terça-feira, 31 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20794: Manuscrito(s) (Luís Graça) (181): Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - Macau, 1926): poesia para dizer em voz alta à janela ou à varanda, uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas.


Camilo Pessanha 150 Anos  > Capa (Com a devida vénia...)




1. No dia mundial da poesia,19 de março de 2020 (*), passei uma parte do dia  a dizer, em voz alta, sonetos da "Clépsidra e Outros Poemas de Camilo Pessanha" [, org. João de Castro Osório, 6ª ed, Lisboa, Edições Ática, 1973,210 pp, (Coleção Poesia)]. 

Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - Macau, 1926): um autor que, confesso, conhecia mal, e em relção qual tinha algum preconceito, justamente pela sua poesia finessecular, de" fim de século", simbolista, decadentista, orientalista... Não devemos, todavia,  fixar-nos nos preconceitos, nos estereótipos, nas ideias feitas..., que são vendas nos olhos.

A força imagética, a originalidade e a musicalidade  dos seus sonetos acabaram por surpreender-me e encantar-me, tal como um melhor conhecimento da sua biografia: sabia apenas que se tinha "autoexilado" em Macau, durante três décadas (1894-1926), comunidade com quem manteve uma relação de amor-ódio,  e que era um sinólogo (aprendeu cantonês,  conhecia 3500 caracteres e foi tradutor de poetas chineses,) e que, em Macau, prolongou a boémia coimbrã e tornou-se dependente do ópio, tendo ali exercido funções como professor, advogado e juiz. Parece que não era bem amado pela comunidade macaense da época, conservadora, puritana, de moral judaico-cristã.

Expoente máximo do simbolismo, entre nós, é  considerado o Verlaine português...  É, na realidade, mais do que isso: é um dos grandes poetas europeus, um "poeta maior" e, no nosso caso, um dos grandes percursores da nossa poesia moderna, tal como o Cesário Verde, poeta de quem gosto muito. Influenciou ou marcou outras poetas, de quem também eu gosto muito (o Mário Sá Carneiro, o Fernando Pessoa, a Forbela Espanca, a Sophia de Melo Breyner Adresen, o Eugénio de Andrade...). 

No Camilo Pessanha, também aprecio o lado artesanal da construção poética, a obsessiva procura da perfeição, da maestria... Espantoso, era um poeta que decorava os seus poemas e depois rasgava os seus autógrafos, os seus escritos...

É muito provável que parte da sua obra se tenha perdido...A 1ª versão da "Clépsidra" foi publicada em 1920 (,seis anos antes do poeta morrer), em Lisboa, longe de Macau, por iniciativa da sua amiga, a feminista de 1ª geração, republicana, escritora e pedagoga Ana Castro Osório (Mangualde, 1872 - Lisboa, 1935) por quem ele tivera uma paixão nunca correspondida (, fizera-lhe um pedido de casamento, que ela recusou, mas mantiveram a sua amizade até à morte do poeta, em 1926, aos 58 anos, vencido pelo ópio e a tuberculose pulmonar). 

Selecionei, da "Clépsidra" (**), quatro poemas, para serem ditos em voz alta às nossas varandas, nestes dias estranhos em que estamos confinados nas nossas casas, em plena pandemia da COVID-19. 

Gritar ou dizer poesia em voz alta, à janela ou à varanda, pode ser uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas.

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Inscrição

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
O! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
(p. 27)



Caminho 

I
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d' harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.


II


Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
- Bom dia, companheiro - te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto

Que chorámos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.



III

Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.

Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...

Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...

Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar 
- encher a alma.

(pp. 31/33)



Camilo Pessanha 

in: "Clépsidra e Outros Poemas de Camilo Pessanha", org. João de Castro Osório, 6ª ed (Lisboa, Edições Ática, 1973, 210 pp, Coleção Poesia).


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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20759: Manuscrito(s) (Luís Graça) (180): De quarentena, no Dia Mundial da Poesia... Revisitando o poema "Da Falagueira a Buruntuma"


(**) clepsidra | s. f.

clep·si·dra

substantivo feminino

Relógio antigo, de origem egípcia, que media o tempo pelo escoamento de água num recipiente graduado.

"clepsidra", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/clepsidra [consultado em 31-03-2020].

segunda-feira, 30 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Se vos trago à reflexão o artigo saído do punho do Coronel Vaz Antunes sobre conversações que teve no último dia de Junho de 1973 com alegados negociadores da fação guineense do PAIGC, que terão entusiasmado Spínola, há que ter em conta todas as alterações do xadrez político-militar daquele tempo: os mísseis Strela, o endurecimento das relações entre Marcelo Caetano e Spínola, a visita de Costa Gomes em Junho, no rescaldo dos acontecimento de Guileje, Gadameal-Porto e Guidage, e em que se definiu a retração do dispositivo em termos tais que Spínola se apercebeu que era o princípio do fim; a nível do PAIGC, caminhava-se para novo Congresso que preparava a radicalização política, com consequências desastrosíssimas para a diplomacia portuguesa, e muito mais. Spínola perdera o é dos acontecimentos, a fação guineense ficou entregue a si própria.

É convergência de todos estes fatores que preludiam o 25 de Abril, o encontro em território senegalês, no último dia de Junho de 1973 é demonstrativo de que os combatentes guineenses caminham para a sua própria independência, o tempo político em Portugal já não permitia consolidar a tal Guiné melhor.

Um abraço do
Mário


O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto

Beja Santos

Cor António Vaz Antunes
O Coronel António Vaz Antunes elaborou um documento, datado de 1987, intitulado “Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê?”. O documento é público, o leitor interessado tem dele acesso através do link indicado em rodapé.[1]

Encontrei-o na Biblioteca da Liga dos Combatentes, em dia sim, pois emprestaram-me a importante história dos Paraquedistas na Guiné e a Engenharia Militar na Guiné, de que já se fez as competentes recensões.

A diligência que o General Spínola pediu ao Coronel António Vaz Antunes, de acordo com esta versão, poderia ter tido o condão de mudar o curso da guerra travada na Guiné. Mas vamos aos factos, tome-se o que escreveu o Coronel Vaz Antunes.

