quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

Guiné > Região do Cacheu > Biambe > Bajuda Papel, cristianizada > Uma homenagem à beleza da mulher guineense... Um "verdadeiro monumento ao amor", escreve o Vitor Junqueiro, neste post, a propósito da sua Fanta Faldé....

Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho, outro tuga enfeitiçado... (ex-fur mil op esp, CCav 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74)


Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.

Texto do Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa tertúlia (1). Enviado em 17 de Janeiro de 2007.

Comentário (prévio) de L.G.:

(i) Amigos e camaradas: o que vão ler, é um dos mais belos textos que um homem pode escrever sobre uma mulher em tempo de guerra. O estilo é puro e duro, o título enganador... Há uma tremenda ternura subliminar que me emocionou, e que só pode honrar o homem, o médico e o português que é o Vitor Junqueiro. É um texto que nos honra a todos. É uma homenagem a todas as Fantas Baldés da Guiné que climatizaram os nossos pesadelos, e que dormiram connosco na cama...

(ii) É um texto corajoso, escrito na primeira pessoa do singular, sem máscaras, sem defesas, que muitos de nós gostariam de ter escrito. É um escrito da maturidade, um escrito que revela uma grande nobreza de alma, sensibilidade e humanidade...

(iii) É um post que definitivamente vai figurar na antologia dos melhores posts do nosso blogue...

(LG)
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Luís,

Mantenhas p'ra bó.

Como as promessas se fazem para cumprir, aqui vai um pedaço de prosa da minha lavra que gostaria de ver publicado no Blogue.

Assim como aquele texto que te enviei ontem, já tarde (2). Se for possível e quando for possível. E caso não seja, agradeço que me dês conhecimento.

Saudações cordiais,
Vitor Junqueira

A minha puta ...
por Vitor Junqueira

1. Reflexão:

Toda a gente tem a sua puta. Que nem sempre é a doce puta-amante. Na maioria das vezes é uma bem amarga puta de vida, ou uma puta de sorte ...

Não sendo um expert em matéria de putedo, tenho sobre este assunto algumas ideias próprias, nem sempre consensuais com a moral e os bons costumes prevalecentes na família portuga. Começo por dar conta de um facto: Há muita gente que, com a maior naturalidade, visiona no leitor de DVD ou televisor da sua sala, filmes contendo cenas raiando o mais puro hard core, e no entanto, se numa conversa de circunstância o tema descamba para o lado das meninas, lá vem o inevitável e embaraçoso constrangimento. Tal como proclamava o nosso bem conhecido cónego Remédios, “não havia nechechidade” ... também estes benzetas não se coíbem de grunhir moengas contra estas sem-vergonhices. Repudio os seus argumentos bacocos, moralistas e reaccionários, quase sempre eivados de indisfarçável hipocrisia.

Afinal, todos sabemos que as putas como as cadeias existem, porque existem homens e mulheres. Reconheço contudo que entre nós, este continua a ser um tema meio tabu, com conotações geralmente negativas. Veja-se, a título de exemplo, algumas designações aplicadas às principais linhagens de putas:

Entre as plebeias, assumem posição de relevo as putas do c... São uma estirpe comum que pode desabrochar virtualmente no seio de qualquer honrada família. Porém, o grosso do efectivo é constituído pelas putas reles, putas manhosas e putas rafeiras. Há quem se refira a uma variante urbana particularmente desqualificada, como putéfia de merda, também conhecida como gatinha do Cacém. Não possuindo forçosamente qualquer vínculo nobiliárquico, as reais putas, cuja patrona-mor até foi por mero acaso uma conhecida princesa, são intocáveis, quase sagradas aos olhos dos milhões de putas sérias que por aí andam e com quem dormimos habitualmente!

As putarronas têm experiência, têm estatuto e acima de tudo possuem bons amigos. Sabidonas, cuidado com elas! As minhas preferidas são as refinadas putas. São o que são e não enganam ninguém. Distinguem-se pelo seu elevado grau de profissionalismo. Fora deste elenco, ficam as putas finas. Como dizia uma comadre minha tentando defender a honra da filha: são tão putas quanto as outras, mas sabem escrever à máquina! Têm carreira própria e à pala de umas cambalhotas com peixe graúdo, tornam-se alpinistas. Olhem em redor, e vejam até onde algumas conseguiram trepar!...

Por mim, rejeito qualquer expressão ou atitude classicista ou discriminatória em relação a um grupo profissional tão antigo quanto a humanidade. Que, por sinal, até tem merecido a atenção de alguns dos maiores pensadores e poetas que a humanidade já produziu. Como argumento final e para não me esticar em demasia, direi apenas que dentro de cada um de nós, existe certamente uma putinha adormecida.

Isto não significa que não fique deveras chateado se algum chifrudo me apelidar injustamente, de filho da puta. E se o mandassem para a puta que o pariu, como é que o meu prezado amigo reagiria? Como eu, mal. Pois é, paradoxos ...

2. Vamos à estória:

Era eu um chavaleco de merda na casa dos vinte e poucos anos, quando conheci na Guiné uma refinada puta. Tão puta, que suspeito que tenha nascido já sem cabaço. Ou se o teve, foi por pouco tempo! Não era uma puta comum. Esta veio ao mundo por uma causa, com uma missão. Tinha o seu código de honra e levava-o muito a sério: À sua beira, ninguém deveria padecer à míngua de sexo, ainda que estivesse teso!

A Fanta Baldé era uma mandinga retinta, grande, de feições fortes quase viris, voz meiga e riso espalhafatoso. Nunca soube qual era a sua idade, mas julgo que seria idêntica à minha. Ouvi-a dizer que nasceu lá para os lados de Binta, e por lá se manteve até ter peso suficiente para um tuga lhe fazer um mulatinho, o Mário. Já a criança era nascida quando à cata de melhores oportunidades de negócio montou estaminé num tugúrio em Farim.

Aí, acolheu no aconchego do seu corpo torrentes de esperma, em troca dos pesos que tanta falta lhe faziam para criar o seu rebento. Mais tarde, acabou por atravessar o Cacheu vindo a fixar residência em Saliquinhedim (K3), dedicando-se à prestação de serviços em regime de exclusividade aos Barões da CCAÇ 2753 (1).

Foi aí que nos encontrámos pela primeira vez e, desde logo, uma forte antipatia nasceu entre nós. Armado em cão com pulgas, eu via naquela mulher uma fonte de complicações. Já imaginava o mais do que provável abandalhamento da Companhia com quebra na disciplina e, sabe-se lá, a possibilidade da prática de actos de rebelião na hora de sair para o mato. Assim como a exploração, a favor do IN, de fontes de informação às quais tinham acesso privilegiado os nossos militares, seus clientes, sobre os quais possuía notório ascendente. O que, diga-se, representava uma enorme e inaceitável desvantagem estratégica das nossas forças face às tropas do PAIGC.

O tempo veio a demonstrar que era apenas uma mulher e mãe. Uma boa mãe. Como nenhum daqueles temores se concretizou, acabámos por nos tornar amigos íntimos. Demasiado até, tendo em conta as marciais regras do decoro e bons exemplos!

Mas ela assim quis, e quando a mulher quer, Deus ordena. E foi assim que moenga aconteceu:

Como assíduo frequentador da tabanca, situada arames meios com as instalações militares, procurava na convivialidade com a população local o alento para o stressante dia a dia dos golpes de mão, das colunas, patrulhamentos, emboscadas, em suma, da vida em estado de guerra. Sentados no chão ou estendidos sobre esteiras, gozando a frescura relativa da tarde sob a ramagem frondosa das mangueiras, a modorra tomava conta dos corpos enquanto a neura se apoderava das mentes. Entediados por meses de permanência naquele buraco do fim do mundo, amarfanhados pela saudade dos familiares e amigos que tinham ficado na metrópole, aquelas eram as tardes mais longas de todas as tardes, como no poema do Ary dos Santos (3).

A noite, porém, metamorfoseava aquele escafundó num pedacinho de paraíso. No tabancal, quase não havia homens, pois estavam praticamente todos exilados nos pelotões da milícia de Binta e Bigene. Deles, só se sabia quando apareciam para gozar uns dias de férias e esvaziar os sacos da saudade! Talvez por isso, os lusos eram muito bem recebidos. As esposas e namoradas, carentes como se compreende, lá se amanhavam com os nossos bacanos. Mas também as mães, primas, amigas ou irmãs que nos lavavam os camuflados, o pescoço e a alma em troca de quase nada.

Depois do jantar, que era geralmente servido ao lusco-fusco, distribuíam-se as armas aos putos que tinham a seu cargo a auto-defesa da tabanca. Eram na sua maioria adolescentes, a quem os nossos antecessores tinham ensinado o manejo da G3 e do morteiro. Recolhiam as armas da mão da tropa ao fim da tarde e entregavam-nas pela manhã do dia seguinte. E sempre souberam dar conta do recado.

Quanto a nós, magníficos representantes do marialvismo nacional, uma vez montada a segurança, o objectivo passava a ser bajudame e cada um se safava como podia. No terreiro da aldeia, localizado no centro de um aglomerado de 20 ou 30 moranças, ardia uma fogueira alimentada com lenha que todos ajudavam a recolher e transportar. Espantava os mosquitos, aquecia e alegrava o ambiente. Ao seu redor, apertavam-se os nossos à molhada com os indígenas.

Havia lugar para todos e todos tinham o seu lugar. Lado a lado, brancos e pretos, fulas e mandingas, homens, mulheres grandes, jovens adultos e crianças, escutavam interessados o relato feito por alguém, que em tom jocoso, dramatizava o acontecimento social ou peripécia desse dia. Via de regra, havia sempre uma vítima, alvo de dura chacota. Que ninguém levava a mal.

Às tantas, um ritmo de batuque, cantoria e risos de mulher enchiam o ar fresco da noite com cheiro a África. Para tanto, bastava que alguém desse início a um som com as palmas. E logo as palmas de muitas mãos acompanhavam aquele ritmo. Qualquer velha lata ou cabaceira, primorosamente percutidas por mãos experientes ou improvisadas baquetas, produzia uma música a que os corpos não resistiam, e recusando o controlo da vontade, gingavam ao ritmo da batida. Para o centro da roda, saltava então uma mulher, depois outra e outra. Curvadas para a frente, muitas vezes com os pequenitos na costa, batiam o chão, forte e compassadamente, com os pés nus. E logo a pequenada toda, as bajudas, honradas mães de família e outras menos honradas, toda a gente participava naquela dança quase frenética em que os cânticos entoados por conhecedores transformavam num ritual cataléptico que podia durar horas, e só terminava quando os corpos trémulos e suados pediam descanso, ou o quadro que fornecia luz à tabanca era desligado. Na esteira ficavam apenas os coxos e o mija na escada, moi, eu!

