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segunda-feira, 24 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24248: Notas de leitura (1575): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (1): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Comércio negreiro ou esclavagismo, colonialismo e relações raciais, missionação em sociedades islamizadas ou animistas, são questões fortes e sensíveis no estudo do Império Colonial Português. Não é a primeira vez que aqui se fala do tráfico de escravos e de preconceitos raciais, e como eles evoluíram ao longo dos séculos. Recorde-se agora duas vozes autorizadas, Charles Ralph Boxer e Valentim Alexandre, o primeiro estudou a fundo não só o Império do Oriente como o colonialismo brasileiro e o segundo tem uma investigação caleidoscópica sobre Brasil e África, e no livro aqui escolhido, Velho Brasil, Novas Áfricas, discorre sobre o fim do Império Luso-Brasileiro e o quadro ideológico que foi a questão colonial orientada para África até ao fim do Estado Novo. Espero que a seleção destes documentos vos traga utilidade.

Um abraço do
Mário



Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (1)

Mário Beja Santos

A
bruptamente, e um tanto a propósito da destruição de estátuas de figuras do esclavagismo, vieram umas tantas almas a terreiro exigir que Portugal pedisse perdão pelos nefandos crimes cometidos ao longo de séculos com o negócio negreiro, parecia que estavam a inventar a roda, não tomavam em consideração que Portugal tomou posições firmes quanto ao abolicionismo da escravatura e criou escola de pensamento hostil ao tráfico, e desta paródia de exasperos e de ignorância misturou-se, a propósito e a despropósito, colonialismo e racismo, comportamentos que podem andar a par mas que são fenómenos distintíssimos. Mesmo antes de Gilberto Freyre ter feito a apologia do luso-tropicalismo já um pensamento nacionalista fazia constar que no Império Português havia uma sociedade racialmente integrada, que não era permitido que se erguessem barreiras ao contacto amistoso entre colonizador e colonizado, e evocava-se o exemplo do Brasil.

Em "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967, aquele que terá sido o mais influente historiador estrangeiro do Império Marítimo Português abordava as relações raciais num conjunto de conferências que proferiu em Virgínia. O professor Boxer estendeu o seu olhar a três áreas distintas: o início do Império em África e como se desenrolou a sua presença na costa ocidental africana: em Moçambique e na Índia; e no Brasil e Maranhão. Obviamente nos vamos cingir a considerações gerais e à natureza das relações raciais na costa ocidental africana.

Começa por dizer:
“O velho Império Colonial Português era essencial uma talassocracia, um império marítimo e comercial, com interesses quer nas especiarias do Oriente, nos escravos de África, quer no açúcar, tabaco e ouro do Brasil. Era, no entanto, um império marítimo moldado em forma militar eclesiástica. Por séculos, a palavra oficial mais comum para as possessões ultramarinas portuguesas era As Conquistas. Quando em 1501 o rei D. Manuel I assumiu o título de Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Índia, Arábia e Pérsia, os Portugueses não tinham ainda conquistado nenhum destes países”.

Era já uma mentalidade que assentava numa associação então obrigatória com o Papado, pensava-se que a Igreja tinha poder para repartir terras e dar títulos. Portugal esteve presente em Marrocos entre 1415 e 1769 e quando abandonou as suas possessões a Fé Cristã ficou praticamente reduzida a zero. Ao contrário, o proselitismo português no Congo e em Angola foi bem-sucedido, a prática religiosa angolana de hoje teve este forte antecedente. O facto de se ter procurado a missionação na Alta Guiné em locais de puro comércio e de uma espúria presença de brancos, associado aos terríveis climas, febres e doenças então sem tratamento, reduziu os resultados desse cristianismo, mesmo se averbarmos práticas religiosas seculares em Cabo Verde e S. Tomé. E vejamos o que o historiador Boxer observa sobre as viagens e o comércio ao longo da costa da Guiné, diz claramente que os escravos, o ouro e o marfim eram as principais fontes de lucro procuradas pelos homens brancos. Entendia-se por Alta Guiné a região situada entre o Rio Senegal e o Cabo das Palmas, aí preponderavam comerciantes ou intermediários do comércio de troca entre africanos europeus, eram relações versáteis e inconstantes, variavam entre uma tribo ou área e outra.

E aconteceu a miscigenação, como ele comenta: “As relações sexuais livres entre negros e brancos fizeram surgir uma população mulata inteiramente portuguesa, nas ilhas de Cabo Verde e nas de S. Tomé e Príncipe, no Golfo da Guiné. As colónias insulares eram desabitadas na época do seu descobrimento e foram colonizadas principalmente por uma mistura de brancos vindos de Portugal, Espanha, Itália e escravos importados de uma larga variedade de tribos do continente. No princípio, a ilha de Santiago, e depois S. Tomé, transformaram-se em depósitos de escravos vindos da Baixa e Alta Guiné que ali eram reunidos e despachados para as plantações e minas da América Espanhola e Brasil. Com o correr dos séculos, o amálgama racial completou-se, predominando o elemento negro na constituição física e o português no aspeto cultural”. O historiador disserta sobre este amálgama racial, revela os graves problemas religiosos dos padres em simonia, a moralidade do clero sempre se mostrou em maré baixa.

No caso do Congo e de Angola, escreve o historiador, a procura de escravos intensificou e perpetuou as guerras intertribais e chegou o momento de situarmos o problema das relações raciais. Cita um autor obrigatório, António de Oliveira Cadornega, autor da "Historia Geral das Guerras Angolanas, século XVII". Os negros e os mulatos, era a sua opinião, deviam estar no fim da escala social, mas eram fundamentais, até porque muitos dos descendentes das relações mistas tornavam-se homens importantes. Um frade capuchinho italiano, Frei Girolano Merolla, escreveu em 1691 a respeito desta raça misturada: “Odeiam os negros mortalmente, até mesmo suas mães que os tiveram, e fazem tudo o que podem para igualar-se aos brancos”. O testemunho vale pelo que vale, Cadornega lembra o angolano Luís Lopes de Sequeira, cuja mãe era uma mulher de cor e que comandou as forças portuguesas que derrotaram e mataram o rei D. António I do Congo na Batalha de Ambuila. E tinham estatuto social os oficiais da milícia mulata “tinham permissão para frequentar as receções oficiais do governador-geral, em pé de igualdade com os brancos”. Havia pois uma atitude bivalente dos portugueses brancos em relação aos seus parentes mulatos.

Falando de Cabo Verde e S. Tomé, observa que o clero negro, mulato e mestiço, era sujeito a contínuas torrentes de críticas. “Os missionários capuchinhos italianos que trabalhavam no Congo e Angola durante os séculos XVII e XVIII eram especialmente severos em suas denúncias do clero secular nativo, ordenados por sucessivos bispos de Luanda, tachando-os de concupiscentes, simoníacos e muito comprometidos com o tráfico de escravos”. Era um comércio vital, como lembrou o Conselho Ultramarino lembrando ao rei D. Pedro II que a preservação do Brasil dependia do contínuo suprimento de escravos de Angola.

E mais adiante, escreve Boxer:
“É evidente que havia outras razões para o fracasso português em desenvolver no Congo e Angola um tipo de sociedade multirracial dominada pelos brancos, como aconteceu no Brasil. As sociedades tribais africanas eram muito mais fortes, mais numerosas e melhor preparadas para resistir à penetração europeia (…). O resultado da concentração de todos os esforços no tráfico de escravos em Angola por mais de dois séculos, foi a formação de uma poderosa classe de brancos comerciantes e donos de escravos, o crescimento de uma classe de negros destribalizada que cooperavam nesse comércio com os brancos, e o surgimento da classe dos mulatos e mestiços, alguns dos quais conseguiram importantes cargos na milícia, no comércio de escravos e na Igreja. Estas três classes estavam limitadas às cidades costeiras, das quais Luanda era a de tamanho mais considerável e vizinha de algumas fortalezas (presídios) no interior, nenhuma das quais estava a mais de 200 milhas da costa. No resto do país, a organização tribal não foi alterada nem foi influenciada pelos portugueses, com exceção dos Dembos e dos Ambaquistas ou comerciantes ambulantes de Ambaca”.

