segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19126: Notas de leitura (1113): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1) (Mário Beja Santos)

Capa da revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1993


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,

O tempo passa e cada vez mais me convenço que estamos perante um segredo de polichinelo que se intenta manter com vivíssima matéria de investigação. Um complô, está demonstrado, única e exclusivamente constituído por guineenses. Há informações de que aqueles últimos meses que precedem o assassínio decorrem numa atmosfera irrespirável em Conacri, os guineenses já não se sentam à mesa com os cabo-verdianos. Pôs-se em andamento o complô, são presos todos os cabo-verdianos e ameaçados de fuzilamento. 

Uma testemunha privilegiada, Oscar Oramas, embaixador de Cuba na Guiné Conacri, assiste à conversa dos sublevados com Sékou Touré, poucas horas depois do assassínio, justificam-se porque não querem continuar a ser mandados por cabo-verdianos. Todos os fuzilados serão guineenses, sem exceção. Desapareceram comodamente todos os documentos das comissões de inquérito. 

Anos depois, diferentes dirigentes de topo do PAIGC queixavam-se dos excessos cometidos. Deu jeito, nos tempos subsequentes, atribuir-se o assassínio a Spínola e à PIDE/DGS, como a história se faz de provas factuais e da consulta de fontes, jamais se encontrou qualquer documento comprometedor. Mas nos tempos que corre, e em nome dos mitos, todos estes acontecimentos aparecem atravessados por fantasmas para contornar habilmente irmãos desavindos, de duas parcelas de África com coisas em comum e muitíssimas outras em atrito.

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (1)

Beja Santos

O nome do jornalista José Pedro Castanheira está associado a dois trabalhos de reportagem de excecional valor para o período da guerra da Guiné e do fim do Estado Novo. Tendo dado conta que se aproximavam os 20 anos da efeméride do assassinato de Amílcar Cabral, obteve meios para uma investigação aprofundada, falou com alguns protagonistas de maior peso, a viúva de Cabral, Ana Maria de Sá Cabral, António de Spínola, Luís Cabral, entre outros, visitou o local do crime, debruçou-se sobre a documentação existente nos arquivos da PIDE sobre tentativas de eliminar Amílcar Cabral.
Esta reportagem será a catapulta de um livro que foi acolhido muitíssimo bem em Portugal e vários países.

A outra grande reportagem que revela o talento jornalístico de José Pedro Castanheira foi a reunião de diferentes protagonistas em Londres que participaram no encontro secreto de Março de 1974, do lado português estava o então cônsul em Milão, o futuro embaixador José Manuel Vilas Boas.

Para surpresa de muita boa gente, em 1994, ficava-se a saber que o ministro dos Negócios Estrangeiros, de Marcello Caetano, Rui Patrício, diligenciava negociações que levassem ao acordo de paz e ao reconhecimento da República da Guiné-Bissau, estava já imparável o processo de reconhecimento na ONU, o que tornaria ainda mais calamitosa a situação portuguesa, adensava-se a hipótese de uma intervenção militar da Organização da Unidade Africana.

António de Spínola

A reportagem de Castanheira aprofunda quatro pistas para a compreensão do atentado:

(i) um golpe de Estado de uma fação guineense;

(ii) a cumplicidade de Sékou Touré;

(iii) uma operação desencadeada por Spínola;

(iv) ou uma iniciativa da PIDE.

Inicia-se a reportagem com os acontecimentos que terão ocorrido cerca das 23,00h de 20 de Janeiro de 1973, quando Cabral e a mulher regressavam de uma receção em Conacri na embaixada da Polónia. Interpelado por um grupo onde a figura proeminente era Inocêncio Kani, um ex-comandante da Marinha do PAIGC, Cabral não deixa que o amarrem, Kani disparou um tiro à queima-roupa, Cabral pretende ainda conversar com os sublevados, alguém de nome Bacar assesta-lhe uma curta rajada que o atinge na cabeça, Cabral morre.

Um segundo grupo liderado pelo chefe dos guardas, Mamadu N’Diaye, aprisiona Aristides Pereira, que trabalhava numa casa próxima, e metem-no numa vedeta, barbaramente amarrado.

Um terceiro e último grupo, chefiado por João Tomás, apodera-se da prisão do partido, conhecida por Montanha, e libertam detidos que faziam parte do complô. Contam com a conivência dos guardas, e detêm um número elevadíssimo de dirigentes que metem na prisão, advertindo-os que iam ser fuzilados no dia seguinte.

Os revoltosos vão dar conhecimento a Sékou Touré, este não dá cobertura ao assassínio, manda prender os conspiradores, mais adiante ouviremos as recordações de um participante privilegiado, Oscar Oramas, embaixador de Cuba em Conacri, será o primeiro diplomata a ver o corpo de Cabral abatido, telefonará a Sékou Touré, assistirá à reunião deste com os sublevados.


Ana Maria Cabral na Função Amílcar Cabral na Cidade da Praia 


Seguem-se dois processos misteriosos, duas comissões de inquérito de que jamais conheceremos os resultados.

Uma comissão de inquérito internacional de que farão parte, entre outros, Agostinho Neto e Joaquim Chissano. As autoridades guineenses nunca deixaram vir à luz os resultados do inquérito. Do lado do PAIGC, na medida em que Sékou Touré entregou os revoltosos à nova direção do partido, forma-se uma comissão de inquérito que seria presidida por Fidélis Almada e onde estariam nomes como Otto Schacht, António Buscardini e José Araújo. Também não se virá a conhecer a documentação constante às inquirições, os sublevados, em número que nunca se pôde quantificar com rigor, foram divididos em grupos, e executados. Pedro Pires garantiu ter assistido aos fuzilamentos na região Sul. Castanheira fez perguntas a vários dirigentes. Disse-lhes Aristides Pereira:

“Nunca consegui ter uma ideia exata dos fuzilados. Pedi ao Fidélis uma lista, mas nunca me chegou às mãos”.

Fidélis confirma que o relatório da comissão não fornece números:

“Creio que se provou a culpa de 71, mas nem todos foram executados". 

Fernando Baginha fala em 110. Luís Cabral confessa que não houve um interrogatório sereno, Carlos Correia admite que “tenha havido maldade em algumas denúncias”.

A cumplicidade de Sékou Touré é outro mistério. Vários investigadores avaliam um elevado grau de indecisão quando se dá o assassínio, outros admitem que ele recebeu prontamente os sublevados temendo que se tratava de algo parecido com a invasão de Conacri, de 22 de Novembro de 1970. Não são de fiar as declarações de Senghor de que a morte de Cabral foi instigada por Sékou Touré, eram adversários figadais. Senghor afirmava ter provas de que a morte de Cabral fora apoiado por Touré, mas nunca mostrou tais provas.

Aristides Pereira foi sempre reservado sobre a participação guineense no complô, mas na longa e importante entrevista que concedeu ao jornalista José Vicente Lopes, deixou bem claro que Osvaldo estaria envolvido na trama e não excluiu o apoio expetante de Nino Vieira. Morto Cabral, era preciso camuflar a querela multisecular entre cabo-verdianos e guineenses.

O alibi foi o de que por detrás do complô exclusivamente guineense estava a manipulação de um braço longo, a DGS, dentro de um plano maquinado por Spínola. Todas as investigações nesta direção encontram prateleiras vazias, nem um só papel no arquivo da DGS, todas as maquinações para matar Cabral precedem Spínola na Guiné e Fragoso Allas na direção da PIDE em Bissau. Spínola adiantará a Castanheira argumentos de uma tremenda ingenuidade. Esperava que a invasão de Conacri, desenhada por Alpoim Calvão, trouxesse um Amílcar Cabral sequestrado que aceitaria de bom grado fazer parte do governo da Guiné.

