sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

Ruína da antiga filial do BNU e Hotel Turismo

Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições tinta-da-china, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2018:

Queridos amigos,
Tenho para mim que este acervo documental referente ao BNU da Guiné, constante do Arquivo Histórico, onde procedo ao possível levantamento do que pode ser tido como relevante das linhas gerais do processo socioeconómico, político e cultural, permitirá doravante aos investigadores um indispensável olhar sobre o funcionamento económico e financeiro da colónia, a mentalidade dos administradores, os marcos das mudanças, os sinais do desenvolvimento.
Os gerentes, como aqui aparece sublinhado por uma observação do administrador em Lisboa responsável pelo pelouro da Guiné, tinha o estrito dever de relatar as ocorrências pelo seu modo de ver, o governo do Banco precisava de ter informações em primeira mão. É o lado fascinante deste acervo, é o que escapa aos jornais e às briosas tiradas governamentais, pois claro.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56)

Beja Santos

No acervo documental avulso existente no Arquivo Histórico do BNU não há qualquer referência a 1948, em 1949 aparecem dois documentos que se podem revelar úteis. O primeiro relaciona-se com a situação da praça, presume-se que esteja assinado por Virgolino Pimenta, é dirigido ao governador do BNU em 23 de fevereiro, dele extraímos elementos com inegável expressão:
“Tem sido exagerado o movimento de letras protestadas, vindas do exterior.
São dois os factores a contribuir para tal.
O primeiro resulta de que, antigamente, só poucas firmas importavam e vendiam depois, ao pequeno comércio. De há tempo a esta parte, todo o comerciante, grande ou pequeno, se arvorou em importador.
O segundo, talvez o pior, é que as firmas vendedoras, da Metrópole, ou por falta de compradores ou por outra qualquer razão, põem a vender na Guiné, a torto e a direito, parecendo nem olhar à dimensão da cidade ou à garantia dos compradores. Assim, os de cá compraram em demasia e os de lá venderam com enorme exagero. Entre todos, excedeu-se imenso a firma dessa praça Coelho e Castro & Alves, cujas vendas para esta colónia foram a uns quinze mil contos, senão mais, no ano passado.
O volume dos negócios, na colónia, ficou aquém do volume das importações. O resultado foi o comércio estar abarrotado de mercadorias mas, não as vendendo com a desejada pressa, não realizou os fundos para pagar os seus encargos.
Chovem os protestos; as prorrogações; as conversões das letras em livranças, que outra coisa não representa senão delongas nos prazos de pagamento, etc. É justo dizer-se que, salvo pequenas excepções, todos procuram pagar.”

E conclui que a colónia está saturada de mercadorias, impõe-se, para segurança do Banco, reduzir na Metrópole o desconto de letras sob a Guiné. Aliás, observa igualmente o gerente, o Banco deve evitar encargos em novas e grandes remessas de mercadorias por uma razão essencialmente logística:
“A Alfândega não tem armazéns. Já estão em plena rua milhares de contos de fazendas que os que as encomendaram não levantam. As chuvas vêm em Maio e parte destas e de outras que vierem ficarão expostas à chuva e daí resultarão prejuízos que não vale a pena salientar”.

E passa a expor o que se passa com os negócios no tempo presente:
“Decorre a campanha da mancarra com relativa calma. O comércio exportador combina os preços de compra, tendo assegurado o preço de venda, na Metrópole. Bom sistema, que terminou a louca concorrência antiga. No entanto, os processos passados deram lugar a desconfianças presentes e os exportadores, para firmarem a sua honestidade de processos, tomaram entre si o compromisso de pagarem uma multa de cem contos, se algum for apanhado em desrespeito do que foi ajustado. Escolheram o gerente do Banco para depositário de cinco cheques de cem contos cada que constituem a garantia. Tem havido respeito pelos preços. Mas o que se não sabe – ou antes, se diz que se não sabe – é que pode haver alguns que, de facto não desrespeitem esses preços mas em conluio com vendedores podem oferecer facilidades de transporte, de pagamentos, etc., que vão, no fim, causar melhor preço.
Não se deve esquecer que isto aqui, nessa matéria é a Guiné. A Société Commerciale Africaine nem quis entrar em acordo de preços e entrou a comprar a mancarra por preço elevadíssimo, indo oferecer mais dinheiro aos clientes das outras casas. Isto produziu uma perturbação tremenda. O comerciante pequeno, vende uma casa a comprar tão caro, entendeu que as outras tinham que ir para aquele preço. E retraiu-se. Os que venderam aquela casa mais caro puderam comprar mais caro que os outros compradores pagavam ao indígena. E o indígena, passou a exigir de todos aquele mais alto preço e, como o não obtinha, não vendia a mancarra. Foi um alarme enorme e uma paralisação geral de negócios. Felizmente que aquela casa estrangeira não tinha recursos de armazéns e embarcações para um grande volume de compra da mancarra, pelo que parou a sua estranha e condenável atitude logo que comprou o que queria.

Quanto à campanha do arroz, decorre naturalmente, tendo-se chegado a um bom acordo quanto a preços e quanto a tabelas relativas ao preço do arroz a vender pelos industriais de descasque.

Para terminar, uma referência à existência de moeda estranha, na colónia.
Há cerca de 4 meses, pelas informações que procurámos, existiam uns 50 milhões de francos senegaleses na Guiné. A maior parte em mãos de comerciantes libaneses das regiões fronteiriças, sobretudo dos lados de Bafatá e Gabú. Tirando couros do Senegal, nada nos vem senão ouro em pó, trazido por indígenas de lá.
Rarearam as vindas desse ouro, devido a qualquer medida das autoridades francesas e os possuidores de francos estavam em grave embaraço. Porém, de há três meses a esta parte, tornou a aparecer o ouro”.

E dá conta minuciosamente dos valores de troca, terminando a sua exposição sobre a citação da praça nos seguintes termos:
“O indígena do Senegal, onde tudo falta, traz ouro e leva fazendas que deixaram lucro na Alfândega. Talvez seja esta uma razão por que nenhuma autoridade combate tal modo de negociar. Terminando, apraz-nos fazer uma referência à Sociedade Comercial Ultramarina. Está fazendo óptimo negócio dentro da máxima prudência. Os lucros de 1947 foram bons. Os de 1948 já se podem anunciar, serão melhores. Os do ano corrente, pelo que já se esboça e pelo que já se apurou, vão, talvez, duplicar”.

O segundo documento tem a ver com o relatório de entrega da gerência da filial de Bissau por Virgolino Pimenta ao novo gerente, Clarence Abílio do Quental Mendes, estamos em 15 de agosto de 1949. A prosa, incontestavelmente, saiu do punho de Virgolino Pimenta:
“Quase sem excepção, e contrariando o hábito antigo, raro é o comerciante da colónia que não se arvorou em importador directo, mesmo sem posses para se manter em tal posição. O pequeno comerciante, regra geral, tem pouco ou nenhum capital. Estabeleceu-se, auxiliado pelas casas maiores que lhe forneceram fazendas a crédito, geralmente, obrigando-se a pagar com produtos da agricultura.
Na altura da intensificação das chamadas campanhas dos produtos, tal ajuda foi ampliada com dinheiro. Assim, estava estabelecido um roulement de auxílio de fazendas e dinheiro de contra produtos.
Tudo corria dentro de uma normalidade só alterada quando a moral do beneficiado falhava ou uma má administração de negócios a perturbava.
Como consequência imediata da última guerra, este sistema modificou-se. O pequeno comerciante, não repudiou os auxílios atrás referidos e entrou a importar directamente. Era encargo superior às suas forças o obrigar-se a pagamentos, em prazos certos, das letras relativas às importações que fazia. As suas dívidas ao comércio maior tinham prazos de arrumação. Mas havia sempre transigências.
Protelavam-se liquidações, por vezes, de um ano para o outro mas essas demoras, por assim dizer, não apareciam à vista.
Não assim quanto às liquidações das suas importações directas porque, vencidas e não pagas as letras relativas, surgiam as más posições, avolumando-se o protesto. Apareceu a situação que está trazendo a nu os maus pagadores. Mas o procedimento descrito não trouxe só má posição aos pequenos. Trouxe-a aos maiores também. Entre eles: A. V. d’Oliveira & Cª., Aly Souleiman & Cª., António Romenos Dieb, António da Silva Gouveia, Lda., Barbosas & Ctª., Compagnie Française de l’Afrique Occidentale, Luiz António de Oliveira, Mário Lima, Nouvelle Société Commerciale Africaine, Nunes & Irmão, Sociedade Comercial Ultramarina e Société Commerciale de l’Ouest Africain. Todos eles faziam as suas importações contando com as necessidades próprias e as daqueles de quem eram, praticamente, fornecedores.
Tirando a Sociedade Comercial Ultramarina, que se abastece com precaução, não acumulando grandes stocks de fazendas, todos os outros foram apanhados, por assim dizer, de surpresa pois, chegada a altura de abastecer os seus clientes viram que estes se tinham abastecido directamente, quase todos. Surgiu assim o exagero de stocks de fazendas na colónia.
A colónia inundou-se de fazendas e nesta situação surgiu simultaneamente o abastecimento de fazendas ao Senegal e à Gâmbia, consequência imediata dos benefícios que o chamado Plano Marshall lhes trouxe. Fechou-se assim, quase de repente, a venda das nossas fazendas para aquelas colónias. Ao mesmo tempo, o nosso indígena, cujo poder de compra está muito aumentado devido às altas cotações de produtos, retraiu-se em comprar. As mercadorias não se vendem. As letras relativas deixaram de ser pagas. Os vendedores metropolitanos estão alarmados porque não lhes pagam o que forneceram.
Tudo somado, as casas grandes deixarão de ter dinheiro em caixa e as pequenas muito menos".

