quarta-feira, 4 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1644: A morte do 1º cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (4): Recordando o mítico Morés (Afonso M.F. Sousa / Carlos Fortunato)

Guiné > Região do Oio > Morés > Folha de manual escolar do PAIGC, impresso na Suécia. Documento apreendido pela CCAÇ 13 no decurso da Operação Jaguar, em 9 de Junho de 1970.

Foto: © Carlos Fortunato (2007) (Reproduzida, com a devida vénia, da sua excelente página pessoal > Guiné - Os Leões Negros, CCAÇ 13, 1969/71).



Guiné > Bissorã / Mansoa > Duas fotos tiradas pelo ex-Furriel Miliciano da CCAÇ 13, Carlos Fortunato (1969/71), quando um dia passou por Braia-Infandre a escoltar uma coluna. O Carlso que esteve sobretudo em Bissorã, é uma apaixoanda pela terra e pelas gentes da Guiné-Bissau, que revisitou recentemente, em Novembro de 2006. Tenciona lá voltar em 2011.

Fotos: © Carlos Fortunato (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Afonso M. F. Sousa (subtítulos da responsabilidade do editor do blogue):

Com que emoção recebo e leio esta excelente notícia! Há quanto tempo que eu e a irmã do meu conterrâneo José Mamede procuramos saber aonde e em que circunstâncias ele terá tombado em combate (1).

Com todas as entreajudas, boas-vontades, persistências e com esta ferramenta extraordinária que é a Internet, hoje chegámos ao objectivo pretendido.

Todas as peças do puzzle foram sendo sucessivamente montadas e o intuito foi atingido. Sempre pensei que depois de ter chegado à descoberta do local onde se deu a ocorrência fatídica (Infandre), mais tarde ou mais cedo chegaria à localização de alguém que nesse 12/10/70 a tenha acompanhado de perto ou mesmo integrado. Tinha essa esperança e hoje, dia 1 de Abril de 2007, isso, finalmente, concretizou-se, mesmo coincidindo com o dia das imaginações férteis. É assim que se faz a memória da Guerra Colonial e, em particular da Guiné. Com o contributo e empenhamento de todos (2).

Envolvo todos os meus amigos num abraço de sincero agradecimento e permitam-me que dê também conhecimento deste resultado final ao Senhor Director do Arquivo Histórico Militar do Exército - Sr. Tenente-Coronel Aniceto Henrique Afonso e agradecer-lhe a sua nota nº 691/2006, de 3 de Outubro de 2006 e a sua disponibilidade para uma continuação da investigação rumo ao objectivo que agora se atingiu.

Um obrigado também ao Carlos Fortunato pelos mails que comigo trocou há dias, pelas dicas que me deu e pela sua disponibilidade e empenho. A especulação que o Carlos Fortunato chegou a fazer apontava para a morte deste meu amigo e conterrâneo através de um ataque ou numa patrulha. E a verdade aí está: emboscada numa picagem e protecção a coluna, no itinerário Braia-Infandre (apenas 2 Km). E a sua percepção foi mais longe, quando me referiu: (desculpem a transcrição já que alguns dos amigos não tiveram acesso ao teor destes mails):


Mito e realidade do Morés

«Penso que a função deste aquartelamento, em Braia, era fundamentalmente defensiva, pois assegurava que a ponte não era destruída, e também dava proteccção à zona entre a ponte e Mansoa, pois o rio Braia dificultava a fuga aos guerrilheiro que actuassem nessa zona. Este sistema defensivo permitia que, entre Braia/Infandre e Bissorã, o PAIGC podia facilmente movimentar-se, pois não existia (naquela altura) mais nenhum quartel entre Braia/Infandre e Bissorã, e colocava Braia/Infandre na linha da frente. Infandre gozava do apoio das armas pesadas de Mansoa, e mais tarde também de Bissorã, e poderia ser socorrida por Mansoa, que ficava a pouca distância.

"Na estrada que seguia para Bissorã, depois de Infandre, tínhamos do lado direito da estrada, a uns 10 Kms, o Morés, onde estava o QG do PAIGC para a zona norte, era um dos seus santuários, e era considerado zona libertada; do lado esquerdo da estrada, tínhamos o Queré, nele existia um bigrupo, reforçado com uma unidade de artilharia (60 a 80 guerrilheiros).

"Na altura o que se pensava do Morés, era que existiam ali estacionados 900 guerrilheiros do PAIGC, nos quais se incluiam cubanos, possuindo armas pesadas (morteiros 82). A CCAÇ 13 foi lá uma vez, com 70 homens, e não ficou com saudades de lá voltar (Operação Jaguar descrita no site da CCAÇ 13 - Os Leões Negros). O que acontecia aos aquartelamentes estacionados naquela zona eram ataques pontuais do PAIGC, e confrontos durante as patrulhas ou operações que fazíamos.

"Poder-se-à dizer que existia um aquartelamento em Braia e outro em Infandre, não me lembro de tal (*), apenas me lembro de existir aquele. Especulando poderíamos imaginar que a tarefa do Pelotão de Caçadores Nativos 58 (1) seria a de assegurar a defesa da ponte e servir de tampão para a zona entre a ponte e Mansoa, pois face ao poderio inimigo na zona não tinha capacidade atacante, provavelmente faria patrulhas de proximidade, junto ao aquartelamento.

"Quando tiver oportunidade vou tentar reduzir um outro filme que fiz sobre Braia e envio-lhe por e-mail, o filme completo ocupa 356 MB, é demasiado grande para o conseguir enviar. As fotos foram tiradas na zona de Mansoa, mas já não me lembro se são do quartel que estava em Braia (eu penso que sim), ou se foram tiradas à entrada de Mansoa. Penso que o aquartelamento de Infandre ficava em Braia, quando se passava a ponte, era do lado direito.

"Quando estive em Braia (3), ainda havia algumas paredes de pé, mas à sua volta era um mato cerrado, que quase não dava para as visualizar. Junto envio-lhes 2 fotos tiradas por mim quando passei por Braia (Quartel de Infandre ?) a escoltar uma coluna. Na que tirei para a frente vê-se a ponte e o quartel à direita, e na que tirei para trás a bolanha e a enorme coluna de viaturas civis. O único problema, como lhe referi é que neste caso a minha memória não é clara, tenho a certeza absoluta que é na zona de Mansoa, mas já não tenho a certeza absoluta de ser Infandre, embora creia que sim, pois não me lembro de outro local ou aquartelamento assim. Talvez outros camaradas possam ajudar a confirmar o que descrevi (*).

"Em 2011 conto voltar à Guiné, e vou estar novamente nessa zona, caso não se consiga nenhuma informação até lá, talvez eu encontre alguém do Pelotão de Caçadores 58".

Houve festa na aldeia à minha chegada da Guiné

E já agora, permitam-se abusar da vossa paciência para lhes deixar esta confidência que, no fundo, justifica, de alguma forma, o meu interesse neste assunto e na sua clarificação quanto aos pontos que acima referi.

Era usual, na minha terra natal, a população homenagear todo aquele filho que regressava após o cumprimento do serviço militar no ultramar. A mim também me surpreenderam e, praticamente, exigiram-me esse acolhimento. Lá tive que fazer os 80 Km de distância que separavam a terra de residência, após o casamento [Ovar], e a terra de origem [Casal Comba, Mealhada] para ser recebido no centro cultural da aldeia e assistir, durante a noite, à exibição de uma banda musical, onde o povo manifestou a seu contentamento pela minha chegada da Guiné.

Para mim era tudo muito exagerado, mas a espontaneidade e pureza deste povo simples não me permitiu dizer não. Eu fui o último militar a quem, na minha terra, fizeram este tipo de manifestação de júbilo. Cinco meses depois da minha chegada, aquela aldeia estava a viver um momento de grande tristeza. O José da Cruz Mamede (1º cabo) chegava da Guiné mas jamais para voltar ao convívio dos vivos. Como alguém disse, a implacável lei da vida tornou-lhe o caminho mais curto. E quanto o Zé era estimado por aquelas gentes. No ultramar, tinha morrido o 1º militar oriundo daquela terra. Foi o fatídico 12 de Outubro de 1970, algures, num qualquer sítio da Guiné. Hoje fiquei a saber aonde e em que circunstâncias.

Afonso Sousa

PS - Mando em anexo as 2 magníficas fotos da autoria do Carlos Fortunato. É pena que ainda não possamos ver (com total definição) a zona Infandre-Mansoa, através do Google Earth. Talvez só dentro de um ano.

__________

Nota do Carlos Fortunato:

(*) O César Dias poderá confirmar ?

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts de:

3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)

3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1642: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (2) : Em Infandre, a 13 km de Mansoa (Afonso M. F. Sousa)

3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1643: A morte do 1º cabo José da Cruz Mamede, do Pel Cacç Nat 58 (3): 10 mortos em emboscada com luta corpo a corpo (César Dias)

(2) É de registar o mail que o Joaquim Mexia Alves mandou, em tempo oportuno (20 de Março de 2007) ao Afonso, e que passo a transcrever:

Caro Afonso Sousa: Tenho pena mas não te posso ajudar no que me pedes.
Fui para Mansoa em meados de 1973 (Julho ou Agosto), para a CCAÇ 15 e, por falta de Capitão, mal cheguei, e porque era o mais velho, passei a comandar a Companhia. Estive lá até Dezembro de 1973, tendo regressado à Metrópole.

Não me recordo, sinceramente, de ter ouvido falar no Pel Caç Nat 58. Aliás aquela zona, por força das colunas para Norte, o Morés, etc., falava-se apenas da situação do momento [e não do passado].

Espero que consigas saber o que procuras. Lembro-me que no meu tempo a CCAÇ 13 13 era comandada pelo Oliveira, Cap Miliciano, que tinha o Curso de Rangers. Talvez pela Associação de Operações Especiais, em Lamego, consigas localizá-lo e fazer-lhe as perguntas que desejas.

Abraço amigo do Joaquim Mexia Alves

(3) Vd. post de 17 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1533: De regresso a Bissorã: Uma viagem fantástica (Carlos Fortunato)

terça-feira, 3 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1643: A morte do 1º cabo José da Cruz Mamede, do Pel Cacç Nat 58 (3): 10 mortos em emboscada com luta corpo a corpo (César Dias)

1. Mensagem do César Dias (ex-Fur Mil Sapador Inf, CCS do BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71)(1):

Olá, companheiros de bala:

É verdade, o Pel Caç Nat 58, juntamente com a CCAÇ 2589, defendia o itinerário Mansoa - Infandre – Namedão (segurança e picagem para passagem de colunas para Bissorã e Olossato), itinerário esse que fazia parte do sector de Mansoa onde estava sediado o meu BCAÇ 2885 (1).