Também sem exibir provas, Spínola diz ter recebido um convite de Amílcar Cabral para se encontrar com ele em Bissau, em Outubro de 1972. Alega que esta proposta lhe chegou por via de Fragoso Allas, Marcello Caetano disse-lhe redondamente que não. Na sua entrevista com o Castanheira diz igualmente que não se lembra do nome de quem era o delegado de confiança de Amílcar Cabral. Enfim, há muita gente a abusar do diz-se e consta.

(Continua)
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Notas do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19125: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (7): as "cunhas" e os TSF...(Hélder Sousa, ex-Fur Mil de Trms, TSF, Piche e Bissau, 1970/72)


Porto > Ribeira > 27 de maio de 2015 > VI Encontro dos "Ilustres TSF" > Em baixo o C. Lã. De pé, da esquerda para a direita: A. Calmeiro (já entretanto falecido), M. Rodrigues, E. Pinto, J. Reis, H. Sousa, M. Martins, F. Cruz, e F. Marques. Faltou o  Nelson Batalha que   já não compareceu por razões de saúde, e que viria a morrer,  entretanto, um ano e meio depois (*)


Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comnplementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Hélder Sousa:

[Foto à esquerda: O camarada, amigo, grã-tabanqueiro, colaborador permanente do nosso blogue Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72): desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de novembro de 1970, e regressou 2 anos depois, exatamente a 10 de novembro de 1972. Ei-lo aqui, no "Pelicano", em Bissau, é o primeiro da esquerda, de perfil; à direita o Nelson Batalha (1948-2017) e ao centro  o Fernando Roque, que não era TSF mas TPF. A foto é do Hélder Sousa que é, também, o régulo da Tabanca de Setúbal, e tem mais de 140 referências no nosso blogue]


Data: domingo, 21/10/2018 à(s) 02:11
Assunto: As "cunhas"....

Caros amigos

Tenho acompanhado as várias publicações do nosso blogue e, dentro destas, esta última série, relacionada com o tema 'Então e depois? Os filhos dos ricos também vão p'ra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais iguais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada, que acho interessante e que pode ser tratada com mais ou menos ligeireza e com mais ou menos profundidade. (**)

Porque as escritas (e as leituras das mesmas...) serão mais eficazes se não forem muito extensas, vou tentar abordar o tema pelo prisma de forma "mais ligeira e menos aprofundada".

Cumprir ou não a "comissão de serviço por imposição" era um dilema que se colocava realmente mas não era tema alimentado por largas maiorias.

Havia quem entendesse que era dever defender os "seus" territórios ameaçados pela cobiça internacional. Conheci alguns.

Havia quem quisesse dar corpo à missão que a Pátria lhe impunha. Conheci alguns.

Havia quem pensasse que não deveria ir para África mas... o peso na consciência de "faltar ao dever", o anátema de "cobardia", o não saber quando e como voltar a estar com amigos e família, acabava por ter o peso suficiente para fazerem o "cruzeiro das suas vidas". Conheci bastantes.

Havia ainda quem achasse que sim, porque sim.

E havia também outros....

Nesta amálgama de possibilidades então muitos foram, pobres, remediados e ricos, e alguns, também pobres, remediados e ricos, 'não foram'. Refractaram-se, desertaram, ou ficaram por cá, resguardados...  Poderemos pensar que esses, os de cá, tinham "cunhas". Talvez, acredito que isso possa ter acontecido com muitos mas seguramente não com todos. Conheci alguns.

E então eu? Como foi?

Para mim foi um "percurso normal".  Fui incorporado no CSM em Santarém, na 3ª incorporação de 1969, em plena época de exames, a meio de Julho.

Vi recusado o pedido de dispensa para comparecer a exames na 2ª quinzena e por isso não me parece que tenha tido 'facilidades'.

No ano anterior, no Verão de 1968, com o dinheiro que amealhei na apanha do tomate, aproveitei o "Turismo Estudantil" e fui até Paris, Bruxelas e Londres. Menos "turismo" e mais "prospecção" para uma eventual "retirada da circulação". Quando chegou a incorporação, a opção foi "cumprir".

Fiz uma recruta empenhada, com bom aproveitamento geral, e já vos dei conta num 'post' daquela série "A terra que mais gostei ou odiei" (***),  que tive uma classificação tão boa que me colocou em condições de ser 'convidado' a passar ao COM mas não aceitei porque entretanto saiu a especialidade TSF, que me disseram ser muito boa, e como tal,  perante a quase certeza de poder vir a ser um "COM atirador"...., continuei o meu percurso no CSM.

Como me "saiu" TSF? Não faço ideia!

Os meus pais não tinham dinheiro suficiente para 'comprar' ninguém, não tinham conhecimentos capazes de o fazerem, por isso desconheço realmente como foi. Aliás, nesse Turno, em Santarém, apenas 'saíram' dois TSF, os outros 13 (pois o 2º Ciclo do CSM para TSF comportou 15 elementos) foram de Vendas Novas, Tavira e Caldas da Rainha.

Gosto de pensar que poderá ter sido numa informação que dei de ter construído,  com o meu vizinho do andar de baixo da casa onde vivia,  uma comunicação a partir de duas chaves de "morse" que um primo dele nos arranjou ...

Em Lisboa, no então BT [, Batalhão de Telegrafistas], fiz o 2º Ciclo, após isso fui fazer um estágio para Tancos, na EPE [, Escola Prática de Engenharia].

Findo o estágio houve exames para classificação. Dos 15 fiquei em 7º. Fui para o Porto, para o então RTm dar instrução.

Entretanto as mobilizações dos camaradas do meu Curso estavam a ser conhecidas a 'conta-gotas', pois do final de Abril de 1970 ao final de Agosto, dos 15 apenas tinham partido 6 e nós sabíamos que no dia 3 de Setembro entrariam todos os que estavam a acabar o seu percurso formativo e que assim estariam à nossa frente para 'marcharem'.

Pensava eu, assim, que tendo ainda dois dos meus camaradas à minha frente para serem mobilizados e com o acrescento dos que aí vinham, que a mobilização já não se daria e, caso isso tivesse acontecido, não teria havido "cunha" nenhuma... Mas não foi assim, já que no dia 1 de Setembro, dois dias antes do "reforço" da lista para mobilização, saiu a "rifa" a 7 de nós, do meu Curso, com passaporte para a Guiné.

Na Guiné, dos 7 que para lá foram, 3 arrumaram-se por Bissau.Eu e outros 3 fomos para o "mato". 

Não me parece que aqui tenha funcionado alguma "cunha". Fui para Piche com uma missão específica, que não vem agora aqui ao caso, embora o meu Capitão que chefiava o STM (Serviço de Telecomunicações Militares) onde me incorporei, tivesse garantido antes que nenhum de nós iria chefiar Postos em 'zonas problemáticas' e,  no meu caso concreto, em compensação, como a zona seria 'problemática', quando terminasse a missão iria para zonas mais pacíficas, como Bissau, Bolama, Teixeira Pinto, por exemplo.

Não foi assim! Quando regressei de Piche fui 'requisitado' para a Companhia de Transmissões para integrar o Serviço de Escuta. Esta história já dei conta em 'post' faz muito tempo. (****)

O meu desempenho na "Escuta" poder-se-à dizer que me foi agradável. Não me vou alongar em motivos, poderá ficar para outra ocasião, mas não foi por "cunha", foi bem vivido.

Portanto, quanto a mim, desconhecendo na verdade como me "saiu" TSF, foi um percurso 'limpo, sem cunhas'. 

