terça-feira, 30 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20021: Recortes de imprensa (103): O 10 de Junho de 1970 na Revista Guerrilha, edição do Movimento Nacional Feminino, dirigida por Cecília Supico Pinto (1) (Mário Migueis da Silva)

1. Em mensagem do dia 20 de Julho de 2019, o nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), fala-nos da revista Guerrilha, dirigida e editada por Cecília Supico Pinto.


A revista Guerrilha


Propriedade do Movimento Nacional Feminino, a revista Guerrilha, lançada durante a Guerra do Ultramar/Colonial, não terá tido o sucesso que a sua criadora, diretora e editora, Cecília Supico Pinto (a famosa Cilinha), terá antevisto.

A julgar pelo que pude testemunhar no terreno, a revista esteve longe de atingir os seus objetivos de chegar às centenas de milhar de militares espalhados pelo Império. Na verdade, aquando da minha passagem pela Guiné, fiquei com a ideia de que a revista (edição mensal) era, em número muito reduzido, distribuída pelos comandos das unidades, de onde, na maioria dos casos, nem chegava a sair. Talvez a falta de verba, afetada com a despesa dos milhões de aerogramas mandados imprimir pelo Movimento, e muito bem, para facilitar a vida à correspondência dos nossos soldados e marinheiros com as famílias, namoradas e madrinhas de guerra tenha contribuído para uma divulgação deficiente junto daqueles aos quais se destinava.

Terá sido o que foi, mas tinha uma apresentação cuidada, divertia, levantava o moral e abordava assuntos de interesse para uma tropa, tão carecida de carinhos e estímulos. Pela parte que me toca, só não gostava nada das duas páginas de fotonovela, que achava menos próprias para homens de barba rija (era matéria para Crónicas Femininas, valha-nos Deus).

Para ilustrar um pouco as minhas palavras, seguem-se algumas imagens, recolhidas da publicação de Junho de 1970 (ano em que cheguei à Guiné) e, na sua maioria, alusivas às condecorações no “10 de Junho”, em Lisboa.
Espero que gostem.

Esposende, 19 de Julho de 2019
Mário Migueis


A capa (desfile de tropas durante as cerimónias do "10 de Junho", em Lisboa (1970) 



Ao centro, o Capitão Graduado João Bacar Djaló, Comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, que tive oportunidade de cumprimentar em Fã Mandinga, onde, na altura, estava sediada aquela unidade de elite (participou na “Invasão de Conakry” e numerosíssimas outras operações do mais elevado risco; seria morto em combate pouco tempo depois de ser condecorado com a “Torre e Espada”). 

A segunda figura, da esquerda para a direita é o Capitão-Tenente Alpoim Calvão, cérebro da “Invasão de Conakry”, que cheguei a ver, mas não conheci, nem de perto nem de longe, nos “paços” do “Comando-Chefe”, na Amura. Os restantes elementos da primeira fila, todos eles igualmente condecorados com a “Torre e Espada”, são o Furriel Cherno Sissé (Guiné), e, salvo erro, o Coronel Hélio Felgas e o Tenente Miliciano de Infantaria José Augusto Ribeiro, cuja província/colónia onde prestavam serviço desconheço.



Marcelo Caetano e as tropas em parada 


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Nota do editor

Último poste da série de 19 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19507: Recortes de imprensa (102): "Diário de Notícias", 3/2/1966: o cão da CCAÇ 617. um bravo Boxer, que se bateu como um leão (João Sacôto / José Martins)

Guiné 61/74 - P20020: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (14): "O Reguila"

1. Em mensagem do dia 24 de Julho de 2019, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art, CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) fala-nos do "Reguila", o 1.º Cabo Cordeiro do 3. Pelotão da 2520.


"O Reguila"

Esta é uma pequena história dedicada a um dos elementos do 3.º Pelotão da CART 2520 que me acompanharam nos quartéis e destacamentos por onde eu andei na Guiné, de seu nome completo:
- José Manuel Vitória Cordeiro
-  Posto: 1.º Cabo
- Especialidade: Apontador de morteiro
- "O Reguila" - alcunha adquirida durante a instrução de combate em Torres Novas.

"O Reguila" também viria a ser o seu nome de guerra durante a sua comissão na Guiné. De estatura mediana, mais rijo do que o próprio aço do morteiro 60, que manejava com destreza, colocava uma granada com precisão em qualquer alvo que estivesse à vista.
Não sabia o que era o medo, não voltava a cara à luta e dizia-se preparado para combater em qualquer lugar da Guiné.

Desde sempre integrado no 3.º Grupo de Combate da CART 2520, esteve no Xime e Mansambo durante o treino operacional, Enxalé, João Landim e Biombo.

Para o futebol também tinha alguma habilidade e no Biombo entrava nas peladinhas que habitualmente se disputavam no "relvado" existente mesmo ali em frente do destacamento.
Numa certa tarde a partida de futebol foi disputada com uma equipa do 2.º Pelotão que havia sido convidada para um jogo amigável, a contar para o campeonato do nada. Integrado na equipa visitante vinha o "Boxeur", nome de guerra de um dos elementos do 2.º Pelotão, mas que de pugilista pouco tinha a não ser o seu ar de rufia.

A assistência muito reduzida era composta por vários militares e por alguns nativos que passavam e atiravam um olhar para o "relvado". Por motivos de força maior o encontro não foi transmitido pela televisão, nem sequer teve direito a ser difundido pela rádio.

Como perder era proibido, o encontro foi disputado com garra, o que originou a que a luta pela posse de bola entre o "Reguila" e o "Boxeur" descambasse para alguma violência, até que se envolveram fisicamente. Do jogo de futebol, num ápice passou-se para outra modalidade, a de pugilismo, apesar de não haver ringue de boxe. No frente a frente o "Reguila" puxa a culatra atrás, melhor dizendo, o seu punho esquerdo cerrado e lá vai disto, acertando em cheio no queixo do adversário que com a força do murro, mais forte que coice de cavalo selvagem, foi projectado ao chão. Reagindo, o "Boxeur" agarra as pernas do "Reguila" atirando-o ao solo. Com os dois deitados no relvado, ou melhor no pelado, o "Boxeur" atirou um ou dois murros ao "Reguila", mas sem lhe causar qualquer efeito. Foi nesse momento que o Furriel Nascimento que também gostava de dar uns pontapés no esférico e fazia parte da equipa da casa, mas devido às circunstâncias do momento, feito árbitro, interrompeu a cena de pugilato e também a jogatana de futebol.

O embate entre pelotões terminou empatado com um nulo, mas o mini combate de boxe terminou com "um justo vencedor aos pontos" que neste caso foi ... "O REGUILA".

Para todos os amigos tabanqueiros um grande abraço.
José Nascimento

 O "Reguila" em Santa Margarida. É o primeiro à esquerda.