E deixa no relatório a situação das notas e de caixa, é um relato muito bem elaborado:
“As notas da Emissão Teixeira Pinto são de qualidade inferior às da antiga ‘Emissão Chamiço’ sobretudo nos tipos de Esc. 20$00 e inferiores, razão porque a sua duração não será tão grande como foi a daquelas. Temos, no entanto, uma reserva apreciável. Mas se o indígena continuar a amealhar é assunto que pode causar apreensões pois não haverá notas que cheguem.
O movimento da caixa tem dois ciclos.
Um começa na altura do fim do ano, quando principia a campanha da mancarra e como esta quase se conjuga com a do arroz os levantamentos atingem proporções consideráveis, aumentando-se a circulação a uma altura que atinge o limite legalmente fixado. Receio que, pelas circunstâncias atrás apontadas, este limite não chegue, na próxima campanha.
O segundo ciclo do movimento de caixa é regulado pelo início da cobrança do imposto indígena.
À medida que vai sendo cobrado, vão sendo feitos os respectivos depósitos pelas autoridades competentes, o que influi bastante na baixa do montante de circulação. Por vezes, convém solicitar que estas entregas sejam feitas sem demora, por dois motivos. Primeiro, o de fazer baixar a circulação e reverter à caixa as notas que nos fazem falta. Segundo, evitar que as administrações guardem avultadas quantias e as tragam de uma só vez pois isso traz graves complicações ao serviço de caixa, cujo tesoureiro levará dias e dias a contar só o dinheiro dessas elevadas entregas e não pode dar expediente ao restante serviço a seu cargo.
É por vezes difícil conseguir-se isto porque é agradável aos funcionários do mato, que trazem o dinheiro, permanecer em Bissau, ganhando ajudas de custo”.

E assim chegamos à década de 1950 que culminará com o chamado massacre do Pidjiquiti, objeto do importante documento enviado em 5 de agosto de 1959 com o título “Acontecimentos anormais”. Vai começar uma documentação preciosíssima de pré-anúncio da luta armada, até 1964 o gerente enviará informações fundamentais que em certos pontos reveem considerações sobre o evoluir dos acontecimentos. Reforça o nosso ponto de vista de que os gerentes do BNU desde longa data têm luz verde para relatar tudo aquilo que pode ir mais longe do que as informações oficiais, quase sempre censuradas.
Veja-se o que em 15 de julho de 1959 o responsável pela administração do BNU envia à gerência em Bissau:
“Vem-se verificando que nem sempre os senhores gerentes têm o cuidado de informar o governo do Banco das ocorrências de certa montra que se dão na área da sua Dependência.
Queremos acreditar que em muito isso é devido à convicção de que o ocorrido não é de maior interesse.
Estamos atravessando uma época de evolução satisfatória mas também de convolução perturbadora pelo que temos de acompanhar de muito perto tudo quanto se passa nas nossas províncias ultramarinas.
Nestes termos, ainda que a um senhor gerente pareça que determinado facto não deve interessar-nos, convém dar-nos dele imediato conhecimento mais ou menos detalhado, enfim, consoante a importância que o ocorrido lhe possa mostrar.”

(Continua)

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.

Receção ao Subsecretário do Ultramar, Raul Ventura, na sua visita à Guiné, na Praça Teixeira Pinto, Bissau

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.
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Notas do editor:

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Último poste da série de 19 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)

Capa do livro de Cammilleri, Salvatore - A identidade cultural do povo balanta.

Lisboa: Edições Colibri; Edições FASPEBI,  2010, 110 pp.,  ilustrado. (Tradução do italiano:  Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso).


1. O autor, padre católico, missionário, do PIME (Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras, fundado em Itália em 1850), nasceu na Sicília, em 1939. Aos 29 anos foi para a antiga província portuguesa da Guiné (, hoje República da Guiné-Bissau). Estava-se então em plena guerra colonial e a Igreja Católica procurava adaptar-se aos novos tempos, e à nova geopolítica do mundo, com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e com o Papa Paulo VI (1963-1978).

As relações do PIME (ou de alguns dos seus missionários)  com as autoridades portuguesas da Guiné  nunca foram pacíficas… E em 1973, o autor terá tido problemas com a polícia política e as autoridades militares, acabando por ser expulso do território por ordem de Spínola. O que se pode ler na contracapa do livro: Salvatore Cammilleri escolheu um dos lados do conflito, o que o levou a “colaborar com o difícil processo de libertação do país” (sic).

Já anteriormente, no princípio da guerra, tinham sido expulsos dois missionários italianos do PIME: o Mário Faccioli (1922-2015), que estava em Catió; e o António Grillo (1925-2014), que estava em Bambadinca (*)

O Salvatore Cammilleri regressou em 1975, depois da independência. E é neste período, já com 36 anos, que terá decidido tornar-se “etnólogo”, passando a dedicar mais tempo ao estudo da cultura dos balantas, grupo étnico com o qual mais conviveu e trabalhou, nomeadamente em Tite, na região de Quínara, ao mesmo tempo que aqui desenvolvia atividades na área da saúde, incluindo a “construção de um hospital”. 

Vinte anos depois, em 1995, apresenta na Universidade de Génova o trabalho final da sua licenciatura (em filosofia, presumimos),   com o título “Essere Alante, essere Anin” (Ser Homem, ser Mulher). Foi feita, em livro,  a publicação parcial desse trabalho final de licenciatura apresentada na Universidade de Génova (Faculdade de Filosofia), no ano académico de 1994-95:  “Identità culturale dell’uomo africano atraverso i riti d’iniziazione presso il popolo 'Brasa', Guinea Bissau – Africa Occidentale". (O termo "tese" é para os doutoramentos; o termo "dissertação" é para os mestrados, dois graus académicos que correspondem hoje ao III e II Ciclos de Bolonha, respetivamente.)

O livro está traduzido e editado em português: Cammilleri, Salvatore - A identidade cultural do povo balanta. Lisboa: Edições Colibri; Edições FASPEBI,  2010, 110 pp.,  ilustrado, ISBN: 9789896890377, brochado, preço de capa: 8,00 €. (Tradução do italiano:  Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso).

O livro está dividido em 4 partes, sendo a I, "o contexto histórico", e a II, "a situação económica e social", de resto as menos originais e menos interessantes. As partes III e IV é que têm a ver com o essencial do estudo, que não é filosófico mas etnográfico:  A integração social  da mulher e do homem,  balantas (pp. 37-98), segundo os respetivos ritos e etapas de iniciação. A obra é ilustradas com 20 fotos a cores.