Conheci "filhos de ricos" que foram mobilizados e que foram para a Guiné. Conheci "filhos de não ricos" que ficaram por cá, alguns talvez com 'cunhas', mas outros nem por isso. Conheci alguns "filhos de patriotas" que procuraram fazer as suas vidas em lugares mais saudáveis do que os difíceis climas africanos. E também outros "meninos de suas mães" que foram para fora.

Por isso digo: "há de tudo"!

Um abraço
Hélder Sousa
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Notas do editor:


(****)  Vd. poste de 12 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

Vd. também  poste de 26 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1702: A guerra também se ganhava (ou perdia) nas ondas hertzianas (Helder Sousa, Centro de Escuta e de Radiolocalização, Bissau)

Ver ainda poste de 11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1652: Tertúlia: Três novos candidatos: José Pereira, Hélder Sousa e Jorge Teixeira

domingo, 21 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19124: Blogpoesia (590): "No meio da geometria", "Não tem pele a alma" e "Estado de alma", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


No meio da geometria

Vivemos mergulhados na geometria.
Geometria das flores e das galáxias.
Das esferas e planetas.
Das dunas e dos vulcões.
Somos massa e pedra multiforme.
Temos ossos e temos carne.
Somos frágeis em demasia.
Átomos e moléculas de carbono em ebulição.
Temos pés e temos mãos.
Seria o fim do mundo se também tivéssemos asas.
Descontentes, tudo lamentamos.
Até o ar gelado que nos dá a vida.
Nos fingimos doces, só por fora.
Cá por dentro, tão amargos.
Insaciáveis. Queremos tudo.
Prometemos e não cumprimos.
Ortorrômbicos e octaédricos.
Nem um só ângulo recto...

Berlim, 19 de Outubro de 2018
8h 32m
dia de sol, frio
Jlmg

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Não tem pele a alma

Sua cor é a transparência e brilha à luz do bem.
Tem o sopro da vida eterna e a força do amor sem fim.
Sempre atenta ao que o corpo pede.
Faz de conta a ver se aprende quando ele erra o seu caminho.
Não tem pele a alma
Tem o sopro da vida eterna e a força do amor sem fim.
Sempre atenta ao que o corpo pede.
Faz de conta quando ele erra só para ver se aprende
Como o astro-rei gravita ao sabor do tempo.
Sabe de cor os passos que seu corpo dá.
Dá-lhe a arte pura de saber dizer.
É em união perfeita que os dois se entendem.
Têm a sabedoria inata de saber sorrir.
Só a lei da morte os pode separar.
Que ela venha tarde...

Berlim, 16 de Outubro de 2018
10h46m
Jlmg

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Estado de alma

Não é sempre a mesma a cor do mar.
As núvens do céu não param de mudar.
Seus tons e suas formas.
O sol e o vento as molda como quer.
Cada dia nasce e é de sua maneira.
Todos temos nossas formas de adormecer e de dormir.
O chorar e o sorrir é ao corpo que compete mas vem da alma a hora de os sentir.
Cada voz tem o seu tom.
Tem cor e não tem pele
E mais nenhuma é igual.
Ninguém escolhe onde nascer
Nem a hora de morrer.
O sabor da vida só depende do estado de alma...

ouvindo HAUSER - Vocalise (Rachmaninov)
Berlim, 14 de Outubro de 2018
8h51m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de14 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19101: Blogpoesia (589): "Com um ponteiro de lousa...", "É amarelo o Outono" e "Pardo e negro", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

sábado, 20 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19123: Memórias de Gabú (José Saúde) (72): Jau, o nosso guia (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

Gabu em memórias 
Jau, o nosso guia 

Era de etnia fula. Sorriso rasgado, afável, extremo companheiro em todos os momentos em que a guerra impunha a ordem, o Jau, o nosso guia, estava sempre disponível para nos orientar pelo interior de um matagal excessivamente intenso onde o capim e os trilhos estreitavam, sendo que o sol quase não penetrava em ramagens superiores rotuladas como freneticamente extensas. 

As memórias que guardo dos escaparates da guerra são de facto imensas. Gabu, tal como as outras regiões, fora chão palmilhado por camaradas que para ali foram drasticamente atirados. Aliás, estas pequenas histórias avulsas que amiúde descrevo fazem integralmente parte da vida de um qualquer enigmático e mui respeitoso camarada que pisou o solo guineense. 

O horizonte, sempre bélico e carregado de expectativa, escondia ao entardecer mais uma noite de intensos pesadelos. Ou, mais uma noitada onde a missão imposta passava pelo montar de uma emboscada. Depois, lá vinha a luta titânica travada no breu e ao largo de um tempo, quiçá infindável, em que as insónias se assumiam como mais fortes em corpos de jovens soldados impossibilitados do calor afetuoso dos seus carinhosos lares. 

Os irrequietos mosquitos, emitindo zumbidos ensurdecedores, davam a volta à cabeça do mais tranquilo camarada. Na época das chuvas as trovoadas pareciam quebrar a linha de um céu onde a noite parecia fazer-se dia. Tal a sonoridade dos temíveis trovões e sobretudo o lampejar da intensidade de raios sucessivos que se abatiam sobre as nossas cabeças. 

Estávamos em África. Solo pátrio do meu camarada Jau. De quando em vez lá me ia soletrando algumas palavras que visavam, creio eu, tranquilizar-me uma vez que o entoar estridente da “filarmónica” não dava folgas. Abrigávamo-nos enrolados em ponches que minimamente nos protegiam das chuvadas. Ele, conhecedor acérrimo de uma realidade que lhe era comum, lá se desfazia em cultos de gáudio. 

O Jau era um homem feito com as vicissitudes da guerrilha. Conhecia os meandros de um conflito virado literalmente para a luta guerreira e onde os ocultos rostos do inimigo causavam estragos. Muito “viajámos” pelo interior das tabancas de Gabu as quais congregavam gentes simples e crianças desprotegidas que encarecidamente reclamavam apenas a paz. 

À memória ocorre-me um interminável número de casos que fizeram parte do nosso quotidiano convívio. Recordo, por exemplo, quando o tempo era de Ramadão. O Jau, fiel aos seus princípios éticos, pedia-me para descansarmos porque o momento requeria a sentimental reza. Respeitava. Virado alegadamente para Meca, lá imaginava a linha do horizonte que o transportava à Terra Santa, orava e a sua alma sentia-se mais leve. 

Quando o jejum impunha rigorosas obrigações, recusava a ração de combate e passava todo o dia a mascar cola. A cola era uma pequena semente de uma planta que se destinava a não sentir a necessidade de uma refeição. Alimentava-se durante a noite, ou seja, após o pôr do sol e antes deste iluminar a ancestralidade da terra. 

Numa sintética abordagem ao conteúdo genérico do respetivo fruto – noz de cola –, sabe-se que este não representando abundância, tinha sim, por outro lado, o condão em condensar uma dimensão social nas sociedades sediadas na costa ocidental de África. 

Especificando o êxtase que o mascar da cola causa (va) no indivíduo, admite-se que o seu estado anímico se torna transcendente, sendo o espaço e o tempo uma espécie de reunião entre o céu e a terra. 

Eis, talvez, o significado primordial que levava o Jau, tal como a plebe, em ocasiões propícias, a mascar o lascivo fruto. Tanto mais que ele, o fruto, sintetizava imagens de mundos sagrados e profanos onde não faltava também o universo oculto que o mesmo envolve. 

A talho de foice, lembro, ainda, um contacto com o IN em que atrevi levantar-me e, numa estonteante correria, procurar granadas do morteiro 60, visando a sua utilização imediata dado que as vozes dos guerrilheiros soavam por perto e o Jau, sabendo a dimensão do perigo, gritava-me: “deite-se furriel que isto é perigoso”. 