E termina este role de considerações recordando que esta presteza de acasalamento com mulheres de cor não ocasionou a ausência de preconceito racial no homem português. A regra-geral que prevalecia (e prevalece) na sociedade é a de uma consciente superioridade branca.

E vamos concluir esta digressão ouvindo Valentim Alexandre, outro historiador que muito se tem debruçado sobre o Império Português, damos-lhe a palavra para ele comentar o que foi África no imaginário político português e as questões da colonização étnica.

(continua)

Historiador Valentim Alexandre
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24239: Notas de leitura (1574): "Seis Irmãos em África", segunda edição; Porto, 2017; edição de autor, mas os autores são seis: Fernando, Rogério, Dálio, Carlos, Álvaro, Abílio, quem compilou os textos foi o Abílio, trata-se dos manos Magro que percorreram diferentes paragens africanas (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24162: Historiografia da presença portuguesa em África (360): As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Corresponde a um período em que Carreira desbravou imensa documentação nos arquivos, toda esta pesquisa sobre o comércio negreiro destinado primordialmente ao continente americano. Esta análise sectorial mostra claramente a crescente vigilância inglesa nas águas destes pontos da costa africana, mas igualmente muito ativa nas Antilhas. Resistiu-se por todos os meios, tentou-se enganar a vigilância, e a ninguém assombra que a escravatura tivesse recrudescido entre os povos da região, à falta da exportação. Ao tempo começa o comércio da mancarra, é uma nova lógica comercial que se instala, incentivar culturas e propor novos mercados de exportação, favoráveis aos propósitos coloniais. Aqui se deixa o testemunho de agradecimento a todos estes trabalhos pioneiros de Carreira, a historiografia anterior sempre fugiu a decifrar e a mostrar os cenários deste hediondo comércio.

Um abraço do
Mário



As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde

Mário Beja Santos

A Junta de Investigações Científica do Ultramar deu à estampa em 1981 um trabalho de António Carreira intitulado “O Tráfico de Escravos nos Rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”. Aqui se tem feito referência ao conjunto de obras de Carreira sobre o comércio negreiro, ele foi um pioneiro nestes estudos que hoje conhecem franco desenvolvimento. Aqui se pretende somente fazer referência, formalmente abolido que estava o tráfico, à sua repressão, o investigador alega escassez de informações nas pesquisas arquivísticas que fez. Atenda-se ao que ele escreve:
“Tudo indica que os negociantes de escravos residentes em Cabo Verde se tornaram extremamente dinâmicos a partir dos primeiros anos do século XIX – talvez na razão do aperto da fiscalização. Pelo menos é o que se conclui dos relatos das comissões mistas, quer a sediada na Boa Vista, quer a da Serra Leoa e pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros português.
Os navios espanhóis apoiados em Cabo Verde navegavam com bandeira portuguesa e passaporte concedido pelo governo de Cabo Verde. À sombra dessa proteção acolhiam-se armadores espanhóis e um ou outro brasileiro, isto se falar numa espécie de caçadores furtivos procedentes de outras áreas.
Das listas oficiais de navios apresados, de 1835 a 1839, com escravos a bordo ou por simples indícios de se dedicarem ao tráfico e dos que foram declarados suspeitos de implicação no tráfico pelas comissões missões, referenciamos 36 armadores com um total de 55 navios. De entre os condenados, 14 transportavam escravos e 25 teriam a bordo mercadorias próprias para o negócio da escravatura.
Também estavam sujeitos a apresamento e confisco do casco os navios que tivessem: escotilhas com grades abertas; repartimentos, coberta corrida ou separações em maior número que é costume; tábuas aparelhadas para formar segunda escotilha; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção; maior quantidade de água em pipas ou tanques do que é necessário para o consumo da tripulação; quantidades extraordinárias de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho do que a necessária para o uso da equipagem; quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne, peixe salgado, farinha de pau, mandioca, milho ou outras farinhas.
Pode dizer-se que se preparava o caminho que viria a permitir aos ingleses a imposição a Portugal das estipulações do Tratado de 3 de julho de 1842”
.

E assim nos aproximamos concretamente do comércio negreiro nos rios da Guiné e Cabo Verde. Carreira faz referência a uma carta de maio de 1835, o embaixador inglês Howard de Walden comunica ao ministro português que fora apresada em 14 de agosto de 1834 na ilha de Cuba a escuna Felicidade transportando a bordo 174 escravos pertencentes ao governador de Bissau. Desembarcados os escravos, a escuna foi levada para Serra Leoa e aí entregue à comissão mista. A escuna Felicidade estava inscrita no arquivo da Praia, nota-se, no entanto, uma discrepância em vários elementos, mas não deixa de ser flagrante a coincidência do nome do navio e o número de escravos apresados. Entre 1836 e 1839 terão sido apresadas embarcações com uma média anual de cerca de 1000 escravos. Interrogando-se quanto aos portos em que teriam sido embarcados os escravos, Carreira diz que talvez se possam apontar os rios Casamansa, Cacheu, Geba, ilhas de Bissau e dos Bijagós ou nas rias do Sul – Nuno, Pongo e ilha dos Ídolos – como sendo as áreas de procedência da maioria das carregações.

Continuamos a citar António Carreira:
“Para o volume de escravos apresados, os 41 transportados pela escuna Liberal que navegava com passaporte passado pelo governo de Cabo Verde, e detectados pelo brigue brisk, a 14 de abril de 1839, constituíram uma gota de água no imenso oceano de tráfico ilícito. E daquele número unicamente 3 foram dados como pertencentes a Honório Pereira Barreto, por cuja infração foi condenado pela comissão mista à pena de incapacidade de exercício de funções públicas por 5 anos, agravada com a multa de 2 contos de réis! Foi inegavelmente uma condenação política, a que talvez não tivesse sido estranha a influência dos próprios patrícios que lhe invejam a posição preponderante que desfrutava.
No actual estado das pesquisas arquivísticas sobre a matéria (arquivos de Lisboa e de Cabo Verde – já que na Guiné há absolutamente nada) apenas podemos indicar outro caso de tráfego ilícito, não por apresamento de navios e/ou escravos, este registado na correspondência da comissão mista da Serra Leoa e o Ministério da Marinha e do Ultramar. Ao dar a conhecer ao governo de Cabo Verde as conclusões da referida comissão, o Ministério dizia: O rio Nuno há 3 anos que não tem sido visitado por um navio de escravos; contudo, tem sofrido a influência do muito ativo comércio estabelecido em Bissau, de onde são enviados agentes ao rio Nuno a fim de comprar escravos que mandam para Bissau em ocasião oportuna. O negociante Caetano Nosolini tem tido a maior parte deste negócio e emprega para este fim em rio Nuno dois agentes europeus, além de gente de cor empregada em seu serviço. De 1841 em diante, a documentação encontrada alude com frequência a navios suspeitos em circulação nos rios de Guiné e a navios usando ilegalmente a bandeira portuguesa”
.