O "Reguila" no Biombo. É primeiro da direita, de pé.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19847: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (13): ingenuidade ou inexperiência do cap mil Maltez

Guiné 61/74 - P20019: Parabéns a você (1656): Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico do BCAÇ 2930 (Guiné, 1970/72); Jaime Mendes, ex-Soldado At Art da CART 1742 (Guiné, 1967/69); Júlio Costa Abreu, ex-1.º Cabo Comando do Grupo Centuriões (Guiné, 1964/66) e Victor Tavares, ex-1.º Cabo Caçador Paraquedista da CCP 121 (Guiné, 1972/74)




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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19990: Parabéns a você (1655): Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732 (Guiné, 1970/72) e João Santos, ex-Alf Mil Rec Inf do BCAÇ 2852 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20018: Notas de leitura (1203): “Revolução na Guiné”, uma antologia de discursos, conferências, declarações do fundador do PAIGC; edição e tradução de Richard Handyside, 1969 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
É bem agradável sermos surpreendidos por uma oferta de um livro que totalmente desconhecíamos como edição, as publicações mencionadas numa brochura do CESO - Centros de Estudos, Economia e Sociedade, uma relação que se iniciou em 1976 e vem até à atualidade.
Tudo começou com uma viagem de curso do meu amigo José Neto que em Nova Iorque comprou numa livraria de Panteras Negras o livro, e que agora mo ofereceu. Foi um serão cheio de memórias dos tempos em que trabalhamos próximos, depois do 25 de Abril, à saída deu-me este comunicado com data de 13 de Novembro, que espelha os tempos tremendamente difíceis que atravessa a Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário




Textos de Amílcar Cabral numa livraria de Panteras Negras, Harlem, 1972

Beja Santos

Há talvez três anos atrás, andava num passeio matinal numas ruas transversais da Avenida Rio de Janeiro, vejo parar um carro e dele sair o José Neto, que não via há anos. Cumprimentos efusivos e dele vem uma notícia agradável: “Tenho lido o que escreves sobre a Guiné, há uma surpresa para ti, um dia destes telefono-te”. E assim se passaram três anos, até que se acertou na data de um serão para a entrega de surpresas.

E lá fomos seroar na noite de 14 de Novembro. O primeiro presente tinha a ver com a sua viagem de curso, em 1972, à Costa Leste dos Estados Unidos e cidades do Canadá. Em Nova Iorque, meteu-se num autocarro na Broadway e foi até ao Harlem, foi aqui, numa livraria de Panteras Negras que adquiriu “Revolução na Guiné”, edição e tradução de Richard Handyside, 1969. Trata-se de uma antologia de discursos, conferências, declarações do fundador do PAIGC: numa conferência no Cairo, em 1961, caracterizando o colonialismo português e definindo os seus aliados; junto do comité especial das Nações Unidas, em Conacri, 1962, desmontando a nova legislação portuguesa sobre os chamados territórios ultramarinos, revelando as formas de repressão, o número de presos e guineenses mortos pelas tropas portuguesas, salientando as fórmulas de cooperação entre os movimentos de libertação das colónias portuguesas; a declaração de não alinhamento do PAIGC numa conferência no Cairo, em 1964; análise da estrutura social da Guiné, texto muito divulgado sobre o pensamento de Amílcar Cabral, apresentado no Centro Frantz Fanon, Milão, 1964; ponto de situação apresentado numa conferência em Dar-Es-Salaam, em 1965 sobre o trabalho dos movimentos nacionalistas nas colónias portuguesas; algumas das palavras de ordem constantes das diretivas do partido, 1965; estrato da sua célebre comunicação na conferência Tricontinental de Havana, Janeiro de 1966, ficaria conhecida como “a arma da teoria”; a declaração preparada para a OSPAAAL, Dezembro de 1968, contextualizando o desenvolvimento da luta na Guiné-Bissau e suas perspetivas; declarações produzidas em Dakar em Março e Dezembro de 1968, na entrega à Cruz Vermelha de militares portugueses presos pelo PAIGC; exposição sobre problemas práticos e táticas, entrevista para a revista Tricontinental, Setembro de 1968; mensagem para o povo português, declaração na rádio Voz da Liberdade, Cartum, 1969; em direção à vitória final, entrevista concedida durante uma conferência em Cartum, 1969; mensagens de Ano Novo, Janeiro de 1969; em apêndice o programa do PAIGC.

Esta publicação estava associada a uma importante revista da Esquerda norte-americana, a Monthly Review, editada por Paul Sweezy e Harry Magdoff, socialistas independentes.

Nota curiosa: suponho que o guerrilheiro que está à esquerda de Amílcar Cabral é Arafan Mané, muito falado nos últimos tempos no blogue.

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35 anos da história da Guiné-Bissau

O CESO – Centros de Estudos, Economia e Sociedade (ceso.pt), editou em 2015 uma brochura com a relação de todos os projetos da empresa com a Guiné-Bissau entre 1976 e a atualidade. Esses projetos incluíram cursos sobre planeamento, seminários, assistência técnica, estudos de viabilidade, avaliações económicas e financeiras, e algo mais. O rol de publicações é elucidativo em artigos, materiais relacionados com cursos de formação, estudos, análises económicas. Qualquer estudioso da Guiné-Bissau tem tudo a ganhar em conhecer estes materiais.


A crise política atual na Guiné-Bissau

Nos dias que correm, a Guiné-Bissau mantém-se em profunda instabilidade. No passado dia 13 de Dezembro, o Espaço de Concertação Política dos Partidos Democráticos (que congrega o PAIGC, PCD, UM, PUN, PST e MP) produziu um comunicado a repudiar os procedimentos políticos do presidente da República, considera este espaço que o presidente da República se afasta perigosamente da ordem democrática e constitucional do país, avançando com a nomeação do seu governo, o que é uma violação do acordo de Conacri, e escreve-se:
“O espaço manifesta seu profundo repúdio perante a flagrante e persistente violação dos direitos constitucionais, humanos, políticos e sociais, que se consubstanciam no sequestro dos órgãos públicos de comunicação social e na proibição de manifestações públicas. Registe-se a propósito as mais recentes declarações em que o presidente da República assume o poder do uso da força para tudo fazer, incluindo mandar prender, espancar e mesmo matar”.
É um alerta para que a comunidade internacional acompanhe a evolução dos acontecimentos, e o espaço reafirma que aguarda a clarificação sobre o Consenso de Conacri, que se considera a única via alternativa à imediata convocação de eleições.
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Nota do editor

Último poste da série de26 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20013: Notas de leitura (1202): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (16) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20017: Manuscrito(s) (Luís Graça) (158): Afinal a guerra também era ototóxica...

Infeliz o cego, surdo e mudo,
porque dele não será o reino de Neptuno


Estou surdo e não poderei ouvir-te em agosto.
Nem ouvir o que mais gosto em agosto,

o mês da festa de todos os sentidos,
ouvir o mar, a décima sinfonia do mar,
tocada pelo vento,

pelos golfinhos e pelos surfistas.
Ou só poderei captar meio som, 

com o meio ouvido que me resta. 

Estou surdo e por mais absurdo
que isso te pareça,
só poderei entender as palavras sibilinas, 

e as semifusas, que me escreveste,
em papel pautado, no teu último mail.

Aqui estou eu, especado, na areia, emparedado entre o
 Beethoven a fazer o pino 
e o desejo e a ameaça de Sibila,
enquanto espero o otorrino, 

à porta do consultório, na casa de praia,
e o sol que tarda 
nesta tarde do mês de Agosto.

Infelizes os surdos e os curdos
(que não têm mar nem pátria nem otorrino,

e muito menos casa de praia) 
e os duros de ouvido, como eu,
porque deles não será o Reino de Neptuno!

Sinto-me infeliz, no pico do verão,
meio surdo, meio huno, meio curdo,
à espera do pôr do sol
e do seu espetáculo de strip-tease,

e o otorrino que tarda em almoçar.

Aqui especado, parado, enterrado na areia,
à espera de qualquer coisa,
da iminência de acontecer qualquer coisa,
à espera da queda dos últimos restos
do sacro império romano do ocidente,
à espera que me caia, na cabeça,
uma prancha de surf,
um tubarão assassino,
um ultraleve publicitário,
à espera que haja uma notícia, 

que não seja falsa,
que dê um belo título de caixa alta
para ler amanhã com o café do pequeno almoço,
qualquer coisa que não me agrave ainda mais 
a minha surdez, o meu autismo...

