– Esses filhos dum cabrão deviam era ver esta miséria que a gente come.
E espetava o garfo na massa com grão onde se escondia uma lasca de bacalhau.
Assomaram umas lágrimas aos olhos da mãe.
– A culpa é da guerra, e eu ando apoquentada porque os meus filhos ainda vão lá parar.
O pai ficou sério e baixou a cabeça para meter uma garfada à boca. O irmão não dizia nada, porque sempre que falava era sempre sobre o Tarujense, onde era guarda-redes, ou sobre as partidas de bilhar que disputava no salão do Jardim Cinema. A guerra não lhe dizia nada. Era mais novo dois anos e ainda não lhe dava para pensar nisso.
– Felizmente o Antero já está livre disso.
A irmã não sorriu mas tinha os olhos brilhantes de satisfação. Era verdade que o namorado dela, mais velho que eu uns três anos, já tinha feito a tropa como escriturário no Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro, em Campo de Ourique. Já saíra sem ir para o Ultramar.
– Não sei, rapariga, não sei.
Ela ficou séria e os olhos sem brilho:
– O que é que o pai quer dizer com isso?
– Sabes lá ele se não vai lá parar. Se esta porra continuar vai como os outros. A miséria já existia antes da guerra e a guerra é para a miséria continuar porque interessa aos ricos. Eles é que mandam e querem que ela continue.
– Credo, homem, não digas isso que ainda me afliges mais.
Mas ele não ligou.
– Mas agora estamos melhor, até temos uma casa só para nós.
– Uma casa uma merda. Nem a porra duma retrete temos quando nos vamos agachar. E estás aqui porque tu e os teus irmãos trabalham em vez de andarem na escola, e eu nunca tive férias porque vou no verão trabalhar com tractores lá prós montes daquele cabrão de Ervidel. Se não fosse isso ainda estavas numa parte de casa. (...)
Último poste da série > 19 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24973: Facebook...ando (47): José Claudino da Silva, "o Puto de Senradelas": o novo livro de memórias, apresentado no passado dia 15, na sua terra natal, Penafiel