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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5283: Carta aberta ao António Lobo Antunes: que p... é essa de ter talento para matar ? (Amílcar Mendes, 38ª Cmds, 1972/74)

1. Mensagem do Amílcar Mendes , membro da nossa Tabanca Grande (foto à esquerda; o primeiro, de camisa branca, boina e crachá dos comandos, ao lado do nosso co-editor Virgínio Briote, também ele um ex-comando da Guiné(*)

Assunto - Ter talento para matar ou morrer: Carta aberta ao Sr. Lobo Antunes


Luís Amigo, nos intervalos da minha actividade na praça de Lisboa, vou me deliciando a ler algumas pérolas literárias de ex-combatentes (?) acerca da ex-guerra do ultramar, em especial daqueles que, evocando as suas memórias, as vão editando em livro, o que fazem muito bem, até para que a geração actual possa avaliar o que passaram os pais, avós, etc….

Por esse motivo devem aqueles que escrevem ter o cuidado de transmitir tudo o que se passava na guerra. Vejamos: actividade operacional, social, relações com a população, falar se foi justa ou não, sequelas deixadas, os camaradas mortos, as saudades, tudo, mas tudo aquilo que passou deve ser deixado em escrita. Sem nunca sair da realidade, porque estivemos lá milhares e sabemos avaliar a verdade e a mentira e, se a mentira exceder a verdade,. o escritor arrisca-se a cair no ridículo.

Um caiu ! Ó Sr. médico, escritor combatente, Lobo Antunes. Por favor, Sr. Lobo Antunes, apenas peço que me explique a mim, ex-combatente que repetidas vezes olhou a MALVADA nos olhos, que A viu por uma dúzia de vezes levar nas garras os seus camaradas de COMPANHIA, eu que por uma vez A iludi mas ficou a SUA marca,a mim que dormi em bolanhas noites a fio, que em emboscadas intermináveis mijava no camufulado (e que bem sabia o quente) sem me poder mexer, que sentia um medo danado a cada vez que ia para a mata, a mim que comi marmelada com capim, a mim que bebia o mijo dos animais nas raras poças de água na mata, e finalmente a todos os milhares que lá estivemos, gostaria por favor que me respondesse a esta simples pergunta:

- Mas que porra é essa de ter talento para Matar? É como ter talento para Mentir ? Vou pensar que o Senhor é um ficcionista da escrita e como tal inventou tudo o que escreveu. Se é esse o seu caso está perdoado, mas quando escrever mais alguma coisa sobre guerra, peça aconselhamento a alguém sério que lá tenha estado e tenha realmento conhecimento do que foi a guerra e combater nela, não invente demasiado se não ninguém o vai levar a sério.

Bem, mas a pergunta mantem-se para quem souber responder, talvez o Sr. João Silva (**). Mas que raio é ter talento para matar? Uma pista: Os HÉROIS acontecem por acaso,os cobardes vivem com convicção. Desculpe a minha ortografia mas sou um pobre inculto sem pretensões a escritor.

Amílcar Mendes, [taxista na praça de Lisboa,] ex-1ª cabo COMANDO da 38ºCOMPANHIA DE COMANDOS, em 72, 73 e 74 na ex-Guiné Portuguesa.

[ Revisão / fixação de texto / bold a cores / título: L.G.]

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd., por exemplo, os seguintes postes de Amílcar Mendes sobre Guidaje, 1973:

22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)

23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)

23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje

24 de Outubro de 006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...

(**) Referência a João Céu e Silva, autor do Uma Longa Viagem Com António Lobo Antunes (Porto Editora, 2009)

Parece que o pomo da discórdia, as declaarações feitas por A. Lobo Antunes, no México, em Agosto de 2008, está na página 391... Escreve o autor de Uma Longa Viagem..., João Céu e Silva:

(...) Nas várias entrevistas que deu durante a deslocação a Guadalajara [em Agosto de 2008, para receber o Prémio Literário Juan Rulfo], António Lobo Antunes fez uma declaração inédita, que poderá ser parte da solução do mistério sobre um certo episódio em África que se recusou revelar-me:

"Eu tinha talento para matar e para morrer. No meu batalhão éramos seiscentos militares e tivemos cento e cinquenta baixas. Era uma violência indescritível para meninos de vinte e um, vinte e dois e vinte e três anos, que matavam e depois choravam pela gente que morrera. Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia uns pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam motros valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros" (...).


É preciso recordar que A. Lobo Antunes foi Alferes Miliciano Médico, entre 1971 e 1973, no Leste de Angola, e não na GUINÉ... O tema da guerra colonial é recorrente nos livros e nas entrevistas do escritor... Cite-se, por exemplo uma entrevista dada o ano passadado ao Público... É, quanto a mim, que sou seu leitor (de longa data, mas nem sempre regular - não gosto da palavra 'fã', procuro ser um leitor crítico), uma notável entrevista do escritor de Arquipélago da Insónia (o seu penúltimo livro, acabado de sair), e em que se fala dos temas que lhe são caros e obsessivos: a literatura, a escrita, a infância, a figura do pai, a psiquiatria, as mulheres, a vida, a doença, a morte…

Havia duas referências à guerra colonial nessa entrevista... O escritor tinha passado recentemente por uma situação, bem dura, de combate contra a doença, uma neoplasia. Tudo se relativiza quando um homem ganha este round e se prepara para o próximo… A vida é um combate de boxe contra a morte...