Por favor, nada de ataques de pânico,
falsos alarmes de tsunami,
e muito menos ainda 

o crash na Bolsa de Nova Iorque,
o suicídio coletivo dos povos da Amazónia,
ou um magnicídio. 

Ao menos que eu fique à espera 
que dê à costa na maré cheia 
um pedaço da arrábida fóssil da Lourinhã,
em vez da cabeça do rei 
ou do Santiago de Compostela,
de preferência um duro osso de roer 

de um pachorrento jurássico dinossauro,
ou até quiçá uma boa chuva de meteoritos
made in China, transgénicos…

Emfim, aqui estou eu à espera dos bárbaros, 
à espera dos hunos,
à espera do meu otorrino,
à espera de ti, meu amor.
à espera do sol que teima em tardar,
à espera do FMI ou do FIM do planeta,
sem pachorra para os curdos,
sem piedade para com os surdos, 
muitos menos os cegos e os mudos,
agora sem o fio de Ariane.

À espera, enfim, da recuperação 
dos meus cinco sentidos,
à espera do fim da minha crise existencial,
à espera do som e da fúria 

da próxima praia-mar,
em noite de lua cheia
prenha de augúrios, fantasmas e medos.

Só não conquistaram o sol, nem a lua, 

os sacanas dos romanos,
que nos escravizaram e deram o ser,
nem os oceanos,
o Atlântico, a autoestrada da globalização, 

o sol que tarda em Agosto,
ou que alguém pôs no prego
para pagar dívidas ao fisco,
nem havia nesse tempo direito a férias pagas,
subsídio de invalidez 

por surdez, profissional,
nem muito menos o prémio 

por nascimento, batizado, casório e funeral.

Estou surdo, cego e mudo,
ou, se não estou surdo, cego e mudo, 

foi por um triz,
que o míssil passou rente ao arame farpado,
estou surdo e a fazer o luto 

pela morte do Estado-Providência
que me pagava o otorrino 

e as gotas para o nariz.

Aqui é o meu futuro, diz o novo huno,
o imigra que agora vende bolas de Berlim
em praias rigorosamente concessionadas
e outrora vigiadas pela ASAE. 

Viva o fascismo sanitário, 
proclama o outdoor
da nova polícia das retretes e dos croquetes.

Estou surdo, sem dó nem piedade,
falta-me ficar cego e depois mudo,
para ser cego, surdo e mudo,
como a figura da deusa Justiça,

esculpida à porta do tribunal. 

Luís Graça,

[Lourinhã, Praia da Areia Branca, 13/8/2007. Revisto].


2. Comentário do autor:

Tenho 'ouvidos novos' que encontrei no lixo e reciclei. Tenho má consciência por toda uma vida em que fui predador do planeta. Agora, tarde e a mais horas, ando numa de reciclagem. Reciclo tudo o que posso, até pus ouvidos novos. Não sei que raio de planeta vou deixar para os meus netos e bisnetos, se os tiver.

Fui fazer um audiograma, mas primeiro fui ao otorrino limpar a merda dos ouvidos. Um deles tinha favos e favos de mel e cera. Mais cera do que mel. Ou era só cera ?...

Há já uns anos que ouvia mal, já não ouvia os alunos da terceira fila na sala de aulas. Muito menos o safado do locutor de serviço ao telejornal. Deixei de ouvir e ver televisão. Nem podia ir ao teatro, que os atores só falavam para eles e entre eles. E a primeira fila era só para os convidados e amigos bons de ouvido. E mesmo para ouvir a 9.ª sinfonia tinha que levar um funil.

O sacana do otorrino, há uns anos atrás, no hospital que devia ser um farol para os doentes, encolheu os ombros, e disse-me: "Mas o que é o senhor professor quer que eu lhe diga ?!... A idade não perdoa, a perda auditiva é irreversível"...

Merda para a idade, senhor doutor, e então os milagres da novas ciências médicas para cujo peditório também dei durante anos e anos ? Eu quero uns ouvidos novos, quero uma recauchutagem do esqueleto, como deve ser, da cabeça aos pés...

Nunca fui egoísta, agora estou a sê-lo... Andei cinquenta anos a descontar para a ADSE, nunca tomei um medicamento, nunca gastei um chavo ao provedor da santa casa da misericórdia... Fui amigos dos ministros da saúde. Tinha saúde para dar e vender. Nunca meti uma cunha a Deus e ao Hospital de Todos os Santos, também nunca me calhou o euromilhões ou a sorte grande, mas a verdade é que também não jogo, e quem não arrisca não petisca, diz o saloio do Zé Povinho....

Não joguei, não ganhei, não arrombei os cofres da santa casa. Agora ando a fazer as contas à vida: tanto para os ouvidos, tanto para a anca, tanto para os joelhos... E que Deus nos livre do raio do Alzhemeir!

"Otites líquidas, teve em pequeno?", pergunta-me a audiologista...

"Minha querida, quem as não teve, em pequenino, ou no Portugal pequenino em que nasci, vivi e cresci. E o meu médico era a ti'Adlina, minha vizinha da rua do clube, guardadora de segredos terapêuticos milenares... Médicos ?... Só havia dois na minha aldeia, e a gente só os chamava no estertor da morte ou nalgum parto de má hora"...

E acrescentei, por descargo de consciência:

"Depois disso, estive na Guiné, na guerra, ouviu falar ?... A menina é jovem, já nasceu depois do 25... E mesmo que fosse antes, nunca iria para a tropa. Só se fosse enfermeira paraquedista, conheci algumas na Guiné... Tiros, explosões, emboscadas, minas anticarro, acidentes com viaturas, quedas mais ou menos aparatosas, picadas, solavancos, cabeçadas, cones de fogo nas trombas, trambolhões, bezanas, esquentamentos, febres palúdicas... sabe como são estúpidas as brincadeiras da guerra, quando se tem vinte anos, sangue na guelra e as hormonas a rebentar a pele"...

"Ah!, já sei, quinino, ototoxicidade!

"O quê... ?"

"Há certos medicamentos que são otóxicos... Já passaram por aqui dezenas e dezenas de antigos combatentes da Guiné que se queixam do mesmo mal... O quinino, do Laboratório Militar, que vocês tomavam regularmente, às refeições... Por causa da malária ou paludismo... Lembra-se ?"


"Eureka!... Se me lembro !... Um pacotinho de sal e outro de quinino, ao almoço!!"...


"Parece haver evidência científica de que o quinino pode provocar danos ao sistemas coclear e/ou vestibular"...

"Não percebo nada da anatomia e da fisiologia do ouvido... Mas com essa do quinino, é que a menina me estar a lixar!... Não sabia, mas devia saber, porra, afinal andei anos e anos a falar de saúde e segurança do trabalho"...

"Não sou farmacêutica, mas há para aí mais do que uma centena de medicamentos ototóxicos. Acrescente-lhe a penicilina"...

"Porra, tomávamos aos milhões"...

"Agora, não há remédio, e não precisa de dizer palavrões... Ou melhor: felizmente há remédio. Deixe isso comigo. Vamos lá fazer o audiograma e, depois, pôr estes brinquinhos no ouvido, devidamente regulados"...

"Com essa é que me tira o sono, que a guerra era tóxica, eu já o sabia, mas que também podia ser ototóxica, não me passava pela cabeça!"...