 Na apresentação (pp. 7/8),  o autor faz duas prevenções ou levanta duas questões pertinentes:  (i) o que é ser "estrangeiro";  e (ii) o povo "brasa" e os seus segredos.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Luta balanta, entre dois "blufos", presenciada por militares destacados para protecção do reordenamento (à esquerda, o furriel miliciano Luís Manuel da Graça Henriques, da CCAÇ 12, de calções, tronco nu e óculos escuros, hoje editor deste blogue e autor desta nota de leitura)... Ao fundo, a nova tabanca, reordenada... Nhabijões deve ter sido o maior ou um dos maiores reordenamentos jamais feitos no tempo de Spínola. Foi um duro golpe para o PAIGC. Os reordenamentos são do tempo do BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72)... Uma equipa (técnica) da CCAÇ 12 foi destacada o reordenamento. 

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-Fur Mil At Inf, Op Esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


De resto, esses são sempre os constrangimentos (ou inibições) dos etnólogos: eu sou estrangeiro. mas quero conhecer-te, a ti e ao teu grupo; pertenço à cultura europeia ocidental (e, podia acrescentar: "sou homem, padre, católico, missionário, e os meus pares querem evangelizar-te", já que a religião católica é proselitista como a religião muçulmana e outras).  Por outro lado, o dono da casa que me acolhe, "vive  zelosamente a sua identidade cultural africana" (p. 7). Numa situação de "observação participante",  é impossível não comunicar, e não passar os valores de um e de outro grupo...

Põe-se aqui um questão ética, deontológica, até mesmo epistemológica: pode um cientista social fazer investigação independente, "ao mesmo tempo" que desempenha outros papéis sociais ou socioprofissionais ? Por exemplo, ser missionário, médico, arquiteto, gestor hospitalar, administrador, militar... Salvador Cammilleri é pároco de Tite, está a construir e a gerir um hospital, é admirador do povo balanta e...etnólogo (ou etnógrafo).

O caso não é virgem: António Carreira, o maior etnólogo (ou etnógrafo) da Guiné, era administrador colonial e depois administrador da Casa Gouveia (e a quem., de resto, é imputada a responsabilidade, pelo menos moral, do "massacre do Pigiguiti, ou Pindjiguiti, como se diz hoje em crioulo, no dia 3 de agosto de 1959, acontecimento habilmente explorado "a posteriori" pelo futuro PAIGC).

A resposta não é fácil. A verdade é que Salvatore Cammilleri acumulou ao longo de mais de 2 dezenas de anos um precioso conhecimento empírico da língua e dos usos e costumes do povo balanta, por quem tem uma especial predileção. De resto, o mesmo se passou com os padres Mário Faccioli, em Catió, e António Grillo, em Bambadinca, que sempre tiveram uma "relação especial" como os balantas.

A explicação pode ser esta: no grupo das etnias "animistas", os balantas serão, provavelmente, os mais "recetivos" à mensagem do cristianismo; por outro lado, os missionários católicos terão mais dificuldade em lidar com as populações que já são historicamente muçulmanas, como é o caso dos fulas e dos mandingas.

Na nota introdutória, o autor também evoca o "tornado histórico" (invasões, migrações, viagens, contactos com outros povos e religiões, esclavagismo, colonialismo, guerra colonial, guerra civil, imperialismo...) aque foi sujeito o continente africano, e em particular o território da Guiné (hoje bem mais pequeno do que no passado). Apesar disso, "a cultura africana em geral e a urasa [, balanta,] em particular tem resistido e conservado a sua identidade tradicional" (p. 7).

Infelizmente, não estamos tão seguros disso... De qualquer modo, o autor coloca-se na perspectiva mais etnográfica do que sociológica. Ficamos sem saber até que ponto  vai hoje a resistência do povo "brasa" à "aculturação" imposta do exterior, com o êxodo rural, a urbanização, a diáspora, a economia mercantil e a globalização (a par da cristianização e islamização de algumas minorias balantas).

O dilema do autor, que não é um académico, revela a sua "convição" de que "só a partir do conhecimento de um povo como tal, pode nascer outro projeto de confronto, de diálogo e de intervenção a seu favor" (p. 8).  O encontro de duas culturas tem um duplo risco; cair no erro de uma "exaltante superioridade" ou deixar-se  arrastar por uma "resignação interesseira".

Utilizando a metodologia da investigação etnológica, a "pesquisa no terreno", a observação participante, o objeto de estudo do autor foi "o sistema educativo em ação do povo brasa, isto é, das classes de idade e dos rituais de iniciação", e a partir dái "definir o perfil do homem e da mulher adultos", tal como são moldados pela "tradição ancestral" (p. 8).

O risco do autor é o de considerar o pov so brasa como "o bom selvagem", na esteira de resto de Amílcar Cabral... [Para ele, os balantas representavam a sociedade horizontal, tendencialmemte igualitária, "sem estratificação", embora gerontrática... No outro extermos, estavam os fulas, "sociedade semi-feudal" e, para mais, historicamente aliada dos colonialistas. Entre os balantas, era o  conselho dos anciãos da aldeia (ou de um conjunto de aldeias, em geral ribeirinhas e próximas) que tomava as decisões relativas à vida comunitária. A propriedade da terra era da aldeia.  Cada família recebia uma parcela para trabalhar. Os instrumentos de produção, por sua vez, pertenciam à família ou ao indivíduo. O balanta era monógamo, dizia Amílcar Cabral,, apesar de 'fortes tendências para a poligamia' (sic). A mulher teria mais liberdade e estatuto na aldeia balanta do que entre os fulas.  O que Cabral parecia omitir ou não valoirizar, nos seus escritos,  eram os seus rituais de passagem, a cultura da virilidade (o culto do "macho"), a conflitualidade com vizinhos, o tribalismo, o uso e o abuso do consumo do “vinho de palma” e das suas eventuais consequências (v.g., saúde mental, violência doméstica, comportamentos antissociais.] (**)

O "outro lado da lua dos balantas" também é ignorado por Salvatore Cammilleri que, algo estranhamente, faz questão de ocultar, nesta edição portuguesa (não conhecemos a italiana), certos pormenores da cultura brasa, por mor dos anciãos que os querem continuar a manter "secretos" aos olhos dos vizinhos e dos estrangeiros.

Por outro lado,  vejo que o autor, homem, padre católico, italiano, siciliano,  não se sente tão à vontade a falar da mulher balanta / brasa, daí o  recurso à colaboração da irmã missionária Maristella  De Marchi (p. 40).

O trabalho de campo foi feito na setor de Tite, em cinco aglomerados populacionais a seguir discriminados (entre parêntesis o número de famílias entrevistadas): Tite, centro urbano (4); Foia, a norte (8), Flak ndekte, a leste (6), Tite ni hãn, a oeste (6), e Bissassima, a oeste (8). Total de famílias: 32.

O autor faz questão de referir que todas as pessoas que foram os seus informantes privilegiados são adultos, anciãos, "em nada influenciados nem pela atividade escolar do Estado, nem pelas religiões importadas, Islão e Cristianismo" (p. 40)... As entrevistas foram gravadas e em parte traduzidas e transcritas em "língua crioula", com a ajuda de "alguns jovens iniciados", citados na p. 40. O que também é revelador das dificukdades e obstáculos com que se depara a investigação etnológica de grupos e populações sem escrita-

O autor tem, na p. 9, uma "nota linguística" sobre o modo como procedeu na transcrição dos fonemas da língua brasa: utilizou os signos gráficos da língua italiana e, complementarmente,  os símbolos do alfabeto internacional (sempre que não havia correspondência entre o italiano e o brasa)...E , como todas as línguas, há alguns sons especiais na língua balanta: por ex.,  N'h e n'h ("Consoante dupla: nasal velar e fricativa velar [h]") (p. 11): N'hala é o ser supremo, o deus criador, a origem de todos os seres... (p.99), embora o vocábulo seja polissémico, significando também a abóboda celeste,  o lugar da fecundidade donde vem a chuva, esposa de N'hala (...); é ainda a casa de N'hala (...); os conceitos de sorte, sucesso, destino dos homens e dos acontecimentos (...); razão universal ou justificação última de toda a realidade existente" (pp. 99/100).

Como dissemos a edição portuguesa tem a colaboração dos tradutores Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso (que, pela nota publicada no final, pp. 105/106, parecem-nos ser especialistas em linguística e etnologia, de qualquer modo profundos conhecedores do crioulo, da história e da cultura da Guiné-Bissau).