Aqui vai um pequeno excerto:

Lobo Antunes: Como posso eu, cristal, morrer? Entrevista por Anabela Mota Ribeiro. Público. 12.10.2008

(…) [Público: ] Quando digo que tresanda a morte, não digo que me apeteça morrer ou matar-me, ou matar.

[António Lobo Antunes:] Não queria falar sobre isso, mas eu estive na guerra. Matar é muito fácil. Quando o Melo Antunes estava doente, nunca tínhamos falado sobre a guerra e ele começou a falar; a mulher aproximava-se e ele dizia: "Não podemos falar mais." Perguntava-lhe: "Ernesto, porque é que não sentimos culpabilidade?" Assisti e participei em coisas horríveis. E ainda hoje não sinto culpabilidade. Porquê? Ele também não soube responder. É estranho. Porque sinto culpabilidade por ter ferido uma pessoa verbalmente, por ter sido injusto para alguém.

[Público:] Sente culpabilidade por que pensa que vai sobreviver àqueles que estão na mesma sala, à espera da radioterapia.

[António Lobo Antunes:] Sentia-me culpado porque eu ia viver e eles não. Eles eram melhores do que eu. Tinham coragem. Eu estava todo borrado. Li um bocadinho das cartas da guerra, cartas que me oferecia para ganhar o meu respeito; cheguei a ir sentado no guarda-lamas dos rebenta minas. Porque me achava um cobarde e me enojava a cobardia física. Assisti uma única vez ao espectáculo da cobardia física, e é repelente. Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Agora vão para a discoteca, naquela altura iam dar tiros. Iam matar e morrer. Voltando ao livro: o que eu queria era meter lá a vida toda, e não acho que seja triste. Acho que sou agora mais alegre do que era. (…)

Há já mais de duas dezenas de comentários (alguns destemperados, contrários ao espírito do blogue, onde o chamado direito à indignação não pode levar, por seu turno, ao incitamento à violência...) sobre este famigerado tópico do "talento para matar"...

Vd. poste de 6 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5058: In Memoriam (33): Alferes Henrique Ferreira de Almeida, morto em combate em 14JUL68 em Cabedu (J.A. Pereira da Costa)

Ainda sobre o António Lobo Antunes, vd. os seguintes postes publicados no nosso blogue:

6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)


(...) "Não morreste na cama mas morreste entre lençóis de metal horrivelmente amachucados na auto-estrada de Cascais para Lisboa e a gente ali, diante do teu caixão, tão tristes. Eras meu camarada, que é uma palavra da qual só quem esteve na guerra compreende inteiramente o sentido: não é bem irmão, não é bem amigo, não é bem companheiro, não é bem cúmplice, é uma mistura disto tudo com raiva e esperança e desespero e medo e alegria e revolta e coragem e indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas" (...).

9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)


30 de Junho de 2008 >Guiné 63/74 - P3003: Blogoterapia (58): Que o País os beije antes de os deitar fora, e lhes peça desculpa (António Lobo Antunes / A. Graça de Abreu)

28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3375: (Ex)citações (5): Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Iam matar e morrer (A. Lobo Antunes)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)



Capa e contracapa do livro de J. L. Pio de Abreu, Como tornar-se doente mental, 18ª ed, Lisboa, Dom Quixote, 2008. (Prémio Città delle Rose, 2006).



Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados.




Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73)

por Luís Graça e António Graça de Abreu


Os médicos que estiveram na Guiné, no tempo da guerra colonial, têm sido em geral parcos de palavras (escritas). Ainda não nos deixaram testemunhos (escritos), com uma excepção ou outra (por exemplo, Mário Ferreira, autor de uma obra de ficção, Tempestade em Bissau, que ainda não li) (*)... Que eu saiba, não temos ninguém equivalente ao António Lobo Antunes (**), que fez a guerra de Angola, e cujas filhas publicaram, em 2006, as cartas e os aerogramas que o pai foi escrevendo à mãe, entretanto falecida por doença.

É bem possível que ainda haja escritos (diários, cartas, aerogramas, relatórios, dossiês, etc.) nas gavetas de alguns dos nossos antigos camaradas médicos. Fotos, seguramente que há algumas, já amarelecidas, no velho baú lá do sótão de um ou outro. É possível, no entanto, que apareçam escritos, sobre a experiência da guerra colonial, da autoria dos nossos médicos, à medida que acabam as suas carreiras no Serviço Nacional de Saúde. No caso dos que foram mobilizados para a Guiné, logo na primeira metade da década de 1960, já estarão mais do que reformados, andando a maioria na casa dos 70-75 anos.