Tudo levava a crer que o comércio negreiro sofrera uma baixa sensível em quase todos os bens conhecidos mercados da costa africana, tão intensa era a vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira reflete do seguinte modo:
“É muito possível que em uma ou outra região os naturais tivessem assaltado e destruídos as instalações de recolha de escravos, libertando-os; mas isso sem carácter generalizado, pois na altura os régulos islamizados haviam já lançado a campanha contra os animistas, reduzindo-os à escravidão, e vendendo uns aos negreiros europeus (através dos Djilas) e outros no interior do continente, onde os utilizavam como força de trabalho, necessária à manutenção de todo o séquito próprio de régulos Fulas e Mandingas”. Carreira observa ainda que o tráfico ilícito continuava nas ilhas de Cabo Verde e mostra documentação. Há um relatório do Diretor da Alfândega de Bissau, datado de 22 de dezembro de 1857 e dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira onde se afirma que em 1842 cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu. Carreira observa que esta informação não lhe parecesse inteiramente exata quanto a Bissau, pelo menos, e cita documentação contraditória. E, escreve mais adiante: “Tudo indica que houve um recrudescimento do tráfico ilícito nas zonas do interior que utilizavam Bissau como o melhor porto de saída de escravos, sobretudo oriundos de Geba. Por essa altura já havia sido desencadeada a guerra (1840) entre Fulas e Mandingas, e que viria a terminar com a derrota dos últimos, em 1853. E os vencidos nestas lutas, como era norma, foram vendidos nos mercados do interior e outras vezes levados para os portos da costa e negociados com os europeus, ou então passavam a engrossar os exércitos dos régulos e utilizados em trabalhos agrícolas e outras atividades de interesse mais direto dos chefes políticos e religiosos, designadamente no cultivo da mancarra”.

O investigador reconhece que traçou um panorama necessariamente parcelar e incompleto, teve mesmo que desistir de tentar fazer a contabilidade do número aproximado de escravos movimentados e portos onde teriam sido embarcados.


Castelo de São Jorge da Mina, construído pelos portugueses na Costa do Ouro (hoje Gana) em 1482, de onde saíram mais de 30 mil escravos rumo ao Brasil, em navios portugueses.
Foto com a devida vénia a vinteculturaesociedade

Cartaz do previsto Simpósio Internacional Cacheu Caminho de Escravos, bem procurei documentação, nada encontrei, provavelmente foi cancelado atendendo à pandemia
Foto com a devida vénia a Plataforma9

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Veja-se o pormenor da capa deste livro, parece objeto estranho, mas é peça em chapa de ferro espessa, destinada à prisão de escravos pelos tornozelos e pelos pulsos, simultaneamente. O indivíduo era obrigado a permanecer sentado, sem se poder levantar; a peça é provida de um fecho com chave, tem 35cm de comprimento, e é proveniente de Ouro Preto, pertence à coleção do Museu Nacional de Etnologia. No seguimento da primeira narrativa, estamos chegados agora à existência de companhias majestáticas, António Carreira encontrou documentação do maior interesse nos arquivos, refere os dois grandes mercados do tráfico, a Senegâmbia e Angola e a importância de Santiago, daqui "a mercadoria" partia para o Brasil e Cuba. Obra fértil em explicações quanto à importância da economia cabo-verdiana, a contabilidade das companhias majestáticas, ficamos a saber como era identificados os escravos, a conhecer os tipos de instrumentos de prisão, de tortura ou de humilhação, a dor maior virá na descrição dos tipos de castigos corporais, é arrepiante. Obra pioneira, é justo aqui realçá-la por ter aberto portas a estudos mais fundamentados para o conhecimento de aspetos do nosso colonialismo que permaneceram muito tempo na penumbra.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (2)

Mário Beja Santos

O livro Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos, por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O comércio negreiro feito por portugueses irá sofrer uma profunda alteração em 1755 com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que iria atuar numa área entre o Cabo Branco a Angola, limites que vieram a ser restringidos para a área entre o Cabo Branco e o Cabo das Palmas, limitação que tinha em vista a formação de uma outra empresa, a Companhia de Pernambuco e Paraíba, atuando no setor de Angola. Interessa-nos falar da primeira, António Carreira encontrou farta documentação sobre este tráfico e procura explicações para o seu reduzido volume: a existência entre grupos étnicos de cultura islâmica de um forte poder dos régulos, em particular dos Mandingas; o desvio de levas de escravos para os mercados do interior (no Senegal, no Mali, e zonas periféricas). É uma pertinente investigação, que ele assim remata: “A conclusão a tirar da análise da evolução do tráfico através dos tempos e dos sectores é de que foi a Angola a grande sacrificada. O sector Senegal-Serra Leoa gozou de verdadeiro privilégio. O território angolano sofreu uma sangria demográfica em benefício da América do Sul (em especial o Brasil) e central (Cuba)”. Mas também esclarece o seguinte: “Por reduzidos que tivessem sido os contingentes saídos dos rios de Guiné e de Cabo Verde, não podiam ser tão insignificantes. E se não tivéssemos levado a efeito o levantamento da contabilidade da empresa monopolista do século XVIII, pouco ou nada se podia apresentar”.

A posição portuguesa que fora de relevo no século XVI e até às primeiras décadas do século XVII não suportou a concorrência da Inglaterra, da Holanda e da França, que passaram a ter um papel dominante nesta área do Atlântico. E tece o seguinte comentário: “O nosso traficante era tímido e hesitante. Não se aventurava a empates de dinheiro a médio ou longo prazo. Tanto na Inglaterra como na Holanda as casas reinantes e a alta finança investiam no tráfico e em navios para o corso. O século XVII marcou a viragem para a formação de companhias fortemente apetrechadas, destinadas aos tratos e aos resgates. A situação na Guiné e em Cabo Verde continuou a piorar e levou à formação da Companhia de Cacheu, Rios e de Comércio da Guiné, mal terminou o prazo concedido a esta empresa foi criada a Companhia do Estanco, do Maranhão e Pará, empresa que foi muito mal recebida. Anos volvidos é formada outra empresa, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde”.

O investigador António Carreira analisa um conjunto de fenómenos sociopolíticos e económicos suscitados pelo aparecimento do ouro e de diamantes no Brasil, que vai criar um entusiasmo entre os portugueses para ali irem viver, e disserta sobre as relações económicas entre a colónia brasileira e Lisboa. Os dados que compulsou permitiram-lhe apresentar dados sobre os escravos comprados pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o papel económico desempenhado pela urzela de Cabo Verde, os panos de algodão produzidos nas ilhas de Cabo Verde, a natureza de subsídios, donativos e outras taxas, as alcavalas cobradas na última fase do tráfico e assim chegamos à marcação a ferro quente dos escravos. Escreve Carreira: “Numa primeira fase a marcação tinha por finalidade principal a identificação dos escravos pertencentes à Coroa, fossem eles adquiridos, fossem recebidos em pagamento de direitos ou de rendas pelos contratadores. Poucos anos depois, os contratadores, para não serem defraudados, passaram igualmente a marcar os seus escravos”.

Refere também a identificação dos escravos, e desperta-nos para alguns aspetos curiosos quanto a designações:
“Adultos: cabeça; peça; marfim ou ébano de Guiné; escravo ou negro lotado; escravo ou negro com ponta de barba; escravo ou negro boçal; escravo de grilhão; escravo mulato; escravo mascavo ou mascavado.
Adolescentes: moleque ou moleca; moleque ou moleca lotado; molecão ou molecona; molecona de peito atacado (a que tivesse os seios bem formados); mocetão ou mocetona.
Crianças: minino; cria de peito; cria de pé (a que anda).
Peça-de-Índia definia o escravo jovem, alto, robusto e sem defeitos físicos. Em época adiantada do tráfico, usou-se a bitola de 1,75m de estatura para designar a peça-da-Índia.
Escravo ou moleque lotado era aquele que, pela sua compleição física, podia fazer parte de um lote para efeito de venda.
Escravo barbado ou com ponta de barba correspondia ao adolescente com barba bem formada. Era já homem.
Escravo boçal era todo aquele que não se soubesse expressar em crioulo ou português, e não tivesse ainda sido submetido à catequese e batismo.
Escravo ladino era o escravo esperto que se fazia compreender facilmente em crioulo ou português, ou que tivesse alguma profissão ou ofício.
Escravo de grilhão era todo aquele que tivesse sido alguma vez castigado com a pena de prisão com grilhão nos pés.
Escravo mulato correspondia ao produto de mestiçagem de sangue entre homem branco e mulher preta ou mesmo de pais mestiços.
Escravo fujão era aquele que tivesse propensão para fugir ao trabalho ou à tutela do seu senhor.
Escravo mascavado era aquele que possuísse aleijão ou deformidade física.”