Numa primeira leitura, achamos que a tradução podia ser um pouco  mais cuidada, num ponto ou noutro, a começar pelo etnónimo "brasa" [que em português também já vi grafado como "braza" ou como "brassa", mas não constam ainda, estes três vocábulos, nos nossos dicionários: Priberam, Houaiss; noutras línguas já vi grafado como "brasa" (em francês) e "brassa" (em inglês)].  Enfim, outros casos de etnónimos, escreve-se biafada e beafada, manjaco e manjak...

A tradução segue o novo ortográfico. A edição portuguesa tem o apoio financeiro da Fondazione PIME ONLUS.


2. Numa pesquisa pela Net, descobrimos que Lino Bicari é um ex-padre, italiano, missionário do PIME que no início dos anos 70 descobriu outra vocação, levado pelo romantismo revolucionário de Che Guevara e Camilo Torres (também ele ex-padre).   Nascido em 1936, aos 23 anos,   Lino Bicaria aderiu à guerrilha do PAIGC e é o único estrangeiro que tem o estatuto de combatente da liberdade da Pátria. Viveu 23 anos na Guiné-Bissau. Radicou-se em Lisboa em 1990. Dele disse o jornalista João Paulo Guerra, no jornal Público,  de 24 de setembro de 1990:

(...) Não é um homem desiludido, mas um homem amargo quer hoje, à margem da Igreja e do Estado da Guiné-Bissau, continua, no entanto, a afirmar-se religioso e militante do PAIGC." (...)

É a primeira vez que ouço falar no nome deste Camilo Torres italiano (que, apesar de tudo, não acabou tragicamente como Che Guevara e Camilo Torres)... Fui saber mais, socorrendo-se da entrevista com ele, feita pelo João Paulo Guerra ("Crónica dos feitos da Guiné: A última missão do padre Lino").

(...) "O padre Lino Bicari chegou à Guiné em Maio de 1967. Tinha 31 anos, um curso teológico e formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e etnologia. De passagem por Lisboa, meteu na bagagem curso rápidos de língua portuguesa e administração colonial e, como todos os missionários destinados às colónias portuguesas, assinou compromissos renunciando aos seus direitos como cidadão italiano e submetendo-se às leis e tribunais portugueses, à Concordata, ao Acordo e ao Estatuto missionários.

Na Guiné vivia-se o quarto ano de guerra e Lino Bicari foi colocado em Bafatá, a cidade natal de Amílcar Cabral. A guerra, para ele como para os outros missionários, significava ouvir tiros Ao longe e viver num centro populacional sob controlo militar, de onde só podia ausentar-se à luz do dia.

(..) Foi em Itália, onde se deslocou em 1972 no âmbito de um programa de apoio ao Terceiro Mundo, que o padre Lino Bicari conheceu José Turpin, dirigente do PAIGC e, por seu intermédio, trocou correspondência com Amílcar Cabral. Quando tomou a decisão da sua vida, resolvendo trabalhar com o PAIGC, a Secretaria de Estado do Vaticano sentiu-se embaraçada. Não disse que sim, nem que não, e acabou por consentir, pedindo-lhe apenas que, formalmente, se desligasse do [Pontifício] Instituto para as Missões Estrangeiras [PIME]

(...) "No final de 1973, proclamado já o Estado da Guiné-Bissau, Lino Bicari entrou de novo no território. Mas, dessa vez, não levava o visto de Lisboa nem as guias de marcha do colonialismo missionário. Entrou através da fronteira com a Guiné-Conakry, numa ambulância da Cruz Vermelha e foi instalado pelo PAIGC na região de Boé, a sul de Madina, como responsável pelo Hospital Regional. 'Não era uma base de guerrilha mas uma zona totalmente libertada, defendida por forças armadas locais e, dada a sua configuração geográfica, de difícil acesso às tropas portuguesas', recorda Bicari." (...).

Mas voltemos ao nosso amigo do povo Balanta / Brasa, Salvatore Cammilleri (, apelido comum na Sicília) (***). E, já agora, porquê balanta, porquê brasa ?  São dois etnónimos curiosos que merecem uma explicação mais detalhada, na II parte da nossa nota de leitura. (****)

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


22 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14065: (Ex)citações (256): Eu gostava de saber um pouco mais sobre esse missionário italiano, o padre António Grillo (1925-2014), que tinha um especial carinho pelos balantas de Samba Silate (e era respeitado por eles) (A. M. Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972-74)

(**)  Vd. poste de 30 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3000: Bibliografia (28): Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)

(***) Vd. também poste de 13 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10258: Notas de leitura (391): A Identidade Cultural do Povo Balanta, de Padre Salvatori Cammilleri (Mário Beja Santos)

(****) Último poste da série > 15 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19104: Notas de leitura (1110): Os oficiais milicianos paraquedistas da FAP, volume I: os que combateram em África (1955-1974)- Um trabalho sério, rigoroso e honesto de mais de 2 anos, de José da Fonseca Barbosa, em homenagem a uma geração de portugueses que ajudaram a escrever algumas das mais belas páginas de sacrifício e abnegação da nossa história contemporânea (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72)

Guiné 61/74 - P19115: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (5): José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70)


Guiné > Região de Tombali  > Cameconde > 1969 > Oficiais e sargentos: o primeiro da esquerda é o José Diniz Sousa e Faro, fur mil art, do 7º Pel Art;  à sua direita, em primeiro plano, o alferes médico; sentado à direita deste, o J. A. F. Chaves e depois o R. Carvalho, de costas: de pé, na outra ponta da mesa, o J. Lopes.  Cameconde era a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine..

Foto de cronologia da página do Facebook do Dinis Souza e Faro, que nasceu em Goa, em 21 de dezembro de 1945. Vive em Carcavelos. É membro da Magnífica Tabanca da Linha e da Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Diniz Souza e Faro (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário ao poste P19106 (*)

Autor: José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70) (*)

Ter uma "cunha" não é sinónimo de boa vida, no meu caso concreto na Tropa. Eis o meu Fado:

Os meus familiares, quer maternos, quer paternos,  são militares e uma mãe que se preze zela pela sua cria.

Em Abril de 67 estou na Recruta, no CSM [Curso de Sargentos Milicianos], nas Caldas da Raínha. Passado uma semana sou chamado ao Cmdt da 5ªCompª, onde sou informado que o meu primo Capitão pede ao seu camarada para ser exigente comigo para que possa honrar a tradição da Família... Era uma forma subtil de "Cunha". 


Pois bem, o efeito foi ao contrário passei a ser perseguido, pelo Alferes e pelos Cabos Milicianos. Era tudo a dobrar.
Fui para a especialidade de Artilharia de Campanha que na altura ninguém sabia o que era. Junho de 67 Vendas Novas. 

As dificuldades era iguais para todos, pois os Oficiais do Comando responsáveis pelo curso não faziam distinções. No meu pelotão de obuses havia de tudo, ricos, remediados e pobres. Mas eram os pobres que recebiam bons enchidos das suas terras.

Em Abril de 68 fui mobilizado para a Guiné, não disse nada a ninguém. Num jantar, um outro primo, Major, que estava Caxias nos Serviços Mecanográficos,  perguntou-me se gostava da especialidade e que poderia ficar descansado que se fosse para o Ultramar iria para uma cidade. 

A minha resposta foi curta e grossa. Então vá dizer isso ao Governador da Guiné que requisitou os Artilheiros e os Obuses todos. É provável que a cunha tenha funcionado pois fui e vim sem nenhumas mazelas e uma mão cheia de camaradas para o resto da vida, sobretudo os: Os Bandalhos, Magnífica Tabanca da Linha e Tabanca Grande. 

Forte abraço para todos. (***)

J.D.S.FARO
68/70.
___________

Guiné 61/74 - P19114: Parabéns a você (1514): Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 3460 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor:

Último poste da série de 18 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19112: Parabéns a você (1513): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Operador Cripto da CCAÇ 2533 (Guiné, 1969/7)

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19113: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (4): José Manuel Matos Dinis (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71)


Comentário, de 16 do corrente, do 
Magnífica Tabanca da Linha, 2012:
O Zé Dinis no uso da palavra. 