Este militar estava ligado à Operação Guidage, naturalmente desgastante, naquele terrível Maio de 1973. Recebeu a ordem do Comando-Chefe para montar um Comando avançado em Cuntima. O oficial chega à Companhia e o Comandante da mesma não escondeu a sua surpresa, terá suposto que a sua capacidade para enfrentar a situação não era suficiente. No dia 29 de Junho três helicópteros aproximam-se da pista, coisa que não acontecia há meses. Numa conversa a sós, Spínola explica-lhe o que o levou ali:

“No tom mais cordial que imaginar-se se possa, contou-me o que tinha sido a sua acção desde que chegara à Guiné, nos contactos com o Presidente Senghor, com os comandos do PAIGC nos tempos de Amílcar Cabral e as suas diligências na interferência da escolha do próximo secretário-geral do PAIGC, cuja eleição iria ocorrer dentro de dias”.

O Coronel Vaz Antunes ouvia tudo com muita atenção mas não compreendia a natureza desta abertura, esta abordagem de temas tão secretos. Sempre bem-humorado, e sem nunca lhe explicar a natureza dos aspetos tão confidenciais, Spínola regressou a Bissau.

A 30 de Junho, tudo se precipita, Vaz Antunes é procurado por um Fula que era um agente de informações com o nome de código Padre, algo se sabia pertencente ao Front da Guiné Conacri. Conheciam-se, Padre era um elemento de peso, chegara a ir com um agente da DGS de Farim até Bissau de avião. Padre surpreendeu completamente Vaz Antunes: “pediu que fizesse uma mensagem relâmpago para Bissau solicitando a presença do General Spínola nesse dia, ali em Cuntima, para um contacto com alguns dirigentes do PAIGC”.

Vaz Antunes entendia agora a visita da véspera. Começa a troca de mensagens, Bissau responde que não é possível a deslocação àquela hora, 16 horas. Padre mostrou-se angustiado, pediu então a Vaz Antunes para comparecer na referida reunião. Depois de algumas peripécias, Vaz Antunes atravessa a fronteira no marco n.º 104. Na noite cerrada, chegou um automóvel que parou a duas centenas de metros do qual saíram dois indivíduos que se dirigiram para Vaz Antunes e Padre. “Tratava-se do representante pessoal do comandante-geral das forças do PAIGC”.

O interlocutor foi direto:

“Andamos há já 10 anos nesta luta. Somos agora menos do que quando começámos. Actualmente não nos entendemos com o escalão político: eles são cabo-verdianos e comunistas e nós somos guinéus, combatentes e não comunistas. Desejamos apenas uma Guiné melhor. Já chegámos à conclusão de que, sozinhos, não somos capazes de a fazer, mas sê-lo-emos convosco. A nossa proposta é muito simples: em dia e hora que se combine acaba a guerra, nós seremos integrados nas forças da Guiné, sem recriminação nem vingança”.

Vaz Antunes promete rapidamente comunicar o teor desta mensagem a Spínola. A 1 de Julho apresenta-se no Palácio do Governo em Bissau. Será recebido ao fim da tarde. Ouvida a mensagem, Spínola liga para Lisboa, telefona para António Fragoso Allas, o chefe da DGS em Bissau, pede-lhe para regressar urgentemente à Guiné.

Em Agosto Vaz Antunes entrou de licença. Aqui soube da substituição de Spínola por Bettencourt Rodrigues, foi à tomada de posse deste, pareceu-lhe que o discurso do novo Governador e Comandante-Chefe não estava em sintonia com tudo o que se passara anteriormente. Padre, manifestou-se em Farim, mais tarde, desgostoso por se aperceber de que tudo voltara ao princípio, não se entendia o porquê do retrocesso.

E chegamos ao final da história:

  “Um dia, no bar do Estado-Maior do Exército, já em 1976, contava o caso a uns camaradas, dado que a manutenção do segredo já não tinha razão de ser. O então Major Monge estava ao lado interrompeu-o e disse: 'Afinal foi o meu Coronel quem provocou o 25 de Abril' . Fiquei atónito. Mas imediatamente me veio à memória que tinha lido dias antes uma informação do General Costa Gomes para o governo de Marcelo Caetano segundo a qual para Portugal era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada… Porquê?”.

A narrativa do Coronel Vaz Antunes levanta inúmeras questões. É facto historicamente comprovado que naquele mês de Junho, antecedendo o Congresso do PAIGC, que ratificou Aristides Pereira como dirigente máximo do PAIGC, a linha guineense, com todas as cautelas, procurava uma posição de força para evitar um controlo maioritário de líderes cabo-verdianos. Nino sabia-se vigiado, Osvaldo Vieira já não contava, o rumo de ofensiva militar alterara completamente os acontecimentos, era certo e seguro avançar-se para uma declaração unilateral da independência, criando um ainda mais serrado cerco à diplomacia portuguesa. Padre não estaria na posse de informações quanto ao confronto já instalado entre Marcelo Caetano e Spínola, hoje bem conhecido através da epistolografia trocada, o Primeiro-Ministro proibira Spínola de negociar com o PAIGC o quer que fosse.

Seguramente que Fragoso Allas conseguira chegar até ao núcleo dos combatentes guineenses que não se conformavam com a liderança cabo-verdiana em perspetiva. Recorde-se que Aristides Pereira foi hábil, no mando supremo ficou ele, Luís Cabral e Nino Vieira. Mas de Junho para Julho, acontecera algo de decisivo para a desmotivação de Spínola: era fundamental retrair o dispositivo militar, com sacrifício de populações e quartéis nas fronteiras, Lisboa não tinha dinheiro para acompanhar a escalada armamentista do PAIGC, a partir daquele momento era o PAIGC quem estabelecia as regras do jogo, atacando e flagelando onde lhe apetecia e numa posição muitíssimo forte, sabendo que os mísseis Strela impediam a presença da Força Aérea.

Inconformado com a situação, prenúncio de perigos maiores e sabendo já que se caminhava para a declaração unilateral de independência, o que acarretaria a possibilidade da presença de exércitos amigos do PAIGC, Spínola afasta-se de tudo, vem para Lisboa preparar a sua resposta política, o livro Portugal e o Futuro. Não se entende o final do artigo do Coronel Vaz Antunes exatamente por que foi Marcello Caetano e não Costa Gomes quem disse que era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada.