Sobre o Alferes Miliciano que comandava o Pel Caç Nat 58 (2), era desde Junho de 1970 o Alf Mil At, nº 16831968, Eduardo Ribeiro Manuel Cardoso Guerra que tinha vindo da CCAÇ 2679 para substituir o Alf Mil nº 04140867 [...] que terminara a comissão em 30 de Abril de 1970. Em 7 de Janeiro de 1971 o Alf Mil Eduardo Guerra foi evacuado para a metrópole, não sei se por doença ou se por ferimento em combate.

Quanto ao malogrado 1º Cabo José da Cruz Mamede (2), nº 17762169, veio do RI 3, tendo desembarcado em Bissau a 21 de Novembro de 1969 para substituir o 1º Cabo Joaquim da Silva Magalhães, nº 01779368, que havia falecido em combate em 30 de Agosto de 1969.

Amigos e camaradas: 12 de Outubro de 1970 é uma data que recordo com tristeza. Como muitas outras, era mais uma coluna a passar naquele itinerário (Braia-Infandre), mas daquela vez havia à volta duma centena de guerrilheiros, emboscados com morteiros, lança granadas-foguete (RPG) e armas automáticas.

Chegaram mesmo a lutar corpo a corpo. Sofremos 10 mortos (entre os quais, do Pel Caç Nat 58, o 1º cabo José Mamede , o 1º cabo Joaquim Baná, e os soldados Cumba, Seidi, Mundi e Baldé; da CCAÇ 2589 o meu amigo Furriel Miliciano de Op Esp Dinis Castro, e os soldados Joaquim João Silva, Joaquim Manuel Silva e Duarte Ribeiro Gualdino, a quem presto sentida homenagem). Tivemos ainda 9 feridos graves, 8 feridos ligeiros e um soldado capturado.

Recorri aos documentos que guardo com muito carinho, e mais uma vez fiquei emocionado. Espero ter ajudado

Um abraço para todos

César Dias
Ex Furriel Miliciano do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)

PS - Ao Luís Graça, mais uma vez o nosso obrigado por tornar possível situações destas. Bem Hajas !

2. Informação complementar do Benjamim Durães (ex-furriel miliciano do Pel Rec, CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/72) (3):

Pela informação do tertuliano César Dias, ex-furriel miliciano do BCAÇ 2885, averiguei quais os nomes completos dos nossos ex-camaradas (dez) que nesse dia 12 de Outubro de 1970 morreram, e que passo a indicar:

Furriel Miliciano Dinis César Castro;
1º Cabo José Cruz Mamede;
1º Cabo Joaquim Banam;
Soldado Duarte Ribeiro Gualdino;
Soldado Joaquim João Silva;
Soldado Joaquim Manuel Silva;
Soldado Gilberto Mamadu Baldé;
Soldado Idrissa Seidi;
Soldado Tangina Muté;
Soldado Betaquete Cumbá.

Força, Afonso, é assim que não nos esquecemos dos nossos mortos de guerra. Recordá-los é honrar as suas memórias. Ao César o meu muito obrigado por teres contribuído para um melhor esclarecimento da morte do Mamede. O blogue e a tertúlia do Luís Graça & Camaradas da Guiné existem para isso mesmo.

Benjamim Durães
_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1557: No regresso éramos menos 32 (César Dias, CCS do BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71)

(2) Vd. posts de:

3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)

3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1642: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (2) : Em Infandre, a 13 km de Mansoa (Afonso M. F. Sousa)

(3) Vd. post de 21 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1618: Tertúlia: Benjamim Durães, ex-furriel mil da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)

Guiné 63/74 - P1642: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (2) : Em Infandre, a 13 km de Mansoa (Afonso M. F. Sousa)

1. Mensagem do Afonso M. F. Sousa:

Olá, caro amigo Benjamim !

Com que satisfação recebi este seu mail, dando-me indicações sobre o trajecto do Pelotão de Caçadores nº 58 (1). Este é um assunto que me vem interessando há já algum tempo. Efectivamente, persisto em tentar descobrir o aonde, quando e em que circunstâncias terá caído mortalmente um amigo e conterrâneo meu, na Guiné (em 12/10/1970). É um objectivo que eu e uma irmã dele perseguimos com todo o entusiasmo.

Diligências nesse sentido já fiz muitas, mas não tinha ainda obtido quaisquer resultados práticos. Talvez que, agora, com a sua prestimosa informação, se possa avançar na procura do alferes ou furriel que em 12 de Outubro de 1970 comandava o Pel Caç Nat 58, em Infandre (a 13 Km de Mansoa, a 45 Km de Bambadinca e a 50 Km de Bissau).

Um deles poder-me-ia informar o sítio exacto da sua morte e em que circunstâncias. Vamos ver se consigo chegar a este desiderato.

Sei que a CCAÇ 13 fez patrulhamentos nesta zona, a partir de 7 de Março de 1971.Quem sabe se algum dos seus elementos conhecia o nome do alferes, comandante daquele pelotão, em Outubro de 70, ou algum outro dos seus elementos brancos. Sei que o Carlos Fortunato pertenceu à CCAÇ 13 e, eventualmente, talvez me possa dizer algo sobre isto. Por isso tomo a ousadia de lhe enviar, também, cópia deste mail, agradecendo-lhe, desde já, a sua eventual ajuda. E, se calhar, atrevo-me a pedir igual favor a outros nossos amigos que estiveram em terras de Mansoa, como o Paulo Lage Raposo, o José Afonso ou o Joaquim Mexia Alves, aos quais, antecipidamente peço
desculpa do meu atrevimento.

Um grandes abraço para todos.

Afonso M. F. Sousa

2. O Benjamim Durães, em mail de 1 de Abril de 2007, sugeriu ao Afonso para contactar o César Vieira Dias (2), membro recente da nossa tertúlia:

(...) "Aqui volto a dar-te mais algumas dicas quanto ao Pel Caç Nat 58 que esteve em Infandre.

"Salvo melhor opinião, penso que o Pel Caç Nat 58, em Outubro de 1970 (mês em que morreu o teu amigo, 1º Cabo José da Cruz Mamede) estava sob o comando da CCS do BCAÇ 2885, de que fazia parte o Furriel Miliciano César Dias, membro da nossa tertúlia. Talvez ele possa dar mais alguma informação" (...).

___________

Notas de L. G.:

(1) Vd. post de 3 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)

(2) Vd. post de 1 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1557: No regresso éramos menos 32 (César Dias, CCS do BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71)

Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)

1. Em 25 de Setembro de 2006, o nosso camarada Afonso M.F. Sousa iniciou uma série de pesquisas sobre a morte, no TO da Guiné, de um amigo e conterrâneo, o José da Cruz Mamede, começando por mandar a seguinte mensagem ao Arquivo Histórico-Militar:


Exmo. Senhor Director do Arquivo Histórico Militar do Exército (Sr. Tenente-Coronel Aniceto Henrique Afonso)

Na qualidade de ex-combatente do exército português no ex-território ultramarino da Guiné (Agosto 1968-Maio 1970), venho junto de V. Exa. na tentativa de recolha da seguinte informação:

Um conterrâneo meu, o José da Cruz Mamede (1º cabo), jamais chegaria da Guiné para voltar ao convívio dos vivos. Como alguém disse, a implacável lei da vida tornou-lhe o caminho mais curto. E quanto o Zezito era estimado pelas gentes da sua terra! No ultramar, tinha morrido o 1º militar oriundo daquela povoação. Foi o fatídico 12 de Outubro de 1970, algures, num qualquer sítio da Guiné. Ultimamente tenho querido saber onde isso terá acontecido e é isso que me leva a dirigir-me a V. Excia.

Ele foi mobilizado pelo RI3 e pertenceu ao Pelotão de Caçadores Nativos 58. A ajuda que lhe pedia era esta: se consta desse arquivo histórico os locais onde esteve e, sobretudo, o local onde faleceu, em combate.

Dados de identificação:

Nome: José da Cruz Mamede > 1º Cabo Exe - Guiné
Unidade de Mobilização: RI 3
Unidade no TO da Guiné: Pel Caç 58
Naturalidade: Casal Comba – Mealhada
Data da morte em combate: 12-10-1970

2. A resposta do Arquivo Histórico Militar veio a seguir, sob a forma da Nota nº 691/2006, de 3 de Outubro de 2006, informando o local em que o ex-1º cabo Mamede tinha sido morto em combate: Infandre (Mansoa).

3. Vários camaradas e amigos, deram informações ou pistas ao Afonso relacionadas com este caso e com o Pel Caç Nat 58. É justo referir aqui os seguintes:

Paulo Reis > 10 de Novembro de 2006:

(...) Gostaria de poder ajudá-lo com algo de mais concreto, mas as poucas pesquisas que fiz, até agora, têm-se concentrado nas companhias de comandos. O acesso aos arquivos do CTIG é livre, podendo ser consultados por qualquer pessoa que se drija ao arquivo histórico-militar, que abre das 11h00 da manhã até às 19h00, julgo eu.Só retomarei as minhas pesquisas lá a partir de Novembro. O que posso fazer é perguntar, nessa altura, que material lá há sobre a unidade que me referiu e tentar obter os dados de que necessita (...).

Eduardo Magalhães Ribeiro (o nosso pira de Mansoa) > 10 de Setembro de 2006:

(...) Aconselho aos que gostam de exactidão, a adquirir 2 livros, não muito caros, nos Museus Militares de Lisboa e Porto (...). Já aqui atrasado, reparei que alguém disse que desconhecia que na Guiné houvesse GEs - Grupos Especiais. Pois bem, segundo estes livros, da autoria do Estado Maior de Exército,em 1973 haviam 13 Grupos Especiais de Milícias, que aumentatram para 35 em 1974.

Têm todas as informações úteis sobre batalhões, companhias, mapas, esquemas, etc. (...)

Benjamim Durães > 18 de Março de 2007:

(...) Com um grande abraço de um ex-combatente na Guiné, aqui vos forneço o solicitado, e em anexo segue o guião do Pelotão de Caçadores 58 [que não chegou ao editor do blogue].