"É bom para o Estado-patrão (e, para nós, multinacionais que vendemos aparelhos auditivos, um negócio de milhões, aqui para nós que ninguém nos ouve)... Enfim, é bom que os antigos combatentes não saibam certas coisas que faziam mal à saúde... Afinal, só os juízes é que são, coitados, cegos, surdos e mudos... E têm que ser bem pagos por isso"...

"Minha querida audiologista, estou encantaddo por ouvi-lo... Sabe, estou até a simpatizar consigo!".

... Ganhei uns 'ouvidos novos'. Posso agora ouvir todas as conversas, mesmo baixinhas... Até as conversas dos espiões!... Mais importante: posso ouvir o mar no mês de agosto, e o vento a dar nos búzios dos moinhos da minha infância...


Algumas conversas bem as dispensava... Mas não há mundos perfeitos... Mais vale andar neste mudo de muletas do que no outro em carretas... Obrigado ao 'morto' que me deixou uns 'ouvidos novos', comprados no OXL. A preço da uva mijona. É indecente que me peçam 4 mil euros por um aparelho auditivo XPTO... Prefiro um, em segunda mão, reciclado. A mim, que que lutei na guerra pela minha Pátria e que, se calhar, fui vítima da ototoxicidade provocada pelas drogas antimaláricas do Laboratório Militar...

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o·to·tó·xi·co |cs|
(oto- + tóxico)

adjectivo

[Medicina] Que tem efeito tóxico sobre o ouvido ou sobre órgãos ou nervos responsáveis pela audição e pelo equilíbrio.

"ototóxico", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/otot%C3%B3xico [consultado em 27-07-2019].

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19987: Manuscrito(s) (Luís Graça (157): Andamos à volta com os fantasmas de sempre, que, desde meninos, nos ensombram, uns, ou nos encantam, outros... Para o Jaime, ao km 73 dos passos em volta...

domingo, 28 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20016: Blogpoesia (630): "Veleidades...", "Quero lá saber..." e "Minha praia", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Veleidades...

Frutos dum sonho, ficamos carentes de sonhos.
Por isso, sonhamos.
O que temos e não temos.
Insaciáveis.
Já não chega o que há.
A ilusão nos seduz.
Sofremos.
Se tarda ou não vem.
Quanto mais longe pior.
Gastamos o presente com a incerteza dum futuro.
Um apelo em nós, ninguém sabe donde vem.
E, depois, ainda não é o que se quer.
Por certo que há melhor...

Bar "Castelão" em Mafra, 22 de Julho de 2019
11h14m
Jlmg

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Quero lá saber...

O que importa é o meu cantinho bem arrumado.
Que eu esteja bem e os meus.
Cada um se arranje como bem puder.

Parece impossível. Mas é verdade.
É assim que pensa e age a maior parte da gente que anda a nosso lado.
Egoísmo total.

A idolatria da modernidade arrastou-nos para esta pobreza.
Perdeu-se o valor do humanismo.

Somos seres, por natureza, solidários, interdependentes.
Precisamos todos uns dos outros.
Cada um tem seus talentos.
E quem o tem faz muito melhor que o que o não tem.
Se forem postos ao serviço nosso e dos outros, assim se alcança a maior riqueza.
A melhor condição, instituída naturalmente, para se viver bem.
Que há de melhor que saber que na hora em que se precisa, há quem acuda sem cobrar.

Quem se afasta desta linha fica muito mais pobre.
Não é o dinheiro que nos torna verdadeiramente ricos.

Mafra, 25 de Julho de 2019
17h20m
Jlmg

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Minha praia

Não tem areia a minha praia.
Só pedras, algas e penedias.
Suas ondas albas me embalam.
Que frescura se desprende.
Tem o perfume das maresias.
Não sei viver sem ela.
É um deserto quando me afasto.
Uma loucura boa quando volto.
É verde a minha praia, cor da esperança.
Cheira a algas e sabe a sal.
Lá ao fundo, há um castelo.
Dormem nele as gaivotas.
Depois do dia à beira-mar.

Ouvindo Dvořák - The Water Goblin
Bar Castelão em Mafra, 26 de Julho de 2019
9h11m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de21 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20000: Blogpoesia (629): "Papel almaço", "A voz..." e "A ajuda...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 27 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20015: Os nossos seres, saberes e lazeres (345): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fazem confidências acerca de um romance que não chegou a ser, nem relação amorosa luso-belga nem escrita à procura de cativar leitores, foi um devaneio, ficou um caderninho intitulado "Rua do Eclipse" ideia não despicienda, digna de permanecer a banho-maria. E começou-se a visitar Gand, uma joia onde se entrelaçam velhas igrejas, relíquias medievais das corporações, um castelo fabuloso, praças harmoniosas, intervenções arquitetónicas recentes que dão brado, e o rio Lys sempre à mão, entre o medieval, o barroco e a pulsão contemporânea. Foi supino erro só lhe reservar um dia de fugir. Mas esta é a sina da viagem, ver e deplorar o que ficou por ver, ganhar vontade para regressar, um autêntico sal da vida.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (7)

Beja Santos

Neste roteiro sentimental, propicia-se a ocasião para um desabafo íntimo. Muitos anos atrás, andava o viandante exclusivamente centrado nas atividades laborais, num imprevisto ocorreu-lhe escrever um romance sobre a sua experiência como combatente da guerra colonial. Dito e feito, um dia, numa qualquer sessão que se realizava em Bruxelas, num edifício da Comissão Europeia, Rue Froissart, olha-se para o interior de uma cabina de interpretação, avista-se uma senhora que parecia modelar para a trama de um romance: uma paixoneta de portuga por senhora belga, enquanto não podiam juntar os trapinhos, a lauta correspondência do portuga incluiria múltiplas revelações do que fora aquela guerra, o que se enfrentara, a sua importância para o homem em que ele se constituíra. Palavra puxa palavra, e aquela senhora ouviu as cogitações do proponente português durante o almoço. E assim se escreveu um caderninho que tinha por título “Rua do Eclipse, hipótese de romance”. Tudo isto vem contado no primeiro volume do “Diário da Guiné”, publicado em 2008. Ora a Rua do Eclipse existe em Bruxelas, é uma transversal obscura de um dos eixos principais do centro. É certo que o viandante ainda não desistiu completamente de voltar à carga, só que esta ficção anda por aí a marinar. O fundamental foi revisitar, sem apertos no coração, a Rua do Eclipse. Aqui a temos, em plena insignificância.



Ali bem perto está uma igreja que o viandante conhece desde a primeira hora desde que arribou em Bruxelas, há mais de quarenta anos, tem a ver com a Ordem das Clarissas, palmilhava-se para o interior até a um pequeno hotel que tinha um nome pomposo George V, Rue T'Kint, Anneessens. Foi muito bom aqui voltar, a igreja, há cerca de vinte anos, viu o seu interior devorado por um incêndio, perdeu imensas riquezas. Mas esta estrutura em azulejo, não tendo nada de espampanante, embevece pela harmonia das linhas.