Ainda pouco se sabe sobre os primeiros meses tresloucados de 1974, quando Marcello Caetano decidiu por sua conta e risco abrir negociações secretas com os movimentos de libertação. O que hoje é seguro é que a Guiné já estava fora dos seus planos, congeminou um cessar-fogo antes que fosse demasiado tarde.

[1] - Aceder ao documento em:
http://ultramar.terraweb.biz/06livros_antoniovazantunes_Guine_uma_diligencia_interrompida.htm
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20781: Notas de leitura (1276): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (51) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20792: Da Suécia com saudade (66): As fábricas de vodka, o coronavírus e o fantástico humor... lusitano (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)



Recorte de imprensa: título de caixa alta do DN - Dagens Nyheter, 23/3/2020 >  "Sverige går samman: Handspriten slut – flera vodkafabriker ställer om för att leverera"... [Foto da fábrica de
 de vodka Lantmännens-Reep em Nyköping. Foto: Lantmännens. Cortesia do Joseh Belo  (e reproduzida aqui com a devida vénia...)]


1. Mensagem do Joseph Belo, domingo, 29/03, 09:55

[Casa do régulo da Tabanca da Lapónia, vizinho do Pai Natal]




Segundo o jornal de grande tiragem "Dagens Nyheter" [, de 23 de março de 2020], as quatro maiores fábricas suecas de vodka estão agora (também !) a produzir desinfetante para lavagem de mäos.

E eu a julgar que já tinha visto "tudo" na vida!

Um abraço,
José Belo


PS - As fábricas de vodka, o virus e...o fantástico humor lusitano.

Depois de enviar a vários camaradas a notícia quanto ás fábricas de vodka suecas estarem agora também a produzir desinfetante para as lavagens das mãos, recebi esta resposta, que é um requinte de humor lusitano: "Só devem ter mudado... o rótulo !"

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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20757: Da Suécia com saudade (65): "Ao luar, entre nevões, até as renas parecem pavões" (José Belo)

Guiné 61/74 – P20791: (Ex)citações (363): Os conflitos e a dedicação do povo (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Os conflitos e a dedicação do povo


Camaradas, 

O momento sanitário que irreversivelmente fustiga a humanidade global, por via de um inimigo invisível que dá pelo nome de Covid-19, leva-nos, amiúde, procurar no nosso baú eternas lembranças de outras guerras, Guiné em concreto, onde fomos simplesmente atores numa peleja onde existiam duas frentes em combate, conhecendo-se, então, quem era afinal o inimigo nas trincheiras da morte. Combatia-se com armas de fogo, cujos resultados foram catastróficos. 

Hoje, o figurino mudou e a invisibilidade do inimigo não conhece, por ora, a vacina para a sua cura.

Neste âmbito, resolvi debitar mais um texto que surge no meu último livro "Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74", para vos "matar" um pouco do vosso tempo da quarentena que, por força real das circunstancias, fomos submetidos. 

Os conflitos e a dedicação do povo
Gratidão
Olhares distantes das mulheres grandes