De acordo com o vosso pedido, de Setembro de 2005, (pois só agora fui ao site em causa (Kimbas do Olossato)[página da CCAV 3378,Olossato, 1971/73] passo a indicar quando foi formado o Pelotão, e as localidades onde estiveram.

O Pelotão de Caçadores [Nativos] nº 58 foi uma unidade formada na Guiné (CTIG). Iniciou, em Bissau, as suas funções em Abril de 1967. Em Junho de 1967 foi transferido para o Cacheu. Em Agosto de 1967, foi para Teixeira Pinto. Um ano depois (Ago-1968) voltou ao Cacheu. Em Abril de 1969, foi para Canjambari. Em Novembro de 1969, foi colocado em Infandre [Mansoa], onde permaneceu, para além do 25 de Abril de 1974 (...)

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1640: A africanização da guerra (A. Marques Lopes)

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971 > A famosa e feliz foto do ex-Alf Mil Médico Amaral Bernardo: a saída do obus 14, de noite. "Foi tirada com a máquina rente ao chão. Bedanda tinha três. Uma arma demolidora. Um supositório de 50 quilos lançado a 14 km de distância... Era um pavor quando disparavam os três ao mesmo tempo... Era costume pregar sustos aos periquitos... Eu também tive honras de obus, quando lá cheguei... Guileje não tinha nenhum bus, mas sim três peças de artilharia 11.4. A peça era esteticamente mais elegante do que o obus" - disse-me ele, esta tarde, no seu gabinete no Hospital Geral de Santo António, que é a sua segunda casa , e onde é o director director do ensino pré-graduado da licenciatura de medicina ICBAS - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar/HGSA Ciclo Clínico (ou seja, responsável por cerca de 550 alunos, um batalhão)...

m Bedanda, durante 13 meses, sob o comando do capitão de cavalaria Ayala Botto. Um grande comandante,um verdadeiro oficial de cavalaria... que nos derretia com mimos: ovos liofilizados e outras delícias, que vinham de Lisboa, de uma fábrica da família... Estive primeiro em Cacine, que era deslumbrante... Percorri todo o sul, acabando em Bolama, depois de passar por Bedanda, Gadamael, Guileje, Tite...A CÇAÇ 6 tinha fulas e um pelotão de balantas... Em Bedanda, os tipos do PAIGC apareciam nas minhas consultas, nas calmas, disfarçados com a população... Bedanda, no tempo das chuvas, era inacessível por terra, transformava-se numa ilha. Ficava entre dois rios, o Cumbijã, a oeste e o seu afluente, o Ungauriul, a leste e a norte... Era abastecia pelos fuzileiros e pela força aérea... Em 2005 falei com o Nino sobre os ataques a Bedanda, quando ele era o comandante da região sul... Havia malta na tabanca que lhe fazia sinais de luz (com uma lanterna) para orientação do tiro... À terceira, eles acertavam todas... Os melhores abrigos, à prova do 120, eram os de Guileje... Mas o Spínola proibiu a construção de mais bunkers, queria que o pessoal fosse todo para as valas... Foram tempos muitos duros, tive uma actividade como médico... e eu próprio cheguei a desejar secretamente ser ferido para poder ser evacuado dali"...

Foto: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.



1. Amigos e camaradas: Estou no Porto e não tenho acesso aos ficheiros que alimentam o blogue(e-mails, imagens, textos...). Tenho, no entanto, diversos posts pendentes. Entre eles, material que o A. Marques Lopes tem vindo a compilar sobre as NT, as nossas baixas, etc., no TO da Guiné. Parte deste material já circulou pela tertúlia, mas ainda não foi divulgada através do blogue.

Mesmo sem a competente explicação do autor, acho útil para já divulgar a lista de unidades formadas na Guiné, com pessoal africano, ao longo dos anos. Algumas são mesmo anteriores ao começo oficial da guerra, como foi o caso das 1ª, 3ª e 4ª CCAÇ. Todas tinham quadros de origem metropolitana, com excepção das companhias de comandos, fundadas em 1969 (a 1ª CCmds Afr) e 1971 (as 2ª e 3ª CCmds Afr).

Vários dos membros da nossa tertúlia pertenceram a este tipo de unidades (como é o caso do próprio A. Marques Lopes, que esteve na CCAÇ 3). Acabo agora mesmo de sair do Hospital de Santo António onde fui expressamente conhecer, em pessoa, o nosso camarada Amaral Bernardo que me contou estórias emocionadas e emocionantes do sul da Guiné, da época de 1970/72, quando ele lá esteve como Alferes Miliciano Médico: de Bedanda (onde passou 13 meses, com o pessoal da CCAÇ 6, comandada na altura por um grande oficial de cavalaria, o Carlod Ayala Botto), de Gadamael, de Guileje, de Tite, de Bolama... Tenho que falar desde encontro noutra ocasião, com mais tempo e vagar... O Amaral Bernardo, que viveu em Angola dos 6 aos 18 anos, é um apaixonado da Guiné. E, mais do que isso, como cooperante (em vários projectos ligados à saúde e à formação médica), um grande amigo da Guiné, a par do Paulo Santiago.

O nome de Spínola está associado à criação da chamada nova força africana. É desse tempo, por exemplo, a criação da CCAÇ 12, a que eu pertenci, eu e vários outros camaradas (o Reis, o Levezinho, o Fernandes, o Sousa, o Martins, o Abel Rodrigues, o Gabriel Gonçaves, o António Duarte...) cuja presença neste blogue muito me honra e nos enriquece a todos. (LG)


Unidade / Formação / Extinção / Composição
__________________________________________________

Unidade > 1ª CCAÇ
Formação > 01.01.61 (anterior a)
Extinção > 01.04.67 (passou a chamar-se CCAÇ 3)
Composição > Quadros metropolitanos e praças do
recrutamento local
__________________________________________________

3ª CCAÇ / 01.08.61 / 01.04.67 (passou a chamar-se
CCAÇ 5) / Quadros metropolitanos e praças do
recrutamento local

__________________________________________________

4ª CCAÇ / 01.01.61 (anterior a) / 01.04.67 (passou
a chamar-se CCAÇ 6) / Quadros metropolitanos e
praças do recrutamento local

___________________________________________________

CCAÇ 3 / 01.04.67 (por alteração da designação da
1ª CCAÇ) / 31.08.74 / Quadros metropolitanos e
praças do recrutamento local (1)
___________________________________________________

CCAÇ 5 / 01.04.67 (por alteração da designação da
3.ª CCAÇ) / 20.08.74 / Quadros metropolitanos e
praças do recrutamento local (2)
___________________________________________________

CCAÇ 6 / 01.04.67 (por alteração da designação da
4.ª CCAÇ) / 20.08.74 / Quadros metropolitanos e
praças do recrutamento local (3)

___________________________________________________

CCAÇ 11 / 20.06.72 (por alteração da designação
da CART11) / 23.08.74 / Quadros metropolitanos e
pessoal natural da Guiné, de etnia fula (a CART 11
foi formada a 18.01.70 por alteração da designação
da CART 2479, composta por quadros metropolitanos
e pessoal da Guiné de etnia fula) (4)
__________________________________________________

CCAÇ 12 / 08.06.70 (por alteração da designação da
CCAÇ 2590) / 18.08.74 / Quadros metropolitanos e
pessoal natural da Guiné, de etnia fula (5)

__________________________________________________

CCAÇ 13 / 18.01.70 (por alteração da designação da
CCAÇ 2591) / 20.08.74 / Quadros metropolitanos e
pessoal natural da Guiné, de etnia balanta (6)
___________________________________________________

CCAÇ 14 / 18.01.70 (por alteração da designação da
CCAÇ 2592) / 02.09.74 / Quadros metropolitanos e
pessoal natural da Guiné, das etnias mandinga e
manjaca e um pelotão de etnia felupe
___________________________________________________

CCAÇ 15 / 29.01.70 / Finais de Jul 74

Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
de etnia balanta, sendo inicialmente designada por
CCAÇ Balanta, e CCAÇ15 a partir de 28 Fev 70
____________________________________________________

CCAÇ 16 / 04.02.70 / 31.08.74

Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
de etnia manjaca
_____________________________________________________

CCAÇ 17 / Princípios de Maio de 1970 / Princípios de
Ago 74 / Quadros metropolitanos e pessoal natural
da Guiné, de etnia balanta, predominantemente já
integrante das milícias
_____________________________________________________

CCAÇ 18 / 01.12.70 / 8.08.74
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
predominantemente de etnia fula e na sua maioria
já integrante das milícias
______________________________________________________

CCAÇ 19 / 01.12.71 / Princípios de Ago 74
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
predominantemente de etnia mandinga e na sua maioria
já integrante das milícias
_______________________________________________________

CCAÇ 20 / 05.06.73 / Princípios de Ago 74 /
Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
de várias etnias

_______________________________________________________

CCAÇ 21 / 05.06.73 / 18.08.74

Quadros metropolitanos e pessoal natural da Guiné,
de etnia fula, predominantemente já integrante das
milícias

_________________________________________________________


Comandos africanos


Unidades / Formação / Extinção / Composição
_________________________________________________________

1.ª CCmds Afr / 09.07.69 / 07.09.74

Exclusivamente pessoal natural da Guiné
_________________________________________________________

2.ª CCmds Afr / 15.04.71 / 02.09.74

Exclusivamente pessoal natural da Guiné
_________________________________________________________

3.ª CCmds Afr / 14.04.72 / 07.09.74

Exclusivamente pessoal natural da Guiné

_________________________________________________________

Notas de L.G.:

(1) O A. Marques Lopes foi Alf Mil da CCAÇ 3 (Barro, 1968). Tem diversas estórias desse tempo publicadas no nosso blogue.