O convívio continuava então, mais terno, mais íntimo, com a cumplicidade da escuridão traída por esquivos reflexos das labaredas moribundas. Numa dessas noites, quando a maioria do pessoal já havia recolhido a penates, a Fanta aproximou-se de mim, risonha, e num crioulo palpitante disse-me:
- Zunqueira (tinha problemas com a dicção do meu nome), preciso falar contigo.
- Então fala, diz o que é que queres, respondi.
- Zunqueira, aquilo que tenho para te dizer ... tem de ser em minha casa. Vem por favor - disse ela. Disse-o como se fosse uma ordem, e num passo ligeiro e silencioso, pôs-se a caminhar à minha frente.

Fiquei intrigado, receoso mesmo. Ocorreu-me que quisesse pedir qualquer coisa para o filhote. Ou estaria ela a tramar alguma armadilha, a mando do IN? Mas, dado que noblesse oblige ..., senti-me impelido a seguir-lhe a silhueta através do labirinto de moranças, àquela hora escuro e deserto. Chegados à sua porta, no extremo oposto da tabanca quase junto ao arame farpado, accionou a taramela que garantia a segurança da sua espartana habitação.
- Vem, disse em voz ciciada, afastando-se para me deixar passar.

Instintivamente agarrei a coronha da [pistola] walter que levava escondida no bolso do dólmen. Contudo, o seu sorriso descomprometido tranquilizou-me. Entrei.

A casa tinha apenas uma divisão com chão de terra batida. Do lado esquerdo, arrumado à parede, um leito de ferro sobre o qual um colchão de espuma coberto com uma colcha cor de rosa impecavelmente limpa, sem uma ruga. Um pequeno caixote servia de mesa de cabeceira e evidenciava a singeleza do local. Em cima dele, um luxo, um candeeiro a petróleo cuja luz subiu. Pude então destrinçar junto à parede oposta um camita de madeira onde dormia placidamente o pequeno Mário. Esta visão acabou com os meus receios, senti-me completamente descontraído.

No pouco espaço disponível entre as duas camas, a Fanta volta-se para mim e apontando com o queixo para o pequenito, apoiou o indicador sobre os lábios em sinal de silêncio. Ostentava um sorriso enigmático a que luz velada do candeeiro realçava o brilho dos olhos e a brancura dos dentes. Acheia-a diferente, parecia uma garota.

Num gesto rápido fecha a porta, e sem uma palavra aproxima-se mais. Sinto-lhe o hálito, as formas e o calor do corpo. Delicadamente, como a pedir licença, envolve-me com os braços e aproxima a sua boca da minha. Um beijo rápido, carregado de promessas que me deixa paralisado. Balbucio uns nãos pouco convictos que só servem para reforçar o ímpeto com que se atira à tarefa de me despojar da farda e das botas. Sinto as suas mãos percorrerem-me o corpo à procura de fechos e botões enquanto me vai tocando com os lábios.

Sei que estou arrumado. Cheio de princípios e convicções, já não disponho de forças nem vontade para bater em retirada. Vejo-a pegar no cinturão carregado de artilharia, que atira sem cerimónias para cima das roupas caídas no chão. Troça despudoradamente:
- Zunqueira, para que andas com isto? Se eu quisesse fazer-te mal de que é que estas coisas te serviriam?

Xeque-mate, sem discussão! Num abrir e fechar de olhos, está nua. À volta dos quadris, um cordão de cheirinho, realça-lhe a feminilidade. Trata-se de uma enfiada de pequenas bagas escuras colhidas no mato que libertam uma oleosidade perfumada. Afasta a colcha e estende-se sobre o lençol branco. O contraste com a cor do seu corpo tem um efeito estonteante. E que corpo, Senhor! Que coxas, que mamas! Fico ali, ridículo, confuso, convulso, com tusa, em três pernas.

Aí, ela estendeu-me a mão e num convite cheio de sensualidade, puxou-me para junto de si. Acaricio-lhe a pele macia e aveludada com que a natureza brindou as mulheres negras. Percorro-lhe a pentelheira de um crespo sedoso, perfeitamente recortada, na busca dos recantos mais secretos daquele verdadeiro monumento ao amor. Claramente excitada, o seu corpo procura o meu que, tomado por uma espécie de frenesim, já só pede os finalmente.

A Fanta porém, conhecedora do seu ofício e com o saber fazer que o profissionalismo confere, com a docilidade e delicadeza que lhe eram próprias, lá foi tomando conta das operações. Controlando-me os gestos e moderando o impulso, ensina-me a beber repetidamente da cantarinha.

Alta madrugada, enrosca-se, envolve-me, retém-me o mais que pode. Faço-a entender que o meu regresso ao aquartelamento é imperioso. Submissa cede, e acompanhando-me à porta sussurra:
- Zunqueira, logo espero por ti.
- Não sei Fanta. Vou precisar de descansar porque o dia vai ser duro - respondi de forma evasiva para não criar falsas expectativas.

E abalei, ciente de que aquele só poderia ter sido deslize único que de forma alguma poderia repetir-se. À vista da sentinela, passo pela suprema humilhação de ter que me identificar:
-Quem vem lá faz alto! - diz o cabrão, perdido de gozo!

Sorrateiramente, para não acordar o camarada com quem partilhava o quarto, enfiei-me debaixo do mosquiteiro. Adormeci que nem uma pedra a pensar que aquela (volto a citar o Ary):

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram... Aquela e as seguintes. Porque durante mais de um ano, foram poucas as noites em que não dormi entre as pernas da Fanta. O caso assumiu foros de escândalo. O alferes Junqueira que alguns consideravam o homem mais disciplinado e disciplinador da Companhia, caíra de joelhos numa rendição incondicional, vencido pelo feitiço de uma mulher ... pública. Inacreditável. Ela deu-lhe alguma mezinha a beber, diziam uns, ou o caso tem mistério afirmavam outros. Nada disso, garanto eu. O que houve foi uma luta desigual. De um lado, os atributos físicos e a juventude de uma mulher simples, extremamente doce e feminina na cama. Do outro, a fraqueza da carne, bem rija na altura.

A Fanta nunca frequentou a escola mas possuía uma notável sabedoria de experiência feita. Acho que era sábia. Tinha tiradas de índole filosófica que me deixavam de cara à banda. Com ela aprendi bastante. Sobre a vida, o mundo e as pessoas. E o sexo, já agora! Fiquei a saber, por exemplo, que até as coisas têm alma, podendo continuar a existir mesmo depois de materialmente terem desaparecido!

Avizinhava-se o final da comissão. Havia uma data prevista para a rendição, com entrega das instalações a uma Companhia de periquitos. Por maior sigilo que se quisesse guardar quanto a estas movimentações, o segredo era invariavelmente quebrado como se sabe. No entanto, talvez por dever, mas certamente por cobardia, eu nada disse à mulher com quem tinha literalmente vivido nos últimos meses. Mas ela sabia de tudo havia tempo, mas nunca tocou no assunto. No dia da partida, pouco depois do sol nascer, estava eu ainda deitado quando bateu à porta, pedindo licença para entrar. Levantou o mosquiteiro e sentou-se a meu lado. Estávamos sós. Voltou-se para mim e sorriu, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe corriam pela face.
- Zunqueira, tu ias embora sem te despedires de mim!? - O tom era de mágoa e tristeza.

Senti-me um verme. Gaguejei sem saber o que dizer, mas lá arranjei arte para arquitectar umas mentirolas:
- Estás maluca Fanta, vou lá embora agora ...

Bem, eu devia meter dó, porque foi isso que li nos seus olhos. Limpou as lágrimas e passando-me para a mão um pequeno embrulho, foi dizendo:
- Zunqueira, quero que leves esta lembrança. É coisa pouca, mas acho que vais gostar.

Fiquei siderado. Pela atenção e carinho que não merecia. Pelo remorso. Desfiz o embrulho e retirei uma lanterna eléctrica daquelas de tipo espalmado, com uma grande pilha rectangular, dentro de uma caixa metálica cor de tijolo. Devia tê-la mandado vir de Bissau, com a devida antecedência. Muito tempo antes, eu tinha deixado escapar que, ao regressar todas as madrugadas ao quartel, tinha alguma dificuldade em orientar-me por entre as tabancas (moranças) na noites mais escuras.

Durante todo o tempo em que dormi com a Fanta, ela nunca me pediu nada, nunca aceitou nada. A não ser algumas latas de leite condensado Néstlé, meia dúzia talvez, que lhe levei para o filho ainda bebé. Terá vivido julgo eu, de economias, porque durante esse período se absteve completamente do negócio. Se aquele pequeno objecto valia uma fortuna para uma população que praticamente não tinha acesso ao dinheiro, para ela então, teria sido uma autêntica extravagância.
- Fanta, eu não posso aceitar. Desculpa, mas não posso mesmo. Na casa onde compraste, talvez te possam fazer a troca por qualquer coisa útil para o teu filho, insisti.

Dei-lhe a entender que se por um lado, aceitar o presente me deixava embaraçado, por outro, aquilo era um desperdício... dinheiro perdido.

Cada cavadela, cada minhoca, como se vê. A emenda estava a sair pior que o soneto. Nesse momento a expressão da Fanta tornou-se séria e fixando-me nos olhos, retorquiu:
- Sabes, Zunqueira, só se perde e deixa completamente de ter valor, aquilo que consumimos para satisfazer o nosso egoísmo. O que oferecemos ou partilhamos com os outros, existirá para sempre. Porque mesmo depois de já se ter transformado em pó, continuará a existir na cabeça e no coração daqueles de quem um dia gostámos.

Não voltei a encontrar a Fanta. Confesso que durante muito tempo, após a passagem à disponibilidade, continuava a lembrar-me dela, com saudade. Tive vontade de regressar à Guiné para a visitar, saber se precisava de alguma coisa. Encontrei sempre desculpas para não o fazer.
Aproveito agora para comunicar a quem possa interessar que a Fanta Baldé faleceu em Julho de 2005 no Bairro Militar, em Bissau.

Como diz o povo na sua bondade: Paz à sua alma e que a terra lhe seja leve.

Quanto ao filho Mário, estive com ele há uns três anos. Era então um jovem robusto de trinta e quatro anos de idade, pouco dado ao trabalho, casado, com um filho pequeno. A vida não lhe corria nada bem, pois uma espécie de Bar-Discoteca que geria em Farim, havia falido uns sete ou oito meses antes.

Descobri entretanto que o pai é um ex-militar de uma Companhia que chegou a Binta por volta de 1969/1970, de nome Mário Figueiredo. Originário da zona de Mangualde, encontrava-se na altura (2003), emigrado no Reino Unido.

Dedico esta narrativa absolutamente naïve, ao estilo de conto da revista Maria, à memória da Fanta. Com este despretensioso texto, pretendo também homenagear todas as Putas do mundo, muito em particular aquelas que conhecemos enquanto combatentes na guerra colonial.

Mulheres anónimas, a quem a sociedade continua a aplicar o labéu de fáceis, franquearam-nos a alma enquanto nos vendiam corpo. Foram amigas e confidentes discretas. Ofereceram-nos o colo ou simplesmente um ombro sereno que nos ajudou a apaziguar a torturante saudade de esposas, namoradas e, porque não admiti-lo, até das mães. Não posso prová-lo, mas estou convicto de que, sem o seu oportuno apoio, alguns teriam sucumbido àqueles tempos difíceis e não seriam os cidadãos equilibrados e válidos que são hoje.