Há histórias hilariantes de vida onde a encruzilhada da guerrilha se cruzou com a nobreza exótica de gentes que compartilhavam sentimentos comuns. A gratidão do povo guineense, no dar e receber, era enorme. O confronto no terreno, sendo real, não eliminava de todo um contacto permanente com uma população civil que se desfazia no ato “de bem servir” a tropa tuga.
Não vou, por razões realmente díspares, debruçar-me sobre acontecimentos reais da chamada guerrilha no terreno a qual, na minha modesta opinião, estava, aparentemente, condenada ao fracasso. Negociar? Talvez! Restava saber quando e como o processo poderia eventualmente evoluir.
A Guiné apresentava, no seu todo, um cenário deveras perspicaz tendo em conta a sua curta dimensão territorial e a forma como o PAIGC controlava os buracos no espaço. As emboscadas, ou os ataques aos quartéis, teriam pressupostamente um maior ronco se os guerrilheiros fossem possuidores de conhecimentos mais profícuos sobre a sua minuciosidade em usar as armas, ou na conceção mais exata em preparar uma guerrilha que, para nós, se apresentava transversalmente desigual.
O PAIGC contava com a ajuda de guerrilheiros cubanos que comandavam alguns dos estratos operacionais. Comentava-se, à época, que a sua operacionalidade assumia-se deveras importante nos confrontos. Tinham largos anos de experiência na guerrilha, comentava-se no interior dos arames que delimitavam os aquartelamentos no mato.
O IN abastecia-se com armamento russo, sendo disso exemplo as kalachinikovs, normalmente utilizadas nos confrontos diretos, a que se associavam armas de calibre superior. Ainda assim, as nossas tropas debitavam capacidades quando deparadas com o conflito. Foram heróis!
Esta minha análise, embora sintética, enquadrou-se em absoluto quando pela primeira vez me deparei com a fragilidade, penso eu, do IN. Estávamos no mês de novembro de 1973. Na transparência de um dia levado ao êxtase, tinha completado 23 risonhas primaveras, sendo que da metrópole tinham chegado queijos de ovelha e enchidos alentejanos, comestíveis enviados carinhosamente pela minha saudosa mãe, sendo que o “material”, embora escasso, foi de pronto devorado pelos meus companheiros de lides, lembro-me que pelo meio da festança e das muitas cervejas emborcadas, chegou, inesperadamente, uma mensagem que nos deixou algo desalentados.
Cerca das quatro horas da tarde, e sem que nada o fizesse prever, fui chamado ao capitão Ramalhete, o militar graduado que controlava o gabinete de operações, que me colocou a par das novidades acabadinhas de chegar: “temos conhecimento de um grupo IN perto da tabanca (não me lembro do seu nome), sendo urgente a nossa intervenção. Prepare o grupo de imediato e siga para o terreno”. E assim foi.
A estrada ligava Nova Lamego a Piche. Uma hora depois estávamos em contacto com a realidade da guerrilha. Em pé, e de peito aberto, o Jau (guia), já conhecedor do perigo que a situação impunha, aconselhava a deitar-me uma vez que o risco ganhava uma maior grandeza.
Vincando a minha condição de ranger, tentei apaziguar as hostes porque a reação do IN, à primeira vista, parecia-me algo dispersa. A sua cadência de tiro um pouco anárquica e os sons da sua algazarra confusa. O certo é que o tiroteio serenou e a malta, antes de anoitecer, retirou sem prejuízos de maior monta.
No dia seguinte, em reconhecimento ao local, constatou-se que se tratou de um grupo, quiçá em instrução, que deixou antever inexperiência, permitindo que o pessoal no terreno não tivesse sofrido sequelas físicas, nem tão-pouco baixas para engrossar o rol de jovens infelizes tombados em combate.
Lembro a maneira como o meu camarada ranger Rui Fernandes Álvares, furriel miliciano, e do meu curso em Lamego, ironizou a situação quando chegado ao quartel e comentou o diabólico contacto: “vi um turra a fugir, apenas com uma perna, de arma na mão e a dar tiros em todas as direções. Fugia que nem uma lebre”.
Depois, embevecia-se a fazer o filme ao pormenor e a malta ria que se desunhava. O Rui era um rapaz de bom trato, com um coração enorme e oriundo do concelho de Boticas. As suas telas cinéfilas, entretanto desenhadas, eram divinais. O seu nome jamais me fugiu da memória. A sua inclinação para criar um bom ambiente era brilhante. Um moço porreiro. Brincava com as fatalidades da guerra.
O Rui, tal como a maioria da rapaziada que pisava o palco da guerrilha, não meditava, creio, a preceito com os buracos impensáveis que a guerra impingia ao infeliz soldado chamado “carne para canhão”, propunha-se, isso sim, a disfarçar os confusos e agrestes contornos que o conflito colocava no terreno.
Éramos jovens. Não temíamos as adversidades que o rosto da mata adensada e das estreitas picadas impunham. E tantas foram as ocasiões em que a despreocupação em cima do Unimog, já caquético, nos conduzia a uma pura brincadeira não temendo o momento seguinte.
Recordo uma tarde a caminho de Piche a viatura que seguia atrás embater na traseira daquela que rolava à sua frente e a malta a atirar-se para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca, do morteiro 60 e das G3 que transportávamos nas mãos. Um arrepio entrou-me no corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas. Um “acidente” que, felizmente, não causou vítimas a bordo. Tudo correu bem. Mas… ficou o aviso.
Colocando de parte as ações da guerrilha, e as vitimizações que ela provocou, vou referir uma alegação que sempre considerei nobre: A GRATIDÃO! Não me recordo que em tempo algum tivesse sentido a nefasta opinião que a população guineense se mostrasse desordeira sempre que solicitada a um eventual pedido para uma pontual colaboração e humildemente reconhecia que a nossa tropa era um meio intervencionista para a sua própria sobrevivência.
Dar e receber apresentava-se como uma reciprocidade maioritariamente perfeita. Reconheço que a sua posição no meio territorial não se apresentava nada fácil. Lidar com duas frentes da guerrilha, manifestava uma assimetria desigual. De um lado os guerrilheiros do PAIGC, homens eventualmente conhecidos na tabanca, filhos da terra, familiares, e com quem amiúde trocavam opiniões, assumindo-se estes como os verdadeiros mestres para libertarem o território dos ditos invasores brancos; do outro, a tropa “tuga” que lutava para defender pressupostos direitos alheios, desconhecendo por completo as razões pelas quais expunha o seu corpo à bala. Uma situação dúbia que determinava a neutralidade de uma população carenciada e sobretudo sofrida.
Neste contexto, ter-me-ei apercebido da verdadeira ação do povo. Lidar com as duas faces da moeda não era fácil. Um dia tivemos conhecimento que numa tabanca situada na zona de Gabu o PAIGC se havia ali instalado. A aproximação à tabanca careceu de cuidados redobrados. Mesmo assim lá chegámos sem problemas que afligissem o grupo. A nossa ação foi pronta.
As informações recolhidas no local foram, a princípio, escassas. O chefe de tabanca dizia desconhecer a existência de guerrilheiros inimigos naquele local e era convictamente apoiado por quase toda a população. Só que pelo meio da conversa alguém se descuidou. O Jau, perito nestas andanças e sempre atento, apercebeu-se e toca a pôr o homem que bufou a confessar.
Ficámos a saber que um grupo de guerrilheiros pernoitou na noite anterior na tabanca, mataram uma vaca, comeram e beberam, fizeram uma festa e ao romper da aurora partiram para um novo rumo.
Esta conceção, tida como perfeitamente atendível, sublinha o reconhecimento de um povo em guerra que brigava, apenas, pela sua sobrevivência. Aliás, a forma como toda a população se entregava a uma missão plenamente percetível, deixava antever que o seu sentimento puro de dar e receber não suspendia os começos que a guerrilha, desde o seu início, lhe propusera.
Numa viagem memorial aos idos da década de 1970, recordo os tempos passados na Guiné em que recebi e dei momentos de enorme gratidão. Um abraço sentido para o povo da Guiné!



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. também o último poste desta série: 

Guiné 61/74 - P20790: Parabéns a você (1777): Abel Rei, ex-1.º Cabo At Art da CART 1661 (Guiné, 1967/68); António Graça de Abreu, ex-Alf Mil Inf do CAOP 1 (Guiné, 1972/74); Benjamim Durães, ex-Fur Mil Op Esp do BART 2917 (Guiné, 1970/72) e Rosa Serra, ex-Alf Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Guiné, 1969)




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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Março de 2020 > Guiné 61/74 - P20778: Parabéns a você (1776): Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro do BCAÇ 2861 (Guiné, 1969/70); Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA da CART 2732 (Guiné, 1970/72); Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp do BCAÇ 4612/74 (Guiné, 1974) e Maria Dulcínea, Amiga Grã-Tabanqueira

domingo, 29 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20789: Em busca de... (303): Alguém do Blogue que conheça Domingos Ferreira da Costa, da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835, natural de Seixo Alvo, Olival, V. N. Gaia, morto em combate, nas imediações de Guileje, em 28/3/1968 (Rosa Cruz, sobrinha)



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 2317 (Gandembel, Balana e Cansissé, 1968/69) > Março de 1968 > Na fase de carregamento dos cibes: algum destes militares pode ser o Domingos Ferreira Costa, municiador da metralhadora MG 42, que irá morrer em combate em 28/3/1969.
Foto (e legenda): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: logue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. Mensagem da nossa leitora Rosa Cruz:

Date: sexta, 27/03/2020 à(s) 16:28
Subject: Domingos Ferreira da Costa, RI15, 28 de Março 1968

Boa tarde, tomo a liberdade de lhe enviar este e-mail.