Carreira também nos dá uma lista de tipos de instrumentos de prisão, é uma lista horrível, inclui instrumentos de tortura, de prisão ou de humilhação, devem ter sido copiados e aperfeiçoados os modelos usados pela Inquisição. Esta lista de castigos corporais merece a Carreira bastante detalhe, custa ler tanta violência, tanta severidade e tanta desumanidade.

É vasta e muito útil a bibliografia que António Carreira anexa sobre o tráfico português de escravos. Obra pioneira pois, é justo relembrá-la pelo timbre de rigor e a abertura que deu a novas investigações.

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É inegável que a historiografia sobre a Guiné portuguesa tem uma enorme dívida com o António Carreira. Aqui se faz jus a um trabalho pioneiro sobre o comércio negreiro na costa ocidental africana, Carreira era homem de arquivos, deplora frontalmente a negligência dos investigadores no estudo do tráfico português de escravos. Felizmente que todo este acervo documental passou a ser muito mais escrutinado nas últimas décadas, todo este fenómeno socioeconómico cultural começa a esclarecer-se. A narrativa de Carreira é profundamente didática, tem o mérito de poder ser acompanhada por iniciados e leigos, verifica-se que é um trabalho altamente fundamentado e cumpre o desejo do autor: abre imensas portas a quem queira investigar o papel dos portugueses no tráfico de escravos.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (1)

Mário Beja Santos

O livro "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O investigador abre as suas considerações enfatizando a dívida com que o continente americano ficou com o escravo africano, sem este imigrante forçado teria sido inviável a cultura da cana sacarina, o cultivo do fumo, o apanho das drogas do sertão, a criação extensiva de gado, a extração de ouro e pedras preciosas. A situação do comércio negreiro só conhecerá profunda alteração com a Imigração branca iniciada no século XIX. E adianta também: ”Não foi apenas na América e em África que se sentiram os efeitos da grande imigração forçada de povos africanos e que ficou mais conhecida como tráfico de escravos. Este tipo de migrações transformou a economia de muitas nações europeias, em especial a da Inglaterra, a da França, a da Holanda, a da Espanha, a de Portugal, e outras. No final do século XVIII, só na Inglaterra existiam mais de 14 mil escravos negros. A América cultivava o algodão, utilizando para o efeito o escravo africano, e a Inglaterra industrializava-o, produzindo os tecidos de exportação. Tudo irá mudar com a independência dos EUA, houve que procurar noutras áreas as matérias-primas, e Inglaterra decidiu coartar o fornecimento de mão de obra escrava à América do Norte e a outros países que se lhe opunham como concorrentes ao comércio africano”. Iniciava-se a campanha abolicionista, mas a ilegalização do sistema da escravização, em termos que não foram absolutamente práticos só foi alcançada no final do século XIX.

Carreira dá conta da vastidão do seu trabalho: “Dobrado o Cabo Bojador, a área conhecida por Guiné passou a ter enorme extensão: abrangia a faixa de território que, a partir da foz do rio Senegal, se estendia até ao rio Orange! Depois, quando se conheceu melhor a costa, foi encurtada, limitando-se ao setor do rio Senegal até à Serra Leoa, espaço da capitania de Cabo Verde.” Para baixo temos a Costa da Mina, indo até à Costa de Angola, abrangendo os chamados reinos de Loango, Sonho, Cabinda, Congo, Angola e Benguela.

Debruça-se Carreira sobre as motivações do Infante D. Henrique, a literatura de viagens, a captura de negros, mas o tráfico autêntico ainda não se organizara, a Coroa não possuía organização adequada, confiou a exploração do negócio a particulares, logo Fernão Gomes, em 1468, ele podia resgatar escravos com exceção da terra firme defronte das ilhas de Cabo Verde e do castelo de Arguim. É um período em que surgirão muitas desinteligências com os moradores Santiago, com transgressões ao estipulado pela Coroa. Aumentarão os conflitos entre os negociantes de escravos e as populações africanas, a Coroa tomou decisões: proibiu expressamente as operações de razia e captura de negros, impondo a prática da compra, por permuta por vestuário, manilhas de latão, missangas, contaria, etc., assim como por animais domésticos, isto dentro de uma lógica das preferências dos mercados africanos. E sintetiza Carreira:
“Podemos, em resumo, e baseados em textos portugueses dos séculos XVI e XVII, determinar os principais processos usados na obtenção de escravos:
1. Os prisioneiros de guerra e os capturados nas frequentes operações de razia.
2. Os aprisionados nas lutas travadas entre classes sociais ou profissionais (corporações de ofícios nos Mandingas), de uma mesma etnia e também os resultantes da imposição de credos religiosos.
3. Os condenados por decisões de régulos à pena de morte, e a seguir comutada pela de escravização.
4. Os condenados por decisões proferidas através de ordálios a serem vendidos e a suas famílias como escravos.
5. Os vendidos pelas famílias e os que se vendiam a si mesmos e aos seus familiares nas épocas de fome ou calamidade, etc., etc.”


Dá-nos seguidamente o role dos sistemas de exploração entre o século XV e o século XVII, refere alguns dos principais contratos de arrendamento e nomes dos contratadores, num arco geográfico entre os rios da Guiné e Angola. O comércio da Guiné no século XVI foi o primeiro, destinava-se sobretudo a terras brasileiras. O autor dá-nos a relação do tráfico africano para a Baía em vários ciclos, a concorrência estrangeira, como a dominação espanhola afetou profundamente o comércio português, e dá-nos conta das suas investigações: “Através de números compilados dos livros de registos alfandegários, de relatórios e de correspondência oficial endereçada a Lisboa, e ainda das estatísticas organizadas em algumas áreas do Brasil, podemos ter uma ideia, embora incompleta, da evolução do tráfico de escravos na costa ocidental africana. Há falta de dados durantes longos períodos e temos de ter em linha de conta o contrabando de escravos em todos os setores, parece situar-se numa ordem de grandeza aproximada entre 40-50% do total de saídas registadas na documentação oficial.” Interessa-nos aqui referir a região da Senegâmbia, área compreendida entre a foz do rio Senegal e o limite sul da Serra Leoa, englobando as ilhas de Cabo Verde, das quais a de Santiago teve durante mais de um século a função de depósito ou entreposto de escravos destinados à exportação. Na segunda metade do século XV faz-se referência a uma média anual de 700 a 800 escravos destinados à Península Ibérica e a mercados árabes. Nas primeiras décadas de 1500, o tráfico passou a processar-se mais a sul, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, são analisados os contratos de arrendamento. E em meados dos século XVIII surgem as companhias majestáticas do comércio em geral e a do tráfico de escravos.

(continua)


O comércio negreiro feito pelos árabes, os antecessores dos europeus
Livro importante para o estudo do tráfico negreiro árabe-muçulmano
Pintura do francês Jean-Baptiste Debret, 1826, retrata escravos no Brasil
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
A organização da História de Portugal e do Império Português, pelo académico A. R. Disney, em dois volumes, tem as suas originalidades e não deixam de provocar surpresa ao leitor português. O primeiro volume abarca desde a Pré-História até ao fim do Antigo Regime e o segundo começa no Norte de África, com a conquista de Ceuta e vai até ao Império do Oriente na era colonial tardia. O que tem a ver com a Guiné inicia-se com a exploração das costas da África Atlântica e finaliza ao tempo da segunda fortaleza de Bissau, da nossa presença também no Cacheu e nalguns outros locais. Foi esta tímida presença, espartilhada pela França a Norte, num Senegal onde a Inglaterra tinha encravado a Gâmbia, a Sul uma Guiné Francesa que pretendia expandir-se, que se obteve, com o sacrifício do Casamansa, a legitimidade territorial da Guiné Portuguesa, que é hoje o território onde se confina a Guiné-Bissau. Daí o autor estar altamente motivado a falar do tráfico de escravos, verificou que a missionação foi altamente esporádica, e termina a sua exposição exatamente no tempo em que vão começar as explorações de produtos agrícolas. Um livro rigoroso que importa saudar.