Vitor Junqueira

Pombal, 17 de janeiro de 2007
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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes da série de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

(2) Vd. alguns dos post anteriores:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

(3) Vd. post de 17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1439: Questões politicamente (in)correctas (19): Os rambos só existem no cinema (Vitor Junqueira)

(4) Extracto de: Estrela da tarde,de Ary dos Santos

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!


In:
José Carlos Ary dos Santos > As palavras das cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho). Lisboa: Editorial Avante. 1989, p.58.

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1474: O capelão Mário Oliveira, de Catió, que ia a Bedanda (Mário Bravo)

1. Mensagem do Mário Bravo, médico

Luís Graça

Acabei de falar com o Bernardo Amaral, o meu colega, que me acabou com as dúvidas acerca do tipo que está na fotografia e que se chama Mário Oliveira (1). É mesmo o tal capelão que ia a Bedanda [, CCAÇ 6], mas estava estacionado em Catió [, CCS/BCAÇ 2930].

Digo-te que já gastei muitos minutos a ver e ler o blogue. Ontem, falei com um amigo meu da Figueira da Foz e que esteve em Jabadá e, como lhe dei o endereço, lá foi matar saudades.

Aproveito a ocasião para te dizer que o meu número de TM é 936259162, que está ao teu dispor e daqueles que entenderem fazer contacto.

Cumprimenta

Mário Bravo

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1469: Bedanda, manga de saudade ou uma dupla sinistra, o padre e o médico (Mário Bravo, CCAÇ 6)

Guiné 63/74 - P1473: Álbum das glórias (6): A 'dolce vita' de Bolama (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > CART 3492 > 1972 > "No jeep. Da frente para trás: Alf Canas, Alf Novais, Alf Lima (Secretaria?), Alf Rodrigues (meu camarada de curso, também que era da CCS e veio depois para o Xitole, por troca com o Alf Gonçalves Dias se não me engano), Alf Martins (CART 3493, Mansambo) e eu".


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > CART 3492 > "Eu e o Furriel Nunes, do 4º pelotão, se não me engano"



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > CART 3492 > "Num jipe à porta do Hotel Turismo".

Fotos e legendas: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados.

Álbum do Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, que de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 passou por três unidades no TO da Guiné (1):

(i) pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas),
(ii) antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão)
(iii) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ).

A CART 3492 pertencia ao BART 3873.
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Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1401: Com a CART 3492, em Bolama, no Reino dos Bijagós (Joaquim Mexia Alves)

12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P1472: Sobrevivente do BCAÇ 2885 (Mansoa e Mansabá) (César Dias)

Apelo do César Dias (a quem saudamos e a quem convidamos para se juntar a nós):

Sou um dos sobreviventes do Batalhão de Caçadores 2885.

Estivemos no sector de Mansoa e Mansabá desde Maio de 1969 a Março de 1971.

Sei que os restos dos Batalhões de Caçadores eram extintos quando regressavam, mas será que as pessoas desapareceram todas? Até hoje não tive qualquer contacto.

Deixo o meu contacto para o caso de aparecer alguém que ainda se lembre por onde passámos.

Como todos, tenho algum material fotográfico mas ainda não está digitalizado.

César Vieira Dias
Ex Furriel Miliciano Sapador
BCAÇ 2885
RI 15

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Nota de L.G.:

(1) Referências ao BCAÇ 2885 > vd. seguintes posts do nosso camarada Carlos Vinhal:

25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "Como se tratava de uma Companhia independente ficámos dependentes administrativa e operacionalmente ao BCAÇ 2885, sediado em Mansoa. Os Oficiais, Sargentos, Cabos e Soldados especialistas eram todos continentais. Os madeirenses, homens de comprovada bravura, eram aquilo que poderíamos chamar a carne para canhão. A verdade é que muitos deles foram feridos em combate mais de uma vez e nunca viraram a cara à luta. Verdadeiros heróis anónimos, embora alguns reconhecidos e louvados até pelo General e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné" (...)


18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXI: Breve historial da CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(...) "Em 11 de Novembro de 1970 a CART 2732 deixou de pertencer ao BCAÇ 2885, passando a estar integrada no Comando Operacional n.º 6, reactivado pela necessidade da construção da estrada Mansabá-Farim. O COP6 ficou instalado em Mansabá e a CART apoiou, fornecendo todos os meios logísticos necessários à sua operacionalidade (...).

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1471: O tenente miliciano capelão Mário Oliveira, Catió. BCAÇ 2930 (Amaral Bernardo)



Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 6 > Regresso do Cap Ayala Botto, de férias: é o primeiro, sentado à direita; o Alf Mil Médico Amaral Bernardo está de de pé junto ao Seco, em traje tradicional.



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > A saída do obus 14, de noite.
Fotos: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Amaral Bernardo (José Maria Ferreira do Amaral Bernardo, Professor Catedrático Convidado no ICBAS - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Responsável do Departamento de Ensino Pré Graduado do HGSA - Hospital Geral de Santo António, Porto; ex-alf mil médico, BCAÇ 2930, Catió, 197o/72) (1)


Luís:

Só um esclareciment: O Mário de Oliveira que está com o Mario Bravo (2) não tem nada a ver com o Padre Mário de Oliveira da Lixa. É o capelão da CCS do BCAÇ 2930, sediada em Catió, sede do batalhão, a que ambos pertencemos:

(i) embarque no Carvalho de Araujo, que ardeu no caminho,

(ii) chegada a Bissau em 4 de Dezembro de 1970;

(iii) e regresso em 14 de Outubro de 1972.


O Mário de Oliveira é meu afilhado de casamento! (3).
O Mario Bravo foi-me render a Bedanda (onde estive 13 meses com o capitão Ayala Botto, que cumprimento). Fiz também Guileje com o famosíssimo Cap Parracho que cumprimento também, e Gadamael com o Cap Silva, das Operações Especiais, a quem tive que passar a certidão de óbito por morte em combate, e que recordo com muita saudade (Gadamael era o pior buraco do sul; a companhia que então lá estava teve que ser evacuada para Bissau por minha recomendação).

Só voltei a ver o Mário Bravo há dias, aqui no hospital onde trabalho e lhe dei um abraço e o endereço do blogue.

Vou parar aqui...

Abraço

Amaral Bernardo


P.S. - Os obuses de Guileje são 11.4 e os famosíssimos de Bedanda 14: eram 3. Inconfundíveis (4)

2. Comentário de L.G.: O Prof Amaral Bernardo telefonou-me hoje de manhã, a dizer-me que me ia mandar este mail e estas duas fotos. Aproveitei para o convidar, formalmente, a fazer parte do nosso blogue. Sei que é um velho amigo do Paulo Salgado e um apaixonado pela Guiné e pelo seu povo. Há mais de uma década que faz cooperação na área da saúde. Não precisaria de nenhum destes pergaminhos para ser cooptado para a nossa tertúlia. Bastava o facto de ter sido nosso camarada de armas e ter passado por sítios míticos do sul da Guiné, aqui constantemente evocados. O Amaral Bernardo está em casa, entre amigos e camaradas.
Quanto ao esclarecimento sobre a identidade do tenente miliciano capelão Mário Oliveira, fica tudo esclarecido. Eu tinha ontem enviado um mail, à nossa tertúlia, em tom de brincadeira, nestes termos:
Amigos & camaradas: Vejam se descobrem este sósia do verdadeiro Padre Mário de Oliveira, nosso querido tertuliano... Espero que o Mário Bravo, que é ortopedista, não tenha trocado os pés pelas mãos...
Naturalmente que, tal como as Marias, há mais Mários na terra. O Mário Oliveira, que em tempos foi sacerdote e capelão militar, em Catió, no BCAÇ 2930, será também bem vindo, se se quiser juntar a nós... com a benção do padrinho.
Com três médicos (Vitor Junqueira, Mário Bravo e Amaral Bernardo) e dois capelões militares (os Mário Oliveira), já não haveria guerra que nos metesse medo... (LG)
_______________


Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 12 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)

(2) Vd. post de 28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1469: Bedanda, manga de saudade ou uma dupla sinistra, o padre e o médico (Mário Bravo, CCAÇ 6)

(3) Também recebi mais dois emails, confirmando a identidade do ex-capelão:

Carlos Ayala Botto: Caro amigo, se não estou em erro, a foto que me enviou é do capelão do Batalhão de Catió, cujo nome não me recordo. Um abraço. Carlos Ayala Botto

Rui Santos: É mesmo o Tenente Miliciano Capelão Mário Oliveira, do BCAÇ 2930, Catió, 1970-1972. Pelos vistos, dois capelães com o mesmo nome! Rui Santos.

(4) O nosso especialista em artilharia, o coronel na reforma, Nuno Rubim, diz que o 11.4 é uma peça (de artilharia) e o 14 é que é o obus... Eu confesso que não consigo distingui-los... Sobre a artilharia em Bedanda e Guileje, vd. posts anteriores:

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1443: Contributo para a história da construção do aquartelamento de Guileje (José Barros Rocha, CART 2410, Os Dráculas, 1969/70)

15 de Janeiro de 2007 >Guiné 6/74 - P1434: Artilharia em Guileje: a peça 11.4 e o obus 14 (Nuno Rubim)

6 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1407: Tertúlia: apresenta-se o Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola

8 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1159: Álbum fotográfico (Hugo Moura Ferreira) (2): Bedanda, ontem (CCAÇ 6, 1970) e hoje

6 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1155: Álbum fotográfico (Hugo Moura Ferreira) (1): Bedanda, CCAÇ 6, 1970: O Obus 14 contra o foguete Katiusha

Guiné 63/74 - P1470: Questões politicamente (in)correctas (22): O Império que fomos nós (Paulo Raposo)

Guiné > Região do Oio >Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Alf Mil Raposo com um milícia local.

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados.



Dois comentários recentes do Paulo Raposo a posts do nosso blogue, e que se enquadram - tratando-se de opiniões - na série Questões politicamente (in)correctas (1):


1. Comentário ao post de A. Marques Lopes (2):


Olha, Luís:

Há alguns assuntos no blogue que são muito sérios e têm sido tratados com ligeireza e também para branqueamento.

TODOS nós fizemos a guerra que nos foi imposta, não fomos a casa de ninguém para a roubar.

Foi o menino, filho de pai rico, chamado Kennedy , que começou a deselvolver o terrorismo em África contra nós e depois os russos foram atrás. Os mesmos americanos que estão a levar nos cornos no Iraque.

Isto da treta da independência e da resistência é como o Pai Natal. Estamos todos na miséria. A guerra foi feita por nós, os relatórios eram feitos por nós, a recolha de elementos era feita por nós, Sargentos, Alferes e Capitães.

Quantas mentiras lá colocámos, desde a carga da companhia, como o vagomestre e sargento a mamar à conta da comida que roubava da boca dos soldados, etc., etc. Acima daqueles postos só despachavam o que lhes punham à frente.