O meu tio, Domingos Ferreira da Costa, serviu o exército, RI 15. Faleceu na Guiné em 28 de Março de 1968, em combate.
Nunca o conheci (, nasci em 1977), mas sempre ouvi falar dele. Os meus avós... era o filho mais velho. Acho que nem os meus avós, nem os meus tios e minha mãe superaram a sua morte.

O meu avô faleceu em 1999, a minha avó em 2013. Vivi com eles muitos anos (mudaram-se para a nossa casa quando eu teria uns 14 ou 15 anos). Todos os anos, sem excepção, do dia 28 de Março ao dia 1 de Abril, ficavam quietos, calados, agarrados a um missal e a um terço. Eles só receberam o telegrama a comunicar a sua morte no dia 1 de Abril de 1968.

Talvez alguém no seu blogue conhecia o meu tio Domingos Costa?!... Poderão ter alguma foto dele, alguma história que possam contar para a minha mãe?...
Agradeço desde já qualquer informação.

Bem-haja
Rosa Cruz


2. Informação do nosso colaboração permanente, José Martins, a quem pedimos uma dica, um pista, como só ele sabe dar...
sexta, 27/03, 23:10

Boa noite, Luís.

Por aqui tudo bem, ao 15º dia de confinamento.

Quanto ao caso, e devido ao confinamento, só sei que foi ferido em Guilege, e morreu no HM de Bissau.

Suponho que o que a Rosa Cruz pretende, será uma foto. Mesmo que a haja, não havendo nenhuma referência à CCaç 2317 que pertenceu ao BCaç 2835 (o do Virgilio Teixeira), que esteve em Nova Lamego, não o conhecemos.

A hipótese seria conseguir autorização para consultar o processo do Domingos Ferreira da Costa, fotografando a foto do processo, mas estas consultas, depois de passada esta crise, ainda vão demorar, pois cada vez há menos gente nos arquivos para ler os mails,  sendo dada prioridade para se tratar de pedidos de contagem de tempo, para as reformas e para a esmola anual que é dada aos ex-combatentes em outubor

Por aí está tudo bem? Abreijos para todos, incluindo a neta.
Zé Martins


3. Comentário do editor LG:

Obrigado, Zé... Já é um pista, saber que o nosso infortunado camarada pertencia à CCAÇ 2317 (Gandembel e Ponte Balana, Nova Lamego, 1968/69).

É companhia do Idálio Reis, e temos mais de uma centena de referências a esta subunidade!... E muitas fotos...

O batalhão era de facto o BCAÇ 2835 (, o do Virgílio Teixeira era o BCAÇ 1933...). Este BCAÇ 2835 era o do teu amigo, o capelão Libório... Se confirmas a Companhia, temos muitas pistas e podemos dar a referência à sobrinha, que quer saber histórias destes martirizados construtores, defensores e coveiros de Gandemel (que o Domingos Costa não já chegou a conhecer)... Vou dar conhecimento ao Idálio Reis e à Rosa Cruz.

Vamos aguentando.
Abraço grande.
Luis

PS - Se o Domingos Ferreira da Costa foi ferido em combate em Guileje em 28 de Março de 1968, já não conheceu Gandembel, no sul, na Região Tombali, e muito menos Cansissé (Região Gabu, no Nordeste)...
Vamos perguntar ao Idálio Reis, que de resto publicou um livro sobre a epopeia da CCAÇ 2316 (também com muitas fotos). Haverá seguramente alguma referência ao Domingos Ferreira da Costa, e ao episódio em que foi ferido ou morreu....


4. Resposta do Zé Martins, com data de ontem, às 22h48

Boa noite.
O 2835 era o batalhão do Padre Libório [, é do tempo do BCAÇ 1933, do Virgílio Teixeira].  O Domingos Ferreira da Costa é, de facto, da CCaç 2317. O livro do Idálio Reis, que tenho aqui, fala da composição da unidade, estando o nome do Domingos na página 12. A acção está contada nas páginas 66 a 68. O livro tem muitas fotos: provavelmente, o Idálio Reis poderá identificar se, nalgumas delas, está o nosso camarada. Como o mail também lhe é dirigido, aguardemos.

Bom resto de fim de semana, que é mais curto 1 hora. Bom seria que pudéssemos avançar também um ano, no calendário.

Fiquem bem, com um grande abraço extensível à Rosa que, por ser sobrinha de um camarada nosso, nossa sobrinha é.

Um grande abraço para o Idálio Reis, que não vejo já há alguns anos, fazendo votos de que tudo esteja bem com ele.

Zé Martins


5. Resposta enviada hoje à Rosa Cruz:

Rosa, bom dia...
Obrigado por nos ter contactado...
Já teve conhecimento, em modo C/C, de algumas trocas de mensagens entre camaradas nossos que fazem este blogue, o José Martins e o Idálio Reis (, um dos alferes milicianos da Companhia de Caçadores 2317, que comandou o pelotão a que pertencia o seu tio, Domingos Costa, e que tem um livro publicado sobre a epopeia destes nossos bravos camaradas).