(2) À CCÇ 5 - Gatos Pretos - pertenceram os nossos camaradas e membros da nossa tertúlia José Martins e João Carvalho (Canjadude, 1968/70 e 1973/74, respectivamente). O Martins era furriel mil de transmissões e o Carvalho furriel miliciano enfermeiro. Vd. por exemplo os posts de:

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIV: Os últimos dias de Canjadude (fotos de João Carvalho)

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)

(3) À CCAÇ 6 (Bedanda) pertenceram, em diferentes épocas, os noaaoa camaradas Hugo Moura Ferreira (1966/68), Carlos Ayala Botto (1970/72), Amaral Bernardo (1970/72) e Mário Bravo (1971/72), estes dois últimos médicos (Porto). Vd. posts de:

22 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCV: CCAÇ 16121 (Cufar); CCAÇ 6 (Bedanda) (1966/68) (Hugo Moura Ferreira)

23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1489: Tertúlia: Formalizo o meu pedido de entrada (Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico, Catió, BCAÇ 2930)


(4) A CCAÇ 11 (recruta, instrução de especialidade e IAO) foi formada em Contuboel. Sobre esta unidadem formada a partir da CART 11/CART 2479, há já diversos posts:

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1015: CART 2479, CART 11 e CCAÇ 11 (Zona Leste, Gabu, subsector de Paunca)

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (V): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1612: Relembrando, com saudade, os nossos soldados fulas da CART 11 (Renato Monteiro / João Moleiro)

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

(5) Foi também formada em Contuboel, a nordeste de Bafatá. A recruta do pessoal africana doi dada pela CART 2479. A especialidade foi já dada pela CCAÇ 2590 (quadros metropolitanos). Esteve como unidade de intervenção na Zona Leste, no Sector L1, em Bambadinca (até 1973) e depois no Xime, até ao fim da guerra.

Há numerosos posts, no nosso blogue,com referência a esta unidade, que esteve ao serviço do comando de três batalhões: BCAÇ 2851 (1968/70), BARET 2917 (1970/72) e BART 3873 (1972/74).

(6) Vd. página do Carlos Fortunato > Guiné - Os Leões Negros [CCAÇ 13].

O Carlos foi revisitar, ainda recentemente )Novembro de 2006), os seus balantas da CCXAÇ 13: vd. post de 17 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1533: De regresso a Bissorã: Uma viagem fantástica (Carlos Fortunato)

sábado, 31 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

Guiné > Bissau > 1969 > Cais de Bissau, Pijiguiti, com uma LDP (Lancha de Desembarque Pequena) e uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) em fundo. "Do lado da cidade, onde há bem poucas horas era água, suja e barrenta, é verdade, aparecia agora no fundo escuro, lodoso e fedorento do rio, um misto de lama, detritos, resíduos e porcaria que exalava um cheiro pestilento e nauseabundo. Àquela argamassa com ar podre e pútrido se dava, como já referi, pomposamente, o nome de tarrafo" (Rui Alexandrino Ferreira).

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados.

Como foram as primeiras impressões da nossa chegada a Bissau ? Ainda pouco se escreveu sobre isso... Nesta série Estórias de Bissau cabe perfeitamente esta temática. Vejamos, por exemplo, como é que o angolano Rui Alexandrino Ferreira nos descreve Bissau: ele passou por lá em duas comissões, uma como alferes (CCAÇ 1420, 1965/67) e outra como capitão (CCAÇ 18, 1970/72). Já aqui fizémos uma referência ao seu livro de memórias, Rumo a Fulacunda, que já vai na 2ª edição (Viseu: Palimage Editores, 2003) (2). Aqui ficam alguns excertos do 2º capítulo, com o nosso apreço, amizade e agradecimento ao autor e ao editor:

Capº II - Guiné - Os primeiros contactos
por Rui Alexandrino Ferreira
(Subtítulos do editor do blogue)


Fundeados ao largo, frente a Bissau, do barco se avistavam as luzes da cidade. Para quem se extasiava com a imagem de Luanda à noite, com a beleza da sua extensa, profusamente iluminada e bem cuidada avenida marginal, confesso que as primeiras impressões não foram muito famosas.

Bissau parecia aquilo que na realidade era. Pequena, dava para logo antever. Dispersa, com muitos espaços devolutos pelo meio, desordenada, envelhecida e pouco cuidada, não foi possível perceber de imediato, mas rapidamente também disso me dei conta.

Como me dei conta igualmente que era uma cidade dominada pela presença da tropa e onde não se conseguia esquecer a realidade da guerra que se travava para o interior da província. Enquanto que em Luanda se olvidava por completo a guerra que decorria circunscrita ao norte de Angola, na Guiné a guerra chegava à capital. Em Bissau, ouviam-se ao longe os ruídos ora espaçados ora quase cadenciados dos rebentamentos provocados pelas armas pesadas. Eram os nossos aquartelamentos a ser atacados ou flagelados. Via-se inclusivamente, quem se virasse para sul para além do estuário do rio Geba, os clarões que eram produzidos pelo deflagrar das granadas.


Uma cidade dominada pela presença da tropa

Durante o dia, sobretudo às primeiras horas da manhã a cidade era constantemente sobrevoada por helicópteros que transportavam feridos para o Hospital Militar 241, onde por força das circunstâncias também acabei por ir parar, a primeira vez em 1966, com direito a repetição em 1972, de ambas as vezes ferido e helitransportado directamente do mato.

Era, na realidade, um estabelecimento hospitalar moderno e funcional, prático e adaptado às necessidades, com um corpo clínico excepcional, extremamente dedicado que ao longo dos anos conseguiu verdadeiros milagres. Tinha-se então um sentimento de extrema confiança na acção daqueles médicos (…)

Dizia-se então por lá, confirmando a absoluta confiança que neles se depositava que, «pouco mais era preciso que aí chegar com vida». Do resto, se encarregava quem lá estava.

Nos dois dias que se seguiram e antes de desandar para o mato, nos contactos iniciais que tive com a cidade, apercebi-me e cataloguei-a quase de imediato. Bissau era a prova real da escala proporcional de um para dez, ou seja, em dez indivíduos que passavam só um não era militar, uma em cada dez mulheres não era esposa ou filha de militar, de dez viaturas em trânsito só uma era civil, e quanto ao próprio comércio, fosse a retalho, de vestuário, calçado, de discos ou aparelhagens de som, de jornais, livros ou revistas, de bugigangas ou de miudezas, de fotografias, ou máquinas fotográficas, restaurantes, cervejarias ou simples tascas, apenas um não era prioritariamente destinado ao comércio com os militares e se manteria de porta aberta mal a tropa fizesse as malas.

Tudo vivia para a tropa e pela tropa e da tropa sobrevivia.Tudo em Bissau era dominado pela presença dos militares da Metrópole. E assim, era impossível esquecer ou passar ao largo da guerra.

O famoso tarrafo


A bordo do Manuel Alfredo ainda a alvorada do primeiro dia de Dezembro vinha longe e já eu estava a pé. O calor e a humidade à mistura com a curiosidade mas sobretudo com a ansiedade não me deixavam nem dormir nem permanecer no camarote, pois sentia-me invadido por um nervoso miudinho. Levantei-me e orientado pelo barulho e movimento das máquinas e dos homens fui observar as operações de descarga do pessoal e material.

Uma Companhia independente desembarcou directamente para uma LDG (lancha de desembarque grande) da marinha. Nem chegaram a pôr o pé em terra firme. Rumo ao seu destino, homens e imbambas, tudo amontoado conforme possível, lá tomaram a rota do sul, onde seguramente chegaram por um dos variados rios ou dum dos seus braços, que tal como rapidamente compreendi, constituíam o melhor e mais seguro meio de comunicação e penetrapara o interior.

Aos poucos foi-se fazendo dia. Olhei em redor, ainda mal se via e nem queria acreditar nos meus olhos. Dum lado a vastidão das águas, misturadas a doce e a salgada, era tal, o dito estuário do Geba era tão largo, que a olho nu, não se vislumbrava a outra margem. Do lado da cidade, onde há bem poucas horas era água, suja e barrenta, é verdade, aparecia agora no fundo escuro, lodoso e fedorento do rio, um misto de lama, detritos, resíduos e porcaria que exalava um cheiro pestilento e nauseabundo. Àquela argamassa com ar podre e pútrido se dava, como já referi, pomposamente, o nome de tarrafo.

Era quase impossível que uma qualquer acção ou operação na Guiné não obrigasse à passagem de bolanhas, rios ou zonas de tarrafo. Normalmente passei, vindo das operações onde tais travessias eram mais demoradas ou aprofundadas (no sentido, claro, do tempo que se teria de andar dentro delas ou da altura da zona de cambança ou local de passagem do que resultava ter ficado com maior ou menor parte do corpo enterrado no tarrafo ou no lama), a tomar um banho inicial com o camuflado vestido para lhe tirar o grosso da merda e só depois deste, esfregar, esfregar e voltar a esfregar, o camuflado e o corpo, para ver se o cheiro se atenuava. Mas custava a sair...

Rapidamente me apercebi também que, para determinadas travessias, deveria fazer anteceder cada elemento mais baixote de outro com altura suficiente, que lhe deitasse a mão em caso de necessidade. E muitas vezes isso teve aplicação prática.

Olhando para a ínfima espécie de cais, onde mesmo assim o calado do navio de reduzidas dimensões que nos transportara, não permitia a acostagem, comecei a calcular qual seria o desnível entre as marés. Para aí uns quatro a cinco metros, pensei. Era isso mesmo. Mais metro, menos metro...

O complexo de Santa Luzia, conhecido por o Seiscentos


E assim, divagando e entretendo o tempo, lá chegou finalmente a minha hora de desembarque. Da mesma maneira que os demais, a bordo de uma pequena embarcação, lá fiz os metros que nos separavam da terra firme. E daí para dentro de uma viatura rumo ao Quartel-General, situado na altura no seiscentos como vulgarmente era conhecido o conjunto de aquartelamentos de Santa Luzia. Seiscentos porque fora aquele o número do primeiro Batalhão que o ocupara e para sempre lhe dera o nome.

A viagem até ao Quartel-General acabou por me trazer novas surpresas. A viatura, cujo trajecto normal seria subir a avenida principal que desembocava no largo onde se situava o palácio do Governador, virou dessa feita à direita e subiu uma avenida paralela daquela, que se iniciava junto ao rio e atravessava uma zona praticamente desabitada. Passamos por meia dúzia de tabancas e casas de pau a pique e entramos directamente pela zona do Quartel-General a dentro.

De tal modo aquilo foi, que quando perguntei candidamente onde era a cidade e me responderam que a já tínhamos passado, fiquei completamente estupefacto.

Já tínhamos passado a cidade!?
- Valha-me Deus! Aonde é que tinha ido parar! Se aquilo era Bissau como seria o resto!? Aquilo tudo começava a parecer-me muito pior do que o que tinha imaginado.