Atribuir culpas disto e daquilo ao Adamastor não tem pernas para andar. Temos de encarar estes assuntos com frontalidade.

Com mais independência ou com menos independência, se estivessemos todos unidos debaixo de uma mesma bandeira viviamos que nem uns nababos.

Assim cá e lá a miséria e total. Agora os militares vão ficar sem subsídios, é uma vergonha. Não podem ser mais humilhados pelos nossos políticos charlatões.

Mas Sócrates quando vai de férias para o Brasil, é à valente. O Comandante Alpoim teve tomates para ir buscar os nossos a Conakry. Este feito se fosse com americanos ou israelitas já tinha vários filmes.

Isto de menosprezar o que é nosso é próprio da mediocridade reinante. Onde está a nossa auto-estima?

O Império que somos nós, talvez em muito relatórios os mortos deveriam ser mencionados ou pelas unidades, ou pela 2ª Rep ou pelo hospital ou por outro caramelo qualquer. Se não constam é triste, pois é um Herói que ficou esquecido mas foi culpa do desleixo tipo à portuguesa.

Não havia intencionalidade, era à portuguesa. Agora quando os putos da GNR nos mandam saír do carrro, dizem logo Levante as mãos e abra as pernas. Isto é Hollywood, não é nosso.

Olha, é um desabafo. Estamos velhos e nos perguntamos qual o futuro de nossos netos. Vão pedir emprego aos chineses. Estes sim vão sugar em África, como nunca se viu.

Um abraço amigo do

Raposo


2. Mensagem de 13 de Janeiro de 2007, comentando um post do António Rosinha (3):

Olá, rapaz, li o teu texto e continuo a achar que a verdade ainda vai ser contada sobre a nossa guerra de África.

Quem nos fez guerra em África foi o menino, filho de pai rico, chamado Kennedy. Os russos foram atrás, ainda estou para saber porquê e para quê.

Depois faz-se um 25 de abril e, passados já vão 30 anos, ninguém está feliz e quem se vai banquetear com África vão ser os chineses.

Os heróis do 25 de abril bem podem limpar as mãos á parede. Nunca como agora os militares foram tão humilhados. De Badajoz até Lisboa é só auto estrada.

Todos os quartéis de Elvas, Extremoz e Vendas Novas para lá caminha, vai tudo fechar.

O apelo à virilidade acabou, por hoje aqui me fico.

Um abraço do

Paulo Lage Raposo
Alf Mil Inf
B. Caç 2852
C. Caç 2405
Guiné 68/70
Tel 266898240
Herdade da Ameira
7050 Montemor O Novo

___________

Notas de L.G.




domingo, 28 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1469: Bedanda, manga de saudade ou uma dupla sinistra, o padre e o médico (Mário Bravo, CCAÇ 6)

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971/72> O Alf Mil Médico, Mário Bravo, à direita; e o Tenente Miliciano Capelão Mário Oliveira.

Fotos: © Mário Bravo (2007). Direitos reservados


Mensagem do Mário Bravo (1):

Meu Caro Luis Graça

Já reparaste que estou muito entusiasmado com esta ideia do blogue e das recordações da malta da Guiné.

Como te havia prometido, procurei fotos e eis que encontro uma que me parece muito interessante. A do Mário Oliveira. Pode ser que ele veja esta imagem, se publicada no teu saturado blogue.

O camarada que está do lado esquerdo da imagem, é o Padre Mário Oliveira ( tenente). Mas que dupla sinistra – o padre e o médico. Gostava de saber deste Mário Oliveira, pois encontrei-o há uns anos e não soube mais nada dele.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1467: Bem vindo a Guileje, Doutor (Mário Bravo)

27 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1466: Mário Bravo, médico de Guileje (Amaro Munhoz Samúdio)

23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)

(2) É de todo improvável tratar-se do Padre Mário de Oliveira, o nosso Padre Mário, membro da nossa tertúlia, e que pretenceu ao BCAÇ (Mansoa, 1967/68). O Alf Mil Capelão, Mário de Oliveira - que virá a ser conhecido mais tarde como o Parde Mário da Lixa - recebeu ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968.

Vd. posts:

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1002: Um novo recruta, Aires Ferreira (BCAÇ 1912, CCAÇ 1686, Mansoa, 1967/69)

27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )

Guiné 63/74 - P1468: Mortos que o Império teceu e não contabilizou (A. Marques Lopes)




Guiné-Conacri > Conacri > Instalações do PAIGC > 1970 > Prisioneiros portugueses, fotografados pelo fotógrafo húngaro Bara István (nascido em 1942). Legenda em húngaro: "Bara István: Portugál foglyok a PAIGC börtönében, Guinea Bissau, 1970". A avaliar pela sua fotogaleria, o Bara István - oriundo de um país da Europa de Leste, com um regime comunista na época - teve um acesso privilegiado à guerrilha do PAIGC. São raras as fotos dos nossos camaradas em cativeiro, até à sua libetação em 22 de Novembro de 1970, na sequência da Operação Mar Verde. Estamos gratos a este conhecido grande fotógrafo magiar pelas imagens sobre a guerra colonial na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página.
Será que alguém, dos nossos amigos e camaradas, é capaz de reconhecer estes rostos ? Boa parte deles faziam parte da CART 1690 (Geba, 1967/69), a que pertenceu o nosso camarada A. Marques Lopes, ex-alf mil e hoje coronel, DFA, na reforma.

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria (com a devida vénia / with our best wishes...)


Texto do A. Marques Lopes:

O nosso camarada tertuliano José Martins tem sido, de facto, um escavador persistente (e pertinente, sem dúvida) da nossa história na Guiné. Extremamente úteis e elucidativas as informações que nos trouxe sobre Madina do Boé, as condecorações e a lista daqueles que tombaram nos chãos guineenses (1). Mas, e já lhe transmiti isto pessoalmente, nesta lista de mortos na guerra da Guiné há omissões, várias, com certeza. E eu só posso falar daquelas que conheço, mas são exemplo, os da CART 1690.

Nesta companhia foram dados como "desaparecidos em campanha" o alferes Fernando da Costa Fernandes, o soldado Agostinho Francisco da Câmara e o soldado António Domingos Gomes. Sabemos que "desaparecido" era o termo para designar, também, aqueles cujos corpos não se recuperavam, e podemos aceitar que assim fosse, dado que até podiam ter ficado no terreno, mas feridos. Mas, muito tempo depois, e acabada a guerra, regressados a casa muitos desertores e alguns que se passaram para o outro lado (sem estar a pôr em causa as suas razões), os nomes destes homens deviam constar da lista dos mortos em combate na Guiné, porque assim sucedeu de facto.

O alferes Fernando da Costa Fernandes morreu em Sinchã Jobel em 19 de Dezembro de 1967, durante a Operação Invisível. Diz quem fez o relatório desta operação (2):

"Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes; verifiquei que nessa altura já o Destacamento B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º Cabo Sousa, da CART 1742, e que estava a fazer fogo com a Metralhadora Ligeira MG-42, soldado Metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos. Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a rectaguarda e quando o puxava pelos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos.

"Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam o cabelo bastante compridos (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar."

Mas morreu também nesta operação o soldado Vito da Silva Gonçalves, que foi dado como "morto em combate", porque o corpo foi recuperado. Mas também não vem nessa lista! E porque é que não foi dado como "desaparecido em campanha" o soldado Metropolitano Fragata, o Manuel Fragata Francisco, que também ficou nesta operação?

É uma história das teias que o império tecia. Eu conto: ele foi crivado com uma roquetada nessa operação, mas vivo, e os guerrilheiros do PAIGC levaram-no numa maca, atravessando a mata do Oio, o rio Mansoa e o rio Cacheu, até ao hospital que servia o PAIGC em Ziguinchor, no Senegal, onde, coincidência, foi tratado pelo doutor Pádua (actualmente no Hospital Pulido Valente, em Lisboa), que se tinha passado para o outro lado. A PIDE sabia disso, claro. Parece lógico que se pense que teriam feito o mesmo com o alferes Fernandes se ele tivesse ficado vivo. Mas foi muito claro que estava morto.

O soldado Agostinho Francisco da Câmara (e não Camará...) morreu também em Sinchã Jobel em 16 de Outubro de 1967, aquando da Operação Imparável (3). O mesmo relator disse assim:

"O nosso bazuqueiro (passe o termo) Soldado Agostinho Camará que estava a fazer um fogo certeiro, foi atingido mortalmente (note-se que este L.G.F. era o único que estava a fazer fogo). Foi o Soldado enfermeiro Alipio Parreira que se encontrava próximo e que estava a fazer fogo com a ML MG-42 (para a qual o referido soldado se oferecera como voluntário) pegar no LGF e continuar a fazer fogo com ele. Nesta altura tive que pegar na MG-42 e fazer fogo com ela. Logo a seguir tive que me dirigir à rectaguarda a fim de falar com o PCV que me chamava. Quando regressei à frente verifiquei o já referido soldado enfermeiro recomeçara a fazer fogo com a ML MG-42 que passado mais alguns momentos ficou impossibilitado de fazer fogo devido a uma avaria, ao mesmo tempo que o soldado enfermeiro e o municiador eram feridos por estilhaços."

"Atingido mortalmente" não quererá dizer que ficou morto?... Com essa expressão a língua portuguesa não cometeu nenhuma traição. Ele morreu lá, de facto. Mas o relatório desta operação diz mais à frente:

"Ainda foram abatidos a tiro de G-3 2 elementos IN um destes pretendia agarrar o Soldado Armindo Correia Paulino". E o soldado Armindo Correia Paulino também lá ficou. Mas há dúvidas se ficou morto ou vivo: há quem diga que foi agarrado e há quem diga que morreu. De qualquer modo foi considerado como "retido pelo IN", mas não foi libertado. Por isso, vou falar dele mais à frente.

O soldado António Domingos Gomes era um guineense de Bissau, do "recrutamento da Província", portanto, e era o guarda-costas do capitão da CART 1690 [, Manuel C.C. Guimarães] . Sei que morreu às 8 horas do dia 21 de Agosto de 1967 na picada de Geba para Banjara. Ficou feito em bocados por uma mina anticarro, espalhado pelas árvores e pela mata. Eu e o meu guarda-costas, o Lamine Turé, ficámos feridos e o capitão, que quiz ir comigo nesse dia, também ficou muito ferido. Na esperança de ainda o salvar, fui rapidamente para Bafatá, onde havia o médico do batalhão. O Domingos Gomes lá ficou espalhado nas bermas da picada, e o capitão acabou por morrer. Não há relatório da ocorrência, por razões óbvias, mas eu vi e dei testemunho disso, assim como os que me acompanhavam. O Domingos Gomes morreu. Parece brincadeira de muito mau gosto, mas deram-no como "desaparecido em campanha".

Penso, embora não tenha exacta certeza, disseram-me que há já legislação que regulariza estas situações de corpos que não foram recuperados. Não entendo é porque os seus nomes não constam ainda nas listas dos mortos durante a guerra, aquelas fontes que o José Martins pesquisou.

