar efeitos de publicação deste poste: LG ]