Hoje, vergado já ao peso da idade, arremato, despretenciosamente, que o Jau foi um grande amigo e companheiro que muito me ensinou, restando lançar agora o oportuno apelo: camarada, fazes ainda parte, ou não, deste cosmos dos mortais? Ou, fostes, mais um, levado na fatídica enxurrada no pós entrega do território ao novo governo do país que te viu nascer?  


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

Guiné 61/74 - P19122: Os nossos seres, saberes e lazeres (289): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (8): Em Pau, com chuva torrencial, à procura de Henrique IV, aqui nascido (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Ai do viajante que não esteja preparado para momentos desconsoladores, desde greves de comboios a chuva inclemente, situações que levam à alteração de planos. Assim aconteceu ao viandante em Pau, viu a cidade e as suas panorâmicas por um canudo, contudo bem se consolou com uma grata memória aos soldados portugueses que morreram em França, e que são chorados, relembrou o filme "A Rainha Margot", de Patrice Chéreau com a interpretação fabulosa de Isabelle Adjani, muitos dos exteriores do filme foram filmados no Convento de Mafra, para que conste e o castelo onde nasceu Henrique Navarra é uma pérola preciosa do estilo Renascentista.
A chuva não para o viandante e ele amanhã regressa a Toulouse, para uma tocante despedida.

Um abraço do
Mário


Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (8): 
Em Pau, com chuva torrencial, à procura de Henrique IV, aqui nascido

Beja Santos

O que leva o viandante a Pau? Há duas razões de sobra. A primeira tem a ver com as três estrelas de Michelin ao Boulevard des Pyrénées, um vasto terraço que permite desfrutar em dias claros o assombroso panorama que vai do Pic do Midi de Bigorre ao Pic d’Anie, isto para já não falar de nesta varanda se poder igualmente contemplar o gave de Pau, que corre os baixos da cidade, quem a fundou teve a feliz intuição de posicionar a capital do Béarn num ponto que assegura panoramas incontornáveis. A segunda tem a ver com Henrique de Navarra que desde os anos de estudo o viandante esquecera, este Henrique de Navarra nasceu e foi educado aqui, rei protestante, convencionou-se o seu casamento com Margarida de Valois, trama muito trágica que Alexandre Dumas aproveitou para o seu romance “A Rainha Margot” e Patrice Chéreau realizou uma película soberba com Isabelle Adjani na protagonista. Tudo somado, antes de regressar a Toulouse, o viandante quis cuscar a beleza natural e o património desta antiga capital do Béarn, região depois anexada à França.




Tudo correu às avessas, o viandante chega com chuva torrencial, não há transportes, e nisto deu a pensar numa velha imagem de Pau com as suas águas calmas e luzidias e veio cá fora junto de uma eclusa ver passar as águas do gave de Pau em turbilhão e pensou para os seus botões: Nunca te fies com as aparências de uma só imagem, há sempre verso e reverso, toma lá que é para aprenderes.


Vista panorâmica do Pic du Midi de Bigorre ao Pic d’Arie, Pau.

Outra vista panorâmica tirada do Boulevard des Pyrénées, Pau. 

Veja-se uma velha imagem do Boulevard des Pyrénées, atenda-se que o viandante anda com o guia Michelin, onde até se lê que nas montanhas crescem e pastoreiam os rebanhos que dão o leite que depois vai para Roquefort, o queijinho que ele tanto aprecia. Antes de partir, andou a ver imagens na Wikipedia sobre o desfrute panorâmico do Boulevard des Pyrénées, como é que era possível não vir? Uma treta, cai uma cortina de chuva, irritante, está tudo nublado… Nem tudo está perdido, passeia-se na proximidade e é nisto que vem uma rematada surpresa.




O monumento aos que caíram pela Pátria é imponente, ergue-se diante do Boulevard des Pyrénées. Quando o viandante se aproxima tem a suprema alegria de ver os seus compatriotas homenageados: Aos soldados portugueses mortos pela França, sereis chorados. E o viandante faz continência e fica igualmente tocado com a lápide aos republicanos espanhóis que procuraram defender a França, a sua pátria de exílio, foram mortos duas vezes, mas saúda-se a sua suprema coragem.





Não vamos aborrecer o leitor com a história do Béarn, a Navarra do Sul dada à Espanha, nem vamos falar de Margarida d’Angoulême, irmã de Francisco I, trouxe o Renascimento para o castelo e as ideias da Reforma. A sua filha, Jeanne d’Albret, que casou com António de Bourbon e desse casamento nasceu Henrique de Navarra, futuro Henrique IV de França, o senhor do édito de Nantes, que consagrou a tolerância religiosa. Aproveitando uma aberta daquela chuva inclemente, o viandante procurou captar a beleza peculiar de uma residência aristocrática de primeiríssima classe, uma bela construção aprofundada pelo estilo renascentista. E andava nisto quando regressou a chuva, o melhor era fazer horas vagabundeando pelo centro da cidade. E é nisto que fica especado com um curioso cabeleireiro, não resistiu, pediu licença à patroa e fotografou uma atmosfera garrida, não se importaria nada de ver a sua cidade de Lisboa pejada de estabelecimentos como este, um festival de luz e cor. E com tanta chuva à volta, preparou-se para aconchegar o estômago, ler a documentação sobre Toulouse, que amanhã fará presença aqui no blogue, e o tema tem a ver com Património da Humanidade.


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19097: Os nossos seres, saberes e lazeres (288): Primeiro, Toulouse, a cidade do tijolo, depois Albi (7): De Lourdes a Gavarnie, um grande ecrã dos Pirenéus (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19121: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - XL (e última) Parte: Canal do Suez, Roma e regresso ... "A vida é o que fazemos dela, / As viagens são os viajantes. / O que vemos não é o que vemos / Senão o que somos" (Bernardo Soares / Fernando Pessoa)



Foto nº 4


Foto nº 3


Foto nº 5


Foto nº 1


Foto nº  2


Foto nº  6


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1.  Úlltimas duas rrónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias" [3 meses e oito dias], do nosso camarada António Graça de Abreu.

Escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 220 referências, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais.

[Foto à direita: Hai Yuan e António Graça de Abreu]



2. Sinopse da série "Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias" (*)

(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016; [não sabemos quanto despenderam, mas o "barco do amor" deve-lhes cobrado uma nota preta: c. 40 mil euros, no mínimo, estimamos nós];

(ii) três semanas depois de o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);

(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017); no dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano; navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;

(iv) um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) seguem-se depois as ilhas Tonga; visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016; volta pela Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016);

(vi) o navio "Costa Luminosa" chega, pela manhã de 29/10/2016, à cidade de Melbourne, Austrália; visita à Austrália Ocidental, enquanto o navio segue depois para Singapura; o Graça de Abreu e a esposa alugam um carro e percorrem grande parte da costa seguindo depois em 8 de novembro, de avião para Singapura, e voltando a "apanhar" o seu barco do amor...

(vii) de 8 a 10 de novembro. o casal está de visita a Singapura, seguindo depois o cruzeiro para Kuala Lumpur, Malásia (11 de novembro); Phuket, Tailândia (12-13 de novembro); Colombo, capital do Sri Lanka ou Ceilão ou Trapobana (segundo os "Lusíadas", de Luís de Camões. I, 1), em 15-16 de novembro. de 2016;

(viii) na III (e última) parte da viagem, Graça de Abreu e a esposa estão, a 17 de novembro de 2016, em Cochim, na Índia, e descobrem a cada passo vestígios da presença portuguesa; a 18, estão em Goa, seguindo depois para Bombaím (20 e 21 de novembro de 2016);

(ix) com 2 meses e 20 dias, depois da Índia, os nossos viajantes estão no Dubai, Emiratos Árabes Unidos, passando por Muscat, e Salah, dois sultanatos de Omã, em datas que já não podemos precisar (, as fotos deixam de ter data e hora...), de qualquer modo já estamos em finais de novembro/ princípios de em dezembro de 2016;

(x) tempo ainda para visitar Petra, na Jordânia, e atravessar os 170 km do canal do Suez (Egito), antes de o "Costa Luminosa" entrar no Mediterrâneo; a viagem irá terminar em Civitavecchia, porto de Roma, antes da chegada do novo ano, 2017.