Esta é uma situação gritante. Mas há outra, que é a dos prisioneiros feitos pelo PAIGC, os tais "retidos pelo IN" (4), e que morreram no cativeiro na Guiné-Conakry. É o caso do soldado Luís dos Santos Marques, do soldado João da Costa Sousa, do soldado Manuel José Machado da Silva e, talvez, do soldado Armindo Correia Paulino.

Estes dados tirei-os de um documento que falava dos prisioneiros libertados aquando da Operação Mar Verde:

- o soldado Luís dos Santos Marques, da CART 1690, aprisionado em Cantacunda em 11 de Abril de 1968, "não compareceu entre os libertados", dado como "morto no cativeiro", dizia. E está confirmado pelos seus companheiros de prisão. Segundo uns, morreu de malária; ou, segundo o major piloto-aviador António Lourenço Sousa Lobato, depois de levar uma tareia dos seus carcereiros;

- o soldado João da Costa Sousa, da CART1690, para onde fora em rendição individual a 19 de Agosto de 1967, e também aprisionado em Cantacunda em 11 de Abril de 1968, também "não compareceu entre os libertados", não havendo mais indicações;

- o soldado Manuel José Machado da Silva, não sei de que companhia era (sei só os que eram da CART 1690), também "não compareceu entre os libertados", e é dado como "morto no cativeiro";

- o soldado Armindo Correia Paulino, da CART1690: é o tal que há dúvidas se morreu ou foi aprisionado em Sinchã Jobel; como foi dado como "retido pelo IN", o seu nome consta como "não compareceu entre os libertados".

Quer dizer que há dois sobre os quais se tem a certeza que morreram prisioneiros. Porque não constam os seus nomes na tal lista? Inadmissível também. Não há razão.

O João da Costa Sousa e o Armindo Correia Paulino mereciam um cuidado para se saber, então, o realmente sucedeu com eles. Nem os seus companheiros de prisão sabem deles, porque alguns não estavam no mesmo sítio aquando da operação do comandante Alpoim Calvão. Mas não "se passaram", com certeza (não me parece, por exemplo, que a "história" do Armindo Paulino durante a Operação Inquietar II lhe desse hipótese disso) (5). Dos prisioneiros de Conakry houve um que "se passou" e foi para a rádio Argel, eu sei: foi o soldado Francisco Gomes da Silva, da CART 1690, e também aprisionado em Cantacunda.

Claro que na tal lista constam os "por doença" e os "por acidente". Devem estar nela, mas não está certo que não estejam os "desaparecidos em campanha", mortos com certeza, e os que "não compareceram entre os libertados", mortos no cativeiro com certeza.

Claro que, também injustamente, não consta os seus nomes no monumento em Belém. E, já agora que se fala dos cemitérios nos locais da guerra, há que lembrar que quer o alferes Fernandes, quer o Agostinho Câmara e, talvez, o Armindo Paulino terão os seus corpos "sepultados" no poço que o ex-guerrilheiro Darami me disse que era para onde atiravam os mortos que ficavam dos ataques à base de Sinchã Jobel (6).


Abraços
A. Marques Lopes

__________

Notas de L.G.:

(1) Lista disponível, em formato pdf, no sítio do António Pires > Moçambique - Guerra Colonial > José da Silva Marcelino Martins > Militares que Tombaram em Campanha (1961-1974) > Guiné

(2) Vd. post de 5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII(A. Marques Lopes)

(3) Vd. post de 3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI (A. Marques Lopes)

(5) Vd. post de 7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II (A. Marques Lopes)

(...) "E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência. Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida" (...) (7).
(6) Vd. post de 16 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXIII: Do Porto a Bissau (17): Finalmente entrámos em Sinchã Jobel (A. Marques Lopes)

(7) Vd. post de 29 Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

(...) "Tenho de partir, de voltar a Portugal. Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!” e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quizesses ouvir... E nunca mais dormi descansado até agora. (...)

"Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou. Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio. Fala com ele agora". (...)

Guiné 63/74 - P1467: Bem vindo a Guileje, Doutor (Mário Bravo)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 > O Alf Mil Médico Mário Bavo, que pertenceu à CCAÇ 6 (Bedanda, 971/72) ia também regularmente a Guileje, prestara assistência médica aos respectivos militares e população . Ironicamente, esta a mensagem de boas vindas - Boa viagem - com que as visitas eram recebidas...
Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 > O Mário Bravo na porta de armas


Fotos: © Mário Bravo (2007). Direitos reservados


Mensagem do Mário Bravo, ex-Alf Mil Médico, CCAÇ 6 (Bedanda, 1971/72) é hoje médico ortopedista, no Porto, e um dos mais recentes membros da nossa tertúlia (1).

Caro Luís:

O Samúdio também me mandou essa foto (2), que muito apreciei. Eu também tenho algumas dos tempos que que passei por lá. Habitualmente estava em Bedanda e ia de modo regular fazer serviço a Guileje, Gadamael Porto e Cacine. Passei esporadicamente por Catió e fui uma só vez a Cufar.Vou fazer uma pesquisa das minhas fotos e aos poucos vou-te enviando, com o objectivo de vir a identificar mais malta.

Depois de sair do sul da Guiné, fui para Teixeira Pinto onde permaneci até ao fim da comissão. Também estive algum tempo em Bissau, no Hospital Militar, onde me ensinaram a arrancar dentes. Com esta especialização, lá foi este teu amigo dar cabo dos dentes ao pessoal ( salvo seja).

Na zona de Teixeira Pinto, fui algumas vezes a Bachile, Cacheu, Carenque e Batucar. Digo-te estes nomes, pois assim poderás publicar no teu blogue e há-de haver tipos que se lembrem de me escrever.

Falei ao telefone com o Ayala Botto (3), que se lembrava de mim e ficou feliz pelo meu contacto. Este coronel foi muito útil para mim, no fim da comissão, pois ajudou-me no regresso à metrópole. Os tais gestos de pessoa que se estimam, independentemente das suas posições ou cargos. Porque existe o que se chama solidariedade.

__________


Notas de L.G.:

(1)Vd. post de 23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)

(2) Vd. post de 27 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1466: Mário Bravo, médico de Guileje (Amaro Munhoz Samúdio)

(3) Vd. post de 6 de Janeiro de 2007 Guiné 63/74 - P1407: Tertúlia: apresenta-se o Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola

sábado, 27 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1466: Mário Bravo, médico de Guileje (Amaro Munhoz Samúdio)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (Novembro de 1971/ Dezembro de 1972) > O Alf Mil Médico Mário Bavo (1)- ao meio, na foto - esteve na CCAÇ 6 em Bedanda, mas também ia regularmente a Guileje, no tempo do Samúdio (1º cabo enfermeiro, o primeiro à esquerda).

Foto: © Amaro Samúdio (2006). Direitos reservados


Caro Luís Graça:

O Mário Bravo era o médico que ia regularmente a Guileje.

Um abraço

Amaro Munhoz Samúdio (2)

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)

(2) Vd. post de 10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1162: Guileje: CCAÇ 3477, os Gringos Açorianos (Amaro Munhoz Samúdio)

Guiné 63/74 - P1465: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (4): Os majores foram temerários e corajosos (João Tunes)


Portugal > Presidência da República > Antigos Presidentes > António de Spínola (1910-1996). Ocupou a Presidência da República de 15 de Maio a 30 de Setembro de 1974, data em que renunciou ao cargo, sendo substituído pelo general Costa Gomes. De 1968 a 1973, foi Governador-Geral e Comandante-Chefe da Guiné.

Fonte: Presidência da República Portuguesa (2007) (com a devida vénia...)

"Oficial oriundo da arma de cavalaria, começou a construir a imagem de chefe militar que vai onde os seus homens vão desde que, como tenente-coronel, se ofereceu para comandar um batalhão em Angola.

"Nomeado em 1968 por Salazar para governador e comandante-chefe da Guiné, no primeiro estudo da situação, apresentado por Marcelo Caetano, afirmava ter a guerra a finalidade de resistir para permanecer; ligava entre si a sorte de cada território, de modo a evitar as tentações do regime se libertar da ovelha negra que era a Guiné; e caracterizava o PAIGC como o movimento de libertação mais consequente de quantos se opunham ao colonialismo português, classificado por Amílcar Cabral como líder merecedor do maior respeito.

"A sua acção na Guiné cobre toda a panóplia de manobras politícas e militares, subordinando sempre esta àquelas e tendo por finalidade a conquista das populações. Promove coversações ao mais alto nìvel com Leopoldo Senghor; tentando chegar a Amílcar Cabral, procura cindir o PAIGC, num episódio de que resulta a morte de três majores da sua confiança; lança uma operação contra Conacri para derrubar Sekou Touré, mas realiza também congressos do povo, liberta presos políticos, cria uma força africana. Nunca um governador de provincía ultramarina, e muito menos um general, ousara ir tão longe.

"Em 1973, quando Marcelo Caetano proíbe a continuação dos contactos com o inimigo, Spínola compreende que deixou de ter lugar no regime e prepara a publicação de Portugal e o Futuro, bomba-relógio que iniciará a sua destruição".

Fonte: Extractos de: Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra



Mensagens trocadas entre o Afonso M.F. Sousa e o João Tunes, durante a elaboração do dossiê O Massacre do Chão Manjaco (1):

1. Mensagem do Afonso M. F. Sousa > 21 de Novembro de 20006

Caro João Tunes:

Tudo muito claro. Obrigado pelo pormenor do testemunho. A famíla do Tenente-Coronel Joaquim Pereira da Silva [ um dos três majores assassinados,]parece estar mal informada quanto a:

(i) Não foi Ramalho Eanes que comandou a tropa que procedeu ao levantamento dos corpos, mas sim o Capitão Neves (comandante da CCAÇ 2586) (2)

(ii) Pereira da Silva não foi morto com uma catanada no estômago, quando muito foi com uma faca de mato. O Cap João Godinho (há altura, 1º Sargento da CCAÇ 2586) disse-me que um dos majores ainda tinha uma faca de mato espetada na zona do coração. Não se recorda em qual deles.

(iii) Spínola não estava na Metrópole (a pedido de Caetano), no dia do massacre (mas sim na Guiné).

De estranhar que, tendo a PIDE detectado a tempo que o desfecho da acção seria trágico, tenha permitido a sua execução sem sugerir uma segurança próxima e a necessidade dos oficiais levarem armas consigo.

Parece que ainda fica alguma obscuridade (mistério) sobre todo o envolvimento e o desfecho desta acção. Fica a dúvida se os majores tiverem todo o apoio necessário ou terão sido deixados entregues a si próprios nos últimos instantes. Mas para chorar os mortos, Spínola estava lá !...

Um abraço

Afonso M.F. Sousa

2. Resposta do João Tunes > 22 de Novembro de 2006


Caro Afonso Sousa,

(i) A versão que tenho como confirmada é que as mortes foram provocadas primeiro por rajadas de tiros e depois acabadas com facas. Mas não sei se as facas eram facas de mato, talvez fossem as facas-baioneta usadas com as kalash. Quem sabe mais pormenores sobre tudo isto é o Leopoldo Amado. Ele foi contactado?