Um abraço do
Mário


A Guiné no Império Português, segundo A. R. Disney (2)

Mário Beja Santos

Considerado pela crítica uma investigação de gabarito pela originalidade da estrutura e pelo inventário bibliográfico e documental, como este académico observa no prefácio do segundo volume, que aqui cabe fazer referência, está organizado de forma um pouco diferente do primeiro. Na obra de arranque, A. R. Disney centra-se na Pré-História de Portugal, prossegue pela Idade Média, a construção do Portugal de Avis, o que ele designa por a Idade de Ouro, a época de declínio, a Restauração e a Reconstrução, o esplendor barroco, a era do Marquês de Pombal, o final do Antigo Regime. Neste segundo volume é toda a evolução do Império, desde as Praças do Norte de África até o Império do Oriente na era colonial tardia é matéria de análise – "História de Portugal e do Império Português", Volume II, por A. R. Disney, Guerra e Paz Editores, 2011.

Vimos que o envolvimento na África Atlântica ditou uma forma de presença portuguesa naquilo que o autor designa por Alta Guiné mediante um contrato de arrendamento que favoreceu marcadores portugueses e cabo-verdianos. Instituiu-se a figura do lançado também designado por tangomão quando se aculturava. A Coroa era muito severa relativamente à área destinada a trato comercial, os mercadores estavam impedidos de ir a Arguim ou descer até S. Jorge da Mina. O tráfico de escravos destinado a diferentes paragens foi alvo de concorrência, a presença portuguesa no período pós-Restauração fragilizou-se ainda mais. Como o autor observa, a concorrência já era enorme antes do período filipino. “Na década de 1530 embarcações normandas e bretãs frequentavam a região para comerciar. Juntaram-se-lhes os Ingleses, na década de 1550, e os Holandeses, a partir de 1580. Estes concorrentes europeus foram muito bem recebidos pelos governantes africanos e rapidamente se estabeleceram na Alta Guiné. Com o tempo cada nacionalidade começou a concentrar-se em áreas particulares: os Franceses no Senegal, os ingleses na Gâmbia, os Holandeses e os Ingleses na Serra Leoa”. Encetara-se uma concorrência áspera, as nações europeias pensaram mesmo em erigir fortalezas, o que não era do agrado das chefias africanas, que queriam negociar sem restrições e com quem lhes parecesse vantajoso. Facto comprovado, os portugueses foram perdendo terreno na Alta Guiné, não podiam dispor de fornecimentos tão satisfatórios como os concorrentes. Em abono da presença portuguesa, os viajantes e mercadores tinham uma mais antiga experiência na região onde se tinham fixado em povoamentos informais que já estavam enraizados. A grande concentração era no Cacheu. Em 1589, o chefe Papel do Cacheu, depois de muita hesitação, concordou em permitir a construção de um forte, supostamente para a proteção dos lançados contra possíveis ataques de inimigos europeus. No início do século XVII, a cidade tinha duas igrejas e uma população cristã de quase mil pessoas.

Em 1614, a Coroa Portuguesa decidiu tornar a colónia oficial e nomeou um Capitão para o Cacheu que se iria tornar, quase durante dois séculos, no principal entreposto português para os escravos da Alta Guiné. Chegada a Restauração, decidiu-se que no Cacheu seriam pagos os direitos alfandegários da exportação de escravos, em substituição da cidade da Ribeira Grande. Esclareça-se que havia também lançados na ilha de Bissau, houvera bom acolhimento pelo chefe Papel local que se convertera ao catolicismo por franciscanos portugueses e deu autorização para a construção de uma fortaleza, em 1696. Pouco tempo depois, Bissau foi declarada uma Capitania portuguesa. As dificuldades cresciam, os concorrentes eram imbatíveis, tentou-se uma reestruturação, experimentaram-se as companhias comerciais. Foi instituída uma companhia para o comércio da África Ocidental, em 1664, revelou-se um fracasso. Foram encetadas outras companhias em 1676, 1682, 1690 e 1699, todas subcapitalizadas e condenadas a uma vida curta. A despeito da Guerra da Restauração, D. João IV, em 1646 autorizou a continuidade do tráfico de escravos para a América espanhola. Em 1701, Lisboa decidiu encerrar o Forte de Bissau. Durante a metade do século seguinte, os portugueses competiram nos Rios da Guiné com extrema dificuldade, tendo sempre à ilharga os franceses e os britânicos. Os estreitos laços económicos e políticos de Portugal com o Reino Unido trouxeram alguma vantagem sobre os franceses. Isto para significar que a primeira metade do século XVIII teve longe de ser um período próspero para os portugueses na Alta Guiné.

Seguiu-se a reforma pombalina acompanhada da decisão de construir outro forte em Bissau, a partir de 1752, houve oposição dos Papel, mas a estrutura foi concluída em 1775. A fortificação permitiu aos portugueses ir exercendo ascendência nos Rios da Guiné, apesar da presença inglesa rival, tanto nas ilhas Bijagós como no continente. Registou-se uma modesta recuperação no tráfico de escravos, em parte sob o estímulo da Companhia do Grão-Pará e Maranhão de Pombal, surgida em 1755. A Companhia deteve o monopólio português do comércio e navegação para a Alta Guiné até 1778 e levou mais de 22 mil escravos africanos para as até aí negligenciadas capitanias do Norte do Brasil.

Cacheu, Bissau e outros pequenos povoamentos nos Rios da Guiné continuaram nas mãos portuguesas e a crescer, mesmo depois da aposentação forçada de Pombal. É este conjunto de possessões que acabará por formar o núcleo da colónia da Guiné Portuguesa que ganhará fronteiras em 1886, alvo de algumas correções, que dão hoje o território da República da Guiné-Bissau.

A. R. Disney prossegue o seu trabalho com o ouro de S. Jorge da Mina, importa recordar que Fernão Gomes, devido ao seu contrato de 1469 a 1474, não só adquiriu grandes quantidades de ouro em várias aldeias costeiras dos atuais Costa do Marfim e Gana, zona da Baixa Guiné, mais tarde chamada Costa do Ouro, a que os portugueses chamavam a Costa da Mina. Em janeiro de 1482, D. João II despachou para a Costa da Mina uma armada comandada por Diogo de Azambuja e depois de conversações com o chefe local começou imediatamente a construção da fortaleza. Os portugueses nunca conseguiram estabelecer contato comercial direto, o ouro da Mina foi sempre uma operação sedentária, conduzida a partir da fortaleza. O ouro era trazido por mercadores indígenas que tratavam igualmente da distribuição dos produtos portugueses importados por todo o Interior. Resta dizer que S. Jorge da Mina é representada nos mapas do século XVI sobranceira à costa da Guiné, imagem algo errónea. A fortaleza não era imponente, o poder de ataque dos portugueses era mais ou menos limitado ao alcance do seu canhão. Resta dizer que o domínio marítimo português na costa da Mina durou cerca de 150 anos, e de modo algum se pode associar a presença portuguesa na Guiné diretamente com a fortaleza de Arguim ou a fortaleza de S. Jorge da Mina, eram tratos comerciais completamente distintos. E terminam as referências a este reconhecido trabalho sobre a História de Portugal e do Império Português, no que concerne à Guiné, mas História anterior à ocupação efetiva.

Imagem da Cacheu antiga, gravura do século XIX
Fortaleza de Cacheu, vestígios de estátuas da Guiné Portuguesa
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Notas do editor:

Poste anterior de 23 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24007: Notas de leitura (1546): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 27 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24015: Notas de leitura (1547): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (14) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23680: Blogoterapia (303): A maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 5 de Outubro de 2022:

Olá companheiros de jornada.