Embora mentalmente preparado para o que desse e viesse e pensando que, logicamente não poderia ser nada de bom, era a segunda vez, num curto espaço de tempo que sinceramente me espantava.

A 1ª Rep ou o primeiro contacto com a guerra do ar condicionado

Chegados ao Quartel-General, lá fomos encaminhados para a 1ª Repartição a fim de fazer as apresentações. Aos poucos, toda a gente que ia comigo foi sendo despachada e eu nem por isso...
Lá andava a minha guia de marcha às bolandas, de mão para mão... De vez em quando chegava um e cochichava alguma coisa ao ouvido do outro e olhavam para mim, o que me levava a pensar que era eu o objecto do cochicho. E iam embora...

Comecei, pois, a ficar preocupado... que raio de trapalhada teria eu feito!? Mas por mais que tentasse nada me ocorria.

Arrisquei a pergunta a um sargento que ali estava sentado a uma secretária.
- Oh! Nosso primeiro, o que é que se passa!?
- Não sei, meu Alferes. Não é nada comigo!

E o rapaz Rui lá se entreteve a olhar para os quadros da parede, controlo de efectivos existentes na província, Batalhões, recompletamentos, baixas por isto e por mais aquilo, etc. e tal... Até que não havia mais quadros para ver... E ninguém me ligava nenhuma! Qu'os pariu!!!...

Aquilo é que ia bonito! Mas, - pensava eu -, já não podem demorar muito mais, pois daqui a pouco são horas do almoço. E assim foi. Mais uma meia-hora e lá se chegou a mim um Tenente do serviço geral.
- Alferes Ferreira?
- Sou eu.
- Venha comigo ao nosso Tenente-Coronel Vilela.

E lá fui eu, a pensar que raio de mosca teria mordido naquela gente. Ninguém tinha tido a honra de ir à presença do chefe... Logo eu...

Rapidamente o assunto se esclareceu. Segundo o citado senhor Tenente-Coronel Vilela, chefe daquela repartição, superiormente alguém acima dele, havia decidido que, apesar de ser destinado à guarnição normal e portanto desde logo colocado no Centro de Instrução Militar de Bolama, teria de ir em diligência, provisoriamente, claro estava, para uma Companhia de Caçadores que infelizmente se encontrava bastante desfalcada em oficiais, pois tinha perdido duma assentada o Capitão e um dos Alferes, o que sendo quase cinquenta por cento do seu efectivo, era preocupante. Mas que não me preocupasse, pois os recompletamentos dos Oficiais em questão já estavam pedidos para a Metrópole, e assim, a situação além de transitória era uma questão de poucas semanas, talvez mesmo menos de um mês, unicamente o tempo da sua chegada à província.

Claro que nem valia a pena argumentar contra a lógica militar. Nem agora vale a pena, que fará naquele tempo... Podia, na realidade, ter referido que já fora mobilizado sem que fosse destinado a qualquer vaga efectiva. Poderia ter argumentado que a bordo do Manuel Alfredo tinham chegado mais alferes em rendição individual, mais modernos e portanto em condições idênticas à minha, para ocupar a vaga que ele considerava vital. Poderia ter dito fosse o que fosse, mas nem uma palavra me saiu da boca, o que, segundo me apercebi, além de ter espantado o referido senhor teve o condão de pôr ponto final na entrevista.(...).

Fonte: Rui Alexandrino Ferreira - Rumo a Fulacunda, . 2ª edição. Viseu: Palimage Editores. 2003. 69-73.
_____________

Notas de L. G.:

(1) Vd. último post da série Estórias de Bissau > 10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

(2) Vd. de 17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)

sexta-feira, 30 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1638: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (5): Um abraço a um camarada comando

Texto do Torcato Mendonça:

Amílcar Mendes: dou-te um abraço de Camarada.

Tenho muito respeito pelos Comandos. Não interessa agora o porquê. Viveste fortemente, violentamente, situações, ainda jovem, que te marcaram e dificilmente esqueces. Como tu muitos de nós. Eu tentei esquecer durante muitos anos. Puro engano! O melhor, quanto a mim, é mandar cá para fora.

Este Blogue proporciona a todos nós fazermos essa terapia: lendo, escrevendo ou não, revivemos, recordamos e libertamos, em revolta por vezes, os recalcamentos há muito reprimidos.

Estamos entre Camaradas, entre amigos, entre homens unidos pela violência de uma guerra, que foram obrigados a participar numa parte da sua juventude. O que nos une é demasiado forte. Este espaço na Net é demasiado importante para muitos de nós.

Compreendo-te, Camarada, não recalques e manda cá para fora o que sentes… Sou mais velho, estive em 1968/69, havia violência mas… Guileje e Guidaje e os anos de 73/74 são marcos naquela guerra.

Quando escrevo a algum Camarada dou C/C ao nosso Comandante Luís Graça. Assim não quebro regras do Blogue. Foste Comando (continuas sempre Comando) e compreendes bem o que eu quero dizer.

Camarada, um abraço do
Torcato Mendonça

_______________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1633: Guidaje na TVI: Um murro no estômago (A. Mendes, 38ª CCmds)

Guiné 63/74 - P1637: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (40): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (2)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Regulado do Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1968 > O Alf Mil Beja Santos, rodeado das autoridades civis e religiosas de Missirá. "Uma recordação do dia grande do Ramadã". À sua direita, o velho régulo Malã Soncó , "sua aristocracia de turbante, a ostentação de suas vestes". À sua esquerda, "o bom Keban, expressão de um orgulho que não morre" e o padre Mané (...) o mais humilde do grupo, o grande conhecedor e intérprete do Corão, uma boa alma, feliz com nada que tem" (BS).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.

O Vice-almirante Avelino Teixeira da Mota (1920-1982), um dos oficiais da Marinha Portuguesa intelectualmente mais brilhantes do Séc. XX, cartógrafo de renome mundial, historiógrafo, grande amigo da Guiné e estudioso da suas gentes. É co-autor dessa obra-prima bibliográfica que é a Portugaliae Monumenta Cartographica.

Fonte: Revista da Armada (2002) (com a devida vénia...)


40ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 13 de Março de 2007.


Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (II parte)
por Beja Santos


Carta para o Comandante Avelino Teixeira da Mota (2)

Sr Comandante e meu bom amigo:

Fico muito contente em saber que lhe foram úteis as informações que aqui obtive sobre a presença em Missirá e no Cuor do Prof. Armando Zuzarte Cortesão, o outro autor da Portugaliae Monumenta Cartographica (3).

Ainda há lembranças do Prof Cortesão e tenho com pesar de lhe transmitir que a cama onde ele descansou e dormiu ficou reduzida a ferro queimado depois de uma pesada flagelação que aqui sofremos em 19 de Março. Creio já lhe ter dito que o régulo Malã Soncó me ofereceu a cama, bem ampla por sinal, tinha um colchão com barbas de milho que me dava um sono confortável.

Quanto a Infali Soncó (4), dou-lhe hoje conta do que pude obter. Não está sepultado em Missirá, aqui só temos o túmulo do seu filho Bacari. Ele está sepultado no cemitério de Sansão, onde viveu na velhice. Se tiver prazer nisso, vou lá com o régulo Malã (5) localizar o túmulo e fotografo. O último filho sobrevivente de Infali vive em Missirá e é Alage Soaré Soncó. Registo o que ele me disse sobre o seu pai.

Infali terá nascido por volta de 1870, em Berrocolom (6), no sector do Gabu. Com 19 anos, à frente de 100 cavaleiros e de mais de 500 soldados guerreiros apeados, conquista Cumpone, na região de Boké, ou seja na Guiné Conakri. Tal façanha grangeia-lhe a admiração dos mandingas, tendo sido convidado para régulo de Cumpone. Infali encontrou a forte hostilidade dos fulas e espreitou a primeira oportunidade de sair de Cumpone. Essa oportunidade veio a acontecer em 1894, quando o seu tio Calonandim Mané, régulo do Cossé, região de Bafatá, como sabe, e aliado dos portugueses, lhe pediu para invadir o chão do Cuor.

Sr. Comandante, os Mané vivem aqui com os Soncó, casam entre si e já me informaram que há Mané, no Cossé, ainda hoje. Não sei se este aspecto é curioso para si, mas Alagé Suaré Soncó disse-me que Porto Gole é uma forma de Porta do Cuor, no fundo a entrada do regulado do Cuor. Pretendia-se depor o régulo Sambel Nhatam, que tinha a sua fortaleza em Sansão (chamava-se Sam-Sam, perto de Gã Gémeos, já lá estive, restam umas paredes e nada mais. Era daí que partiam as hostilidades contra as embarcações portuguesas e cabo-verdianas que Sambel Nhatam atacava com ferocidade no rio Geba, entre Mato de Cão e Bambadinca (fique sabendo que é aí que vou todos os dias).

Infali aceitou combater ao lado de Calonandim Mané, ambos cercaram Sam-Sam com mais de 200 guerreiros armados de longas (canhagules) e azagaias, tendo Sambel Nhatam retirado. Foi nessa altura que as autoridades portuguesas se aperceberam das vantagens de uma aliança com estes guerreiros mandingas. Dito pelo filho, o Governador Alito de Magalhães (5) veio de Bolama e convidou Calonandim a aceitar o regulado do Cuor. Houve festas faustosas e compareceram os régulos de Mansoa e Mansabá.

Calonandim reinou cerca de 20 anos e foi morto numa batalha perto de Enxalé, terra de balantas. Com a aprovação das autoridades de Bolama, Infali sobe ao trono e vinga exemplarmente Calonandim, tendo corrido rios de sangue entre Enxalé e a Porta do Cuor. Infali foi condecorado em Geba, em 1914.

Tenho mais coisas para lhe contar acerca das lutas entre Infali e as autoridades portuguesas. Penso que vai escrever sobre este episódio da história da Guiné e gostaria de lhe ser útil, pelo que lhe peço instruções já que Alage Soare Soncó não é criança e foi o único membro da família Soncó que descobri saber o que se passou.

O meu quartel ardeu, perdi os meus livros e , infelizmente, as suas cartas. Se me puder ajudar, peço-lhe o favor de me oferecer mais livros. Fui castigado e não irei de férias. O Cinatti disse-me que provavelmente será colocado este ano em Bissau. Oxalá, assim os aerogramas farão uma menor distância e sei que me ofecerá as valiosas publicações do Centro de Estudos.