(ii) Não sei se interessará muito, por uma questão de sensibilidade, escarafunchar junto da família do TC Pereira da Silva os pormenores. Por exemplo, esclarecê-los que ele foi morto com faca e não com catana. Tu saberás dar a volta ao eventual melindre.

(iii) Só sei que o Silva Cardoso, então responsável pelas Informações no QG, é dado como tendo convencido Spínola a não ir ao encontro (Spínola já tinha estado com os majores num 1º encontro com o PAIGC). A referência que fiz à PIDE é uma mera dedução, pelo papel que ela desempenhava no serviço de informações às FA. Aliás, como confirmei presencialmente, o Major Pereira da Silva trabalhava em íntima colaboração com o inspector da PIDE, em Teixeira Pinto, que tinha um papel primordial na obtenção de informações, na infiltração de informadores, etc. Entretanto, a direcção da PIDE em Bissau tinha as suas infiltrações junto e dentro da direcção do PAIGC. Pode ter ocorrido uma diferente avaliação da PIDE em Bissau e em Teixeira Pinto. E é natural que em Bissau (no QG e na PIDE) houvesse avaliações mais frias e mais realistas dos riscos que quem estava no terreno envolvido na probabilidade de um grande ronco e, nesse entusiasmo a quente, os riscos fossem menos medidos quanto a cenários pessimistas.

De qualquer modo, havendo contradições dentro do PAIGC, é natural que neste se desenvolvessem vários canais de acção - um mais virado para a traição (os mais receptivos à infiltração pela PIDE), outro (com ultra segurança e sob comando directo de Cabral) para fazer ronco contra o Spínola (tanto mais que eles deviam admitir como possível e provável que iam deitar a mão ao Caco e, quem sabe?, a selvajaria do comportamento deles não foi acicatado por terem visto que o Spínola não ia na delegação).

Entretanto, é natural que as precauções com a segurança de um general sejam superiores que para com majores e um alferes, como é superior de majores para furriéis e de furriéis para cabos. Assim, julgo que nada fundamenta dizer-se que os chacinados "não tiverem todo o apoio necessário ou terão sido deixados entregues a si próprios nos últimos instantes". Numa guerra, nada é 100% seguro. E eles tiveram, sem dúvida, foi um grande galo. Como tantos milhares de outros nossos camaradas que por lá cairam.

(iv) O Ramalho Eanes estava até os acontecimentos no QG em Bissau (conheci-o aí de vista ligeira quando fui lá colocado em serviço durante duas horas e por engano!). Foi para Teixeira Pinto depois da morte dos majores e para substituir um deles (Passos Ramos).

(v) Quanto à temeridade de os oficiais terem ido sem segurança e desarmados, há que ter em conta: aquele era o culminar de vários encontros e negociações anteriores em que tudo tinha corrido às mil maravilhas, havendo conquista total de confiança de parte a parte. E com escolta e armas não havia encontro (das vezes anteriores, também os do PAIGC apareciam desarmados).

Está fora de dúvidas que a traição do PAIGC no chão manjaco era um facto e ali, os dali, eles não faziam jogo duplo, trabalhando à revelia da direcção do PAIGC (provavelmente, já era um dos fios das rivalidades infra-PAIGC entre guineenses e caboverdianos). O que houve foi uma reacção enérgica da direcção máxima do PAIGC quando soube e ou faziam o que fizeram ou eram limpos sem apelo nem agravo pela justiça interna do PAIGC. Foi sob essa pressão que, no último momento, deram a volta. E o PAIGC também contava que, depois da chacina, as FA iam reagir com brutalidade e tornar irrecuperável a paz no chão manjaco e estragando todo o trabalho acumulado (como se confirmou posteriormente).

A direcção do PAIGC, in extremis, conseguiu vários roncos: recuperar a guerrilha local para a lealdade absoluta ao PAIGC (depois de matarem os majores, foi-se qualquer margem de futura traição); incrementar a combatividade desses guerrilheiros locais (para se limparem da nódoa do jogo de traição em que antes tinham estado metidos); perturbar a relação das FA com as populações pelo incremento da conflitualidade militar na zona; limparam 3 oficiais que eram a nata da oficialidade de Spínola (além do alferes). Só falharam no ronco maior de deitarem a mão ou matarem o próprio Spínola.

Num panorama destes, julgo que os majores foram corajosos e temerários, mas não inconscientes nem imprevidentes (o cenário era para aí de 95% de probabilidade de sucesso e grande ronco). Saíu-lhes a fava, acontecendo-lhes o que a qualquer um de nós podia ter acontecido em cada um dos dias que ali passámos - com um tiro, uma mina, uma emboscada, uma morteirada, um desastre de unimog. E obviamente que o que mais impressiona nisto é a forma bárbara como acabaram com eles mas os factores de efeito psicológico não são as traves mestras da guerrilha e da contra-guerrilha?

Abraços a todos.

João Tunes

3. Comentário do Afonso M.F. Sousa > 23 de Novembro de 2006


Obrigado João Tunes. Fala quem sabe !

Afinal as interrogações eram pertinentes.

A história da Guiné ainda é, aqui e ali, uma pequena manta de retalhos em que os diversos bocados por vezes não combinam. Um exemplo: a família do Major Joaquim Pereira da Silva encaixou que:

(i) foi Ramalho Eanes que esteve no local a proceder ao levantamento dos corpos;

(ii) Após serem surpreendidos pelas primeiras rajadas de metralhadora, envolveram-se em disputa física, tendo o Pereira da Silva Sido aniquilado com uma catanada no estômago;

(iii) Spínola estava na Metrópole, chamado para uma reunião com Marcelo Caetano.

Conclui-se, do cruzamento dos testemunhos (de quem esteve na zona), que isso não foi bem assim. Era aí que eu queria chegar. Não que esse apuramento dê à família algum estado de conforto, mas porque nos cabe, enquanto contemporâneos do acontecimento, ser agentes, tanto quanto possível, para a realidade histórica do nosso tempo..

A história leva o seu tempo a chegar à verdade. E quantas vezes, num primeiro momento, a realidade é adulterada. Quantas vezes alguma subjectividade impera, algum interesse obscuro se vislumbra, o que, forçosamente, tem de deixar alguma nebulosidade na realidade que se procura. A memória é base para a construção da interpretação histórica. Falar da memória é falar do testemunho, da pergunta e da resposta. Os depoimentos que envolvem esquecimentos, distorções, omissões e subjectividade, são lacunas que não ajudam à narração real e meticulosa da história.

Obrigado pela mestria da sua análise, praticamente incontestável.

Um abraço

Afonso Sousa

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(1) Vd. posts anteriores:


17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1436: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (1): Perguntas e respostas

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1445: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (2): O papel da CCAÇ 2586 (Júlio Rocha)

19 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1446: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M. F. Sousa) (3): O depoimento do 1º sargento da CCAÇ 2586, João Godinho


(2) Vd. post de 20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1448: Os quatro comandantes da CCAÇ 2586 (A. Santos)

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1464: Oficiais, sargentos e praças: tropa é tropa, uísque é uísque (Gabriel Gonçalves / Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região).
O campo de futebol (3), junto à pista de aviação (2), vem assinalado com um círculo a vermelho.

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Sede do BART 2917 > CCAÇ 12, companhia independente, unidade de intervenção > 22 de Outubro de 1970 > "Uma panorâmica do estádio de futebol e a nossa grande equipa... Infelizmente não me recordo dos nomes da malta toda, no entanto o 1º à esquerda em pé é o Murta (operador cripto); o 3º à esquerda em baixo é o Carlão (alferes) e eu sou o guarda-redes" (GG).


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Sede do BCAÇ 2852 > CCAÇ 12 > 6 de Maio de 1970 > "Outra foto da nossa equipa. Desta vez o 5º em pé a contar da esquerda é o Branco, o 6º o Branquinho, em baixo o 1º sou eu, o 4º o Arménio e os outros que me desculpem mas não me recordo dos nomes" (GG)...

Fotos: © Gabriel Gonçalves (2006). Direitos reservados

1. Mensagem do Gabriel Gonçalves, ex-1º cabo operador cripto da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (1):

Caro Henriques: Hoje ao consultar mais uma vez o nosso blogue, deparei com isto: "Uma relíquia... Ou, como dizia eu, da Escócia com amor, para as Forças Armadas Portuguesas... O uísque foi a nossa marijuana, e a Guiné o nosso Vietname... Pelo menos para os milicianos, que o Zé Soldado bebia sobretudo bazucas e água de Lisboa" (2)...

Pois é, Henriques, este teu amigo Zé Soldado também gostava de beber o seu uísquinho, bem como uma grande maioria dos outros Zés Soldados. Possivelmente o autor, frequentava pouco a cantina dos Zés Soldados. Quero dizer que não gostei nada deste comentário, que me lembrou que alguns milicianos olhavam para nós, Zés Soldados, por cima do ombro. Bem, o que vale é que agora nos tratamos todos por tu....

Um grande abraço para ti, porque tu eras daqueles que volta e meia frequentavas a cantina.

Gabriel

Ex-1º cabo operador cripto

2. Comentário de L.G.:

Gabriel: Nada disso… Não reparaste que o comentário é meu, do editor do blogue (LG)... Longe de mim, a ideia de discriminação. Tu bem sabes que eu seria o último a fazê-lo. A verdade é que o uísque, apesar de (relativamente) barato para oficiais, sargentos e praças, sempre andava à volta dos 40/50 pesos (o novo) e 120/150 (o velho), por garrafa... Isto pesava nos nossos orçamentos (3)...

No dia à dia, o padrão de consumo era muito variável: havia gente - nomeadamente milicianos - que não gastava um tostão em bebidas alcoólicas... Havia muitos Tios Patinhas. E havia os coleccionadores de uísque, gajos que trouxeram contentores (passe o exagero) de bebidas finas, ams que seguramente nunca beberam um trago nem pagaam um copo a um camarada... E havia ainda os filhos da mãe que diziam que tropa é tropa, cognac é cognac... O mesmo é dizer, que nunca se misturavam com o maralhal, o Zé Soldado, os cabos, os furriéis...

A expressão Zé Soldado é uma caricatura. Todos nós eramos Zé Soldados. Sempre fui contestatário da segregação socioespacial na tropa, em geral, e em Bambadinca, em particular. Por exemplo, nunca entrei ( nem fiz questão de entrar) na messe de oficiais. Em contrapartida, ia muitas vezes à vossa cantina. E tu, seguramente, bebeste copos comigo, connosco (o Humbero, o Levezinho...) no bar dos sorjas. Até por que eras artista... e sobretudo porque convivias bastante connosco, furriéis milicianos...