Estes recessos são bastante comuns no centro de Bruxelas, dão uma sensação de intimidade, de atmosfera provinciana, quando ali ao lado fervilham negócios, grandes hotéis, até multidões de turistas. Um dado que sempre impressionou o viandante, uma escala humana, de certeza que estes arquitetos conheciam as entranhas de Paris…



A itinerância muda de rumo, por uns escassos euros, à conta de bilhete de terceira idade, toma-se um comboio na Gare Central e vai-se até Gand, uma das joias da Flandres, perfeitamente visitável a pé, sai-se na estação de S. Pedro, resiste-se a parar no Parque da Cidadela, onde se realizou a grande Exposição Universal de 1913, cheia de atrações, avança-se para o centro da cidade, aqui nasceu o Imperador Carlos V que não se apiedou de uma revolta local, humilhou-os até mais não. Foi rica na Idade Média, era uma das cidades mais importantes da Europa Ocidental do seu tempo, umas vezes dependente da França outras do conde da Flandres, o viandante vem à procura de belos monumentos, mas não resiste a captar a imagem da estação ferroviária, que bela arquitetura do ferro, que bela azulejaria!




Um dos aspetos mais fascinantes de Gand é a interseção entre o antigo e o moderno, é cidade populosa, também estudantil, sede de inúmeros eventos científicos e musicais, atração turística por excelência, há quem venha aqui exclusivamente para vir contemplar o famoso tríptico da Adoração do Cordeiro Místico, dos irmãos Van Eyck. O viandante ficou maravilhado com este edifício moderno, chama-se o pavilhão municipal, está perto do campanário, do edifício da Câmara e da Igreja de S. Nicolau. É um design inovador, tem uma estrutura de telhado com quarenta metros, 1600 janelas, foi inicialmente muito contestado, hoje é um indiscutível ex-líbris de Gand.



Gand está atravessada por rias, recupera velhas estruturas, como mercados, é muito aprazível contemplar estas intervenções, sentir o respeito por reedificar sem adulterar.


O viandante anda a sorver toda esta beleza em curtos haustos, tem consciência de que foi um erro reservar exclusivamente um dia para aqui deambular. Estamos agora diante do Castelo dos Condes da Flandres, um dos poucos espécimes que restam de fortificações medievais. Imagine-se que por aqui andaram os vikings a pilhar! É um edifício imponente, é uma construção maciça da arquitetura militar que aparece como um contrapeso à arquitetura civil dos ricos patrícios que habitavam o outro lado do rio Lys.


Em cada recanto, uma surpresa, veja-se esta entrada de mercado adossada a dois prédios, parece que nada se fez ao acaso. Circula-se pelo casco histórico e é um prazer sentir que a velha Gand não foi destruída a caterpillar, guardaram-se magníficos edifícios históricos como o armazém dos cereais, as oficinas dos correios, o grémio dos marinheiros, contemplam-se as fachadas das casas patrícias e sente-se orgulho em ter uma cidade preservada. Pois bem, chegou a hora de amesendar, descansar os pés, há muita beleza à nossa espera.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 20 de Julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19997: Os nossos seres, saberes e lazeres (343): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19998: Os nossos seres, saberes e lazeres (344): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (3) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

Guiné 61/74 - P20014: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (55): O meu pai, El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), falecido em 1999, com cerca de 80 anos: como bom fula e muçulmano, aceitava e suportava com dignidade o domínio dos brancos (portugueses e franceses), mas sempre desconfiado da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > 1991 > Festa de Ramadão > El-Hadj Aliu Baldé (Tamba), o pai do Cherno > Em 1937 fez parte do grupo de jovens que saiu de Canhamina para Contuboel para receber e homenagear os combatentes de Sancorlã que participaram na última guerra de Canhabaque (Ilhas Bijagós)...

[Recorde-se: em rigor, foi uma expedição punitiva, contra os bijagós que se recusavam a pagar o "imposto de palhota", também conhecida por "quarta e última campanha de Canhabaque", decorrendo de 10 de novembro de 1935 a 20 de fevereiro de 1936... O pai do Cherno faleceu em Bissau em setembro de 1999, provavelmente com 80 anos. Recorde-se aqui que El Hadj é um título honorífico reservado ao crente muçulmano que, em vida, consegue ter a felicidade de fazer, com sucesso, pelo menos uma peregrinação anual, Hajj, a Meca]

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Cherno Baldé, Quichinau, Moldávia,
dezembro de 1985, aos 25 anos.   Formou-se
 em economia,  em Kiev, Ucrânia.
Fez uma pós-graduação  no ISCTE, Lisboa, 
em 1992/94, já casado com
Geralda Santos Rocha,
natural de Bissau, de origem nalu.
O casal tem 4 filhos.
1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P20005 (*):

Caros amigos,

Como já tive ocasião de dizer nas minhas memórias de infância, o meu pai era um homem muito decidido e sensato para a sua época e, ao mesmo tempo, era um homem de convicções muito fortes, sobretudo religiosas. (**)

Da mesma forma que nunca aceitou a ideia da chegada do homem a lua, também não aceitava a teoria da terra redonda. Não discutia isso com as outras pessoas fora do circuito restrito da família, mas não admitia que os seus filhos metessem na cabeça muitas fantasias. Uma vez, ameaçou mesmo retirar-me da escola se continuasse a falar dessas coisas anti-religiosas que nos ensinavam na escola. Isso aconteceu quando ainda estudava no ciclo preparatório e depois no Liceu de Bafatá (1975/79).

Um dia, depois do meu regresso da URSS em 1990, numa conversa em família, inadvertidamente falei de uma viagem que tinha feito às cidades históricas de Samarcanda e Bucara (Uzbequistão), no âmbito de uma excursão escolar, pensando que ele ficaria satisfeito por ter perdido o meu tempo a visitar localidades islâmicas históricas. No fim, o meu pai perguntou-me onde estavam situadas. Respondi que estas cidades eram da Ásia Central, para lá da cidade santa de Meca.

Não devia ter falado. O velho levantou-se visivelmente irritado e foi para a sua casa, sem dizer mais nada. No dia seguinte atirou-me à socapa : "Tu,  Cherno, não sei o que a tua escola te serviu, pois ainda continuas a mesma criança idiota que saiu daqui há mais de 15 anos e nem consegues entender que Meca é o fim do mundo?!... Como podes afirmar que há outro mundo para lá de Meca e que tu estiveste lá?!"

Era assim o meu pai, muito corajoso e sensato, mas completamente irascível nas suas crenças, de tal modo que não valorizava muito os nossos estudos na escola dos brancos, exceptuando, claro, a contrapartida monetária que podíamos fornecer.

Ao que parece e por aquilo que aprendi das suas relações, os brancos (portugueses e franceses) desconfiavam sempre dos fulas e da sua religião islâmica, da mesma forma que os homens grandes fulas (como bem disse o Mário Migueis) aceitavam e suportavam com dignidade o domínio dos brancos, mas sempre desconfiados da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo.

Um abraço amigo,
Cherno Baldé (***)

2. Comentário do editor, aquando da apresentação do Cherno Baldé, à Tabanca Grande, em 19 de junho de 2009:

(...) Não te vou tratar por senhor dr. Cherno Baldé, porque a tua vontade é ingressares nesta Tabanca Grande, onde não há ou não deve haver barreiras (físicas, simbólicas, sociais, protocolares, étnicas ou culturais)... Tratemo-nos, pois, por tu, e vamos retomar as conversas e as brinqueiras com os tugas do teu tempo de Fajonquito (1968/74)...

Também não te vou tratar por camarada porque não foste combatente, nem militar, tecnicamente falando... Em contrapartida, passaste pela mesma Escola que eu, o ISCTE, e isso reforça as nossas afinidades e cumplicidades... Estive além disso na CCAÇ 12 onde havia vários Chernos Baldé, gente do Cossé, de Badora, do Corubal, militares do recrutamento local, fulas, que foram de um inexcedível lealdade e camaradagem.