O Idálio Reis, hoje engenheiro agrónomo reformado, a viver em Castanheira de Pera, tem aqui, no nosso blogue, uma série, "Fotobiografia da CCAÇ 2317"... E neste poste (clicar no link), faz uma referência explícita ao nome do seu tio Domingos Costa, e às circunstâncias dramática em ele, que era municiador de metralhadora MG42, e outro camarada, o Meireles, municadiador da bazuca 8.9, foram mortos. Além do encontro fatal com uma força inimiga, houve um tremendo ataque de abelhas selvagens.
O corpo do seu tio teve que ser resgatado, num gesto heróico do 1.º Cabo Carmo, o "Lamego". (*)

(...) A acção heróica do 1.º cabo Carmo, de alcunha o Lamego

Com o casaco do camuflado a cobrir a cabeça [, por causa das abelhas], há um que sem dizer palavra dirige-se ao local onde o companheiro [, Domingos Ferreira Costa,] jazia, levanta-o sobre o ombro esquerdo e junta-se ao grupo que abandona o local. E, antes da coluna de reabastecimentos entrar, um grupo de combate da tropa periquita [o pelotão do alf mil Idálio Reis,] assome a Guileje em desespero, silenciadas as palavras, com os olhos marejados de lágrimas de pranto e de dor a libertarem-se em fios copiosos sobre o rosto abaixo, com 2 camaradas mortos.

Acabávamos de perder os primeiros dois elementos de um dilatado rol: o Domingos Costa, da freguesia de Olival, em Vila Nova de Gaia, e o Manuel Meireles Ferreira, de Pópulo, em Alijó. (...)

Leia o texto, que a vai emocionar, leia-o  por inteiro, pausadamente mas poupe os pormenores à sua mãe, quando falar com ela. Vamos tentar saber mais, se o nosso camarada Idálio Reis (, que estava mais perto do Meireles do que do seu tio,] nos puder contactar: temos o seu mail e o seu nº de telemóvel... (**)

Força de ânimo para si e demais família, nestes tempos difíceis...
Um grande beijinho de todos nós.
Luís Graça

PS - Mais referências ao Domingos Costa (***)
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

(**) Último poste da série > 13 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20728: Em busca de... (302): instruendos do CISMI, Tavira, a tirar a especialidade de atiradores de infantaria, 6º Pelotão / 3ª Companhia, outubro de 1968: "Eu, o Torres, o Joaquim Fernandes, o Loureiro e o Saramago fomos todos para o CTIG...mas dos outros gostava de saber do paradeiro"... (Eduardo Francisco Estrela, ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71; vive em Cacela)

(***) Vd. poste de 6 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2160: Militares mortos em campanha, no sul, entre Fevereiro de 1968 e Janeiro de 1969 (J. C. Abreu dos Santos)

> (...) – 5.ª feira 28Mar68 † DOMINGOS FERREIRA DA COSTA
nat. Seixo Alvo, freg. Olival, conc. Vila Nova de Gaia
Sold Inf Mun MG42 da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15 (a 2 meses da chegada e há 8 dias no local)
e
† MANUEL JOAQUIM MEIRELES FERREIRA
nat. Vale de Cunho, freg. Pópulo, conc. Alijó
Sold Inf Mun LGF 8.9 da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15 (a 2 meses de início c/8 dias no local) morrem ao início da tarde durante contra-emboscada no entroncamento Guileje> Ganturé> Gadamael. (...)

30 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2145: António Pereira Moreira, última baixa mortal da CCAÇ 2317 (J. C. Abreu dos Santos / Idálio Reis)
19 dre abril de  2006 > Guiné 63/74 - P704: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

(...) A tal passagem por Guilege, onde se encontrava a CART 1613, foi curta - de 20 de Março a 8 de Abril de 1968 - e serviu essencialmente como local de depósito de materiais destinados à construção de um aquartelamento [, em Gandembel]  junto ao célebre corredor de Guileje, por onde o PAIGC fazia passar grande parte dos seus reabastecimentos originários da ex-Guiné-Conacri.

Nesse lapso de tempo, várias colunas se fizeram desde Gadamael; numa missão de protecção, a 28 de Março, no cruzamento de Guilege, o meu grupo de combate num baptismo de fogo externo demasiado intenso (vimos militares não negros, porventura cubanos!), perdeu dois homens, a quem presto a minha sentida homenagem: Domingos Ferreira da Costa e Manuel Joaquim Meireles Ferreira. (...)

Guiné 61/74 - P20788: Blogpoesia (669): Coluna de Aldeia Formosa para Buba (Fradique Morujão da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892)

1. Mensagem do nosso camarada Fradique Morujão (CCAÇ 2615 / BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, 1969/71), com data de 26 de Março de 2019:

Caro Carlos vinhal 
Saudações amigas. 
Em anexo, envio um pequeno texto. Numa noite de insónia resolvi escrever uns gatafunhos, que espero tenham alguma aceitação. Sempre fui um pouco despassarado o que se compreende pelos cerca de sete anos de interregno.[1]

Atenciosamente 
fmorujão
____________


Caros camaradas

C - cuidado
O - organismo
V - viral
I - isolamento
D - definitivo

A minha intervenção tem a ver com o momento delicado e perigoso que o nosso País e o mundo atravessam. Com a ameaça de um inimigo invisível que investe porta a porta em que a logística consome enormes recursos sem êxitos aparentes.
Este exército, apesar de ser microscópico está apetrechado com biliões de soldados que tudo destroem. Entra de forma inopinada e ninguém dá por nada.
Todos os ex-combatentes com a experiência acumulada sabem que a luta é duplamente nefasta, porque sofremos baixas na nossa juventude e agora confrontamo-nos com as estatísticas que nos dão como alvo preferido.

Para expressar o meu modo de ver este imbróglio, vou usar a quadra:

Tive a tinhosa tinha
E a febre asiática,
A culpa não foi minha
Foi da sala de didática.

Agora estou assustado
Pode ser a minha vez,
Como lá diz o ditado
Não há duas sem três.

Vai andar tudo aos tiros
Com mortes colaterais,
“Raios partam” este vírus
Vai tudo prós hospitais.

Está ficar tudo em brasa
Desta guerra não me livro
Se tenho de ficar em casa,
Afinal, para que é que sirvo?

Apetece-me dizer em latim macarrónico.
ARRIUM PORRIUM, CATANORIUM

Quando das incursões que fizemos pelas matas africanas, éramos instruídos para mantermos as distâncias de segurança e não tocar em nada. É precisamente o que se pede, além de outros cuidados.
Este vírus politicamente incorreto, derrotou em poucos dias, embora de forma transitória mas eficaz, os afetos que o nosso preclaro PR promoveu durante quatro anos.
Dá que pensar!