A verdade é que não têm chegado ao nosso blogue, nem os escritos nem as fotos dos médicos que passaram pelo CTIG. O que é pena: o seu ponto de vista, muito particular, sobre o nosso quotidiano na Guiné, é também uma peça importante do puzzle da nossa memória…

Nem sequer sabemos quem eles são (ou foram), quantos foram, por onde andaram e por onde param hoje. Em geral, havia um médico, miliciano, por batalhão. (Originalmente, houve companhias independentes, que tinham o seu próprio médico, como foi o caso foi da CCAÇ 675, Binta 1964/65, de que o nosso camarada JERO era o Fur Mil Enfermeiro) (***).

Julgo eu que fossem, a maior parte deles, de rendição individual. Em Bambadinca, entre 1969 e 1971, conheci no mínimo três, o David Payne, o Saraiva e o Vilar. Destes, o primeiro e o último tiraram depois a especialidade de psiquiatria. O Payne e o Sampaio pertenciam à CCS do BCAÇ 2852 (1968/70). O Vilar – também conhecido pela sua alcunha de caserna, o Drácula – integrava a CCS do BART 2917 (1970/72).

O David Payne, já falecido, foi aqui amiudadas vezes vezes evocado pelo Beja Santos. O Payne seu era amigo e padrinho de casamento (se não me engano). Infelizmente, também já não se encontra entre nós (***).

Os nossos alferes milicianos médicos eram mais velhos que os restantes oficiais e sargentos milicianos. O Lobo Antunes, por exemplo, foi para Angola já com 28 anos, casado… Eram mais velhos por razões óbvias: eram licenciados e, em princípio, tinham de já estar inscritos na Ordem dos Médicos para poderem exercer medicina em Portugal. Convém aqui recordar que as carreiras médicas, públicas, só existem em Portugal, desde 1971.

Não sei quais eram os critérios usados pelo Exército no recrutamento, incorporação, instrução e mobilização dos médicos, digamos, de campanha, que integravam unidades operacionais a nível de batalhão

Talvez alguém saiba e possa escrever mais alguma coisa sobre os serviços de saúde militar, a sua história, o corpo médico, etc. Enquanto estudantes de medicina, os futuros médicos deviam beneficiar de adiamento da incorporação. Mas, quando eram incorporados, não deviam ter ainda grande experiência clínica. A tropa e sobretudo o ultramar devem ter sido, também, para eles, uma grande “escola” (tanto do ponto de vista clínico como humano).

Na Guiné, para além do HM 241, em Bissau, não havia nenhum estabelecimento hospitalar digno desse nome, nem mesmo em Bafatá, a capital da zona leste… Os meios de diagnóstico e terapêutica eram escassos, o serviço de sangue bem como o de anestesia eram inexistentes, a farmácia estava limitada aos produtos do laboratório militar, etc., nos nossos postos médicos, no mato, preparados quando muito para prestar primeiros socorros (um rudimentar medicina de emergência pré-hospitalar) e fazer, quando alguma, algum pequena cirurgia ambulatória com ou em anestesia local...

Não é ofensa para ninguém reconhecer que a preparação dos alferes milicianos médicos (sem falar dos furriéis milicianos enfermeiros e dos 1ºs cabos auxiliares de enfermagem) era deficiente, tanto a nível clínico e terapêutico como epidemológico (conhecimento da etiologia e da distribuição das principais patologias que afectavam a população que serviam, os militares e os civis).

Tal como no passado, o que era sobretudo valorizado era a cirurgia militar, com as suas várias valências, capaz de responder aos casos, mais graves, de feridos em combate ou por acidente, muitos deles politraumatizados, com direito a evacuação Ypsilon (os tais trinta minutos de viagem de heli, de ida e volta, que podiam significar a diferença entre a vida e a morte).

Em geral, os nossos alferes milicianos médicos não nos acompanhavam em operações (a não ser em casos esporádicos como foi o caso do já citado Dr. Saraiva, apanhado pela Op Tigre Vadio, em Março de 1970). Eles pertenciam à CCS do respectivo batalhão e, tal como os capelões, faziam visitas periódicas às unidades de quadrícula (Xime, Mansambo e Xitole, no caso por exemplo do Sector L1, com sede em Bambadinca).