3. Fim da Viagem de volta ao mundo em 100 dias > Canal do Suezs e Roma > s/d, c. final de dezembro de 2016] (pp. 25-29], da terceira e última Parte, que nos foi enviada em formato pdf]


Canal do Suez, Egipto

Desde Aqaba, o navio enviesou e caiu no mar Vermelho, na imparável subida para o Mediterrâneo e a Europa. Passamos ao lado de Sharm-el-Sheik, situada a estibordo, navegamos junto a Hurghada, escondida a bombordo, lugares de excepção no Egipto turístico agora afectados pelo terrorismo que lhes despovoa as centenas de hotéis onde se alojavam aos milhares as gentes vindas de múltiplas paragens da Europa, em busca do sol, das águas tépidas do mar, da história do Egipto, dos faraós e dos árabes. [Foto nº 1]

Chegado à noite à cidade de Suez para a travessia do Canal, o Costa estaciona atrás de um cruzador norte-americano que, creio, regressa aos States após missão no Golfo Pérsico. Assim que raiar a manhã, avançaremos num comboio de navios durante os 168 quilómetros de águas do Canal do Suez. [Foto nº 2]

O dia começa com nevoeiro, os horizontes estão curtos, envoltos na bruma. Aí vamos no início da travessia que durará até às três da tarde. A névoa levanta e temos este extraordinário Canal para ver e cruzar. Com muito trânsito de navios, em ambas as margens há filas e filas de camiões, e automóveis egípcios, que esperam que a navegação dos grandes barcos diminua para, em pequenos ferries, poderem passar de um lado para o outro do canal.

O Costa segue viagem lentamente como que tacteando as águas. Avançamos de sul para norte e, na margem direita, espraiam-se quase só terras desérticas, num perder de vista por pequenos montes e areais imensos. A margem esquerda foi mais bafejada pela sorte. As águas do rio Nilo, que corre quase paralelo ao Canal, a uns oitenta quilómetros de distância, a poente, foram domadas, encaminhadas e trazidas até estes lugares. Em vários troços são visíveis grandes extensões de terreno verde e fértil. Aqui o camponês, o felah, abre canais de irrigação, trabalha a terra, conta com as águas sagradas do Nilo. E há trigo e legumes, várzeas e pomares, e é necessário dar de comer a milhões e milhões de pessoas. O Egipto tem hoje 83 milhões de habitantes para alimentar, e um vasto território quase todo desértico.  [Foto nº 3]

Impressionante é a segurança montada em ambos os lados do Canal. Ao longo de todas as duas correntezas das margen -- quase 170 quilómetros vezes dois --, foi construído um muro aí com 5 metros de altura, que separa e delimita o curso das águas, com guaritas, soldados e pequenos destacamentos militares. Tudo activo e vigilante diante da quase permanente passagem de navios. Imaginem o que seria um enorme petroleiro ou um navio de cruzeiros como o nosso, ser atacado e incendiado por radicais islâmicos, a partir das margens do Canal do Suez!

Estamos a chegar a Port Said, a cidade junto à saída para o Mediterrâneo, burgo fundamental que nasceu e cresceu quando da construção do Canal. Quem por aqui andou, em Novembro de 1869, foi o nosso Eça de Queirós, então com apenas 24 anos, que escreveu para o Diário de Notícias quatro extensas crónicas publicadas em Janeiro de 1870 sobre as “festas” de inauguração do Canal do Suez. Considerou os seus textos “uma narração trivial, um relatório chato” e fala assim da cidade:

“Por uma bela manhã, entrámos em Port Said por entre os dois grandes molhes que se adiantam paralelamente pelo mar, feitos de poderosos blocos de pedra solta. Port Said é uma cidade de indústria e de operários: isto dá-lhe uma especialidade de fisionomia: estaleiros, forjas, serralharias, armazéns de materiais, aparelhos destilatórios. (…) nem edifícios, nem monumentos, nem construções sólidas e sérias: tudo é ligeiro, barato, provisório. A igreja católica é como uma grande barraca: vê-se o céu azul através do seu tecto feito de grandes traves mal unidas. Tudo isto dá a Port Said um aspecto triste.”

Não desembarcámos em Port Said, passámos ao lado do porto e da baía, mas deu para ver que, cento e cinquenta anos após a visita de Eça de Queirós, a cidade cresceu exponencialmente, hoje tem 600 mil habitantes contra os 12 mil existentes na altura da viagem do autor de A Relíquia. 

Em breve, depois de entrar na noite dos séculos, cá regressarei para tomar um chá de menta com o nosso Eça de Queirós, para falarmos do Egipto, dos atribulados tempos actuais e para conversarmos longamente sobre uma das nossas grandes paixões, a China e os Chineses. Não foi Eça quem escreveu no capítulo XVIII de Os Maias: “Os anos vão passando (…) E com os anos, a não ser a China, tudo na terra passa.”


Roma, Itália

Aí está a nossa Europa!

O estreito de Messina, com a ponta da bota da Itália calabresa a dar o pontapé na Sicília e nós a navegar entre.


Mais duas horas ao sabor da ondulação e passamos mesmo ao lado do vulcão Stromboli, um cone perfeitinho a sair do mar e, do lado norte, o fumo permanente das erupções. A ilha e o vulcão, em 1949, foram cenário de filme “Stromboli terra di Dio”, com a Ingrid Bergman, realizado por Roberto Rossellini, então marido da diva sueca. [Foto nº 4]

Chegada a Civitavecchia, porto de Roma. Viagem de uma hora até à “cidade eterna”, por uma auto-estrada a ondular pelos campos do velho Lácio. Chego, saúdo Rómulo e Remo, e não esqueço a mãe loba, estou no coração da Roma dos santos papas, de Júlio César e Constantino, de gentes como Sofia Loren e Federico Fellini. Revisitar Roma, a basílica de São Pedro, a excelência perfeita da Pietá do Miguel Ângelo, logo à entrada, à direita, o esplendor na imensa nave da maior igreja do globo. [Foto nº 5]

Como das outras visitas, não vi o Papa, mas deambular ao acaso por Roma após uma volta ao mundo, após tanto mar e infindáveis terras, tudo criado pelo engenho de Deus e alguma loucura dos homens, concede-nos a excelência de sermos criaturas inventadas pelos deuses, de sermos os homens que ergueram maravilhas como São Pedro, o Museu do Vaticano, com bem menor dimensão, a nossa igreja de Santo António dos Portugueses.[Foto nº 6]

Roma é uma cidade que levo, há muitos anos, suspensa nas pregas do coração, onde regressarei, de certeza, logo no início de uma próxima reencarnação.

Amanhã o Costa conclui a jornada de volta ao mundo, segue de Civitavecchia para Savona, pedaços de mar Mediterrâneo que conhece de cór. Depois, um avião para Lisboa e regressaremos a casa, ao dulcíssimo lar. Foram três meses e oito dias de viagem por oceanos infindos, terras de todos os assombros e magias. Começo a ter saudades da ditosa pátria, do conforto da minha casa, de respirar Portugal.

Recordo palavras de Bernardo Soares, aliás Fernando Pessoa:

A vida é o que fazemos dela,
As viagens são os viajantes.
O que vemos não é o que vemos
Senão o que somos.