José Manuel Matos Dinis, ao poste P19106 (*)

(i) ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71;

(ii) nosso grã-tabanqueiro  de longa data, nosso querido amigo e camarada;

(iii) tem cerca de 220 referências no nosso blogue;   

(iii) depois do seu regresso a casa, a Cascais, em janeiro de 1972, vindo da Guiné, rumou até Angola, em maio de 1972;

(iv) viveu  e trabalhou na Lunda, na melhor empresa angolana na época, a famosa Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, com sede no Lundo;


 
Sobre o tema [, a "cunha" na tropa](*), nunca fui de pedidos ou de obtenção de vantagens, e encarei tudo na tropa como a minha fatalidade, comum a tantas outras.

Antes de ser mobilizado, estagiava num importante hotel de Lisboa, local onde se alojava quase semanalmente um governador civil de uma cidade do Norte, homenzarrão, mais gordo que forte, que falava grosso, e era amigo do Salazar, que visitava regularmente. 

Durante as primeiras férias que aqui passei, e em visita ao pessoal do hotel, aquele senhor encontrou-me no salão e dirigiu-se-me: 
− Ó rapaz, que é feito de ti, que há tanto tempo não te vejo? 

Respondi que estava na Guiné em missão de soberania, ao que ele logo acrescentou: 
− Oh, oh, e porque é que não me disseste nada?

Fiquei a saber que, por vezes, pode valer a pena pedir qualquer coisa. Naquel altura, já era tarde, e eu já estava comprometido pela camaradagem.  (**)

Guiné 61/74 - P19112: Parabéns a você (1513): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Operador Cripto da CCAÇ 2533 (Guiné, 1969/7)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19096: Parabéns a você (1512): Mário Ferreira de Oliveira, 1.º Cabo Condutor de Máquinas da Marinha Ref (Guiné, 1961/63)

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19111: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (3): Umaru Baldé (c. 1953-2004), "filho único de sua mãe"


Umaru Baldé (c. 1953-2004), soldado do recrutamento local,  nº 82115869, tirou a recruta e a especialidade no CIM de Contuboel. Foi apontador de morteiro 60, soldado arvorado e depois 1º cabo infantaria da CCAÇ 12 (1969-1972). Foi depois colocado, em Santa Luzia, Bissau, no quartel do Serviço de Transmissões, até ao fim da guerra. Conheceu, em mais de metade da vida, a amargura  e a solidão do exílio. Veio morrer a Portugal onde teve grandes camaradas e amigos, solidários, que o ajudaram.

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados . [Rfição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Envelope da carta enviada pelo Umaru Baldé ao José Valdemar Queiroz Silva, 5residente no Cacém  (foi deliberadamente rasurado o nome da rua do destinário)]




Recruta do CIM de Contuboel
(c. março de 1969)
Carta, datilografada,  sem data nem local, tem a foto do remetente, o Umaru Baldé, ao canto superior esquerdo. Excerto.

Fotos: © Valdemar Queiroz (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

1. É um relato pungente de um miúdo, de etnia fula,  que deveria ter 15/16 anos, "filho único de sua mãe", quando foi recrutado, na sua aldeia (Dembataco, do regulado de Badora, no subsetor do Xime, setor de Bambadinca), em 12 de março de 1969. 

No Centro de Instrução Militar de Contuboel, o Umaru Baldé (c. 1953-2004)  fez a recruta e a especialidade, sendo integrado na CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, como soldado arvorado, apontador de morteiro 60. 

Era um exímio apontador de morteiro 60, como o demonstrou em exercícios de fogo real, no CIM de Contuboel, ma presença do gen Spínola e seus acompanhantes (**), em inúneras situações em que esteve debaixo de fogo, durante cerca de dois anos e meio.

Depois da independência da Guiné-Bissau, e com justificado receio de represálias por ter servido o exército português,  atravessou quase metade de África para chegar a Portugal, em 15 de abril de 1999, tendo entretanto vivido ou sobrevivido no Senegal (11 anos), Mali (1 ano), Costa do Marfim (2 anos), Gana (2 meses), Burkina Faso (7 meses). etc, e passando por ainda Benin, Guiné-Conacri, de novo Guiné-Bissau, etc. e, por fim, Portugal.

É membro, a título póstumo, da nossa Tabanca Grande), Esta carta terá sido escrita  em meados ou finais de 1999 / princípios de 2000. Morreu de tuberculose e SIDA em 2004. Nunca escondeu o seu grande amor à Pátria Portuguesa que lhe foi madrasta. 

Este documento humano lancinante precisa de melhor conhecido, divulgado e comentado.

Excertos. transcrição, revisão e fixação de texto: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Vd. carta na íntegra aqui (**)


AMOR NUNCA ACABA

Amor nunca acaba,
ninguém esquece dos passados ceja [seja de] bem ou de mal,
eu me lembro de dia 12 de março de [19]69, quando foi [fui]
chamado para [a] vida militare [militar] Portugues[a].

Na verdade eu tinha pouco[s] anos de idade 
e eu era único filho de o meu pai, 
e na verdade minha Mamãe revoltou[-se], 
disse que eu não tenho [tinha] idade para ir na guerra, 
mas a pena [é que] Alferes que tinha vindo para nos levar, não podia ouvir esta revolta.

Alferes disse-nos [:]
todos somos Portugueses, 
saímos [de] muito longe para defender [a] Pátria Portuguesa, antão [então], para povo saber 
que [em] Portugal não há raça nen [gente] de cores, 
todos [todo] cidadadão tem que ir cumprir 
serviço militar português.

Minha mamãe chorou, 
disse [:] ai, meu Deus, tenho meu filho único
que vai me deixar para ir morrer na guerra.

Esta data era[foi] dia de tristeza i [e] lágrimas 
para [o] povo de Demba Taco e Taibatá, 
na verdade ficámos até às 4 horas das tarde 
[até] entramos no [nas] viaturas militares para Bambadinca.

Eu, com a pouca idade que eu tinha, 
o que podia fazer ? 
Todo como homem, que sou, 
quando foi [fui] na recruta [em Contuboel], 
foi [fui] o melhor apontador de morteiro 60 [...] 

Depois, na especialidade 
foi [fui] levado para [o] mesmo lugar [...]
na primeira companhia [que] foi na CCAÇ 2590 [/] CCAÇ 12] onde nunca esqueço [o] sufrimento [sofrimento] 
que sofri para [pela] Minha Pátria Portuguesa, 
na Guiné Portuguesa.

Na verdade, [em] dois anos e alguns meses 
que fez [fiz] como operacional, 
fez [fiz] 78 operações no mato do Xime, 
[na] zona do Xitole e até [em] Medina [Madina] do Boé, 
ao lado de Ganjadude [Canjadude]. 
Na minha companhia, durante dois anos 
só sofremos 5 soldados [mortos], 4 pretos e um vranco [branco].
Depois fui transferido para Bissau como primeiro cabo, 
onde fui colgado [colocado] no comando das transmissões
 [, quartel de Santa Luzia,] 
até ao fim de[da] guerra em 1974. [...] (***)
_____________

Notas do editor:
(**) Vd. poste de 29 de setembro de 2016 Guiné 63/74 - P16537: (In)citações (102): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte V): O Umaru Baldé que eu conheci... O "show" de morteiro 60 que o "puto" deu, no CIM de Contuboel, em exercício de fogo real, na presença do próprio gen Spínola em maio de 1969... (Valdemar Queiroz, fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

(***) Último poste da série > 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19109: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (2): Virgínio Briote [ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e allf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos (Brá; 1965/67); coeditor jubilado do nosso blogue]

Guiné 61/74 - P19110: Bibliografia de uma guerra (94): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2016:

Queridos amigos,
Recordo perfeitamente o que se escrevia, via e dizia nesses agitados meses de 1961, sobre Angola. Os artigos falavam de epopeia, visitei na Sociedade de Geografia de Lisboa uma exposição com corpos retalhados, na rádio falava Ferreira da Costa, os textos de Horácio Caio eram homéricos, nascera a lenda de Nambuangongo.
Acontece que este livro de Francisco Marcelo Curto, publicado em 1983 dá-nos uma outra visão dos acontecimentos. Como sempre, temos ali os militares desenrascados, as chuvas tropicais, voluntários que morrem como tordos, execuções, o fantasma do racismo e do colonialismo são descritos com mestria.
Pasma como este relato de Marcelo Curto permanece esquecido.