Dentro das limitações dos serviços de saúde militares da época e do país (que só tinha 3 faculdades de medicina, em Coimbra, Lisboa e Porto, e uns escassos 5 mil médicos… no final da década de 1950, número que duplicou na década seguinte!), fizeram-se milagres na Guiné, com a coragem, a competência e a abnegação dos nossos 1ºs cabos auxiliares de enfermagem, dos nossos furriéis milicianos enfermeiros, das nossas pára-quedistas enfermeiras, dos nossos alferes milicianos médicos, dos nossos médicos militares de carreira (que deveriam ser poucos) e, enfim, de todo o staff do HM241 (que, eu, felizmente, nunca conheci, por dentro…), sem esquecer na rectaguarda, na Metrópole, o Hospital Militar Principal, na Estrela, com o seu famigerado Anexo de Campolide, em Lisboa, e o Centro de Medicina de Reabilitação, em Alcoitão, Cascais, criado (em meados da década de 1960) e gerido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. (Em casos mais graves, que exigiam sofisticados cuidados de cirurgia plástica e reconstrutiva, Portugal tinha um acordo de cooperação com a Alemanha, um parceiro da NATO).

Alguns dos nossos camaradas médicos já não estarão vivos. Outros ainda aparecem nos convívios anuais das unidades a que pertenceram. É o caso, por exemplo, do Dr. Vilar, que foi médico do meu tempo em Bambadinca (CCS/BART 2917, 1970/72), mas também do Dr. Mário Fereira.

De que eu me lembre só temos dois antigos alferes milicianos médicos na nossa lista, de A a Z, dos membros da Tabanca Grande: o Amaral Bernardo e o Mário Bravo (ambos vivem e trabalham no Porto, o primeiro no Hospital de Santo António e o segundo no Hospital da Ordem do Carmo) (****). Não confundir com oficiais milicianos que, tendo sido operacionais, se formaram mais tarde como médicos, já depois do 25 de Abril. É o caso, por exemplo, do nosso querido amigo Victor Junqueira (que vive e trabalha em Pombal).

No descritor “Médicos” do nosso blogue, há já mais de três dezenas de referências. Temos inclusive varais histórias protagonizadas por médicos mas escritas por outros. Daí a ideia de darmos continuidade à série, ainda incipiente, dedicada aos nossos médicos.

É uma série (*****) que deve ser de recordação de (e de homenagem a) os nossos médicos militares que, em geral, eram milicianos, incluindo os que prestavam serviço no HM 241, em Bissau. Fica aqui o apelo para nos lembrarmos deles e eles de nós… Cada um de nós deve ter recorrido uma ou mais vezes aos seus serviços e, portanto, deve ter, no mínimo, uma história passada com eles.

Hoje começamos por evocar dois deles, através da escrita do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu, Alf Mil, CAOP 1 (Canchungo, Mansoa e Cufar, Junho de 1972/Abril de 1974). São eles o Tierno Bagulho, na altura já com “trinta e tal anos” e o Pio de Abreu, mais novo. O primeiro (cirurgião) com mais experiência clínica e treino de que o segundo (que hoje é um conhecido psiquiatra). O Tierno Bagulho, infelizmente, já não nos poderá ler. O mesmo não acontece com o coimbrão J.L. Pio de Abreu, autor de um desconcertante e saudavelmente provocador livro sobre saúde mental.

O livro do António Graça de Abreu continua a ser, para mim, uma preciosa fonte de informação (factual e contextual) sobre o período final da guerra que eu já não vivi nem acompanhei (1972/74).

Há tempos perguntei ao Graça de Abreu se tinha mais recordações do Tierno Bagulho, para além das que constam no seu diário. Aqui fica a resposta:

(...) Perguntas-me pelo Bagulho, o médico, cirurgião de Teixeira Pinto. Falo nele no meu livro, conheci-o bem quando cheguei a Teixeira Pinto, em Junho de 1972. Estava lá com outro médico, outro grande senhor chamado Pio de Abreu que é hoje professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e um dos maiores especialistas portugueses em Psiquiatria. Foram duas pessoas que me orgulho muito de ter conhecido. Do Dr. Bagulho, filho do almirante Tierno Bagulho, sei que faleceu poucos anos depois de voltar da Guiné. Afinal tu conheces a viúva, a Raquel. Infelizmente não tenho nenhuma fotografia do Bagulho e do Pio de Abreu, apenas uma onde apareço com o outro médico, o Mário Bravo, que veio substituir um deles em Teixeira Pinto. Um abraço ao Mário Bravo. (...)

Canchungo, 22 de Julho de 1972

Fui hoje jantar com os dois alferes médicos no único tasco onde se pode comer cá na terra. Um bife duro, batatas mal fritas, um ovo estrelado, 45 escudos.

Os dois médicos são gente interessante, inteligentes, cabeças abertas para o mundo. Conversámos sobre a guerra, sobre as nossas vidas. O Bagulho tem trinta e tal anos, é já cirurgião em Lisboa, esteve detido em Caxias quando da crise académica de 1962. O Pio de Abreu ainda não tem trinta anos, é de Coimbra e faz parte daquele grupo de quarenta e nove estudantes da Universidade que, em 1969, na sequência das greves e desacatos na academia coimbrã, foram alistados coercivamente no exército.

Nenhum tem hoje qualquer actividade política nem de contestação do regime, mas carneiros não somos. É pena para mim – não para eles -, estarem em fim de comissão, só mais dois meses para o Bagulho.