Contra o vírus dos desafetos:
Quarentena de movimentos
Liberdade de pensamentos
Vamos nessa, o vírus está com pressa.

********************

Passemos agora à recordação da minha passagem pela Guiné:

Vou mais uma vez usar a quadra, porquê:

A quadra
É a única namorada
Que partilho com prazer,
Porque diz coisas simples
Na sua forma de dizer.
Quando ela me enlaça
Nos seus berços abraça
Todo o meu modo de ser.
O resto da vida passa
Vá-se lá saber!...


Coluna de Aldeia Formosa para Buba

A todos vós que estais
Em amena cavaqueira,
Aos ilustres comensais,
Uma pequena brincadeira.

Sou um pobre reformado
Que navega à deriva,
Quer morra, quer viva
Já me sinto conformado.

Nasci prós lados da serra,
Lugar de muita ilusão.
Fui mandado prá guerra
Para defender a nação.

Embarquei para a Guiné
Com destino a Bissau,
Viajei com muita fé,
Afinal era tudo mau.

Combati na juventude,
Sempre metido no perigo,
Não vi qualquer virtude
Em provocar o inimigo.

Metralhadoras e granadas
Eram os nossos brinquedos.
Havia aldeias queimadas,
Para afugentar nossos medos.

Presenciei vários perigos,
Sendo alguns fatais.
Para nós era um castigo
As minas antipessoais.

Muitas vezes acontecia
Um ficar c'a perna às postas,
O que a gente mais queria
Era levar os pés às costas.

Vi um tórax todo roto
O soldado não sofria
Embora estivesse morto
O coração ainda batia.

Uns diziam palavrões,
Pela má sorte dos seus,
Outros viam razões
Para rezar ao seu Deus.

Tive uma má experiência
Com mortos em combate,
Infligidos pela resistência
Onde é difícil o resgate.

Gente pobre com nobreza
Com escassez de cultura
Que fazem da esperteza
A sua principal armadura.

Fiz colunas para Buba
Por trilhos e bolanha.
Enfrentei muita chuva
Numa terra tão estranha.


Bolanha perto de NHALA


Para quê tanta guerra,
Para perder a colónia
E voltar à minha terra,
Com angústia e insónia.

Vivam agora o presente
Com muita suavidade
E que cada instante,
Seja bela eternidade.

Que a saúde vos acompanhe e a mim nunca me falte.
Abraço
fmorujão
____________

Notas do editor

[1] - Vd. poste de 13 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7776: Tabanca Grande (267): Fradique Augusto Morujão, CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71)

Último poste da série de 29 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20787: Blogpoesia (668): "Mar encapelado e furioso", "Génios" e "Fragilidade", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20787: Blogpoesia (668): "Mar encapelado e furioso", "Génios" e "Fragilidade", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Mar encapelado e furioso

De repente ficou encapelado e furioso o mar do mundo.
Uma vaga profunda e virulenta o remexeu.
Nossos barcos ameaçados parecem mesmo soçobrar.
As profundezas nos ameaçam lá do fundo.
Ficamos todos aprisionados no nosso chão.
Fracos e fortes, por igual.
Nada podem nossos poderes.
Não há exércitos nem batalhões capazes de nos defender.
Nos assegurem nossas vidas.
É o estertor estrondoso e apoplético da nossa fraqueza.
Olhamos uns para os outros. Apavorados.
A ameaça é total, asfixiante.
Voltam-se para os céus os nossos olhos.
Só deles poderá vir a salvação.
Vêem claro como nunca, os erros das nossas escolhas.
Como eram todas vãs e inúteis nossas apostas
Uma onda de arrependimento perpassa nossas almas.
Certos de que só deste pode vir nossa salvação…

Ouvindo Gabriel Faure's Requiem Op. 48 Complete
Mafra, 28 de Março de 2020
10h59m
Jlmg

********************

Génios

A criação da natureza concretizou-se numa diversidade de seres quase infinita.
O género humano recebeu uma forma uniforme que varia de indivíduo para indivíduo.
Não há dois iguais.
Cada um é irrepetível.
Cada homem é dotado de faculdades idênticas, de capacidade variável.
Sua gama é semelhante, não igual.
Cada qual tem sua mente e criatividade própria.
Como as estrelas não têm o mesmo brilho e tamanho, assim o homem.
Cada um chega onde pode.
Mas, há alguns que saem da média, na capacidade de perscrutar a ontologia do universo.
Porquê? É um enigma por desvendar.
A esses chamamos génios.

Ouvindo Ennio Morricone Music Playlist Vol. 2
Mafra, 28 de Março de 2020
16h26m
Jlmg

********************

Fragilidade

Como é tão frágil a nossa força perante o desencadear dos fenómenos da natureza.
Por mais exercícios físicos, treinos e endurances, ficamos sempre muito aquém do necessário.
Seres minúsculos, por mais que nos empertiguemos.
O tempo e o movimento nos escapam entre os dedos.
Nada sobra de nossas poupanças.
Gastamos tudo que temos e somos para nos mantermos de pé.
Sem reservas ocultas, depressa esgotamos nosso depósito.
Não nos basta a sapiência e reflexão.
Há sempre muita escuridão no seio da realidade.
Somos frágeis.
O que nos salva é a lforça do nosso destino.

Ouvindo Rachmaninov Piano Concerto No. 2 Mov. 2
Mafra, 25 de Março de 2020
9h28m
Jlmg
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20765: Blogpoesia (667): O Vírus, o Bem e o Mal (João Afonso Bento Soares, ex-cap eng trms, STM&QG/CTIG, 1968/70, hoje maj gen ref)

Guiné 61/74 - P20786: Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira) (4): parados no sudoeste da Austrália, em Fremantle-Perth, a mais de 14 mil km do porto de abrigo



MSC - Magnífica > Cruzeiro de Volta ao Mundo > Sudoeste da Austrália > Fremantle-Perth> 24-26  de março de 2020 > O comandante do navio decidiu seguir diretamente para o Mediterrâneo a mais de 14 mil km de distância, ou sejam, 3 semanas de viagem...