Agora o trabalho é muito duro, fazemos blocos de lama, substituimos todos o arame farpado, recontruímos casas e abrigos. Todos os dias se vai a Mato de Cão, a jornada de trabalho é entre as 6 e as 17, fora os patrulhamentos, as idas a Bambadinca e os reforços. Mas não quero aborrecê-lo com coisas da Infantaria... Receba a gratidão deste amigo sempre ao seu dispor e que gosta tanto de aprender coisas sobre a Guiné.


Carta para Luís Zagalo Matos

Estimado Luís Zagalo:

Obrigado pela sua carta. Li-a aos homens de Missirá, riam e batiam as palmas de contentamento por saber que não esqueceu este povo. Vou tirar fotografias e mandar-lhe. Tenho aqui um soldado que insistiu em contar-me as suas façanhas, ele estava de sentinela e durante horas ouvi falar de si, arrumando ideias sobre o princípio da guerra e o seu desenvolvimento até hoje.

Os meus soldados estavam em Enxalé ao tempo em que aqui havia uma companhia, a que V. pertencia. O pelotão 54 estava em Porto Gole, o 52 acabava de chegar a Enxalé. V. estava destacado em Missirá e fazia frequentemente o percurso com dois Unimogs e um jipe, reabastecia-se no Enxalé. Até ao dia em que uma mina anticarro mudou tudo, na curva de Canturé em ligação com a estrada ao pé de Gambana.

Este meu soldado, de nome Queta, contou-me que um furriel ficou tão despedaçado que foram buscar as pernas a uma árvore. Para este povo V. é um herói porque conhecia toda esta região, era destemido e amigo de ajudar. O Queta não é para intrigas, baixou a voz e disse-me "Nosso alfero, Zagalo ia a toda a parte mas tinha medo de ir ao Gambiel, pois naquela altura as tropas portuguesas abandonaram os quartéis em Mansomine e Joladu, só ficou Geba". Como não lhe quero tirar os méritos, estou inteiramente à sua disposição para o levar ao Gambiel, se este episódio for importante para que o seu nome se torne numa lenda.

Por aqui, chegou a minha vez de ter o quartel incendiado e de estar a viver as maiores dificuldades. Mas não vou incomodá-lo mais com esta guerra, fico feliz por saber que V. foi colega da Cristina. Como não irei a Portugal tão cedo, e se for possível ajudar-me peço-lhe que lhe telefone e lhe fale desta guerra, desdramatizando o que é possível desdramatizar.

Prometo mandar-lhe as fotografias em breve, não espero ir ao Enxalé mas vou mandar fotografias do Geba e dos palmeirais à hora do pôr do Sol. Se lhe for possível, na resposta mande-em uma fotografia sua para eu entregar ao régulo. Só fiquei triste em saber que V. nunca mais teve um sono completo e que tem pesadelos quando se lembra dos momentos trágicos que passou. Desejo que recupere e peço-lhe por tudo que me dê companhia, pois os amigos de Missirá meus amigos são. Até breve.


Carta para Cristina Allen

Meu Adorado Amor:

Recebi ontem duas cartas tuas com as boas notícias dos teus Hegel e Fichte. Sei que vais ter boa nota a Filosofia Contemporânea.

Aos poucos, o que estava morto e calcinado volta à vida. Veio cá o Capitão Neves para apreciar a construção dos abrigos, deu sugestões sobre as novas cubatas ficarem em ligação com os novos abrigos. Também o Capitão Gamito aqui aterrou para dar parecer, verificou que estava chegar material que tão generosamente nos facilitou.

É um vida extremamente dura mas os momentos de bom humor também existem. Apareceram aqui dois apontadores de morteiro 81, de uma esquadra de Bambadinca, dois tipos espantosos. Os pais são primos uns dos outros, padrinhos um dos outros, os dois foram no mesmo dia às sortes, namoram primas, fizeram a recruta e a especialidade juntos, forma mobilizados no mesmo dia, parecem irmãos siameses. Chegaram a Missirá e começaram a dar ordens ao Cherno, que tinham de ficar no mesmo abrigo do alferes, trouxeram uma enorme mala de folha e madeira onde se prepraravam para jogar interminavelmente às cartas. Ficaram chocados quando lhes disse que a especialidade deles era uma coisa do passado, aqui refaz-se um quartel, há patrulhamentos e reforços. O Furriel Pires chama-lhes As manas catatuas, comem juntos, vão juntos na patrulha, fazem reforço à mesma hora.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Regulado do Cuor > Finete > 1968 > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, com sede em Missirá, também era o comandante do problemático pelotão de milícias de Finete.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Não posso esquecer-me que sou Comandante de Finete, onde neste momento tenho o problema disciplinar de Bazilo Soncó que comprovadamente fazia fraude nos pagamentos aos milícias. Já está a aguardar decisão superior de Bambadinca, entreguei o comando a Bacari Soncó que é apoiado pelo Furriel Sambajumba Cumbassar. Bacari ajuda-me imenso com os patrulhamentos à volta do Geba até Gã Joaquim, mas há instrução a dar aos novos milícias, tanto de morteiro 60 como de dilagrama. Reduzimos as aulas para as crianças e soldados, tal é o cansaço.

Esqueci-me de te dizer mas andamos a recuperar com palmeiras as pontes de Sansão, por onde passam os Unimogs a caminho de Canturé.

Não tenho nenhuma objecção a um casamento por procuração, mas questiono se é lícito da minha parte submeter-te a mais uma dura prova de casares comigo aqui na guerra. Sim, eu sei há muitos filmes e livros sobre situações como esta, vou reflectir e prometo dar-te uma resposta em breve.

Voltámos a acordar de madrugada com o barulho monumental de uma explosão para os lados de Morocunda [, a sudoeste de Missirá]. Creio que te disse que o Reis andou a armadilhar toda aquela região para travar os avanços da gente de Madina. Estive lá de manhã com o Cibo Indjai que pronto me indicou o motivo do rebentamento: um porco do mato farejou ali perto e detonou o engenho.

Desculpa hoje ser breve mas cabe-me ir para uma emboscada nocturna ao anoitecer. Amanhã vou dar-te notícias sobre o que ando a ler e que é muito bom: A Tentação do Ocidente, de Andre Malraux, um livro muito curioso que ele escreveu aos 22 anos, que é uma troca de correspondência entre um chinês que viaja pelo Europa e um francês que percorre o Extremo Oriente. É um confronto dos pontos de vista culturais, o francês é possuidor de conhecimentos de obra chinesas e o chinês tem conhecimentos livrescos da cultura ocidental.

Como eu gostaria de escrever como Malraux. Por exemplo: "A civilização não é de modo algum coisa social mas psicológica e só há uma verdadeira: a dos sentimentos". Diz o Chinês ao Ocidental: "O tempo para vós é aquilo que fazeis dele e nós somos o que ele faz de nós". E também: "Os jovens chineses que lêm os vossos livros ficam a princípio espantados com a vossa pretensão de compreender os sentimentos das mulheres. Além de tal esforço ser, na sua opinião, digno de desprezo, estaria necessariamente condenado ao insucesso". Que beleza, que ousadia.

Despeço-me cheio de saudades e recebe beijos que passam o oceano.

______

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 23 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1623: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (39): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (1)

(2) Avelino Teixeira da Mota (1920-1982): Vd. o excelente artigo de Carlos Manuel Valentim, S/Tenente (Comissão Cultural da Marinha) , publicado na Revista da Armada, nº 352, Abril de 2002: Avelino Teixeira da Mota, uma vida dividida entre a África e o Mar


(...) "A bordo do contra-torpedeiro Lima entre 21 de Setembro de 1944 e 3 de Abril de 1945, – depois de ter embarcado em vários navios: Dão, Vouga, Canhoneira Faro, Navio-escola Sagres, Afonso de Albuquerque – encontra novas oportunidades para expandir a sua pena. Nos Açores, onde se encontrava em comissão, surgem na imprensa periódica insular os seus primeiros artigos. Ao Comandante do navio, Sarmento Rodrigues, não passam desapercebidas as qualidades intelectuais do jovem oficial. Com efeito, quando Sarmento Rodrigues é nomeado para tomar conta do destino da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota é naturalmente convidado a integrar a sua equipa.

"Na Guiné muita coisa estava por fazer. Colónia pobre, irrequieta, entrincheirada entre os territórios da África Ocidental Francesa, necessitava de um amplo programa de reformas, que a administração, arguta e dinâmica, do Governador Sarmento Rodrigues [1945-1950] se encarregou de pôr em prática.

"Teixeira da Mota aceita de bom agrado os novos desafios e trabalha arduamente como ajudante de campo do Governador, acabando por descobrir verdadeiramente a África profunda, dos povos e das culturas tradicionais, da savana e da floresta.

"Para além de ser um dos principais obreiros, senão o principal, de toda a reforma cultural na Guiné Portuguesa, através da fundação do Centro de Estudos, do Boletim Cultural e da realização em 1946 das comemorações do Centenário do seu Descobrimento, ainda participa na realização da Segunda Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, que se reúne em Bissau no ano de 1947, e dirige um Inquérito Etnográfico, que tem como objectivo a edificação de uma nova carta humana e geográfica do território.

(...) "A problemática africana veio a incrustar-se no pensamento de Teixeira da Mota. Do gosto pela História e pela Geografia passara a interessar-se por ciências como a Antropologia, Etnografia ou Topografia.

"O seu estudo sobre A Descoberta da Guiné, que saiu em 1946 no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, agitou as águas da historiografia portuguesa, que nesses anos se debatia entre a tradição e a renovação. O conhecimento directo das populações e do meio geográfico, completado com a utilização de antigos textos, muitos até aí desaproveitados, deram ensejo ao emérito oficial da Armada de resolver o intricado problema da cronologia, e de todo o processo, que rodeou descobrimento da Guiné. O estudo mereceu fortes aplausos, de historiadores tão conceituados como Duarte Leite, Damião Peres ou Magalhães Godinho.

(...) "Em fins de 1947 Teixeira da Mota passou à Missão Geo-Hidrográfica da Guiné.

(...) "Se antes trabalhara no mato, num contacto intenso com as populações e o meio envolvente, agora navegava nos caudalosos rios da Guiné, sondando, erguendo torres hidrográficas, cartografando as costas e os litorais africanos.