São óptimos médicos, segundo a opinião de toda a gente. Dão consulta à população, com intérprete, tratam das milhentas doenças que afligem este povo manjaco e são os médicos militares, cuidam da tropa aqui estacionada e prestam assistência aos feridos em combate que chegam a Canchungo vindos directamente do mato.

Têm uma casa grande apenas habitada por eles, fora do quartel, na avenida principal em frente ao hospital. Uma casa bonita com uma sala de estar confortável, com móveis e tudo.
In: António Graça de Abreu: Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz. 2007. pp. 31/32.

Sobre o Luís Tierno Bagulho, que morreria precocemente, de doença, no final dos anos 70, depois de ter à Guiné, já independente, como médico cooperante, deixando viúva a minha amiga Raquel, e três filhos (duas raparigas e um filho de tenra idade, o Luís, hoje também médico, devendo estar a acabar a sua especialidade em medicina interna, no antigo Hospital São José, em Lisboa), escreve ainda o António Graça de Abreu:

Canchungo, 6 de Agosto de 1972

Depois do jantar, estava no bar de oficiais com o Bagulho, o alferes médico, e chamaram-no de urgência ao hospital. Peguei no jipe e fui lá levá-lo.

Havia uma criança a nascer.

A primeira vez que entrei numa maternidade foi na barriga de minha mãe, a segunda foi hoje. Entrei curioso na pequena sala do hospital que funciona como maternidade no momento exacto em que o bebé nascia, saía coma placenta ensanguentada do ventre da mãe, a pele quase branca. O Bagulho fez rapidamente o seu trabalho de médico e deixou o recém-nascido ao cuidado da enfermeira negra. Pediu-me que o acompanhasse até uma sala mais pequena, do outro lado da parede.

Havia uma criança a morrer.

Um bebé de quatro meses agonizava. A mesma enfermeira que cuidava agora do recém-nascido, há umas horas atrás exagerara na distribuição do soro à criança doente cuja vida se extinguia diante dos nossos olhos. O Bagulho pediu-me para eu ir buscar uma botija de oxigénio. Mas a válvula da botija estava avariada, não regulava a distribuição do gás. O médico suava, eu também. Nada se podia fazer. Extinguia-se uma vida por doença, incompetência, falta de meios. O miúdo morria.

Sempre o supremo milagre: entre nascimento e morte, caminhamos sobre a terra
(p. 38).

(Esta cena fez-me recordar uma outra, passada em Bambadinca, em meados de 1970 – já não posso precisar o mês – em que o Dr. Saraiva, auxiliado pelo nosso querido Pastilhas, se não estou em erro, e mais uns tantos como eu, que só atrapalhavam, tentou desesperadamente salvar uma bebé de umas das nossas amigas do Bataclã de Bambadinca… Elas era de Bafatá (vinham de vez em quando fazer a Bambadinca uma farras) e uma delas tinha uma bebé, de meses, que dormia a um canto, embrulhada nuns míseros panos. A farra era grande, a música alta, íamos já pela noite dentro, quando a mãe – a Ana Maria ? a Fatumatá ? – deu conta de que a criancinha estava com dificuldades respiratórias…

Levada de urgência para o nosso posto médico, no quartel, o Saraiva fez tudo o que estava ao seu alcance para a salvar… Lembro-me dele esquartejar, com o bisturi, a perna da bebé à procura, desesperadamente da safena para lhe poder administrar o soro milagroso da vida… A criança acabou por morrer, já de madrugada… Cotizámo-nos para ajudar a mãe a fazer um funeral condigno… Foi o primeiro bebé que vi a morrer, à minha frente. Embora já calejados pela dureza da guerra, ficámos todos consternados pela morte daquele anjinho… De bisturi em punho, o Saraiva, nessa noite, atingiu, aos meus olhos, o estatuto do gigante humano lutando, num combate desigual, contra a prepotência dos deuses. Eu, que segurava a perninha da criança, não aguentei o combate até ao fim. Pronta e brutamente, o Saraiva dispensou os meus serviços e mandou-me apanhar ar, para a parada)…

Encontro, mais à frente no diário do A. Graça de Abreu, outra referência a médicos, desta vez ao Pio de Abreu:

Canchungo, 16 de Agosto de 1972

Hoje, o resultado das brincadeiras com as armas. Ouvi um tiro e gritos na caserna dos soldados do Batalhão [, BCAÇ 3863], aqui diante do meu quarto, a uns quarenta metros. Fui dos primeiros a chegar, a ver o sucedido. Um soldado, quando brincava coma espingarda, esfacelara o pé direito de outro soldado com um tiro de G3. Tiraram a bota ao pobre rapaz que guinchava de dores, e meu Deus, como estava o pé, destroçado, atravessado de lado a lado, com os ossos e os tendões despedaçados, tudo à mostra, escorrendo sangue. Estava convencido de que era pouco impressionável, mas tive uma tontura, vi tudo branco. Recuperei rápido e ajudei a levar o rapaz em braços para a enfermaria. O Pio, o médico, fez o que pôde. Uma hora depois uma DO evacuava o soldado para o hospital de Bissau.