Estás em casa, espero que sintas hoje muito mais confortável do que nesse tempo, em que matavas a fome com as sobras do quartel de Fajonquito a troco de pequenos serviços... Como tu, houve milhares de djubis (como a gente dizia, referindo-se aos putos) que viviam literalmente nos nossos quartéis, estudaram e fizeram-se homens nos nossos quartéis...

Essa tua história, fabulosa,  de infância e adolescência merece ser contada...Uma história de vida, de luta, através do trabalho e do estudo, que é um exemplo,  que nos comove a todos nós e que te deve orgulhar, a ti e à tua família...

Recebo-te, pois, de abraços abertos, meu amigo e meu irmãozinho, guineense, mesmo não tendo conhecido Fajonquito (do leste só conheci a região de Contuboel, Geba, Bafatá, Galomaro e Bambadinca, até ao Saltinho, passandor Xime, Mansambo e Xitole...) (...)

__________


(**) Cherno Abdulai Baldé, guineense, de etnia fula, natural de Fajonquito, sector de Contuboel, região de Bafatá, nascido por volta de 1960. Entrou para a nossa Tabanca Grande em 2009; tem 193 referências no blogue; é nosso colaborador permanente para as questões etnolinguísticas: vd. poste de  18 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje quadro superior em Bissau...


Vd. últimos dez postes anteriores da série, começada em 19 de junho de 2009:

3 de janeiro 2018 > Guiné 61/74 - P18170: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (53): três balas de kalash para uma missão suicida: o trágico fim do ex-soldado 'comando', Cissé Candé, em abril de 1978

3 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16913: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (52): à semelhança da França (em relação aos seus "tirailleurs sénégalais"), quando é que Portugal reconhece aos seus antigos soldados guineenses a nacionalidade portuguesa?

20 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16321: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (51): Os portugueses tiveram tendência para menosprezar o PAIGC, antes e depois da guerra... Recordando uma cilada dos "homens do mato" aos homens grandes de Sancorlã/Cambaju, ao tempo da CCAÇ 412, Bafatá, 1963/65

31 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15556: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (50): Na minha língua materna, o fula, não existe a expressão "Feliz Natal"... Mas felizmente que a Guiné-Bissau é um país de tolerância religiosa, em que as duas religiões monoteístas, Islamismo e Cristianismo, coexistem bem com o animismo

1 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14956: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (49): Relativamente ao desaparecimento do Alferes Leite, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância (Cherno Baldé)

25 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14660: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (48): Avião amigo ou inimigo!?

15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses

3 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12929: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (46): Depois do ataque

25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

19 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11730: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (44): A mulher mandinga e o soldado português

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20013: Notas de leitura (1202): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (16) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
É de lastimar que a história do BCAV 490 seja parcimoniosa quanto às operações desenvolvidas nas regiões de Mansabá e Bissorã, há dois relatórios centrados no Morés e no Oio, os grupos do PAIGC agem com elevado sentido tático, detetam precocemente e perseguem com emboscadas, não dão descanso. Os T-6 bombardeiam, as forças apeadas destroem as bases.
Começara o jogo do gato e do rato, só que naquele ano de 1963 ainda era relativamente fácil queimar tabancas do Morés e ali permanecer uma noite.
O bardo dedica versos tocantes ao 1.º Cabo Adozindo e já nos está a preparar para um acontecimento poderoso do início do ano, a batalha do Como.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (16)

Beja Santos

“Adozindo Carvalho morreu
com 21 anos de idade.
Nessa maldita emboscada
teve grande infelicidade.

A muito custo se arriscou
o 1.º Cabo Enfermeiro
depois de salvar um companheiro,
algum tempo rastejou.
Ao pé do Roque se deitou,
mas foi grande azar o seu,
um terrorista lhe deu
uma rajada em sítio mortal.
E quando chegou ao hospital
Adozindo Carvalho morreu.

Depois de penar na vida
foi morto este infeliz.
A sorte assim o quis
que ele abalasse desta lida.
Já não se vê a família querida
a quem tinha muita amizade.
Na força da mocidade
teve esse grande acidente.
Deixou pena a toda a gente
com 21 anos de idade.

A força do inimigo
estava à frente da Companhia.
Ele com coragem seguia
rastejando para o perigo.
Ele era um rapaz amigo
de toda a rapaziada.
No ombro levou uma rajada
e perdeu toda a acção.
Deu muito grito de aflição
nesta maldita emboscada.

Aos seus pais se abraçou
antes de vir para o Ultramar
pensando em voltar
mas na Guiné morto ficou,
já nunca mais regressou
à sua velha cidade.
Já está na eternidade
e em Bissau sepultado
foi morto por um malvado
teve grande infelicidade.”

********************

Na história do BCAV 490, o Capitão António Pais do Amaral elaborou um relatório em 7 de novembro de 1963 acerca desta operação no Morés, onde se refere explicitamente esta morte:  
“Havia feridos principalmente no primeiro grupo de combate mas também havia um na retaguarda do segundo grupo de combate e outro no meio da coluna. O 1.º Cabo Enfermeiro n.º 1826/63, Adozindo Carvalho de Brito do primeiro grupo de combate tinha sido atingido gravemente quando, indiferente ao perigo e com a maior decisão e sangue frio, acabava de curar um camarada seu. Havia necessidade de trazer todos para a retaguarda e entretanto os T-6 ainda não tinham chegado. Foi então que o Alferes Rui de Noronha de Ferreira e o Furriel António Covas num belo gesto de solidariedade transportaram à retaguarda um dos feridos mais graves. Cremos não exagerar que todos se portaram com muita galhardia. O Morés foi atingido pelas quatro horas, altura a partir da qual os helicópteros começaram a evacuar os feridos mais graves, um dos quais o 1.º Cabo Adozindo que não resistiu aos ferimentos recebidos”.

É então que a memória esvoaça para uma outra emboscada, da minha inteira responsabilidade, eu estava no Cuor, ao fim de escassos meses era bem claro que havia pontes de passagem entre as bases do PAIGC sitas em Madina e Belel para a outra margem do Geba, fosse para colher informações fosse para a troca de produtos, fosse para o que fosse para marcar presença naquela guerra. Matéria que recordei no meu livro “A Viagem do Tangomau”, publicado em 2012 e que aqui se reproduz na íntegra:
“Confirmado que é na região entre Chicri/Gambana e Saliquinhé que se processam as deambulações de quem vive no Cuor profundo, sempre que há deslocações a Mato de Cão ao romper da alva se aproveita por calcorrear velhos trilhos e fazer regressos em verdadeira oblíqua, um dia se encontrará um trilho escondido. É precisamente o que vai acontecer já passava do meio-dia de 14 de Novembro. Uma LDG passara à frente de um comboio de 6 embarcações por Mato de Cão, cerca das 9 horas. Quando os 25 homens que acompanhavam o Tangomau pensaram que este ia pedir boleia aos barcos, foram surpreendidos pela meia volta terminante, a coluna seguiu em passo estugado de Mato de Cão a Chicri, e é precisamente numa lala que se encontrou um caminho pronunciado, durante uma hora a coluna prosseguiu pelo mato adentro e não havia que duvidar, aquele caminho inflectia bem acima de Mato de Cão em direcção a Sinchã Corubal. É preciso que se diga que se andou sempre a ver o trilho mas fora dele, caso ali se deixassem marcas de presença a gente de Madina mudaria o curso das viagens. A coluna regressou prontamente a Missirá, o Tangomau aparentava indiferença pela descoberta. Conversou com os furriéis, foi uma conversa em surdina, ficou entendido que no dia seguinte sairia no princípio da tarde, prosseguindo por aquele caminho iria montar uma emboscada nocturna.