António Graça de Abreu

FIM

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Guiné 61/74 - P19120: (De)Caras (121): O ex-padre italiano LIno Bicari foi meu professor em Bafatá, depois da independência, e casou com uma prima minha, Francisca Ulé Baldé, filha do antigo régulo de Sancorlã, Sambel Koio Baldé, fuzilado pelo PAIGC (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné-Bissau > s/l >  s/d (c. 1983) > À esquerda, Lino Bicari; à direita, Amilcare Giudici (1941-2008). Foto reproduzida com a devida vénia... Fonte: blogue dos amigos do ex-padre, do PIME,  Amilcare Giudici (1941-2008), teólogo e escritor, defensor das comunidades de base e de uma igreja sem padres para o 3º milénio.


1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P19116 (*)

[Foto à esquerda: o nosso colaborador permanente, Cherno Baldé, especialista em questões etnolinguísticas da Guiné-Bissau; tem mais de 170 referências no nosso blogue]


Caros amigos,
Cherno Baldé (n. circa 1960)
estudante universitário em Kiev,
em 1989.   É membro
da nossa Tabanca Grande
desde junho de 2009 (**)

Fui estudante do Ciclo Preparatorio e do Liceu Hoji-Ya-Henda em Bafatá, de 1975 a 1979, onde Lino Bicari, um ex-padre Italiano filiado no partido "libertador", era muito conhecido e estimado. 

Mais tarde, viria a conhecer e casar-se com uma das filhas do antigo régulo de Sancorlã (Sambel Koio Baldé) e minha prima, de nome Francisca Ulé Baldé. 

O Sambel Coio Baldé foi fuzilado pelos esbirros do PAIGC em Bambadinca,  após a independência, destino que teriam mais 4 ou 5 dos seus irmãos, todos eles príncipes de Sancorlã e ex-chefes de milicias do lado português e em defesa do seu chão sagrado. 

O ex-padre Lino é que foi o defensor da tese segundo a qual  a mãe verdadeira de Amílcar Cabral era uma mulher fula do Geba com laços de parentesco com a familia régia de Ganadu (a familia do famoso rei M'bucu ou Umbucu do tempo do tenente Marques Geraldes de Geba). 

Actualmente, vivem em Portugal, mas desconheço se continuam ou não juntos.

Sobre a questão dos Balantas / Brassa:

Segundo as fontes orais a que tivemos acesso, o termo ou etnónimo Brassa vem do termo mandinga Birassu, Brassu, Buraçu ou Braçu,  conforme as fontes em Mandinga ou Fula, Portugués ou Francés, que era a provincia ocidental do reino mandinga de Gabu (ou Kaabu) e que viria a tomar várias formas nas diferentes línguas dos povos que ai viviam antes e após o fim do imperio, na sua grande maioria mandingas, fulas, balantas, djolas, etc.

Assim, toda a zona norte da Guiné e parte da regiao de Casamança, no Senegal, se encontravam dentro desta antiga provincia, com epicentro no corredor de Farim/Mansoa que seria a capital provincial e, donde os Brassas/Balantas sairam para depois se expandirem mais ao sul do pais, até as regioes de Quinara e Tombali.

Partindo deste ponto de vista analitico, na Guiné, os Balantas não seriam os unicos "Birassu" ou "Brassa", pois também entre os fulas existem grupos, pouco conhecidos ou estudados, mas que seriam desta origem histórica, os chamados fulas Birassunka Braçunka (em mandinga: Fulas de Biraçu), com especificidades próprias da língua e cultura ainda hoje existentes, alias muito parecidas com as dos seus históricos vizinhos mandingas e balantas do norte.

Em resumo, quando um Balanta ou Djola ou Fula se identifica a si mesmo como "Brassa" ou "Birassu", isto queria dizer que se identificava com as suas raízes ou origens geográficas, em estreita ligação ao território/reino com o qual, para todos os efeitos, se identifica em relação aos outros. 

Não esquecer que em Africa, os processos de formação das identidades com base em determinados territórios ou estados nação,  iniciados no periodo pré-colonial, foram interrompidos e violentamente substituidos por relações comerciais e outras,  baseadas no tráfico de armas e de seres humanos impostas de fora para dentro ou vice-versa, e que nenhum povo africano, para poder sobreviver, podia ignorar ou dispensar em entre meados do séc. XV e fins do séc. XIX.

Cherno Baldé

19 de outubro de 2018 às 11:55
 
2. Comentários dos leitores:

(i) Antº Rosinha:

O professor Cherno Baldé já nos ensinou mais coisas,  em meia dúzia de comentários, do que aprendemos em 24 meses de comissão na "guerra do Ultramar".

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

É verdade, Rosinha, é sempre com grande prazer, curiosidade, apreço e respeito que lemos os postes e os comentários do nosso professor Cherno Baldé.

Chermo, o Mundo de facto é Pequeno e a nossa Tabanca é... Grande! Não conheço o Lino Bicari mas gostaria ainda de o encontrar em Lisboa... Espero que esteja bem de saúde, com os seus 80 e picos anos. Nos anos 90, em Portugal, esteve ligado à ONGD Oikos. Vejo-o citado como profundo conhecedor da realidade educativa da Guiné-Bissau. 

Gostaria que ele nos pudesse ler, ficando a saber que tem aqui, entre os colaboradores permanentes do nosso blogue, um seu aluno, do tempo do liceu de Bafatá. da segunda metade da década de 1970, e primo da Francisca Ulé Baldé, o hoje dr. Cherno Baldé, um filho da Guiné, quadro superior, que optou, corajosamente, por viver e trabalhar na sua terra.

Prometo ao Cherno que vou tentar descobrir o seu paradeiro (***). 

Mantenhas para o meu irmãozinho Cherno Baldé.

Luís Graça

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(**) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

Guiné 61/74 - P19119: Parabéns a você (1515): Fernando Súcio, ex-Soldado Condutor do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74) e Rogério Cardoso, ex-Fur Mil Art da CART 643 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19114: Parabéns a você (1514): Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 3460 (Guiné, 1971/73)

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19118: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (6): Virgílio Teixeira (ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


Virgílio Teixeira, aspirante a oficial miliciano, com a especialidade de SAM - Serviço de Administração Militar. Foto para o BI militar. Junho de 1967.


Foto (e legenda): © Diniz Souza e Faro (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentário ao poste P19106 (*):

Autor: Virgílio Teixeira (*), ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, set 1967/ ago 69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já cerca de de 90 referências no nosso blogue.

Há casos e casos, e lá vem o meu caso.
Não era rico, nem mais ou menos. Não era filho de General nem de Coronel. 200 contos [, na época,] era uma visão de uma estrela.

E mesmo assim, vou parar a uma coisa que alguns gostam de chamar de 'escritório' no meio do mato. 

Alguém tem de fazer esta função. Quem?  Aqueles que estão habilitados, se alguém tinha de saber alguma coisa e aplicá-la era no SAM - Serviço de Administração Militar.

Porque me calhou a mim? Na especialidade fui um zero, porque não ligava àquilo. Foram as provas físicas e militares, de tiro e aplicação militar que me deram as maiores notas, e assim puder passar o curso do COM [, Curso de Oficiais Milicianos].(**)

Mas tínhamos os psicotécnicos, faziam-se testes, tinha-se o curriculum. E o meu estava acima de qualquer suspeita. Já tinha 12 anos de trabalho em cima, com contribuições para a Segurança Social, a Caixa de Previdência, que muitos nem sabem o que isso é.

Passei pela Escola Comercial, passei pelo Instituto Comercial, estava na Faculdade de Economia [do Porto], que mais era preciso para ir para a minha especialidade?