Em Bafatá, caiu um das avionetas DO ao levantar voo, parece que por acidente, descuido do piloto, um alferes que eu não conhecia. Morreram o piloto e um cabo mecânico.
(pp. 43/4).

O Pio de Abreu ainda estava em Teixeira Pinto, em finais de Outubro de 1972, aquando a emboscada entre Pelundo e Có, a uns quinze quilómetros do Canchungo, a um coluna de cerca de 40 viaturas, e em que seguiam vários oficiais superiores, incluindo o comandante do CAOP1 (o famoso coronel Durão), e em que houve cerca de 10 feridos, alguns com gravidade,

Há uma referência à actuação do Alf Mil Médico Pio de Abreu [, da CCS do BCAÇ 3863, ] na tentativa de salvar a vida a um fuzileiro do PAIGC, atingido por estilhaços de uma bala de helicanhão.


Canchungo, 31 de Outubro de 1972

(…) Quando acontecem estas coisas, pedem-se logo os helicópteros de Bissau para a evacuação dos feridos e vem também o helicanhão que faz fogo sobre os itinerários de retirada do IN. Foi então abatido um guerrilheiro que veio de héli para aqui. Eu sabia que havia feridos e lá estava na pista. O fuzileiro do PAIGC chegou ainda vivo, com um uniforme azul manchado de sangue e um estilhaço na cabeça de bala de helicanhão. O médico e um furriel enfermeiro fizeram-lhe massagens no coração que de nada valeram, o homem morreu. Foi o primeiro guerrilheiro que vi, e logo agonizando numa maca de lona.
(p. 62)

Em Fevereiro de 1973, há outra referência a um intervenção do Pio de Abreu.


Canchungo, 1 de Fevereiro de 1973

(…) No regresso dos comandos [, da 38ª CCmds, enviados com o Cor Ricardo Durão, para lidar com um rebelião de militares guineenses do Bachilé, na sequência de um desafio de futebol que acabara mal], à entrada da vila rebentara uma caixa cheia de dilagramas – granadas disparadas pela G3 com um dispositivo especial – em cima de um Unimog onde vinham catorze homens. Dois mortos de imediato, os restantes feridos vinham a caminho. Corremos para o hospital. Os comandos chegaram. Como vinham, meu Deus! Um Furriel morria na sala de operações. A suas últimas palavras para o Pio, o médico, foram: “ Doutor, cuide dos outros, eu estou bem”. Nas macas, no chão de pedra do hospital jaziam feridos graves, corpos semi-desfeitos, barrigas, intestinos de fora e quatro rapazes só com alguns estilhaços. Não ouvi um queixume mas havia muitos homens a chorar.

Era preciso evacuar os feridos para o hospital de Bissau. Onze horas da noite, iluminámos a pista com os faróis das viaturas e com as mechas acesas de muitas garrafas de cerveja cheias com petróleo, distribuídas de dez em dez metros ao longo do campo de aviação. Aterraram quatro DO. Ajudei a transportar feridos entre o hospital e as avionetas, num dos nossos Unimogs. Dois deles iam muito mal, cravados de estilhaços, em estado de choque ou em coma, não sei se escaparão. (…)
(p. 74).

Dias depois, a 3 de Fevereiro de 1973, o António Graça de Abreu é, transferido, com o CAOP1, para Mansoa (que tem a grande desvantagem, em relação ao Cachungo, de “embrulhar uma vez por mês”, p. 73), e perdemos o rasto do Pio de Abreu, que, como já dissemos, pertencia à CCS do BCAÇ 3863, com sede em Canchungo (Teixeira Pinto).

Mobilizado pelo RI 1, o BCAÇ 3863, esteve sediado (o comando e a CCS) em Teixeira Pinto. A comissão de serviço na Guiné foi de 17/9/1971 a 16/12/1973. Foi comandado pelo Ten Cor António Joaquim Correia. Era composto pelas CCAÇ 3459 (Bassarel), 3460 (Cacheu) e 3461 (Carenque e Teixeira Pinto).

Presumo o que o J.L. Pio de Abreu tenha terminado a comissão na mesma altura que a CCS do BCAÇ 3863, ou até antes. Hoje ele é um dos mais conceituados nomes da psiquiatria portuguesa, sendo psiquiatra do Hospital de Coimbra e professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, autor do best-seller Como tornar-se doente mental, 18ª ed, Lisboa, Dom Quixote, 2008. (Prémio Città delle Rose, 2006).