A ideia que eu tenho é que a maior parte da malta – milicianos, inclusive – bebiam sobretudo cerveja... Exagerei, portanto, ao dicotomizar. Como se o uísque fosse um traço de classe e de distinção !... Nada disso, muitos de nós beberam pela primeira o seu uísque com soda ou com água de Perrier... na Guiné. Essa é que é a verdade.

Um abração, grande Arcanjo Gabriel.

PS - A propósito, gostava que desses uma vista de olhos à foto com a vista área de Bambadinca e completasses a legenda: há instalações que nem eu nem o Humberto ainda identificámos bem... Por exemplo, onde ficava a cantina ? E o centro cripto ? Podes dar uma ajuda, até porque passaste 20 meses em Bambadinca, trancado no quartel !

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Notas de L.G.:

(1) Vd post anterior > 18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1377: CCAÇ 2590/CCAÇ 12: Apresenta-se o 1º Cabo Operador Cripto Gabriel Gonçalves

(2) Vd. post de 25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1462: For the exclusive use of the Portuguese Armed Forces (Afonso M.F. Sousa)

(3) O Humberto Reis vem deitar por terra a minha teoria... Afinal, o uísque era mais barato que a cerveja. E eu confio na sua memória de elefante, já aqui o disse em público por diversas vezes: (...) "Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola : 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos" (...).

Vd. post de 1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)(Luís Graça / Humberto Reis)

Guiné 63/74 - P1463: Estórias cabralianas (18): O Dia de São Mamadu (Jorge Cabral)

Um intelectual das Avenidas Novas de Lisboa no meio dos Mamadu > Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71.

Foto : © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.


Do Jorge Cabral: "Amigo Luis, aqui vai estória e grande Abraço. Jorge"

Estórias cabralianas (18) > O dia de São Mamadú
por Jorge Cabral
Ex-Alf Mil Art
Pel Caç Nat 63
(Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)


Entre os dez militares metropolitanos do Destacamento de Missirá, apenas o Alferes era do Sul e de Lisboa – um rapaz de Alvalade, passeante da Praça de Londres e frequentador do Vává. Todos os outros, furriéis, cabos, e adidos especialistas, vinham do Norte ou das Beiras.

Teve pois o Alferes de se adaptar aos Companheiros, e até de aprender certos termos, como sertã ou estrugido, bem como curiosas designações de conotação sexual.

Urbano e agnóstico, apenas costumava celebrar o São Martinho, substituindo a água-pé pelo whisky e as castanhas por cajú. Porém, no meio de transmontanos, minhotos e beirões, ciosos dos seus dias santos e das suas ancestrais tradições, o Alferes passou a alinhar em todas as comemorações, assumindo o quartel um ar de arraial e romaria. Em cortejo, corríamos as moranças pedindo O Pão por Deus ou cantando As Janeiras, perante o júbilo dos africanos, os quais aliás também estavam sempre prontos para uma boa festança.

Com tantos padroeiros, santos e santinhos, os feriados eram muitos e na reunião da manhã havia quem estranhasse ser dia de trabalho, perguntando:
- Que santo é hoje, meu Alferes?.

Penso que foi em Maio que respondi, muito sério:
- Hoje é dia de São Mamadú (2) e todos os Africanos estão dispensados!.

Face à resposta-ordem, os Brancos franziram o nariz, enquanto os Negros ruidosamente manifestavam Alegria.

Terminada a reunião sou procurado por Malan Sanhá, meu soldado mandinga, estudiosos do Corão, que pede que lhe explique quem foi São Mamadú. De improviso, misturo Santo António com Fátima, e invento a personagem. Grande santo de há muitos séculos que, sem sair da Tabanca, salvou o pai de ser fuzilado em Lisboa, tendo movido o Sol de forma a encadear os soldados.

Satisfeito com a explicação, Malan quis saber se o santo era mandinga.
- Sim - disse então, mas uma hora depois, fui obrigado a rectificar – Mãe fula e pai mandinga, pois claro. E como isso acalmei os fulas.

Dispensados os soldados africanos, organizámos os quartos de sentinela, ficando eu das 3 às 7 horas no posto norte.

Embora já tivesse passado muitas noites no mato, aquelas horas, só, diante da floresta, escutando o pulsar da natureza, transmitiram-me uma sensação de harmonia e quietude.

Paradoxalmente, ali de sentinela, tão perto do Inimigo, senti-me em Paz absoluta, numa total comunhão telúrica, que nunca mais experimentei.

Velho e cansado hoje, preciso mesmo de uma nova noite de São Mamadú…


Jorge Cabral
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Notas de L.G.:

(1) Vd. a última estória cabraliana > 10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1419: Estórias cabralianas (17): Tirem-me daqui, quero andar de comboio (Jorge Cabral)

(2) Mamadu, em fula, é o equivalente a Mamomé, em árabe. Na CCAÇ 12, cujas praças eram do recrutamento local, de maioria fula, em cerca de 100 militares, haveria uns 15% de indivíduos com o nome Mamadu...

Vd. post de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)(Luís Graça)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1462: For the exclusive use of the Portuguese Armed Forces (Afonso M. F. Sousa)

Guiné > Uma relíquia... Ou, como dizia eu, "da Escócia com amor, para as Forças Armadas Portuguesas"... O uísque foi a nossa marijuana, e a Guiné o nosso Vietname... Pelo menos para os milicianos, que o Zé Soldado bebia sobretudo bazucas e água de Lisboa... Devo acrescentar que nunca, em parte alguma do mundo, o uísque me soube tão bem... Com água de Perrier, viva o luxo!... O nosso pequeno luxo, lá na Guiné, longe do Vietname... (LG)

Foto: © Afonso M. F. Sousa (2007). Direitos reservados

Um recuerdo do nosso camarada Afonspo M.F. Sousa, já enviado à tertúlia com votos de bom ano de 2007... A mim espanta-me como é que ainda não foi bebida. Bravo, Afonso! É uma boa recordação para os teus netos (LG):


Uma old age, como recordação daqueles tempos !
Garrafa de uísque "para uso exclusivo das Forças Armadas Portuguesas".

Um bom ano.
Cumprimentos.
Afonso M. F. Sousa

Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "Ai tens a Missirá pobrezinha em que eu apareço a dar aulas aos milícias, junto do armazém de géneros, duas vezes volatilizado" (BS).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. A chegada de um helicóptero, em geral vindo de Bissau, a um destcamento como Missirá, Fá, Nhabijões ou Rio Udunduma, era sempre interpretado pelos respectivos comandantes (alfres ou furriéis milicianos), como "lá vem f... ou canelada". Neste episódio das memórias do nosso camarada Mário Beja Santos, conta-se a visita (de surpresa) do Homem Grande de Bissau, ao destacamento de Missirá, acvompanhado do seu séquito de oficiais (incluindo o tenente-coronel Hélio Felgas, comandante do Agrupamento de Bafatá, que eu descobri há dias que ainda é vivo, com 86 anos, embora doente e acamado: O blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné deseja-lhe as melhoras e agradece à esposa, a Sra. Dona Maria Fernanda Felgas, a gentileza com que atendeu, pelo telefone, o seu editor). (LG)

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Mensagem de 4 de Janeiro de 2007:

Caro Luís, agradeço-te do coração teres-me enviado a sequência de todos os episódios até agora publicados. Se me permites sugestões para a respectiva ilustração, dou-te as seguintes: na ausência de uma foto ao lado do Caco Baldé, escolhe uma dele à tua vontade; tens aí a Missirá pobrezinha em que eu apareço a dar aulas aos milícias, junto do armazém de géneros, duas vezes volatilizado; e envio-te pelo correio duas magníficas capas de livros: O Barão de Branquinho da Fonseca, com ilustração por João da Câmara Leme, e O Caso das Garras de Veludo, por Erle Stanley Gardner, com ilustração do Cândido da Costa Pinto. Recebe um grande obrigado por tudo deste amigo que tanto te admira, Mário.


Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em :


A primeira visita de Spínola a Missirá

por Beja Santos

Este ano de 1969 nasceu com as turbulências da guerra, já se fogueou no rio Gambiel e junto ao Geba, enquanto apanhávamos uma vaca, estivemos à beira de um reencontro com gente de Madina. Foi aqui que aprendemos que um espirro pode deitar abaixo 5 horas de paciência e a promessa de uma captura exemplar.

Em Cancumba, a cortar cibes

Os planos para a paz também são grandes: com os furriéis Casanova e Pires estabelecemos um plano da reconstrução de dois abrigos para substituir defesas completamente podres que não aguentaram um simples sopro de morteiro. Quem trabalha nos abrigos não vai a Mato de Cão. E é assim que, naquela manhã, saímos pelas 5 horas a caminho do palmeiral de Cancumba para cortar cibes, levando motosserra, bons machados e trazendo com os guinchos dos Unimog o bendito lenho da nossa segurança.

Trata-se de um dia muito claro, não há nuvens, trabalha-se afanosamente e com resultados: dá gosto ver retalhados os troncos de palmeira, transformados em ripas, ouvir o ruído do guincho a raspar pela picada, transportando-os numa nuvem de pó. Aí pela 1 h da tarde pedi aos nossos cozinheiros, Quebá Sissé e Umaru Baldé, que fossem para a cozinha e preparassem um atum com batata cozida, recorrendo à mão-de-obra juvenil para o descasque da batata. Teria que sair para Mato de Cão pelas 16 horas, levando soldados que presentemente trabalhavam no arame farpado.


O homem grande de Bissau

Súbito, ouve-se um murmúrio de rotores que se intensifica e vemos dois pontos a avançar para nós: são helicópteros que começam a dançar à volta de Missirá até pousar na ampla clareira junto à porta de armas. Ainda estão a emitir os suspiros do repouso, quando nos pomos a caminho. O Setúbal e o Vitória regressam afogueados com os Unimog:
- Meu alferes, é o homem grande de Bissau e mais cinco oficiais!

Subimos e junto da ilustre comitiva, onde identifico o tenente-coronel Hélio Felgas e o ajudante de campo do comandante-chefe, perfilo-me face ao Brigadeiro Spínola. Este traja a farda nº2, luvas e pingalim e iniciamos um diálogo que vou procurar reconstituir.
- Porque é que anda vestido desta maneira? Tem aí homens que parece que vieram de um circo. Quem comanda deve dar o exemplo.
- Meu Comandante, quando partimos para patrulhas e operações procuro ser exigente mas nestes trabalhos concedo todas as facilidades. Acho melhor que todos se sintam bem pois Missirá é a nossa casa.
- Não teve ainda tempo para pôr mais ordem e segurança neste quartel? Acha aceitável ter tudo misturado, tropa e população?
- Meu Comandante, temos progressivamente procurado melhorar a defesa e esta madeira toda é para novos abrigos e para casas que estamos a reconstruir depois do incêndio...
- Não, estou a falar desta misturada de abrigos junto das moranças, vejo sujidade, cabaças, comida da população. Um quartel não é isto!
- Meu Comandante, chegou população civil para as tarefas agrícolas, partiram ao amanhecer, não é fácil negociar a arrumação de tudo.
- Tem plano defensivo que eu possa ver?
- Escrito, não. O régulo deu instruções à sua população, toda a gente sabe para que abrigos deve ir. Toda a minha tropa sabe em que abrigos deve combater, como se posicionar.
- Devia estar escrito. Para onde vamos para eu ver o mapa desta região?