Um abraço do
Mário   


Quando a guerra, toda ela, dava pelo nome de Angola (2)

Beja Santos

Estamos em Novembro de 1961, Francisco Marcelo Curto e os seus homens continuam em Nova Caipemba, vão-se habituando ao local:
“Três salas, cozinha e um bom alpendre. Agora é só paredes, o telhado são os cacos e os barrotes meio caídos. Vivo e durmo no que foi a cozinha. Os soldados taparam esta parte da casa como puderam (zinco) e os sargentos estenderam panos de tenda para se protegerem do sol e da chuva”.
O livro de Francisco Marcelo Curto “Tu não viste nada em Angola”, Centelha, 1983, é uma surpresa, um vigoroso relato memorial, páginas de diário e textos que são impressivas águas-fortes sobre pessoas, situações, até o sentido da guerra. Surpreende a franqueza, as notas íntimas, as revelações sobre a sensualidade, a crueza com que se descrevem destemperos provocados por aquela onda de terror: “Trouxe para Nova Caipemba vinte e tal bailundos que apodreciam na fazenda de São José porque não chegava o transporte para a terra deles. Não comiam porque se lhes acabara a fuba e o peixe seco e os brancos diziam que não gostavam da nossa comida. Ora! Devoraram o arroz com chouriço em três tempos”. Começam as quezílias entre militares: “O Carvoeiro – o meu radiotelegrafista – embriagado, tentou bater no Marques. A custo segurámo-lo e conseguimos acalmá-lo. Hoje veio pedir desculpa ao Marques”.
Para quem combateu na Guiné, a descrição destas operações não tem qualquer paralelo com o que se experimentou: “Há alguns dias que fomos à serra da Cananga. Os voluntários já estão habituados no alto da subida. Encosta íngreme onde nos arrastamos a escorregar na lama. Os voluntários vivem debaixo da terra a perscrutar a mata que se estende para lá de algumas árvores que deitaram abaixo para fazer campo de tiro. Centenas de metros de uma vala para cobrir um homem a correr meio dobrado. Tratava-se de explorar a serra. A desconhecida catedral, bombardeada pela artilharia, pela aviação, onde os negros viviam à vontade, onde nenhum homem branco tinha subido alguma vez. Tratava-se de avançar até uma sanzala”. Há derrame de sangue, uma mulher presa e a filha é trazida pela tropa. As operações repetem-se, os acidentes também. A notícia da morte de voluntários é recorrente. Mas no quartel de Nova Caipemba a vida é muito monótona.

Estamos em Abril de 1962, a crise académica está a caminho: “Um amigo escreveu-me de Lisboa. As coisas agitam-se na Universidade”. E a seguir vão para Quipedro. Dá-nos uma imagem dos brancos da região, onde pululam comerciantes: “As faces deles. O ar coçado da pele, o olhar em frincha ou vítreo, de cerveja ou aguardente. Os magros chupados, prestes a desaparecer, atravessam a rua para beber ou pedem-nos para ir com eles à fazenda, os gordos, como o Rodrigues que emborca cerveja uma hora depois do almoço; o Rodrigues fala quicongo com precisão, faz contas dos sacos de café que vão sendo carregados, gosta de oferecer fruta à tropa, é respeitoso e empaludado crónico, contrasta com a mulher que arrasta a sua gravidez pela larga casa do patrão do marido (…) O Crispim, meio gordo, vesgo, ambicioso e malandro. O melhor dele são os discos de 78 com velhos fados de Coimbra”. Voltamos à menina capturada na operação: “Maria, a miudita que recolhemos na serra da Cananga, continua connosco. Vive ora com os soldados, ora com os sargentos e os oficiais. O Telmo comprou-lhe um vestido, o alferes Fonseca uns sapatos que a Maria não consegue usar. Faz recados e parece ter esquecido a mãe. Tem medo dos aviões. Logo que ouve o ruído de algum por cima da sua cabeça, corre a abrigar-se debaixo de qualquer coisa”.

As operações prosseguem, agora vão à mata do Quimisangue, não faltarão tiros, convém não esquecer que se está relativamente perto de Nambuangongo. Nas longas colunas, há viaturas de civis que dão o triste pio, quando o alferes sugere que se descarregue a carga, o proprietário responde apoplético que ali ninguém mexe, ela não ficará ali na picada, os turras irão queimá-la, como efetivamente irá acontecer, no regresso estava toda queimada, fumegava ainda, aqui e além. As colunas, sejam de abastecimento ou com intuitos militares, revelam-se um suplício, com descidas e subidas.

Estamos em Junho de 1962, Marcelo Curto anota no diário: “Cheguei de Negage no Dornier que procura terreno como cegonha hesitante. No Dornier que me trouxe vinham os últimos frescos: couves, carne. Bananas… Já não posso ver bananas”. Em Agosto, um acontecimento dramático, a morte de Paulo, aliás o livro será dedicado à memória de Paulo de Freitas Barros. Mas continua a estafadeira das operações, a coluna a subir a encosta, a verificar todos os vestígios de passagem, os carreiros batidos, a procurar linhas de água. O alferes aproveita as colunas e as viagens para conversar com os brancos, conhecê-los. É o caso de Raul, de que o autor nos deixa uma imagem impressiva:
“Beirão, viera para Angola ainda novo, com conhecimentos de mecânica de automóveis. Tinha-se empregado em várias casas, aperfeiçoando os seus conhecimentos. Hoje era um mecânico especializado na afinação de motores. Por que era hoje motorista que fazia fretes?
- Um sócio que me cavou com a massa. A oficina teve que fechar. Ficou-me só esta camioneta. Faço fretes e ganho a vida assim.
Por que não aquecera o lugar nas casas onde estivera?
E justiças e mais injustiças. Encarregados que não percebiam patavina de motores a quererem que eu fizesse o trabalho de certa maneira. Sobre os ajudantes da sua camioneta também fala da sua pouca lealdade. Que se vão embora quando calha”.

Tenho lido muitas obras que acabam abruptamente, esta é mais uma. Narra acontecimentos entre 1961 e 1963, são notas pessoais, registos de diário, páginas avulsas. O termo da obra respeita uma visita do Bispo de Malange. À frente vem o administrador falar com o senhor capitão, vem acompanhado do intendente que conta ao auditório o seu método económico de matar pretos, que usou no Uíge:
“- É claro que tínhamos que ser enérgicos… As munições tinham de ser poupadas. Havia que arranjar solução para os criminosos assassinos da nossa gente!
Aí, a solução final, o gueto de Varsóvia, os campos de exterminação!
- … as lagartas do Caterpillar, depois de fazer o buraco, voltava a passar-lhes por cima e depois a pá empurrava-os para a cova…
Fiquei suspenso, cara virada para as palavras.
- Claro que no início houve excessos lamentáveis, lamentáveis mas necessários.
- … mas a nossa educação, os nossos princípios cristãos, onde ficaram senhor intendente?
O tipo olha-me, é o bispo que responde:
Quem pode atirar a primeira pedra?”.

Um registo poderoso, e mais uma vez me questiono como é possível que um relato destes, seguramente um dos primeiros escritos por um oficial miliciano português no início da guerra de Angola permanece no limbo.
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Notas do editor

Último poste da série de 10 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19087: Bibliografia de uma guerra (93): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19109: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (2): Virgínio Briote [ex-alf mil cav, CCAV 489 (Cuntima) e allf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos (Brá; 1965/67); coeditor jubilado do nosso blogue]


Guiné > Bissau > 1967 > O alferes miliciano comando Briote (ao meio), em final de comissão, com os alferes comandos Sampaio Faria e Ovídio (do lado esquerdo) na receção da 5.ª Companhia de Comandos, do cap Albuquerque Gonçalves (à direita).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário de Virgínio Briote ao poste P19106 (*)

Virgínio Briote, ex-alf mil cav,  CCAV 489 (Cuntima e alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67);  frequentou a Academia Militar nos anos letivos de 1962/63 e 1963/64; coeditor jubilado do nosso blogue

Crónica de uma mobilização

Set. 1964.