Teríamos muito gosto que ele nos lesse ou que este poste pudesse chegar ao seu conhecimento. O mesmo se passa com a nossa amiga Raquel e seu filho Luís Bagulho, ou até mesmo com as suas filhas (com quem cheguei a privar, quando adolescentes). Talvez a família Bagulho queira e possa acrescentar algo mais sobre este período da vida do nosso camarada que tanto o marcou, como pessoa e como médico, ao ponto de voltar à Guiné-Bissau, como cooperante, sempre generoso e slidário, já depois da independência. Nunca o conheci pessoalmente. A doença atraiçou-o precocemente, creio que já no final dos anos 70.


_____________

Notas de L.G.:

(*) 10 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2092: Antologia (61): Tempestade em Bissau (Mário G. Ferreira)

(**) 9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)


Vd. também:

28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3375: (Ex)citações (5): Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Iam matar e morrer (A. Lobo Antunes)

30 de Junho de 2008 >Guiné 63/74 - P3003: Blogoterapia (58): Que o País os beije antes de os deitar fora, e lhes peça desculpa (António Lobo Antunes / A. Graça de Abreu)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

(***) Vd. ppste de 29 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4878: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (12): O nosso Alferes Médico na vida civil...


Vd. outras histórias sobre médicos (lista exemplificativa, não exaustiva), publicadas no nosso blogue:

2 de Novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1238: David Payne Pereira, um gentleman luso-britânico e um grande médico em Bambadinca (Beja Santos)

8 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2036: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (11): Dr Brocas, o contador de estórias que era gago


11 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2523: Estórias de Guileje (7): Um capitão, cacimbado, e um médico, periquito, aos tiros um ao outro... (Rui Ferreira)


26 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2887: Em busca de...(27): José Alberto Machado, Alf Mil Médico (Carlos Marques Santos)

(***) Vd. postes de:

21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2566: Em busca de ... (21): Malta de Bedanda, do futebol e dos serviços de saúde (Mário Bravo, Alf Mil Médico, CCAÇ 6, 1971/72)

23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)

28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1467: Bem vindo a Guileje, Doutor (Mário Bravo)

12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1517: Tertúlia: Com o António Graça de Abreu em Teixeira Pinto (Mário Bravo)

(*****) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3375: (Ex)citações (5): Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Iam matar e morrer (A. Lobo Antunes)

Lobo Antunes: Como posso eu, cristal, morrer? Entrevista por Anabela Mota Ribeiro. Público. 12.10.2008

Notável entrevista do escritor de Arquipélago da Insónia (o seu último livro, 2008…) em que se fala dos temas que lhe são caros, recorrentes, obsessivos: a literatura, a escrita, a infância, as figuras do do avô e do pai, a psiquiatria, as mulheres, o amor, a amizade, a vida, a doença, a morte…

Há duas referências à guerra colonial... O escritor passou recentemente, em 2007, por uma situação, bem dura, a experiência de (e o combate contra) a doença, uma neoplasia. Tudo se relativiza (incluindo a hipótese da obtenção de um merecido e almejado Prémio Nobel da Literatura) quando um homem ganha este round e se prepara para o próximo… A vida é um combate de boxe contra a morte.

Eis os dois excertos em que faz referência à sua experiência da guerra colonial, em Angola:

(…) Não queria falar sobre isso, mas eu estive na guerra. Matar é muito fácil. Quando o Melo Antunes estava doente, nunca tínhamos falado sobre a guerra e ele começou a falar; a mulher aproximava-se e ele dizia: "Não podemos falar mais." Perguntava-lhe: "Ernesto, porque é que não sentimos culpabilidade?" Assisti e participei em coisas horríveis. E ainda hoje não sinto culpabilidade. Porquê? Ele também não soube responder. É estranho. Porque sinto culpabilidade por ter ferido uma pessoa verbalmente, por ter sido injusto para alguém.

Sente culpabilidade por que pensa que vai sobreviver àqueles que estão na mesma sala, à espera da radioterapia.

Sentia-me culpado porque eu ia viver e eles não. Eles eram melhores do que eu. Tinham coragem. Eu estava todo borrado. Li um bocadinho das cartas da guerra, cartas que me oferecia para ganhar o meu respeito; cheguei a ir sentado no guarda-lamas dos rebenta minas.


Porque me achava um cobarde e me enojava a cobardia física. Assisti uma única vez ao espectáculo da cobardia física, e é repelente. Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Agora vão para a discoteca, naquela altura iam dar tiros. Iam matar e morrer. Voltando ao livro: o que eu queria era meter lá a vida toda, e não acho que seja triste. Acho que sou agora mais alegre do que era. (…).

Nesta entrevista, o escritor parece rejeitar os livros anteriores ao Esplendor de Portugal (1997), incluindo os três primeiros, a trilogia da guerra colonial - Memória de Elefante (1979), Os Cus de Judas (1979) e Conhecimento do Inferno (1980)... "Quando comecei a fazer os livros de que gosto, mais ou menos a partir d'O Esplendor de Portugal - até lá, se voltasse atrás, ia tudo fora - deixei de ter planos. Sei que me faltam três capítulos [do que estou a escrever agora] para acabar a primeira versão. Mas depois aquilo é tão trabalhado, emendado, reescrito" (*).