Podem ser todos burros na tropa, mas não iam desperdiçar um 'quadro' já formado cá fora e mandá-lo para "infante" ou coisa melhor. 


Depois foi coisa de aprendizagem e para quem já tem as bases, não custa nada.

Um menino, vindo do Liceu, muito dificilmente agarrava esta especialidade, era assim tratada tipo elite, não tenho vergonha de o dizer, só tinha uma pessoa a mandar em mim, o meu Chefe, nem o comandante do batalhão me dava ordens.

Agora há outras coisas facilmente explicáveis, e isso já está atrás proferido nas insinuações e bem feitas. O meu Tesoureiro, por exemplo, fazia parelha comigo no CA ], Conselho de Administração], a função dele era ir uma vez por mês a Bissau levantar o p
atacão e distribuir pelas Companhias, nada mais. Trabalhamos dois anos e nas assinaturas nunca notei a designação dele. Eu assinava Virgilio Teixeira e por baixo, Alf Mil do SAM.

Esse cara, de que falei agora, vi nuns documentos passado quase 50 anos, que ele assinava 'Alferes Miliciano de Infantaria'. Fiquei pasmado. Consegui o email dele na Ordem dos Advogados, e perguntei-lhe assim directamente: "Como é que um alferes de infantaria vai para Tesoureiro do Batalhão?"

Ainda aguardo a resposta, e já lá vão uns 3 anos.

Mas ir parar à Guiné já é um grande castigo de Deus, e todos nós, de uma forma ou outra, levamos no pelo por causa disso.
Ainda tenho uma 'micose' qualquer aqui no pé, que trouxe da Guiné, dei por ela em 1969 antes de embarcar, devia ter feito o mesmo tratamento que tinha feito a outra, com tintura de iodo, mas não fiz e cá está. 

Uma lembrança da Guiné, com amor.(***)

Virgilio Teixeira
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(**) Vd. postes de:

2 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18704: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXXIII: Como se faz um alferes miliciano do Serviço de Administração Militar (I)

6 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18715: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXXIV: Como se faz um alferes miliciano do Serviço de Administração Militar (II)

Guiné 61/74 - P19117: Notas de leitura (1112): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56) (Mário Beja Santos)

Ruína da antiga filial do BNU e Hotel Turismo

Fotografia de Francisco Nogueira, inserida no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições tinta-da-china, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2018:

Queridos amigos,
Tenho para mim que este acervo documental referente ao BNU da Guiné, constante do Arquivo Histórico, onde procedo ao possível levantamento do que pode ser tido como relevante das linhas gerais do processo socioeconómico, político e cultural, permitirá doravante aos investigadores um indispensável olhar sobre o funcionamento económico e financeiro da colónia, a mentalidade dos administradores, os marcos das mudanças, os sinais do desenvolvimento.
Os gerentes, como aqui aparece sublinhado por uma observação do administrador em Lisboa responsável pelo pelouro da Guiné, tinha o estrito dever de relatar as ocorrências pelo seu modo de ver, o governo do Banco precisava de ter informações em primeira mão. É o lado fascinante deste acervo, é o que escapa aos jornais e às briosas tiradas governamentais, pois claro.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (56)

Beja Santos

No acervo documental avulso existente no Arquivo Histórico do BNU não há qualquer referência a 1948, em 1949 aparecem dois documentos que se podem revelar úteis. O primeiro relaciona-se com a situação da praça, presume-se que esteja assinado por Virgolino Pimenta, é dirigido ao governador do BNU em 23 de fevereiro, dele extraímos elementos com inegável expressão:
“Tem sido exagerado o movimento de letras protestadas, vindas do exterior.
São dois os factores a contribuir para tal.
O primeiro resulta de que, antigamente, só poucas firmas importavam e vendiam depois, ao pequeno comércio. De há tempo a esta parte, todo o comerciante, grande ou pequeno, se arvorou em importador.
O segundo, talvez o pior, é que as firmas vendedoras, da Metrópole, ou por falta de compradores ou por outra qualquer razão, põem a vender na Guiné, a torto e a direito, parecendo nem olhar à dimensão da cidade ou à garantia dos compradores. Assim, os de cá compraram em demasia e os de lá venderam com enorme exagero. Entre todos, excedeu-se imenso a firma dessa praça Coelho e Castro & Alves, cujas vendas para esta colónia foram a uns quinze mil contos, senão mais, no ano passado.
O volume dos negócios, na colónia, ficou aquém do volume das importações. O resultado foi o comércio estar abarrotado de mercadorias mas, não as vendendo com a desejada pressa, não realizou os fundos para pagar os seus encargos.
Chovem os protestos; as prorrogações; as conversões das letras em livranças, que outra coisa não representa senão delongas nos prazos de pagamento, etc. É justo dizer-se que, salvo pequenas excepções, todos procuram pagar.”

E conclui que a colónia está saturada de mercadorias, impõe-se, para segurança do Banco, reduzir na Metrópole o desconto de letras sob a Guiné. Aliás, observa igualmente o gerente, o Banco deve evitar encargos em novas e grandes remessas de mercadorias por uma razão essencialmente logística:
“A Alfândega não tem armazéns. Já estão em plena rua milhares de contos de fazendas que os que as encomendaram não levantam. As chuvas vêm em Maio e parte destas e de outras que vierem ficarão expostas à chuva e daí resultarão prejuízos que não vale a pena salientar”.

E passa a expor o que se passa com os negócios no tempo presente:
“Decorre a campanha da mancarra com relativa calma. O comércio exportador combina os preços de compra, tendo assegurado o preço de venda, na Metrópole. Bom sistema, que terminou a louca concorrência antiga. No entanto, os processos passados deram lugar a desconfianças presentes e os exportadores, para firmarem a sua honestidade de processos, tomaram entre si o compromisso de pagarem uma multa de cem contos, se algum for apanhado em desrespeito do que foi ajustado. Escolheram o gerente do Banco para depositário de cinco cheques de cem contos cada que constituem a garantia. Tem havido respeito pelos preços. Mas o que se não sabe – ou antes, se diz que se não sabe – é que pode haver alguns que, de facto não desrespeitem esses preços mas em conluio com vendedores podem oferecer facilidades de transporte, de pagamentos, etc., que vão, no fim, causar melhor preço.
Não se deve esquecer que isto aqui, nessa matéria é a Guiné. A Société Commerciale Africaine nem quis entrar em acordo de preços e entrou a comprar a mancarra por preço elevadíssimo, indo oferecer mais dinheiro aos clientes das outras casas. Isto produziu uma perturbação tremenda. O comerciante pequeno, vende uma casa a comprar tão caro, entendeu que as outras tinham que ir para aquele preço. E retraiu-se. Os que venderam aquela casa mais caro puderam comprar mais caro que os outros compradores pagavam ao indígena. E o indígena, passou a exigir de todos aquele mais alto preço e, como o não obtinha, não vendia a mancarra. Foi um alarme enorme e uma paralisação geral de negócios. Felizmente que aquela casa estrangeira não tinha recursos de armazéns e embarcações para um grande volume de compra da mancarra, pelo que parou a sua estranha e condenável atitude logo que comprou o que queria.

Quanto à campanha do arroz, decorre naturalmente, tendo-se chegado a um bom acordo quanto a preços e quanto a tabelas relativas ao preço do arroz a vender pelos industriais de descasque.