Há já alguns anos que não vamos dando notícias, no entanto, sempre estiveram no nosso coração, porque foram vocês que nos ouviram e compreenderam em determinado momento da nossa vida quando tentámos tirar de cima de nós o peso de todas aquelas recordações da maldita guerra colonial que todos nós vivemos nas savanas e pântanos da então província da Guiné.

O dedicado companheiro Carlos Vinhal, sempre lembrou o dia do nosso nascimento e no último, agradecemos lembrando que naquela época andávamos por lá confusos, não sabendo se o o “oceano estava longe do mar”. Era verdade, porque infelizmente saímos da nossa aldeia do interior para ir participar nesta horrível guerra com a cultura dos livros aos quadradinhos que líamos, e que eram os únicos a que tínhamos acesso e eram as tais histórias do Mandrake, do Kit Carson, do Robin dos Bosques ou do Tarzan.

Esta era a nossa cultura até entrarmos no mercado da emigração. Depois, felizmente tivémos ascesso a outras escolas onde tivémos conhecimento da realidade do que foi a História de Portugal com a então África Portuguesa, não ficando lá muito espantados com que íamos aprendendo, como por exemplo o relacionamento e o porquê da presença de Portugal em África.

E as coisas começaram a clarificar-se. Assim compreendemos hoje o País Portugal estar a ser em parte colonizado por pessoas que antes foram colonizadas. É a vida, dizem alguns. Mas talvez seja a história a repetir-se agora em sentido inverso. É a tal frase onde dizíamos que o “oceano estava longe do mar”.

Sabiam que o comércio transatlântico de escravos guardava os segredos mais sombrios que, o para nós herói Infante D. Henrique, o Navegador de Portugal, ajudou a tornar o país Portugal em líder do comércio e na exploração, inclusive em África?

Que a escravidão entre as nações e tribos africanas existia muito antes de Colombo chegar ao Novo Mundo? E que África tinha uma robusta economia escravagista, sendo os escravos capturados e negociados por várias tribos e governantes africanos? E que foram vendidos a comerciantes oriundos de Portugal nos portos africanos, em troca de mercadorias que incluíam tecidos tingidos, armas de fogo, ferramentas e, às vezes, ouro?

Que Portugal se tornou no líder europeu no tráfico de escravos? Os seus navios e comerciantes aliaram-se ao Reino Africano do Kongo no século quinze, permitindo-lhes controlar a maior parte da costa de África e que o comércio entre europeus e africanos foi imposto aos últimos, com condições vantajosas para os primeiros?

Embora hoje as evidências sugiram o contrário, dizendo que várias tribos africanas ditavam os termos de comércio para os europeus, reforçados por combates armados ocasionais, tudo isto à medida que Portugal começou a explorar a sua então colónia do Brasil no tal Novo Mundo e onde precisava de uma força de trabalho.

Assim, o comércio tornou-se bastante lucrativo para os comerciantes e carregadores portugueses, financiados por um consórcio bancário que nem era português, tinha a sua origem em Génova. E mais, tinham as suas fortalezas e os seus portos estabelecidos na África, onde observavam os escravos capturados por seus parceiros africanos e, muitas vezes, os africanos estavam presos há meses, pois queriam garantir uma carga pronta quando os navios chegassem. Isso porque nenhum comerciante queria uma estadia prolongada na costa de África, numa época repleta de doenças.
Hoje tudo isto é história, no entanto naquela época, Portugal era dono de quase toda a costa de África e, o governo colonizador de Portugal de quando éramos jovens, queria continuar a sê-lo, obrigando-nos a ir combater, vendendo a “alma ao diabo”.

E nós, jovens oriundos da Europa, com uma educação de aldeia, onde os princípios honestos de família vinham de há séculos, fomos combater num horrível cenário, onde muitas vezes a angústia, o desespero e o medo, nos colocava numa situação horrível, onde entre outras coisas o álcool nos aliviava a mente, pelo menos por momentos, pois este cenário estava lá, estava sempre presente, era a cara da guerra, com feridos e mortos em combate para ambos os lados, incluindo a população civil desarmada.

E tudo isto para quê? Naquela época os famintos, os doentes, os analfabetos e a miséria eram constantes e, infelizmente continuaram, mesmo depois, quando parecia que já havia paz, fazendo-nos lembrar que de facto saímos de África físicamente, mas possívelmente não trouxémos as armas, as bombas e as balas, deixando lá apenas, como seria nossa inteira obrigação, todas as maravilhosas armas da paz do século XX.

E como o destino não perdoa, os antes colonizados estão agora aí a colonizarem um país que foi colonizador, e nós, antigos combatentes, que lutámos em outro continente, num cenário horrível e miserável, estamos a ser constantemente vítimas dessa nova colonização.

Para todos, queridos companheiros combatentes, desejo que continuemos muitos e muitos anos por cá, e com saúde, porque infelizmente, devido à idade avançada, vamos desaparecendo, todavia o corpo e a mente de um veterano de guerra, reage automáticamente aos disparos da memória, sentindo de novo em certos momentos, as feridas, o medo e o horror que por si passaram, enquanto presente num cenário de combate.

Porque a maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece. Contudo, já o dissemos em algumas vezes, o medo ou talvez coragem, que nos ajudou a sobreviver num campo de batalha, não funciona muito bem agora, nesta avançada idade, mas ainda vai sendo possível assumir o control dessa horrível vivência e, vamos continuando a expulsar alguma energia positiva que nos resta, daquela que nos foi roubada, pelo desastre da Guerra Colonial Portuguesa em África.

Tony Borie
Outubro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23393: Blogoterapia (302): Uma história verídica com o seu quê de humano (José Colaço, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Escapara-me esta obra de divulgação saída do punho de um jornalista cheio de pergaminhos. Não foi por acaso que surgiu em 1933, estamos numa época em que se procura a todo o transe publicitar os valores imperiais. No que toca à sua narrativa sobre a Guiné, Rocha Martins deu provas de grande probidade, não foi aos arquivos mas consultou a melhor bibliografia da época, não ilude a pressão exercida pelos franceses e ingleses para reduzir a presença portuguesa na Senegâmbia e descreve sumariamente a vida atribulada dos três primeiros governadores. Não se trata, pois, de obra de consulta imperativa para investigadores, era um puro exercício de divulgação, acontece que muito bem redigido. No seu todo, Rocha Martins podia dar-se por satisfeito com o seu libelo patriótico, ao mostrar que aquelas parcelas do Império sobrantes de tanta procela eram um motivo de orgulho pátrio, e a elas devíamos rapidamente atender, começando por as habitar, e fazê-las progredir.

Um abraço do
Mário



História das colónias portuguesas, por Rocha Martins

Mário Beja Santos


"História das Colónias Portuguesas, obra patriótica sob o patrocínio do Diário de Notícias", é da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa, reputado jornalista e plumitivo admirado, a edição é de 1933, Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade.

Como é óbvio, circunscrevemos as apreciações à colónia da Guiné. O autor faz um esboço histórico, refere as etnias, a natureza das selvas e dos rios, fala-nos nas companhias de tráfico de escravos e deixa o seguinte comentário: “Enorme e estranho território, nuns lugares fertilíssimo, noutros selvático e adusto, era habitado por tribos de caráter guerreiro, havendo, todavia, algumas que muito se compraziam em viver com os portugueses. O principal tráfico que se fez foi o da escravatura. Os Mouros, desde há muito, se entregavam àquele negócio, tendo em suas terras de Marrocos não só cativos negros mas brancos e cristãos. Os primeiros convertidos foram Fulas e Mandingas”.

Refere com detalhe a figura dos lançados, dos conversos ao Islamismo, observa usos e costumes: “Vestiam calção e camisola curta, usavam sandálias e barrete de algodão, à mourisca. Possuíam cavalos muito bem adestrados; as armas de guerra eram constituídas por zagaias, couraça de algodão empancado para lhes cobrir o peito e o ventre".