Dito e feito, após o almoço e de surpresa convocou cerca de 25 homens, incluindo um apontador de bazuca e quatro apontadores de dilagrama. Sucintamente, informou que partiam para uma emboscada nocturna, levavam um guia, que tomassem nota do itinerário da ida, seria por aquela picada, exactamente por aquela picada, se houvesse emboscada a gente provinda de Madina, que iriam retirar; caso aparecesse um grupo oriundo fosse de Santa Helena ou dos Nhabijões, retirariam em corta-mato até Chicri, e viriam pela estrada até Canturé, sempre beneficiando da lua nova. Que cada um levasse dois cantis, que o Veloso e o Raposo distribuíssem conservas de peixe e pão, cubos de marmelada, com ou sem emboscada regressariam a Missirá a meio da manhã.

Ainda não tinha escurecido e a força operacional acoitou-se num ponto indefinido mas muito próximo das lalas de Sinchã Corubal, dentro da mata, com ampla visibilidade sobre a outra orla. O Tangomau leva três meses e meio de Cuor, sabe que a floresta à noite tem outras expressões de vida, os estalos da madeira sobressaltam, como o piar das aves pode parecer lúgubre ou de muito mau agoiro, um porco de mato pode aterrar uma patrulha em marcha, há sons que se confundem, perde-se ainda mais a noção das distâncias, só se sente o bafo dos vizinhos do lado, às vezes parece que se vai perdido num oceano de sombras. Assim se chegou à escuridão total, na primeira hora ainda houve umas mexidas para aliviar as precisões, mais adiante ouviram-se sons como o gorgolejar dos líquidos ou mandíbulas em movimento. Depois o som absoluto ou quase, havia o restolhar dos animais, não se ouvia o Geba, não bruxuleavam luzes, a lua nova assegurava uma visibilidade difusa do outro lado da mata, era a longa espera de um lince. E é exactamente quando se entra no período da dormência, em que o corpo entorpece e a mente vagueia sem préstimo que Mamadu Djau, um bazuqueiro de elite, cicia junto ao ouvido direito do Tangomau: aproxima-se gente, estão a sair do mato, vão entrar na lala. A ordem transmitida em murmúrio é de que ninguém se mexa, estejam de armas em riste, será ele a disparar, quer todos em fuzilaria para atormentar e desnortear o grupo colhido pela surpresa. E assim foi. Na maior tensão, deixou aqueles vultos avançar, descontraídos, só se ouvia a respiração descompassada dos emboscados. Alçou a G3 e disparou um carregador para dentro do caminho. Se uma flagelação dentro do quartel gera um tumultuo interior, nos primeiros segundos, e depois nos implica numa movimentação pré-concebida para um morteiro, para uma seteira, para um ponto alto e aí descarregar uma bazuca ou um dilagrama, com os nervos controlados, na fuzilaria da mata, a altas horas da noite, chega-se ao extremo de parecer que se está quase num corpo a corpo, mesmo sabendo que há distâncias insuperáveis, e que até naquele caso se ouviam urros e recuos precipitados, comprovando que quem ali vinha não possuía capacidade de ripostar. Como aconteceu. Foram minutos de fogo torrencial e depois deu-se ordem de seguir o comandante em passo de corrida por todo aquele trilho que doravante perderia préstimo para as gentes de Madina. Foi uma louca correria até Chicri, aqui verificou-se que estavam todos e de boa saúde, graças à lua nova deu para perceber como os rostos se embaciavam de suor e havia em todos uma respiração ofegante; seguiu-se para Gambana, a corta-mato até Canturé, no auge da madrugada entrou-se por Missirá, militares e civis vieram alvorotados saber o que se passava. Houve risos estrídulos, deram-se abraços, a ordem era de ir para a cama, a meio da manhã haveria trabalho à espreita.”

(continua)

Berliet destruída, lápis e aguarela de Manuel Botelho.
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Nota do editor

Poste anterior de 19 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19993: Notas de leitura (1199): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (15) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20011: Notas de leitura (1201): O nosso camarada A. Marques Lopes já chegou ao Brasil, ou melhor, o seu livro "Cabra-cega" (São Paulo: Paperblur, 2019, R$69,90, mais portes do correio)

Guiné 61/74 - P20012: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (12): Comemorando os 20 mil postes, com um excerto das memórias (boas e más) do Paulo Santiago, no Saltinho, como comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72)... Em que se fala dos banhos à fula no Corubal, de uma perna esfacelada por um coice de morteiro e cosida a sangue frio, e ainda dos foguetões 122mm...


O famoso "Jacto do Povo" (, na gíria do PAIGC), o foguetão ou foguete  de 122 mm, que terá sido utilizado pela primeira vez 24 de outubro de 1969 contra Bedanda e só depois em novembro de 1969, numa flagelação contra Bolama, segundo o nosso especialista em artilharia , o nosso camarada e amigo Nuno Rubim. Felizmente para nós, era um arma pouco precisa e fiável e a Guiné, tirando Bissau, a BA 12 em Bissalanca e Bafatá não tinha grandes alvos, civis ou miitares, apropriados...Afinal, a História com H grande, também se faz com a pequena história...



Guiné > Região de Bafatá  > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > c. jan / fev 1971 > O comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72), Paulo Santiago, tomando o seu banho à fula no Rio Corubal.

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Paulo Santiago, Pombal, 2007. Foto: LG
1. Comemorando os vinte mil postes publicados em 15 anos, justamente em 21/7/2019 (*),  facto que passou despercebido à generalidade dos nossos leitores, voltamos a reproduzir um texto de memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Contabane, 1970/72) (**):

Em 6 de Janeiro de 1971, fiz vinte e três anos de idade e um ano de tropa. Tinha entrado para o "calhau" em Mafra [, a EPI,], precisamente no dia em que fiz vinte e dois anos, foi o pior aniversário da minha vida, completamente perdido naquele labirinto de escadas e corredores.

Este 6 de Janeiro no Saltinho foi bem bebido, muito whisky a acompanhar umas rodelas de tomate com sal.

Em 21 de Janeiro, aí pelas 21,00 horas, entra um militar da CCAÇ 2701 pelo bar de Sargentos e Oficiais e informa, meio esbaforido, que um dos sentinelas está a avistar uma pequena luz numa curva do rio Corubal, situada aí a uns 500 metros na margem oposta à do quartel.

Saímos todos a correr em direcção ao posto de sentinela, verificando haver de facto uma pequena luz a mover-se no local indicado. Acrescento que a zona em causa daria uma boa base de fogos para uma flagelação ao Saltinho, com uma posterior retirada pelo rio. O abrigo do [Pel Caç Nat] 53 ficava ali ao lado, e foi onde me dirigi, agarrando no morteiro 60 e duas granadas.

Procuro um local, com visibilidade para a curva do rio, instalo o morteiro, joelho direito em terra, mão direita no tubo, calculo a inclinação e aí vai granada. Tudo foi feito com rapidez, esquecendo-me que a zona do Saltinho, contrariamente à maior parte da Guiné, era rochosa, o que resultou em azar. Não vi, estava escuro, o prato da arma ficou assente num afloramento de rocha. À saída da granada o prato desliza na pedra, atingindo-me a perna direita acima do joelho. A pancada foi tão forte que caí para o lado, cheio de dores, pensei logo ter ossos partidos.