Constantino Ferreira d'Alva, ex-fur mil art da CART 2521 (Aldeia Formosa, Nhala e Mampatá, 1969/71), membro da nossa Tabanca Grande desde 16 de fevereiro de 2016,... Trabalhou 30 anos na TAP, como tripulante de cabine; começou a escrever o seu diário de bordo, em 23 de janeiro de 2020, na sua página do Facebook, Viagens no Tempo

Embarcou no MSC - Magnífica, em 6 de janeiro, em Marselha, numa viagem de volta ao mundo em 115 dias, seguindo a Rota de Fernão de Magalhães. O cruzeiro deve (ou devia) voltar ao ponto de partida no dia 1 de maio p.f.. Com ele e a esposa Elisa, vão mais dois "camaradas da Guiné", incluindo o António Graça de Abreu; num total de 2800 pessoas (2000 passageiros, 800 tripulantes). 300 já tima optado por regressar de avião, desistindo da viagem por mar... A boa notícia é que não há, a bordo, até à data, nenhum caso de infecção provocado pelo vírus SARS-CoV-2 (nome oficial dado pela OMS), e que orgina a COVID-19 (nome oficial da doença]

Cortesia da página do faceboook de Constantino Ferreira. Fotos reeditadas pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


1. Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa (Constantino Ferreira) (4):  parados no sudoeste da Austrália,  em Fremantle-Perth, a mais de 14 mil km do porto de abrigo no "Mare Nostrum". (Excertos)

Quinta feira, 26 de março de 2020, 11h40

Hoje, foi o dia da grande decisão, tomada pela companhia MSC, do seu distinto proprietário; Signori Aponti,  e do comandante do MSC-Magnífica; Roberto Leotta.

Eram 18h00 aqui a bordo, quando o sistema áudio anunciou que o Comandante ia fazer um importante comunicado. De imediato, tudo parou a bordo. O Comandante anunciava a decisão de navegar directo, para o Mediterrâneo.

Era a alegria estampada em todas as caras!

O navio tinha que ser reabastecido, mas não tem autorização de reentrar no porto, de onde saiu ontem á noite, com destino ao Dubai, mas entretanto o Dubai fechou o seu porto. Pelo que temos andado aqui ás “voltinhas”, frente a Fremantle-Perth, até que chegou esta boa decisão:  Navegar para o Mediterrâneo!

Agora o navio tem que ser reabastecido, para fazer este trajeto. O governo da Austrália, entretanto proibiu todas entradas no portos. Assim iremos ser reabastecidos por batelão, mas fora do porto !

Entretanto, está provado que não temos nenhum “caso” de coronavirus a bordo. Mas a lei do governo, tem de ser cumprida, cegamente!?...

Se tudo correr bem, com o reabastecimento, dentro de 48 horas, já estaremos a navegar, para o "Mare Nostrum", o  Mediterrâneo !

(...) Para desanuviar, alguma tensão, que ainda subsiste, vou aqui colocar algumas fotografias, destes últimos dias !


Sábado, 28 de março de 2020, 11h53

Continuamos fundeados na baía de Fremantle-Perth, desde ontem ao fim da tarde. Ontem à noite ainda recebemos um batelão, com paletes de alimentos e bebidas. Hoje de manhã recebemos mais dois batelões de alimentos. Mas agora, da parte da tarde, ainda não recebemos mais nenhum batelão.

Agora mesmo, às 4 horas da tarde, está o Comandante a falar, pelo sistema áudio de todo o navio! Acaba de anunciar, que embora o carregamento de víveres, tivesse começado ontem à noite, tem sido muito mais moroso do que o esperado, pelo que o abastecimento, embora lento, vai continuar até amanhã ao meio-dia!

Assim, levantaremos âncora logo a seguir, assim que tenhamos autorização com o piloto da barra. A expectativa de reabastecimento, em poucas horas, foi gorada, mas é absolutamente indispensável este carregamento de víveres, pois o objetivo é navegar direto para o Mediterrâneo, que se espera vencer em cerca de três semanas!

Continuamos “todos” muito bem a bordo; passageiros e tripulantes! Estamos “todos” solidários com o nosso Comandante; Roberto Leotta. A administração da MSC merece toda a nossa solidariedade, nesta decisão, de não sermos “repatriados”, deste fim do mundo, por avião!

Onde não tivemos a solidariedade humana, foi do Senhor Primeiro Ministro do Governo da Austrália. Estamos já há quase três semanas na Austrália, onde demos entrada, saindo a terra no porto de Hobart, na Tasmânia, para vistoria dos passaportes.

Reentrámos de imediato para bordo do navio e nunca mais fomos autorizados a ir á terra, em nenhum porto da Austrália, onde estivemos atracados ao cais! Desde Hobart, Sidney, Melbourne e agora aqui, em Fremantle-Perth, onde já estivemos atracados ao cais, mas saímos do porto com destino ao Dubai, que entretanto também fechou o porto a toda a navegação e, nos obrigou a regressar a Fremantle-Perth.

Mas ao regressarmos, entretanto Governo da Austrália, também fechou todos os portos desta Ilha Continente, obrigando muitos navios a fundearem fora dos respectivos portos de abrigo !

As declarações do Senhor Primeiro Ministro, do Governo Australiano não terão sido as mais apropriadas, nestas circunstâncias, sem solidariedade humana e sem visão global deste problema, da proliferação e difusão do coronavirus, COVID-19.

 (... ) Amanhã, ao princípio da tarde, vai começar para nós, ainda cerca de 2.000 passageiros e 800 tripulantes, esta “Nova Odisseia” de chegarmos em uma única “etapa”, ao "Mare Nostrum"
Ao Mediterrâneo!

Estamos todos no mesmo barco ! Estamos todos solidários, com o nosso Comandante, Roberto Leotta. Para que esta grande viagem, de milhares e milhares de milhas náuticas por estes mares “acima”, decorra sempre o melhor possível !  E, que, ao chegarmos ao Mar Vermelho, o Canal Suez se abra para o Mediterrâneo que nos espera, mas ainda sem porto de abrigo, como destino, na nossa velha e jovem Europa.

[Revisão e fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
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