Embarcaram no N/M Carvalho Araújo cerca de 18 aspirantes milicianos, com destino ao BI 18, S. Miguel, e ao BII 17, Angra do Heroísmo, Terceira [, Açores].

Quando, um dia pela manhã, o navio aportou a Angra, algumas viaturas transportaram-nos até à Fortaleza de S. João Baptista, no Monte Brasil.

Recebidos pelo cmdt, tenente coronel Garrido Borges, depois das boas-vindas e de algumas informações gerais, um capitão comunicou a alguns dos recém-chegados que não valia a pena desfazerem as malas porque regressariam ao continente no próximo transporte, uma vez que tinham sido mobilizados para o Ultramar.

Depois, quase todas as semanas um era mobilizados.

Fui, que me lembre, o último a ser mobilizado, no início da 2ª quinzena de dezembro [de 1964]. Tinha começado por ser cmdt de um pelotão e acabei por ser cmdt interino de uma companhia, director da carreira do tiro, da secção técnica e certamente de mais qualquer departamento, uma vez que os únicos oficiais que lá se encontravam era o cmdt da unidade e um capitão com mais de uma dezena de anos no posto.

Quando entrei no gabinete do cmdt, o tenente coronel [, de infantaria, Fernando Manuel] Garrido Borges, sorridente, comunicou-me que tinha chegado a minha vez. Mobilizado para Cabo Verde... 
−  Nada mau, aspirante Briote! Parabéns! Prepare-se, deixe tudo em ordem, ainda deve ir passar o Natal com a família.

Dia seguinte, a meio da manhã, chamada para ir ao gabinete do cmdt...
− Chegou novo rádio a comunicar que tinha havido erro na mensagem. O nosso aspirante  foi mobilizado
para a Guiné.

Desci as escadas e fui até ao bar do cabo João. (**)

V Briote
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19106: (Ex)citações (345): a Pátria, a classe social, a cunha, o mérito, os "infantes"... e que Santa Bárbara nos proteja!... (C. Martins / Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19108: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (1): Valdemar Queiroz (ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Intrução Militar (CIM) > CART 2479 / CART 11 > c. março/maio de 1969 > O instrutor (Valdemar Queiroz) e o recruta (Umaru Baldé, "menino de sua mãe")... Afinal, todos portugueses, todos iguais, mas uns mais do que outros...

Foto: © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada C. Martins (ex-alf mil art, cmdt, 23º Pel Art, Gadamael Gadamael, 1973/74),  citava há tempos o seu avô que, na inauguração da escola lá da terra, em pleno Estado Novo, ouviu da boca de um manda-chuva esta "verdade sociológico": "O escritório, para o rico; a enxada, para o pobre"... No fundo, é uma variante do ditado alentejano: "A rica teve um menino, a pobre pariu um moço"...

Não nascemos nem morremos iguais, embora sejamos todos feitos - com a sua licença, caro leitor -,  da mesma "merda"... E, ao longo da vida, há outros fatores que nos continuam a diferenciar...No caso da tropa, da arma e da especialidade, e da mobilização para o Ultramar, o estatuto sócio-económico dos pais, as habilitações literárias, os testes psicoténicos, o mérito, a instrução militar e o famoso factor C [, a "cunha") e, já agora, a "sorte" e os "santinhos"... ajudam a explicar muita coisa...

Com graça, mas naturalmente de forma redutora,  o C. Martins dizia que o "pobre" ia para atirador de infantaria, o "remediado" ia para cavalaria, o "remediado com estudos" para a artilharia... e os  "ricos" e os gajos com cunhas, esses, desenrascavam-se muito melhor: tinham especialidades que os livravam de ir para o Ultramar ("ir para fora"...) ou ficavam no "ar condicionado" de Bissau, Luanda ou Lourenço Marques... 

O retrato pode ser grosseiro, mas, na época da guerra colonial, não andaria muito longe da "verdade sociológica"... Na sociedade portuguesa ser "filho de algo" sempre foi, historicamente, importante, se não mesmo decisivo. O mérito é uma noção recente, capitalista, burguesa, coisa de há menos de 100 anos... E a "cunha" (o factor C)  era como as bruxas: que as havia, havia, e toda a gente "mexia os seus pauzinhos"...

A este propósito o nosso editor, LG, lançou este desafio (que alguns poderão interpretar como uma "provocação", mas que não é: é amtes uma "provação", ou melhor, uma "prova de vida"...):

Camaradas: toda a gente, fosse "rico", "remediado" ou "pobre", do Exército, da Marinha ou da FAP, tem opinião sobre este "tópico"... Tirem a "máscara" e comentem... 50 anos depois não vale a pena levar segredos para a cova... E um gajo, a ter de confessar-se, deve ser agora, aqui e agora, à sombra do poilão da Tabanca Grande... antes do Parkinson, do Alzheimer, do AVC, da morte macaca ou do cancro da próstata... (De que Deus nos livre!)

Já começaram a aparecer os primeiros escritos, sob a forma de comentários... Outros se seguirão, mais curtos ou compridos, mais finos ou mais grossos... Vamos dar início a uma série, aproveitando a frase da mãe do Valdemar Queiroz que, resignada, comentou, ao receber a notícia da sua mobilização para o Ultramar:  "Então, e depois?... Os filhos dos ricos também vão pra fora!"...

De qualquer modo, há uns largos anos atrás, em 2009, tínhamos criado uma série intitulada "O trauma da notícia da mobilização"... Publicaram-se então nove postes...   A nova série de hoje  dá continuidade a essa...  LG


2. Depoimento do Valdemar Queiroz [ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70] [, foto atual à esquerda]

Sobre cunhas, principalmente em Especialidades com pouca rotação/mobilização (ex.: munições de artilharia, topógrafo de artilharia, transmissões de artilharia), a cunha estava feita para a Especialidade e, depois, se corresse mal havia os 'mata pra fora', ou seja quando havia um com boa nota e não se importava, a troco duns contos de réis, de ir 'pra fora' no lugar dele.

Aconteceu no RAP3, Figueira da Foz, com um cabo miliciano. meu conhecido, e um jogador de futebol dum clube grande. 

Mas, isto de Santa Bárbara, padroeira da Artilharia, bem se podia rezar por ela, que em novembro de 1967, todos os que estavam na EPA, Vendas Novas, ficaram com todas as fardas ensopadas durante três dias.

Quanto ao dia do conhecimento da mobilização estava no RAP3, já com 16 meses de tropa e não me lembro como foi passado. Apenas me recordo, ainda com muita mágoa, ter telefonado à minha mãe e ela me dizer:
- Então, e depois?, os filhos dos ricos também vão pra fora!...

Pobre coitada,  assim já tinha motivo pra rezar a todos os santinhos. (*)

Valdemar Queiroz
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terça-feira, 16 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19107: Convívios (876): Grande homenagem da Tabanca de Matosinhos ao João Rebola (1945-2018), no passado dia 10 de outubro, com a presença da filha, Maria João (José Teixeira)

 Cartaz do evento


A Maria João Rebola, rodeada pelo Leite Rodrigues e pelo Moutinho Santos  (régulo da Tabanca de Matosinhos)
.

Aspeto geral da sala que desta vez foi pequena para tanta gente


Momento da Chamada pelo camarada João Rebola.


Momento emocionante do "PRESENTE" gritado pelos camaradas presentes.


Um grupo de "históricos" da Tabanca de Matosinhos.


Alguns camaradas que nos visitaram pela primeira vez.


Convivência sadia entre gente que se encontra pela primeira vez.


Os camaradas do Batalhão do João Rebola quiseram estar presentes (I)


Os camaradas do Batalhão do João Rebola quiseram estar presentes (II)


Alguns dos camaradas do Bando do Café Progresso

Matosinhos > Tabanca de Matosinhos >  Restaurante o Espigueiro (ex-Milho Rei) > 10 de outubro de 2018 > Homenagem ao João Rebola (1945-2018)

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Sentida homenagem da TABANCA DE MATOSINHOS > JOÃO MANUEL PEREIRA REBOLA! (*)

À chamada feita pelo Capitão na Reserva Leite Rodrigues, responderam os ex-combatentes - PRESENTE!

Foi com este gesto simples, mas comovente,  que os ex-combatentes presentes na Tabanca de Tabanca Matosinhos quiseram homenagear o camarada e amigo de todas as horas, João Rebola.