O Cap Clemente e o Alf Julião, da CCAÇ 2701, que estavam ao meu lado, agarram-me ao colo e trazem-me para o Posto médico, onde me deitam na marquesa. Felizmente o osso ficou à vista, mas não estava partido. Havia que coser a perna, trabalho para o Fur Mil Enf Freire.

Como não havia anestesia, estavam quatro matulões a imobilizar-me e eu a sentir a agulha a coser-me, a repuxar músculos e peles. Hoje suporto a dor com alguma rusticidade, deverão ser
ainda resquícios do que passei naquela noite. Levei exteriormente quinze pontos e fiquei
inoperacional um mês e poucos dias.

No dia seguinte, deveria ficar de cama, não consegui e rebentei de imediato com um dos pontos. Agarrado a uma pseudo-bengala lá vim beber uns copos para o bar. Foi um mês de grandes exageros (ainda mais) com as bebidas. O maior problema passou a ser o banho, não podia mergulhar no rio, então protegia o penso com um plástico, sentava-me à beira da rio e, com uma bacia, ia virando água por cima da cabeça, um banho à fula.

Chegamos ao Carnaval e resolvem fazer um baile na escola que ficava junto do quartel, ficando eu a beber uns copos no bar . Por volta das vinte horas, ouço várias saídas de arma que não sei determinar. Venho agarrado à bengala dar uma espreitadela à parada, vejo o rasto de vários foguetões (?) dirigindo-se na direcção de Aldeia Formosa, ouço o estrondo dos rebentamentos, repetindo-se de imediato a mesma cena, várias saídas, o rasto dos foguetes e respectivos rebentamentos.

Chega entretanto o pessoal que andava no baile, ficando também a assistir aquela chuva de foguetes e a ouvir os rebentamentos. Aparece o Fur Rui, das Transmissões, informando que o quartel de Aldeia Formosa acaba de perguntar se estávamos a ser atacados, e quais as armas utilizadas no ataque.

Chegou-se à conclusão que as granadas estavam a cair em zona entre Saltinho e Quebo
e a arma era desconhecida. Passados alguns dias veio informação do Com-Chefe: naquele ataque falhado a Aldeia Formosa, o IN tinha utilizado pela primeira vez Foguetes Katyusha, também
conhecidos por Órgãos de Estaline

O foguete 122 mm, o Grad
 (na terminologia do PAIGC
ou "jato do povo").
Foto: Nuno Rubim (2007)
2. Nota do editor LG:

O pretexto é termos chegado aos 20 mil postes e aos 15 anos a blogar (***),  sem esquecer os cerca de 11,2 milhões de "visitantes" e os quase 800 membros (registados) da Tabanca Grande... Mas, como o tempo é curto, e o relógio não pára, e não há patacão para festas, vamos lá ao que interessa, para  refrescar a nossa memória e corrigir a memória futura...

Na realidade, os tais foguetões ou foguetes 122 mm,  já se teriam estreado antes, no TO da Guiné, em Bolama, em 3/11/1969, ou em Bissorã, em 1/5/1970, segundo a tese do nosso camarada Armando Pires (****), o que o Paulo Santiago contesta, em comentário ao poste P9337:

(...) "Não quero contrariar o camarada Armando Pires, mas não estamos a falar da mesma arma, isto é certo. A Katiusha, Orgãos de Estaline, BM 21 Grad,chamemos-lhe um destes nomes, à escolha, é uma arma, conjunto de tubos de lançamento de foguetes, colocada numa viatura pesada. Tem de haver uma picada para a viatura se deslocar, não pode ser levada às  costas. Assim, não estou a ver nenhuma possibilidade de uma viatura pesada, do PAIGC, se deslocar no interior da Guiné para atacar Mansoa, Bissorã, Bolama. Um quartel, perto da fronteira, com alguma dimensão de espaço, caso de Aldeia Formosa, o ataque foi possível, mas com resultados nulos (para o IN). Também não estou a ver um ataque de Katiusha (4 foguetes) lançar apenas três (Bolama) num alvo de grande dimensão.

A info do COMCHEFE  foi que aquele ataque direccionado para Aldeia Formosa, tinha sido o primeiro com a utilização dos Órgãos de Estaline. É só." (****)

Oiçamos também aqui o nosso especialista de armamento, o Luís Dias: havia dois tipos de "foguetão 122 mm", o foguete (míssil) no calibre 122mm, desenvolvido em 1963,  o 122mm BM-21 GRAD, de lançamento múltiplo, e uma variante, o foguete 9P132/BM-21-P,  também de calibre 122mm (mais curto que o modelo standard) a ser lançado por um único tubo – o lançador 9M28/DKZ-B.  (*****)

(...) "A arma Katyusha era originalmente a denominação para os foguetões utilizados pelos multi-lançadores, que eram transportados em diversos tipos de camiões. Depois da guerra, os soviéticos aperfeiçoaram estes multi-lançadores, com o surgimento do míssil 122mm BM-21 GRAD, colocados em viaturas diversas e com diverso número de tubos.

 Aperfeiçoaram também um míssil portátil, na origem do anterior, mas ligeiramente mais curto, com o mesmo calibre, com a denominação 9P132/BM-21-P, que era lançado pelo uni-tubo 9M28/DKZ-B e era este o míssil mais utilizado nos ataques por foguetões na Guiné, pelo menos dentro do território, tendo sido, inclusive, capturadas diversas rampas de lançamento do tipo referido, conforme diversas fotos existente" (...)

O Nuno Rubim (, um abraço para ele, e as suas melhoras!) também prefere chamar-lhe foguete, embora ficasse conhecido, entre nós, no TO da Guiné, como "foguetão 122mm".  Terá sido utilizado pela primeira vez, em Bedanda, antes de Bolama, Cacine e Cufar (******).

__________



(*****) Vd. poste de 1 de janeiro de  2012 > Guiné 63/74 – P9344: Armamento (7): O foguetão de 122 mm (Luís Dias)

(...) O lançador de foguetes Katyusha é uma arma de artilharia (lançador de foguetes múltiplos) desenvolvida e utilizada pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Foi apelidado na época de "Órgão de Estaline" pelas tropas alemãs (em alemão: Stalinorgel) em referência ao dirigente soviético com o mesmo nome. Já o nome Katyusha foi dado pelo Exército Vermelho,  retirado de uma música famosa durante o período da guerra, que contava a história de uma jovem russa (Katyuhsa, diminutivo russo para Catarina) cujo namorado estava longe em virtude da guerra. 

(...) O desenvolvimento dos foguetes lançados por artilharia na URSS iniciou-se em finais dos anos 40, a fim de se substituírem ou complementarem os Katyusha de 82mm, 132mm e 300mm, da II Guerra Mundial. A fábrica estatal, situada em Tula, sob a liderança de A. Ganichev, apresentou um foguete (míssil) no calibre 122mm, em 1963, denominado 122mm BM-21 GRAD. Ao longo de 1964 foram produzidos diversos tipos desta série e a serem transportados em camiões e outros veículos de vários tipos e dimensões, com diversos conjuntos e combinações de lançamento múltiplo. 

Também foi fabricado o Foguete 9P132/BM-21-P, no calibre 122mm (mais curto que o modelo standard, embora também pudesse ser usado por um multi-tubo), a ser lançado por um único tubo – o lançador 9M28/DKZ-B." (...)

(******) Vd. poste de 10 de junho de  2007 > Guiné 63/74 - P1828: Armamento do PAIGC (3): O Foguetão 122 mm ou a arma especial Grad (Nuno Rubim)