(...) "Notado pela sua sabedoria e propensão para os estudos cartográficos é (...) convidado a colaborar com Armando Cortesão na preparação da edição da cartografia portuguesa antiga. O projecto era ambicioso. Podemos, ainda hoje, constatar a sua originalidade no panorama editorial português. As investigações vindas de trás, levadas a cabo por Teixeira da Mota foram desde logo aproveitadas para a tão aguardada obra - titulada Portugaliae Monumenta Cartographica - sair sem atrasos do prelo, em 1960, quando se comemorava o quinto centenário da morte do Infante D. Henrique.

(...) "Os anos 60 foram consagrados por completo ao ensino [na Escola Naval].

(...) "Em 1969, (...) após uma década votada ao ensino, Teixeira da Mota regressa à África para chefiar o Estado-Maior do Comando da Defesa Marítima da Guiné. Mas no continente negro tudo mudara. Muito do que tinha construído na sua juventude parecia agora desabar diante dos seus olhos, perante uma guerra atroz que se eternizava. Triste e desanimado, abandona a Guiné para ir chefiar o Estado-Maior do Comando Naval de Angola.

(...) "Avelino Teixeira da Mota veio a falecer no dia 1 de Abril de 1982. Pouco antes, é eleito Presidente da Academia de Marinha, uma das instituições que ajudou a erguer. Como reconhecimento dos serviços prestados ao País fora promovido por distinção, em Setembro de 1981, ao posto de Vice-Almirante. Em acumulação de funções militares e civis, este distintíssimo oficial de Marinha e notável historiador, deixou uma vasta obra, assente em criteriosos métodos científicos, ainda hoje, em muitos dos seus pontos actual" (Carlos Manuel Valentim).

(3) Cortesão, Armando; Mota, A. Teixeira da - Portugaliae Monumenta Cartographica, 6 vols, Lisboa, Comissão para a Comemoração do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960-1962.

(4) Vd. post de 18 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P882: Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)

(5) Vd. post de 3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor

(6) Não será Beracolom, a nordeste de Fajonquito ? (vd. carta de Colina do Norte).

(7) Não me parece ter havido nenhum Governdador da Guiné com este nome. Terá sido Albano Mendes de Magalhães Ramalho, que foi Governador entre 1898 e 1899 ?

Guiné 63/74 - P1636: Álbum das Glórias (10): Paunca, CCAÇ 11: Com o PAIGC, depois do 25 de Abril de 1974 (J. Casimiro Carvalho)


Guiné > Zona Leste > Gabu > Paunca > CCAÇ 11 > Pós-25 de Abril de 1974 > O Fur Mil Op Especiais disfarçado de cubano... No quico, ostenta um cartão com as insígnias do PAICG. No muro atrás pode ler-se uma improvisada inscrição: Viva o PAIGC... Foto do Álbum de fotografias do ex-Fur Mil Op Especiais Carvalho, confiado à guarda do editor do blogue.

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


Paunca fica(va) perto da fronteira do Senegal, a sudoeste de Pirada. A unidade de quadrícula, no final da guerra, era a CCAÇ 11. O nosso camarada Casimiro Carvalho já aqui contou como foram os seus últimos tempos de comissão, depois do inferno de Guileje e Gadamael, em Maio/Junho de 1973 (1):

(...)"Fomos para o Cumeré tirar outro IAO . Eu fui para Prabis com mais 12 homens, outros foram para Quinhamel ou Bijemita (??). Depois fomos para Colibuia-Cumbijã, e aí fui destacado para rendição individual, sendo transferido para Bissau a fim de tirar estágio de Companhias Africanas, e durante esse estágio deu-se o 25 de Abril.

"Fui então para Paunca, CCAÇ 11 – Os Lacraus, onde me mantive até ao fim da minha comissão. Não sem antes levar um susto de morte, pois os militares africanos da CCAÇ 11 sublevaram-se. Quando eu estava a dormir, ouvi tiros, vim em calções com a Walther à cintura até ao paiol. Quando lá cheguei, eles estavam a armar-se e a disparar para o ar e eu, quando os interrogava pelo motivo de tal, senti o cano de uma arma nas costas, ordenando-me que seguisse em frente (até gelei)… Juntaram todos os quadros brancos e puseram-nos no mato… assim mesmo!

"Caminhámos muito, de noite, desarmados, e fomos até um acampamento de guerrilheiros do PAIGC, contámos a situação e eles mandaram um punhado deles a Paunca. Gritaram então lá para dentro:- Têm 5 minutos para se entregaram e restituir o quartel aos brancos ou destruímos tudo!

Eles, os fulas, entregaram-se. No fim, já de abalada, fomos ao paiol, juntámos todas as granadas e explosivos, e eu fui encarregado de os fazer explodir , ao redor de uma enorme árvore. Que cogumelo de fogo, impagável !" (...).

____________

Nota de L.G.:

(1) 25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

Sobre este série - Álbum das Glórias - , vd posts anteriores:

18 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1609: Álbum das Glórias (9): Pessoal da CART 3942 em Bolama (Joaquim Mexia Alves)

6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1568: Álbum das Glórias (8): Os Dráculas, CART 2410, Guileje (José Barros Rocha)

4 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1492: O Álbum das Glórias (7): Eu, o Mário Soares, o grande cantautor de Coimbra, Luiz Goes, e o Spencer (António Pinto)

30 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1473: O álbum das glórias (6): A 'dolce vita' de Bolama (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1096: O álbum das glórias (5): Futebol em Bambadinca, oficiais contra sargentos (Beja Santos)

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1076: O álbum das glórias (Beja Santos) (4): eu e o coronel Cunha Ribeiro, o nosso 'major eléctrico'

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1073: O álbum das glórias (Beja Santos) (3): A equipa de futebol de Missirá

13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1068: O álbum das glórias (Beja Santos) (2): Misérias e grandezas de Mamadu Camará

11 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1061: O álbum das glórias (Beja Santos) (1): Um brinde no bar de oficiais de Bambadinca

quinta-feira, 29 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1635: Amigos, enquando vos escrevo, bebo um Porto velho à nossa saúde (Abílio Machado, CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/72)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Lembras-te, Machado ? Esta era a rampa - inesquecível, poeirenta, de terra vermelha -, de acesso à entrada principal do aquartelamento, pelo lado leste (sentido Bafatá).... Ao fundo, o Rio Geba, o cais e o destacamento do Pelotão de Intendência. Do lado de lá do rio, a bolanha de Finete. E, do lado direito deste arruamento, já na curva, a loja e o bar do Zé Maria... A meio, do lado direito, a loja do Rendeiro... De um lado e de outro, espalhava-se a tabanca... Nós ficávamos cá em cima, num planalto que dominava a bolanha de Bambadinca... (LG)

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

1. Mensagem do Abílio Machado, enviada ao António Levezinho, ao Humberto Reis, ao Gabriel Gonçalves e ao editor do blogue:


Meus amigos (nem grandes nem pequenos, amigos simplesmente):

Para vocês, as primeiras respostas (é curioso, não há aqui ninguém da CCS, é tudo CCAÇ 12).

Não esqueço o Fernandes e o madeirense [, o José de Sousa], mas não tenho o contacto deles (1).

Ainda não tive tempo de ver o blogue ou os sites do Henriques, para onde todos me convocam (Henriques, simplesmente, é que é e não Graça, nome doutoral que desconheço. O Divino Mestre tê-lo-á bafejado com a sua graça nas provas ?),mas a seu tempo lá irei.

Quero falar com cada um de vocês. É um pequeno exercício que quero fazer e que me dita o meu íntimo. E o meu remorso ? Talvez. Poderia há muito ter movido todos os esforços para vos contactar, mas não o fiz ...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Natal de 1969 > Sargentos e furriéis da CCAÇ 12 (1969/71) e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70):

(i) da esquerda para a direita, na 1ª fila: o Jaime Soares Santos (Fur Mil SAM, vulgo vagomestre); António Eugéndio da Silva Lezinho, Fur Mil At Inf; António M. M. Branquinho, Fur Mil At Inf; Humberto Simões dos Reis, Fur Mil Op Esp; Joaquim A. M. Fernandes, Fur Mil At Inf) - todos eles pertencentes à CCAÇ 12;

(ii) da esquerda para a direita, 2ª fila, de pé: 2º sargento Inf José Martins Rosado Piça (CCAç 12); Fur Mil Armas Pesadas Inf Luís Manuel da Graça Henriques (ccaç 12); um 2º sargento, de cujo nome não me lembro; 1º Sargento Cav Fernando Aires Fragata (ccaç 12); Fur Mil Enfermeiro João Carreiro Martins (ccaç 12); e um outro 1º sargento de cujo nome também já não me lembro mas que julgo ser da CCS do BCAÇ 2852... (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Nem ingratidão, nem desinteresse, nem desleixo ... a vida tout court,que me fez (a todos nós, quem sabe) muitas vezes desviar de quem estimava.

Da guerra, com que nunca concordei, como sabem, guardo para mim as recordações que não pude apagar; e parece que nelas envolvi os meus próprios amigos: não os apaguei (não poderia!), mas guardei-os (guardei-os , sim!) com um afecto interior e uma discrição que,não fossem eles verdadeiros, teriam sido levados pelo olvido. Não foram ,nunca foram.

Em 2005, quando me desvinculei da empresa onde trabalhei, lancei-me a pôr em ordem os meus papéis. Ao organizar as fotos, lá está o que vocês eram (e são), a recordar-me uma vida que vivi, mas que parece quis manter em latência, como um baú velho onde guardamos as lembranças de família. Nem as minhas filhas sabem da missa a metade .
(Enquanto escrevo, bebo à nossa saúde um velho Porto!).

Pus de lado, outro dia, um slide em que o Humberto e a esposa [, a Teresa,] (como eles eram jovens!) posam na varanda da casa (vetusta casa) dos meus pais. E conservo ainda um cartão teu, meu sacana!

Do Levezinho e do Gabriel (2), o jeito malandro dos malandros de Lisboa. Quase como o Chico Buarque diz dos malandros do Rio! Óculos Ray-Ban, a postura displicente, o ar jingão ... na aparência. (Estou a falar das fotos! Ponho mais um pouco de Porto).

Do Henriques, a célebre noite (e negra noite ! - eu era amigo do Cunha, porra!) em que o grito "Assassinos! Assassinos!" ecoou e fez emudecer a parada de Bambadinca! (3).