Juntamos-nos como é habitual desde 2005, no Restaurante O Espigueiro,  em Matosinhos. Alguns tarimbeiros habituais desta Tertúlia e muitos outros vindos do Norte, do Centro e do Sul. Estávamos oitenta em sala e houve alguns que por falta de lugar à mesa foram-se embora

A casa nunca esteve tão cheia.

A Maria João Rebola, sua filha,  honrou-nos com a presença, nesta justa homenagem ao João. Uma presença muito querida de alguém que nos recorda um grande camarada e amigo.

Registamos também a presença de muitos camaradas do Batalhão [, BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/71] a que o João Rebola pertenceu, quando andarilhou pelas picadas da Guiné.

O Bando do Café Progresso, uma tertúlia que congrega um grupo de ex combatentes da Guiné, que historicamente começaram por se reunirem no Café Progresso no Porto, com quem a Tabanca de Matosinhos se sente irmanada, também quis estar presente, e em força, na homenagem.

Registe-se ainda a presença de alguns ex-combatentes  "periquitos" que vieram até nós, pela primeira vez,  e como sempre foram acolhidos pelos "velhinhos" com todo o carinho.

A Tabanca de Matosinhos,  tertúlia de ex-combatentes da Guiné, congratula-se e agradece o testemunho de amizade de tantos amigos que o João Rebola foi granjeando pela vida fora e sobretudo desde que começou a participar nos almoços semanais da Tabanca.

A porta continuará aberta enquanto houver ex combatentes que queiram honrá-la com a sua presença.

Obrigado,  João,  pelo exemplo de vida em comunidade que foste para todos nós. (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de  2018 > Guiné 61/74 - P19076: In Memoriam (329): A Tabanca de Matosinhos vai promover uma homenagem ao João Rebola (1945-2018) no almoço da próxima quarta-feira, 10 de Outubro, às 12h30 no Restaurante Espigueiro (antigo Milho Rei), em Matosinhos (José Teixeira)

Guiné 61/74 - P19106: (Ex)citações (345): a Pátria, a classe social, a cunha, o mérito, os "infantes"... e que Santa Bárbara nos proteja!... (C. Martins / Luís Graça)


Imagem extraída do sítio Centro Pai João de Angola, Maringá, Paraná, Brasil (com a devida vénia...). Este portal está ligado à religão Umbanda (, afro-brasileira). Mártir cristã, nascida (c. 280) e morta (c. 317) em Nicomédia (atual Izmit, Turquia),  Bárbara de Nicomédia (, hoje Santa Bárbara) é venerada por católicos, cristãos ortodoxos e seguidores das religiões afro-brasileiras (em especial a Umbanda). É padroeira dos artilheiros, mineiros e dos que lidam com o fogo (bombeiros); protetora contra tempestades, raios, trovões, incêndios e explosões. É particularmente popular, o seu culto ou devoção, em Portugal e no Brasil. Mas, lá diz o ditado, "só se lembram de Santa Bárbara quando troveja"...

Oração a Santa Bárbara, reproduzida na Wikipédia, em língua portuguesa:

"Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para que possa enfrentar de fronte erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas de minha vida, para que, vencedor de todas as lutas, com a consciência do dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora, e render graças a Deus, criador do céu, da terra e da natureza: este Deus que tem poder de dominar o furor das tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Por Cristo, nosso Senhor. Amen."

1. Comentário de C. Martins  (ex-alf mil art, cmdt, 23º Pel Art, Gadamael  Gadamael, 1973/74), com data de 11 de fevereiro de 2014  (*)


"O rico é para o escritório...O pobre é para a enxada"...

Para lá caminhamos... O gajo que proferiu esta pérola, na inauguração da escola da minha terra em 1938, ia levando uma carga de porrada, disse-me o meu Avô.

Não estive em Tavira [, no CISMI,] mas parece-me que aquilo era destinado para "infante",  defensor da "pátria", sofrer...

O "pobre", ou sem cunhas ía para "infante", defender a... a...isso..

O "remediado" para cavalaria. O "remediado intelectual"...ah, ah.. para artilharia..

O "rico", ou com uma grande cunha,  para aquelas especialidades... mais ou menos..., não precisava defender a dita... que isso é para "pobre".

Vivam os infantes e também Santa Bárbara.

Ámen!

C. Martins

2. Comentários de LG (*):

(...) O "pobre" ou sem cunhas ía para "infante"...defender a... a...isso.. O "remediado" para cavalaria. O "remediado intelectual"...ah ah... para artilharia... O "rico",  ou com uma grande cunha,  para aquelas especialidades...mais ou menos... não precisava defender a dita... que isso é para "pobre" (...)

C. Martins: levantas uma questão interessante, que deveria merecer a atenção de sociólogos e historiadores da guerra colonial: a composição e a estratificação sociais das Forças Armadas Portugueses...

Em tempo de guerra, quem é que ia integrar as fileiras do Exército, Marinha e Força Aérea ?... Quem é que preenchia os "quadros de complemento" do Exército ? Ou quem é que ia para a "Reserva Naval" ?

Não sei exatamente em que altura foram introduzidos os "testes psicotétnicos"... A noção relativa de "mérito" já existia, mas eu tenho a impressão de que uma "valente cunha" se sobrepunha a tudo e a todos... E a "cunha" era usada a todos os níveis, ou pelo menos por quem podia... Por exemplo, às vezes a melhor cunha era ser-se filho... do rendeiro de um coronel ou general, lá do Norte... Ou de um político influente lá da terra... Ou então ter-se 200 contos, em "cash", para pagar a um médico do Hospital Militar Principal... Com 200 contos, comprava-se um apartamento em Lisboa...

Eu sei que o assunto é delicado, e que quem foi à Guiné não tem  em princípio histórias para contar sobre este tópico, na primeira pessoa do singular... Quem foi parar com os quatro costados à Guiné, como infante, artilheiro ou cavaleiro, é porque decididamente não tinha "cunha".... Mas no nosso blogue não há tabus... Ou não devia haver. (...)

 (...) "O soldado de infantaria é aquele que vive, vigia, sofre e combate na lama, no pó e no sangue, aquele que tirita sem abrigo e sofre privações, fadigas e horrores de toda a espécie. É aquele que no ardor da luta vê o inimigo cara a cara, que não combate só com as suas armas, mas com toda a sua alma. Ele é a verdadeira sentinela da Pátria.” 

[Fonte: "Guia do Instruendo",  CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, c. 1968] (*)

Confesso que nunca tinha lido (ou já não me lembrava de) esta lapidar e dramática definição de um infante... Cai que nem uma luva em muitos de nós que, infantes ou não, conhecemos o duro teatro operacional da Guiné, as picadas, as savanas arbustivas, as florestas galeria, os rios e braços de mar, as bolanhas...

Só pode ser da autoria de um poeta, que tenha feito a guerra das trincheiras em La Lyz, em 1918... Na guerra de contraguerrilha era difícil ficar de cara a cara com o IN, a não ser quando morto ou aprisionado... Quanto ao resto, estão lá os ingredientes todos: o lodo, o tarrafe, o sangue, a merda, mais os mosquitos, as formigas, as abelhas, as balas das "costureirinhas", as minas, os roquetes, as morteiradas... (**)

Camaradas: toda a gente, fosse "rico", "remediado" ou "pobre", do Exército, da Marinha ou da FAP,. tem opinião sobre este "tópico"... Tirem a "máscara" e comentem... 50 anos depois não vale a pena levar segredos para a cova... E um gajo, a ter de confessar-se, deve ser agora, aqui e agora, à sombra do poilão da Tabanca Grande... antes do Parkinson, do Alzheimer, do AVC, da morte macaca ou do cancro da próstata... (De que Deus nos livre!)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12703: CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, 1968: Guia do Instruendo (documento, de 21 pp., inumeradas, recolhido por Fernando Hipólito e digitalizado por César Dias) (1) : Parte I (1-6 pp.)

(**) Último poste da série > 30 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19058 (Ex)citações (344): os canhões... de Bigene!... No tempo da CART 3329 (1970-1972) e depois no meu tempo, de outubro a dezembro de 1972, havia 3 obuses 14 (140 mm) e 5 morteiros 81 (Eduardo Campos, ex-1º cabo trms, CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74)