E avançámos pela parada, o comandante-chefe fazia reparos para o estado degradado do balneário, o ar desconjuntado das edificações. Como nunca foi meu hábito invocar heranças, limitei-me a dar conta das benfeitorias introduzidas. Frente à messe estacou e não escondeu a sua ira:
- Cascas de batatas, aqui? Você não tem ninguém que responda pela limpeza do quartel?
- Meu Comandante, vivemos um período de emergência, tenho muita gente doente, os cozinheiros também trabalham nos arranjos do quartel, há menos de 1 hora que estão a cozinhar para quem está arranchado. Isto não tem importância nenhuma, daqui a pouco tudo está limpo.

Entramos na messe onde a mesa está posta, com batatas a fumegar nas travessas e uma lata de atum aberta, mais uns ovos cozidos. Abri a carta do Cuor e procurei sintetizar a situação.
- Ao menos, mantenha a mentalidade ofensiva. É por não sair do quartel que o inimigo vai ganhando terreno. Mato de Cão é indispensável. Vou procurar alguns reforços. Que armamento tem?
- Muito antigo. Recebi há pouco um morteiro 81. Sou eu que faço fogo com ele.

Fomos ver o abrigo, bem centrado na parada, a cerca de 30 metros do monumento da unidade, onde se iça a bandeira portuguesa.
- Oiça, o morteiro não tem a alça regulada. Como é que faz fogo?
- Meu Comandante, não me passa pela cabeça estar a regular o fogo a não ser a olho. Tenho dois ajudantes com braçadeiras, vejo as saídas do fogo inimigo e procuro responder.

Vejo um riso escarninho, como se eu tivesse dito uma baboseira. Na parada, olha para o chão e repara nos invólucros de cartuchos vazios e cheios. Dispara-me indignado:
- Cada cartucho custa 19 tostões. Acha bem este desperdício?
- Não acho e deve ser rectificado. Quando saímos à noite para patrulhamentos ou para Mato de Cão mando pôr a culatra à retaguarda e é assim que as coisas acontecem.
- Mande formar a tropa, quero falar com os seus soldados.

Comandante, quando é que manda gerador para Missirá ?


Forma-se um grande U, os soldados estão manifestamente indispostos com a fome, ninguém se foi fardar a rigor para receber o homem grande de Bissau. Ele faz uma arenga, vai perlengando sobre a guerra que se tem de ganhar mostrando coragem e amor à Pátria. Exorta que se trabalhe mais e que se ganhe a outra batalha, a do espírito, convencendo os terroristas a apresentarem-se. Vai martelando regularmente a frase "Vocês são a luz do mato...". Acaba o discurso de um modo sacudido e pergunta se alguém lhe quer fazer perguntas. Vejo o soldado Bacar Djassi levantar a mão.
- Que é que queres?
- Comandante fala na luz do mato. Mas nunca falou no gerador. Gerador é que dá luz. Quando traz gerador para Missirá?

Vejo tudo a andar à roda. Ainda não percebi o objectivo desta visita, já recebi uma chuva de reparos, temo que o comandante-chefe pense que preparei uma provocação. Ele, aliás, tem aquele olho percutante do monóculo que se fixa numa pergunta reprovadora:
- Ó nosso alferes, o que é isto do gerador e da luz do mato?

Explico ao ilustre visitante que o soldado em apreço está interessado em saber se podemos melhorar o sistema defensivo com melhor iluminação graças a um gerador. Aponto-lhe mesmo para os petromaxes, e os riscos que todas as noites corremos quando vamos mudar as camisas, pois ao bombeá-los somos verdadeiros alvos humanos. Mas eu já estou distante, por carácter nunca me deixei intimidar por estes tipo de interrogatórios, podia ter dito a este senhor que quer o Comandante de Bambadinca quer o de Bafatá estão inteiramente informados da extrema penúria em que vivemos, ele prossegue a arenga e eu estou alheado como se tivesse fugido para uma ilha longínqua. Vejo Spínola agastado e dando instruções para a sua partida. Não resiste à sua última intimidação:
- Não chega combater, os quartéis e as tropas têm que revelar aprumo. Vou voltar em breve. Livre-se de não melhorar a segurança, separar a tropa do que é civil. Adeus.


As ameaças de Hélio Felgas

O tenente-coronel Hélio Felgas também está profundamente irado e diz-me entredentes:
-Apresente-se em breve em Bafatá. Você desiludiu-me com esta espelunca. Dá liberdades a mais a esta gente. Podem combater muito bem mas estão muito primitivos. Ou você muda ou dou-lhe uma porrada. Não brinque com as minhas ordens.

Sem saber, e proferindo um dito de puro cinismo, terei preparado a pazada de cal para a minha punição:
-Meu Comandante, agradeço-lhe esta visita que tanto desejou, pois deixou-nos muito animados. - Não recebi troco, mas senti o faiscar dos olhos.

Entre silvos e nuvens de poeira os helicópteros partem para parte incerta. Os rostos dos dois furriéis mostram incredulidade. Eu estou cheio de fome e, sinceramente, trato este episódio reduzindo-o a uma insignificância. Décadas depois, reconstitui este episódio com o Furriel Casanova. As nossas versões coincidiam e considero certeira a sua observação:
-O seu encolher de ombros e nunca mais ter falado do assunto deu para ver que não se sentiu magoado com aquela falta de correcção. O senhor vivia em Missirá com outros objectivos e noutro plano.

Leituras de Janeiro de 1969: O Barão, de Franquinho da Fonseca

De facto, Missirá era outra coisa. Eu era um jovem que aceitara a incumbência de viver nas profundezas do mato, construindo e colaborando na melhoria das condições de vida, a despeito da falta de tudo. Estabelecer uma relação ímpar com os soldados e tinha a noção que não era possível mudar nos tempos mais próximos o viver da população civil. Naquela altura, vivia a preparação da Operação Andorra que, incompreensivelmente, não consta (tal como outros episódios) da história do BCAÇ 2852.

Dentro em breve, com a aquiescência de Bambadinca, um pelotão fotocine vai ficar dois dias em Missirá para eu percorrer Sancorlã, Salá, descer o Cuor ate Biassa, Mato Madeira e Chicri. Sem surpresa, voltaremos a ter contacto com gente de Madina, haverá derramamento de sangue dos dois lados. A escola prossegue . Em Bambadinca, na companhia de Abudu Cassamá, a quem prometi comprar uma caixa de lápis, veio a correr ter comigo o Mazaqueu, uma criança doente que tem os olhos como dois carvões incendiados. Vezes sem conta trouxe-o ao colo, ele a exibir triunfante o seu pacote de rebuçados, o pião e a ardósia adquiridas no estanco do Zé Maria.

Continuei a tratar das deprecadas no processo dos filhos da Fatu, dilacerados pela explosão de uma granada incendiária, sinistro que ocorreu em Finete. O Pires vai a Bambadinca comprar arroz, cebola, massa tomate e latas de cavala e aproveita para trazer materiais de engenharia. Não, esta visita não me intimidou, não tenho que mudar de rumo, mesmo sabendo que há normas de limpeza em que temos que ser mais rigorosos.

Ainda tenho uma hora para descansar, antes de partir para Mato de Cão. O Pires vai levar os aerogramas que escrevi na madrugada de ontem, para a Cristina, para a minha Mãe, para o Ruy Cinatti, para o Carlos Sampaio, para a Amélia Lança. O meu correio começa a ser muito doloroso, estou a ser vergastado por tensões gravíssimas no relacionamento entre a minha mãe e a Cristina, com repercussões incontroláveis. Ainda não tenho consciência da frente de guerra que se abriu e não sarará tão cedo. Vejo igualmente que estou a sobressaltar demasiado a Cristina com este diário verdadeiro onde ponho acento tónico em palavras e expressões como guerra, cimento, emboscada nocturna, operações com contacto, até no envio de mensagens de soldados onde se fala na miséria como nos dons da amizade. Por muito que me doa, esta confissão íntima terá que vos ser revelada.





O Barão, de Branquinho da Fonseca, com ilustração por João da Câmara Leme. 4ª edição (Lisboa:Portugal Editora. 1942. 4ª edição: 1962). (Colecção O Livro de Bolso, 38).





Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Capa do livro O Caso das Garras de Veludo, por Erle Stanley Gardner, com ilustração do Cândido da Costa Pinto. Lsiboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro,3).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


As minhas boas leituras continuam. Interrompi, tal a minha exaustão, a leitura de O Inverno do nosso descontentamento, por John Steinbeck. Li num ápice uma novela curta, seguramente, e ainda hoje, um dos monumentos literários mais sólidos de que nos podemos orgulhar: O Barão, do Branquinho da Fonseca. É o relato posto na boca de um inspector das escolas de instrução primária que vai parar à Serra do Barroso e, numa noite perdida, é alvo do acolhimento pelo senhor Barão, um encontro inesquecível, um barão que é um bafo de vida: "Era uma figura que intimidava. Ainda novo, com pouco mais de 40 anos, tinha um aspecto brutal, os gestos lentos, como se tudo parasse à sua volta durante o tempo que fosse preciso. O ar de dono de tudo". E manda mesmo, o inspector não vai ter descanso, da noite ao alvorecer. Bebe a cântaros, mata a fome depois de muito suplicar, visita o interior vistoso de um palácio, vê o Barão com os olhos rasos de lágrimas a propósito de histórias de amor, assiste-se à mais extraordinária exibição da Tuna, atrelado pela energia hercúlea do barão, o inspector percorre estradas até se chegar ao castelo da Bela Adormecida, onde se irá depositar uma flor à amada do Barão.

Nunca se foi tão longe no lirismo, aqui pincelado de violência em meio rústico, nunca mais voltaríamos a ter um Barão na nossa literatura. Igualmente O Caso das Garras de Veludo. Para meu pesar , nos anos posteriores à guerra voltei as costas à literatura policial. Há o preconceito de que se trata um subgénero literário pouco rico a não ser em emoções. É um puro engano como toda a gente sabe. Para quem ainda hesita, sugiro o Perry Mason, a criação lendária de Erle Santley Gardner.

Em O Caso das Garras de Veludo, Mason e a sua equipa (a sua secretária Della Street, e o pragmático Paul Drake, que tudo investiga como se fosse o alter ego de Mason nessas coisas activas de descobrir dados do passado e do presente dos outros) são confrontados com uma dama cheia de enigmas e semiverdades a que Mason vai responder com a mais mirabolante acusação de homicídio à própria cliente, jogo subtil para chegar ao desmascaramento e á acusação do verdadeiro homicida. Duas leituras de Janeiro que me encheram a alma, refrigério para estes tempos duros que vivo e os que se avizinham. Depois da Operação Andorra virá o desaire da Anda Cá. Mas outras coisas irão acontecer em Fevereiro que vos quero contar. Ora oiçam.

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