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Pessoal da CCAÇ 12, destacada no reordenamento de Nhabijões. O furriel José Sousa, madeirense, é o primeiro da direita, seguido dos furriéis Reis e Henriques. O tocador de acordeão era o nosso 1º cabo escriturário, se não me engano.


Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Do Puim (ainda é do vosso tempo?), a manhã em que, avisado não sei por quem, entro no seu quarto e vejo a PIDE a vasculhar gavetas e esconderijos, como se ele tivesse assaltado o cofre da Batalhão.

Tudo por uma homília do dia 1 de Janeiro [de 1971], dia da Paz. Mas não se fala de paz em guerra, Puim! Não sabias? Sabias, mas não quiseste saber. Corisco açoreano ! E o sargento Brito. E o sargento Piça. Falaremos sobre todos depois.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > O Padre Puim, capelão militar, de origem açoriana, com o furriel Guimarães da CART 2716. Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como outros (o caso talvez mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa, membro da nossa tertúlia).

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados



O meu pós-guerra ?

Em resumo: empreguei-me em 1973 como Delegado de Propaganda Médica. Labutei 12 anos de pasta na mão (em empresas italiana e americana ). Chefiei o sector Norte, 2 anos. Passei a Chefe Nacional de Vendas durante 6 anos. Retomei o controle do sector Norte. E, no fim de 2004, a BMS (Bristol-Myers Squibb) honrou-me com uma desvinculação por mútuo acordo. Aguardo em Junho próximo a passagem à reforma .

Como hobbies, muitas coisas. A principal, o grupo de música tradicional que fundei, Toque de Caixa (é verdade, Gabriel, a televisão) e que preencheu boa parte da minha vida .CD's, concertos, países, enfim...uma vida cheia ! Não me arrependo.

Quanto ao resto, como diz a Elis Regina: casei...descasei...investi...desisti ... De facto, Humberto e Levezinho, já não estou com a Lua. Eclipsei, mas somos bons amigos.Temos duas filhas (Josina e Rita) e duas netas (Raquel e Renata - 4 anos e sete meses).

A minha morada é: R. Ana da Fonte ,74 - Gueifães 4470-495 Maia e o telelé é o 917822171. Não perdoarei agora a nenhum de vocês que, se vierem ao Porto, não me contactem. Quer eu quer a minha nova companheira podemos receber-vos com alguma comodidade. Não há portanto desculpas.

Por hoje chega. Acabou-se o Porto.

Um grande abraço a todos

Abílio Machado

2. Comentário de L.G.:

Querido amigo e camarada Machado:

Esta manhã tive a felicidade de ouvir a tua voz, à distância de 36 anos ... Convivemos intensamente durante os 8 ou 9 meses que estivemos juntos em Bambadinca, no 2º semestre de 1970 e nos dois primeiros meses de 1971...

Tínhamos afinidades que nos aproximaram, a começar - falo por mim - pela nossa atitude face à guerra colonial e e ao regime político vigente em Portugal... Por outro lado, tu eras um homem afável, minhoto, porreiro, correcto, culto, generoso, solidário, com valores, com princípios, que rapidamente foi aceite pela malta da CCAÇ 12 - o Reis, o Levezinho, o Fernandes, o Sousa, o Gonçalves, o Martins, o Abel Rodrigues, só para citar alguns dos que já hoje fazem parte deste blogue... Malta que, nas horas vagas entre duas operações, gostava de ficar até altas horas da noite a beber o seu copo, a tabaquear o seu caso, a dar o seu dedo de conversa, a jogar a sua lerpa, a dedilhar a sua viola, a cantarolar as suas baladas de Bambadinca... E tu eras um dos baladeiros!... Agora percebo melhor o teu projecto, o Toque de Caixa, o regresso às origens... Que gratas recordações tenho destas noitadas, em que carregávamos baterias para a luta pela sobrevivência no dia seguinte...

O Levezinho e o Reis, com quem mantive o contacto nestes anos todos, falaram depois de ti e da tua Lua - tua companheira de então e mãe das tuas filhas - numa memorável visita que te fizeram em 1973, na tua terra natal, Riba d'Ave... Fiquei sempre com uma pontinha de inveja deles (e delas, a Teresa e a Isabel) e sobretudo com o secreto desejo de te voltar a rever e abraçar, o que irá de certo acontecer um belo dia destes, já que estamos vivos da costa e tu vives perto do Porto, cidade aonde vou com frequência e onde também já temos uma minitertúlia... O mais importante foi, graças ao GPS do Benjamim Durães, ex-furriel da tua CCS, tirar-te o azimute, saber do teu paradeiro (4)... Pelo teu lado, vejo que agora passas também a ter mais disponibilidade para uma eventual escapadela ao sul, à terra destes mouros... Quem sabe se não poderemos encontrar-nos já na próxima semana, no Porto, ou no próximo encontro da nossa tertúlia, no Pombal, lá para finais e Abril...

Não quero monopolizar a sessão de boas vindas... Vou-te deixar com o prazer da visita e da descoberta deste blogue (que ainda não conheces e cujo conteúdo - imagens e textos - é capaz de te surpreender e emocionar)...

Até à próxima. Aquele abraço. Retribuo-te o Porto com a minha bagaceira de vinho verde... Como te disse ao telefone, pela via matrimonial, acabei por encontrar uma segunda terra, lá para as bandas de Entre Douro e Minho... Podes dar uma espreitadela ao sítio A Nossa Quinta de Candoz (que infelizmente não é actualizado há um ano, porque não se pode estar em todo o lado)...

Afectuosamente, Henriques.

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 8 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P945: 'Gente feliz com lágrimas': o Zé da Ilha, o furriel Sousa, madeirense, da CCAÇ 12

(2) Gabriel Gonçalves (ex-1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71):

Vd. posts de:

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1485: Bambadinca revisitada... ou os azares de um operador cripto em fim de carreira (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12)

26 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1464: Oficiais, sargentos e praças: tropa é tropa, uísque é uísque (Gabriel Gonçalves / Luís Graça)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1377: CCAÇ 2590/CCAÇ 12: Apresenta-se o 1º Cabo Operador Cripto Gabriel Gonçalves


(3) Vd. outros posts com malta da CCAÇ 12, a título meramente indicativo:

13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1366: A galeria dos meus heróis (6): Por este rio acima, com o Bolha d'Água, o Furriel Enfermeiro Martins (Luís Graça)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1315: Fazer anos no mato: os azares do meu amigo Tony Levezinho (Luís Graça)

30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1131: Um dia (feliz) na ponte do Rio Udunduma, com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (Luís Graça)

9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Amigos para sempre (Tony Levezinho, CCAÇ 12)

17 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVI: De Lisboa para o Xitole, com amor (Humberto Reis)

20 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CXCVIII: Recordar é viver ou...a memória de elefante do Humberto Reis (Humberto Reis / Luís Graça / António Levezinho)

(4) Vd. posts de:

28 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1631: À amizade (Abílio Machado, CCS do BART 2917/ Humberto Reis, CCAÇ 12)

21 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1618: Tertúlia: Benjamim Durães, ex-furriel mil da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)

15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1527: Lista de ex-militares da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e unidades adidas (Benjamim Durães)

14 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1525: Tertúlia: Durães, Vinagre & Cª Lda, do BART 2917 (Humberto Reis)

13 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1520: Bambadinca, CCS do BART 2917: Alferes Abílo Ferreira Machado, o Bilocas da Cooperativa (Humberto Reis)

Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez


Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (ex-Furriel Mil, CCS do BART 1913, Catió 1967/69) > Catió, Porto Interior > 1967> Foto 02 "Lancha do Cachil LP2, em manobra de atracação ao cais do porto interior de Catió no rio Cadime. Neste dia [11 de Julho de 1967] os passageiros eram um pelotão da CAART 1687 em trânsito do Cachil para Cufar, onde renderia por troca outro pelotão da CCAÇ 1621, concluindo-se assim a troca das companhias". 

 Foto e legenda: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados. 

 X (e penúltima) Parte das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (1). 

  2.15. O dia final do alferes Sasso As densas matas do Cantanhez (2), só de ouvir o seu nome, causavam calafrios aos mais corajosos… Aí, se acoitava uma forte concentração de casas mansas, uns verdadeiros fortins inexpugnáveis, mesmo à força da intensa metralha de artilharia. 

Podia dizer-se que ali se encontrava o quartel general, inimigo, da zona sul da Guiné. De lá saíam expedições constantes de grupos a espalhar a insegurança por todos os nossos aquartelamentos, quer por emboscadas quer por ataques às unidades isoladas. Além disso, controlavam uma população nativa muito numerosa que, voluntariamente ou não, trabalhava os campos, fonte principal do seu abastecimento. 

 Por todas estas razões tornou-se premente efectuar uma grande operação que desagregasse aquele bastião. Foi o que se pretendeu com a Operação Tornado. Os três batalhões sitiados no sul, com as unidades de artilharia e cavalaria, mais um grupo de fuzileiros e uma LDM, ajudados pela força aérea, ficaram responsáveis por esse objectivo. 

 A CCAÇ 728, aproveitando a maré-cheia, saíu, à noitinha, do cais de Catió a bordo de uma LDM; atravessou o estuário do Cacine e foi deixada, nas primeiras horas da madrugada, algures, em terra firme, do território inimigo. Todo o cuidado era pouco. Tocou ao meu pelotão seguir à frente, logo depois do destemido grupo indígena do João Bacar Jaló (3). 

 Caminhou-se toda a noite; quando o dia começava a querer alvorecer, estávamos a atravessar a zona, crítica, de Dar es Salam [na carta de Cacine, Darsalam]. De repente, alguns tiros caíram sobre o pelotão que seguia na cauda da fila, comandado pelo alferes Sasso. A resposta foi pronta e, depressa, tudo se calou. À frente, nada se tinha passado. 

 Só quando o dia nasceu e um helicóptero chegou, tivemos conhecimento de que o Mário Sasso tinha sido atingido com um tiro nas costas que lhe vasou o pulmão e coração. A esperança de sobreviver era pouca… e assim foi. 

 ___________ 

 Notas de L.G.: 

 (1) Vd. posts de: 











 (2) Sobre o Cantanhez (terminação em ez, e não em ês, de acordo com os nossos cartógrafos militares), vd. os seguintes posts: 




 (3) Futuro capitão graduado comando, natural da Guiné, comandante da 1ª Companhia de Comandos Africanos. Morrerá em combate em 16 de Abril de 1971.