Para terminar, uma referência à existência de moeda estranha, na colónia.
Há cerca de 4 meses, pelas informações que procurámos, existiam uns 50 milhões de francos senegaleses na Guiné. A maior parte em mãos de comerciantes libaneses das regiões fronteiriças, sobretudo dos lados de Bafatá e Gabú. Tirando couros do Senegal, nada nos vem senão ouro em pó, trazido por indígenas de lá.
Rarearam as vindas desse ouro, devido a qualquer medida das autoridades francesas e os possuidores de francos estavam em grave embaraço. Porém, de há três meses a esta parte, tornou a aparecer o ouro”.

E dá conta minuciosamente dos valores de troca, terminando a sua exposição sobre a citação da praça nos seguintes termos:
“O indígena do Senegal, onde tudo falta, traz ouro e leva fazendas que deixaram lucro na Alfândega. Talvez seja esta uma razão por que nenhuma autoridade combate tal modo de negociar. Terminando, apraz-nos fazer uma referência à Sociedade Comercial Ultramarina. Está fazendo óptimo negócio dentro da máxima prudência. Os lucros de 1947 foram bons. Os de 1948 já se podem anunciar, serão melhores. Os do ano corrente, pelo que já se esboça e pelo que já se apurou, vão, talvez, duplicar”.

O segundo documento tem a ver com o relatório de entrega da gerência da filial de Bissau por Virgolino Pimenta ao novo gerente, Clarence Abílio do Quental Mendes, estamos em 15 de agosto de 1949. A prosa, incontestavelmente, saiu do punho de Virgolino Pimenta:
“Quase sem excepção, e contrariando o hábito antigo, raro é o comerciante da colónia que não se arvorou em importador directo, mesmo sem posses para se manter em tal posição. O pequeno comerciante, regra geral, tem pouco ou nenhum capital. Estabeleceu-se, auxiliado pelas casas maiores que lhe forneceram fazendas a crédito, geralmente, obrigando-se a pagar com produtos da agricultura.
Na altura da intensificação das chamadas campanhas dos produtos, tal ajuda foi ampliada com dinheiro. Assim, estava estabelecido um roulement de auxílio de fazendas e dinheiro de contra produtos.
Tudo corria dentro de uma normalidade só alterada quando a moral do beneficiado falhava ou uma má administração de negócios a perturbava.
Como consequência imediata da última guerra, este sistema modificou-se. O pequeno comerciante, não repudiou os auxílios atrás referidos e entrou a importar directamente. Era encargo superior às suas forças o obrigar-se a pagamentos, em prazos certos, das letras relativas às importações que fazia. As suas dívidas ao comércio maior tinham prazos de arrumação. Mas havia sempre transigências.
Protelavam-se liquidações, por vezes, de um ano para o outro mas essas demoras, por assim dizer, não apareciam à vista.
Não assim quanto às liquidações das suas importações directas porque, vencidas e não pagas as letras relativas, surgiam as más posições, avolumando-se o protesto. Apareceu a situação que está trazendo a nu os maus pagadores. Mas o procedimento descrito não trouxe só má posição aos pequenos. Trouxe-a aos maiores também. Entre eles: A. V. d’Oliveira & Cª., Aly Souleiman & Cª., António Romenos Dieb, António da Silva Gouveia, Lda., Barbosas & Ctª., Compagnie Française de l’Afrique Occidentale, Luiz António de Oliveira, Mário Lima, Nouvelle Société Commerciale Africaine, Nunes & Irmão, Sociedade Comercial Ultramarina e Société Commerciale de l’Ouest Africain. Todos eles faziam as suas importações contando com as necessidades próprias e as daqueles de quem eram, praticamente, fornecedores.
Tirando a Sociedade Comercial Ultramarina, que se abastece com precaução, não acumulando grandes stocks de fazendas, todos os outros foram apanhados, por assim dizer, de surpresa pois, chegada a altura de abastecer os seus clientes viram que estes se tinham abastecido directamente, quase todos. Surgiu assim o exagero de stocks de fazendas na colónia.
A colónia inundou-se de fazendas e nesta situação surgiu simultaneamente o abastecimento de fazendas ao Senegal e à Gâmbia, consequência imediata dos benefícios que o chamado Plano Marshall lhes trouxe. Fechou-se assim, quase de repente, a venda das nossas fazendas para aquelas colónias. Ao mesmo tempo, o nosso indígena, cujo poder de compra está muito aumentado devido às altas cotações de produtos, retraiu-se em comprar. As mercadorias não se vendem. As letras relativas deixaram de ser pagas. Os vendedores metropolitanos estão alarmados porque não lhes pagam o que forneceram.
Tudo somado, as casas grandes deixarão de ter dinheiro em caixa e as pequenas muito menos".

E deixa no relatório a situação das notas e de caixa, é um relato muito bem elaborado:
“As notas da Emissão Teixeira Pinto são de qualidade inferior às da antiga ‘Emissão Chamiço’ sobretudo nos tipos de Esc. 20$00 e inferiores, razão porque a sua duração não será tão grande como foi a daquelas. Temos, no entanto, uma reserva apreciável. Mas se o indígena continuar a amealhar é assunto que pode causar apreensões pois não haverá notas que cheguem.
O movimento da caixa tem dois ciclos.
Um começa na altura do fim do ano, quando principia a campanha da mancarra e como esta quase se conjuga com a do arroz os levantamentos atingem proporções consideráveis, aumentando-se a circulação a uma altura que atinge o limite legalmente fixado. Receio que, pelas circunstâncias atrás apontadas, este limite não chegue, na próxima campanha.
O segundo ciclo do movimento de caixa é regulado pelo início da cobrança do imposto indígena.
À medida que vai sendo cobrado, vão sendo feitos os respectivos depósitos pelas autoridades competentes, o que influi bastante na baixa do montante de circulação. Por vezes, convém solicitar que estas entregas sejam feitas sem demora, por dois motivos. Primeiro, o de fazer baixar a circulação e reverter à caixa as notas que nos fazem falta. Segundo, evitar que as administrações guardem avultadas quantias e as tragam de uma só vez pois isso traz graves complicações ao serviço de caixa, cujo tesoureiro levará dias e dias a contar só o dinheiro dessas elevadas entregas e não pode dar expediente ao restante serviço a seu cargo.
É por vezes difícil conseguir-se isto porque é agradável aos funcionários do mato, que trazem o dinheiro, permanecer em Bissau, ganhando ajudas de custo”.

E assim chegamos à década de 1950 que culminará com o chamado massacre do Pidjiquiti, objeto do importante documento enviado em 5 de agosto de 1959 com o título “Acontecimentos anormais”. Vai começar uma documentação preciosíssima de pré-anúncio da luta armada, até 1964 o gerente enviará informações fundamentais que em certos pontos reveem considerações sobre o evoluir dos acontecimentos. Reforça o nosso ponto de vista de que os gerentes do BNU desde longa data têm luz verde para relatar tudo aquilo que pode ir mais longe do que as informações oficiais, quase sempre censuradas.
Veja-se o que em 15 de julho de 1959 o responsável pela administração do BNU envia à gerência em Bissau:
“Vem-se verificando que nem sempre os senhores gerentes têm o cuidado de informar o governo do Banco das ocorrências de certa montra que se dão na área da sua Dependência.
Queremos acreditar que em muito isso é devido à convicção de que o ocorrido não é de maior interesse.
Estamos atravessando uma época de evolução satisfatória mas também de convolução perturbadora pelo que temos de acompanhar de muito perto tudo quanto se passa nas nossas províncias ultramarinas.
Nestes termos, ainda que a um senhor gerente pareça que determinado facto não deve interessar-nos, convém dar-nos dele imediato conhecimento mais ou menos detalhado, enfim, consoante a importância que o ocorrido lhe possa mostrar.”

(Continua)

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.

Receção ao Subsecretário do Ultramar, Raul Ventura, na sua visita à Guiné, na Praça Teixeira Pinto, Bissau

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.
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Notas do editor:

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