Enuncia as informações apresentadas por André Álvares d’Almada no seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dizendo que a mercadoria mais preciosa nesta época era o sal, que os Jalofos e os Mandingas transportavam. Era monopólio régio – trocavam o sal por oiro, escravos e estojos finos. Na esteira de André Alvares d’Almada faz a descrição do reino de Budamel. Relaciona Cabo Verde com a Guiné: “Na ilha de Santiago, onde se tinham instalado, em que os mercadores partiam e estabeleceram-se em Cacheu na Aldeia de Buramos ou Papéis de Cacanda e ali os portugueses viviam em comum com os indígenas. Manuel Lopes Cardoso, sem dúvida judeu, conseguiu, em 1588, uma concessão régia, podia construir em Cacheu uma fortaleza. Na margem direita do rio de S. Domingos estabeleceu outra feitoria em território Banhum, duas léguas abaixo de Cacheu”. É um autor que se sente dotado para contar histórias que sejam inclusivamente apreciadas por leitores de jornais. “Houve um português que se tornou marido da filha do rei Foulo, o grande soberano. Chamava-se João Ferreira e nascera no Crato, houve um filho deste matrimónio. Os indígenas alcunharam-no de Ganagoga – um homem que sabia todos os dialetos da negraria”. Os géneros que os portugueses levavam aos guinéus eram vinho, panos da Bretanha, vidros e moedas de dois reis.

Dá-nos também preferência do Mandimansa e depois foca-se em Cacheu. O primeiro Capitão-Mor de Cacheu foi António de Barros Bezerra, que trouxe criados, escravos, foragidos, vadios. Fortificou a povoação, rodeando-a de altíssima escadaria, abriu-se um fosso onde entravam as águas e se podia navegar. Artilhou o forte, feito de adobe e coberto de colmo, tal como a Igreja de Nossa Senhora do Vencimento. No período dos Filipes, o comércio dos portugueses continuava a ser o dos escravos, marfim e algum oiro. Vassalos de outros países penetravam à vontade em território onde primeiramente se manifestara só a presença portuguesa. Dá-nos igualmente a saber que com a restauração foi nomeado Capitão-Mor de Cacheu Gonçalo Gamboa de Ayala, que fundou Farim. Inevitavelmente, fala-nos das companhias do tráfico de escravos, da Companhia de Cacheu que introduziu na Nova Espanha dez mil toneladas de negros; não deixa de mencionar a Companhia de Grão Pará e Maranhão e das dificuldades sentidas, sucedeu-lhe a companhia de comércio exclusivo das ilhas de Cabo Verde e Cacheu, extinta em 1786. E começa o apertado cerco à Senegâmbia Portuguesa, a cobiça francesa, pretendia o porto de Bissau. É referido a demolição da fortaleza de Bissau, no reinado de D. João V, virá a ser refeita no reinado de D. José. Rocha Martins refere o período anárquico que se viveu durante as invasões francesas em que a Corte for para o Brasil. E depois de nos dar um quadro da vida em Bissau, Geba e Bolama e da Ilha das Galinhas refere a tentativa dos Franceses e dos Ingleses para os expulsar da região. A intensidade da intervenção francesa no princípio do século XIX, fala-se da questão do Casamansa, das diligências de Caetano Nozolini e António Pereira Barreto e como se conseguiu impedir a presença britânica em Bolama. Refere a política de Latino Coelho, Ministro da Marinha e Ultramar que aprovou uma nova divisão administrativa da Guiné em 1869. Ao Conselho de Cacheu juntavam-se Farim, Ziguinchor, Mata e Bolor; a Bissau pertenciam Geba, Colirna, Orango e Bolola.

Depois do chamado desastre de Bolor, dá-se autonomização da Guiné em 1879, e é nomeado como primeiro Governador o Coronel Agostinho Coelho. Este relatou para Lisboa que a situação era tremenda, exercia-se um certo domínio em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Bolama e sobre meia légua de terra denominada Colónia do Rio Grande. “Portugal exerce um simulacro de soberania, tem vindo a abandonar lugares como Bolor, no rio de S. Domingos onde havia um destacamento de três praças com o fim único de içar a bandeira quando passa o navio. Em S. Belchior, Viena, Fá e Corubal não há bandeira nem autoridade portuguesa. Os negociantes de Buba pagam além de presentes isolados a um outro rei a respeitável soma de oito contos de reis a título de imposto. Franceses e indígenas de Buba não reconheciam o domínio nacional. As fortalezas caíam em ruína. Para policiar todas as regiões havia duzentos e tantos soldados e para os rios uma velha escuna A Bissau”. É neste quadro que vai atuar o primeiro governador com um pequeno efetivo a que se irão juntar 142 praças do batalhão de Moçambique: obrigando o régulo de Orango a pagar a austríacos 6 mil francos que lhes tinham roubado; os Fulas atacaram Buba que foi defendida por 200 portuguesas; os Beafadas atacaram os Fulas. Rocha Martins refere ainda a atividade do segundo e terceiro governadores.

O segundo, Pedro Inácio de Gouveia, recebeu espingardas do governo central, nesse tempo os franceses intervinham escandalosamente no Casamansa, declaravam que Portugal só possuía Ziguinchor. Os Fulas atacavam no Rio Grande, foi necessário enviar um contingente que os obrigou a fazer a paz. Rocha Martins refere o papel do tenente Francisco Marques Geraldes e como Bakar Kadali derrotou os rebeldes no Forreá, obrigando Mamadi Paté a pedir a paz. O terceiro governador foi o oficial da Armada Francisco Gomes Barbosa, e Rocha Martins escreve: “Os Franceses iam apertando o cerco do seu território, encravando a Guiné. Tinham Senegal e queriam Casamansa, ocuparam ilhas sob o título de Riviera do Sul. A Inglaterra dominava na Gâmbia e na Serra Leoa. Ia porém chegar o momento em que se inaugurava o período contemporâneo da vida colonial com a Conferência de Berlim, onde se decidiu os destinos das possessões em África. Os portugueses tinham ido à descoberta; nenhum povo os precedera nessa obra; depois, mercê do domínio espanhol, das suas lutas indestinas, da grandeza das suas possessões, que as cobiças maldeixavam, iam ver-se em situação de que lhe era difícil defender o que lhe pertencia. Conseguiu-se, porém, à custa de um novo esforço. Ressuscitaria, em parte, a sua velha epopeia”.

Notas bastante curiosas de alguém que se afadigou em tempos de Ditadura Nacional a fazer uma radiografia do Império, num texto cheio de motivação e onde houve o cuidado de procurar dar informações idóneas à luz dos conhecimentos da época.

Mapa de África datado de 1572
Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
Sonô, a escultura guineense mais disputada nos leilões internacionais
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23290: Historiografia da presença portuguesa em África (318): “Por Terras da Guiné, Notas de um Antigo Missionário, Padre João Esteves Ribeiro” publicado em "Portugal Missionário, reunião havida no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim em 1928"; edição da Tipografia das Missões em Couto de Cucujães em 1929 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23183: Historiografia da presença portuguesa em África (313): Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777) (Mário Beja Santos)

Carta da Costa Ocidental de África, feita em Amesterdão, 1705


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
É mesmo para ter em conta o que aqui relata o Tenente Bernardino António Álvares de Andrade, a viver há dez anos e oito meses na Praça de S. José de Bissau, escreve uma Memória para um Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor que não sabemos de quem se trata, e dá-lhe informações preciosas sobre a nossa presença na ilha de Bissau, nas nossas relações com os Felupes e o comércio de Cacheu, desce depois a Tombali e ao rio Nuno, sobe à povoação de Geba e dá-nos a saber que um tal José Lopes ofereceu a Sua Majestade domínio senhorio que tinha na Serra Leoa. Várias ilações podemos extrair deste texto: referências a régulos déspotas nas cercanias da ilha de Bissau, pouca lealdade à soberania portuguesa, algum tráfico negreiro; uma admirável descrição dos Felupes de Bolor e da sua lealdade com Cacheu; negócios concorrenciais de Tombali e em Rio Nuno, na Serra Leoa tinham chegado os ingleses recentemente e hostilizavam às claras a presença portuguesa; considerar a povoação de Geba como a de melhores negócios e de plenos recursos, por ali andou acompanhado de administradores da Companhia de Grão-Pará e Maranhão; e a doação de José-Lopes dos seus bens na Serra Leoa ao rei de Portugal (D. Maria I), que seguramente não teve efeitos práticos. Somando estas parcelas caleidoscópicas que podemos ir formando uma certa ideia do que era a nossa presença na Guiné no último quartel do século XVIII.

Um abraço do
Mário



Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777)

Mário Beja Santos

No Arquivo das Colónias, Volume I, Julho-Dezembro de 1917, encontra-se um bem curioso documento que é a Memória que o Tenente Bernardino de Andrade elaborou em 1777 para informar o Governo da Guiné e dos seus recursos. Um dos aspetos mais curiosos do texto é ele revelar como foi cedido a Portugal o território da Serra Leoa. Em rigor não sabemos a quem se dirige, fala sempre no Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor a quem expõe sobre a ilha de Bissau, a terra firme da Guiné, Serra Leoa e Cacheu:

“Divide-se a ilha de Bissau da terra firme da Guiné por um pequeno rio chamado o de Balantas”. Refere algumas das frutas próprias do país (banana, mamão ou papaia e limão azedo). Fala numa viagem de três horas de Bissau a um outro porto chamado dos Brames onde vivem Balantas: 

“Nação indómita, muito traidores, cruéis nos seus procedimentos, vendem poucos escravos, raras vezes marfim e nenhuma vez cera”. Alude ao porto de Bejamita, na ilha de Bissau, onde se compra sal, arroz, algum milho, azeite de chabéu, diz ser povoada de muita madeira boa, para obras navais e de edifícios, aqui se vendem alguns escravos, é abundante dos frutos próprios do país, tem abundância de peixe, caça de toda a qualidade e produz bem a mandioca. “Deste porto para a Praça de Bissau há caminho por terra, em que se gasta pouco menos de um dia, é governada por um fidalgo despótico no seu governo, mas quando este morre herda o sobrinho filho do irmão, e para herdar dá certos donativos ao rei da ilha de Bissau”

Refere igualmente outros lugares como Safim, porto antes de chegar ao de Bejamita.

Está agora a caminho de Cacheu e refere Felupe do Bote, porto abundante de arroz, milho, galinhas, peixe, porcos, azeite de chabéu, diz ser gente de muito má fé, revoltosos, inimigos declarados de franceses e ingleses, admitem nos seus portos as embarcações portuguesas, neles se fazem negócio de mantimento para a praça, mas com muita vigilância, “e cuidado por amor da sua traição”

Fala igualmente de Felupe de Bolor, dizendo que é gentio manso e que se intitulam vassalos do nosso soberano, praticam as mesmas cerimónias que se veem usar na praça de Cacheu, onde vão levar escravos, mas caros, muitos bons porcos e em bom preço. 

“Esta nação tem por costume ser obrigada, nem lhe ser penoso, quando sucede haver alguma diferença em Cacheu com o gentio do seu continente, logo que ouvem a peça de rebate largam as suas casas e nas suas próprias embarcações, e com as suas armas, nos vêm auxiliar e ajudar à defesa da Praça. Esta nação pouco cultiva, mas são as que mais vendem e aonde se acha mais abundância de mantimentos; porque até as próprias mulheres metidas em embarcações, sem decência alguma em seu corpo, andam comprando de porto em porto; elas são as mesmas que remam nas suas embarcações, as que limpam o arroz, e os maridos só servem para o venderem, e para lhe defenderem a terra dos invasores de outros bárbaros, que lhe acometem”.

O Tenente Bernardino António Álvares de Andrade refere agora a terra firme de Guiné e o caminho de Serra Leoa. Começa em Tombali e fala na venda de escravos, cera e marfim, esta nação Beafada vai vender aos ingleses e franceses que frequentam o rio de Nuno. O porto de Tombali tem abundância de arroz, milho, galinhas, peixe e frutos do país, tem muita caça e muita vaca. Ficamos a saber que o rio de Nuno é povoado pela nação Beafada e alguns Fulas. Nalguns portos deste rio se faz negócio abundante em escravos e marfim, mas caro, pela frequência dos navios estrangeiros. Um deles chama-se porto de Santa Cruz e ainda há alguns vestígios de uma população portuguesa, e nela se adora uma cruz, há cristãos dispersos sem pasto e espiritual. Deste porto faz-se caminho por terra tanto para a Serra Leoa como para Geba. O Tenente Andrade refere o Porto dos Ídolos, povoado de gentio mouro preto, aonde vão carregar franceses e ingleses os seus escravos. No princípio do ano de 1775 principiaram os ingleses de Liverpool a fortificar uma casa de negócio neste porto, para o que tinham levado artilharia e materiais precisos. E adverte na sua memória: 

“Os ingleses não querem dar passagem às nossas embarcações, e quando veem que os capitães são frouxos, e lhe não sabem dizer que aquele continente é conquista descoberta pela nação portuguesa e a esta doado pelos nacionais do mesmo país o direito, que tinham dele ao nosso soberano”.

Fala da viagem da ilha de Bissau para a povoação portuguesa de Geba, demora de quatro a cinco dias sem perda de tempo. 

“Todo o gentio deste sertão estima a correspondência dos nossos nacionais que a eles vendem os escravos, cera e marfim que têm. A povoação de Geba é grande, tem um só padre. O governo desta povoação intitula-se capitão Cabo que se costuma dar este governo aos filhos da terra, e os nacionais do mesmo país, ainda que cristãos, são muito revoltosos, levantados, sem fé além de Deus e sem obediência à de Sua Majestade. É esta a melhor povoação de negócio de Guiné, farta de mantimentos da terra, muito povoada de matos de boas madeiras, cercada de muitas povoações e aldeias de mouros pretos, Soninqués e Fulas. Segue-se o mesmo rio Geba sempre caminhando a leste oito dias de viagem, no fim destes se dá em uma cachoeira por onde não pode passar a embarcação, mas em pouca distância é navegável, e dizem os naturais daquele país que, caminhando-se pela margem daquele rio, se dá em uma grande lagoa, e que desta despede outro rio também de água doce. Esta é a informação mais comum, e certa, que achei em as repetidas jornadas que fiz por terra, e pelo mesmo rio em serviço de Sua Majestade, acompanhando aos administradores da Companhia de Grão-Pará e Maranhão na condução das remessas que se lhe faziam para a dita casa”.

E despede-se do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor referindo a doação que fez José Lopes da Serra Leoa: 

“No ano de 1760 do feliz reinado do fidelíssimo rei D. José, doou José Lopes em presença de todos os seus parentes e cabeças daqueles povos e de todo o povo e por parte do nosso soberano o Capitão Cabo António Godim Sanches e Frei Fernando da Feira e outros se celebrou a escritura de doação para todo o sempre do domínio e senhorio que ele tinha da Serra Leoa, para que Sua Majestade houvesse por bem fortificá-la e fundar nela igreja e convento e tudo mais que fosse do seu real agrado. Tomou posse em nome de Sua Majestade António Godim Sanches e foi remetida a esta Corte pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. É do que posso informar a Vossa Excelência pelas notas que tenho adquirido em dez anos e oito meses de actual serviço na Praça de S. José de Bissau”.
Capturados e vendidos numa feitoria do litoral
Sónó de bronze com braços laterais e figura de um cavalo na extremidade superior, atribuído ao grupo soninquê. 1,23m. Acervo do Museu Nacional de Etnologia (Lisboa)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23164: Historiografia da presença portuguesa em África (312): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (3) (Mário Beja Santos)