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Nota de L.G.:

(*) Para saber mais, ler o sítio não oficial do António Lobo Antunes, da iniciativa e responsabilidade de José Alexandre Ramos.

Vd. também a biografia do escritor, nascido em 1942, e que de 1971 a 1973 foi Alf Mil Médico, no leste de Angola, onde conheceu e fez amizade com o então capitão Melo Antunes, o ideólogo do MFA.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3347: Bibliografia de uma guerra (37): Fado Alexandrino, de A. Lobo Antunes (José Manuel M. Dinis)

Fado Alexandrino

António Lobo Antunes


1. Mensagem de Jose Manuel Matos Dinis


A Tabanca Grande tem dado destaque à obra, ou a parte da obra literária de A. Lobo Antunes. E isso resulta da temática militar que influencia esses textos, pelo menos em matéria de sensibilidades, ansiedades e sublimações. Tudo bem, também adquiri A Memória de Elefante, Os Cus de Judas e outros.
Mas o Autor tem um título delicioso sobre esta matéria, um título onde eu poderia ser intérprete de muitos dos personagens. O Fado Alexandrino é uma paródia que vai acontecendo à medida que evolui a acção, uma confraternização de antigos mobilizados na guerra de África. Uma grande farra, hilariante, que me provocava incontíveis risos, como se fosse um maluco a ler um tratado, manifestações que induziram a abordagem de estranhos, a querer saber do que me dava tanto gozo.
Li uma boa parte no café La Iruña, em Pamplona, e aquela malta interessa-se por malucos. Trata-se de um livrinho que li rapidamente, apesar das setecentas páginas, e das páginas que descolavam, tal a avidez que me despertou.
Tenho a 1ª. Edição, da Dom Quixote, necessariamente encadernado, que o António Lobo Antunes fez o favor de autografar anos mais tarde. O que eu quero, é deixar testemunho deste escrito que muito aprecio e, naturalmente, recomendo.
Para os camaradas, vai aquele abraço.
José Dinis

2. Crítica – Fado Alexandrino


"Deve-se ser muito restritivo quanto ao uso da palavra obra-prima. Mas não me resta qualquer dúvida de que este romance não é outra coisa que não isso. Leiam-no! Adquiram-no e leiam-no!"
In Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano XI, nº489, Novembro de 1991

"Eu não sei se este romance de Lobo Antunes é genial, mas o que de certeza sei é que ele é tudo menos chato."
"Ao longo de quase setecentas páginas ofegantes, perpassam, como um caleidoscópio, os últimos vinte anos da vida portuguesa.
Misturando tempos, sobrepondo lugares, cruzando histórias, multiplicando os planos, as imagens compõem-se e decompõem-se, refazem-se e voltam a desfazer-se, as peças do "puzzle" juntam-se e separam-se para voltar a reunir-se mais adiante, e a estrutura do romance, o próprio discurso narrativo, a própria linguagem, acompanham esse movimento incessante, que nunca desfalece, através do qual a realidade de um país, de um povo, de uma época, aos poucos se vai apossando de nós, aspirando-nos para o seu interior, mostrando-nos por dentro o que conhecíamos, ou julgávamos conhecer, por fora.
Com um humor contundente, (...) a História e as estórias desenrolam diante de nós o largo ciclorama onde se projectam personagens das mais diversas camadas sociais, surpreendidas no seu quotidiano tragicómico, na sua risível e pungente humanidade, na erosão dos dias e dos acontecimentos, da inércia do tumulto, igualmente vãos."

"Romance (...) de uma geração que fez a guerra colonial, que dela regressou com o terrível sentimento de 'se ter tramado em vão, se ter gasto sem motivo', que atravessou uma revolução traída e transviada e se encontrou 'na estagnada, serena, cadavérica, imutável tranquilidade de outrora' que o manhoso oportunismo de uns quantos ('os vorazes micróbios cancerosos que da revolução se alimentavam e em torno dela se moviam') fez suceder às ondas de esperança de uns e do pânico de outros, Fado Alexandrino é o retrato em corpo inteiro, e ao mesmo tempo a radiografia, da sociedade portuguesa em tempo de mudança."
In Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano IV, nº89, Março de 1984.

“ (...) a perspectiva escolhida é, se assim se pode dizer, a do tabuleiro de xadrez cujas peças maiores são constituídas por um grupo de ex-militares que se reúnem num jantar com o ex-comandante dum Batalhão expedicionário em Moçambique e à mesa procedem ao exercício duma memória de dez anos sobre si mesmos e sobre o Portugal de 'antes', 'durante' e 'após' Abril. E são peças secundárias desse jogo vivencial as relações multi-multiplicadas dos 5 (um Tenente-coronel, um Comandante de Companhia, um Tenente, um Alferes e um Soldado), com uma série de segundos planos familiares, profissionais, sociais e outros.
À medida que o leitor progride na organização desta memória, infunde-se nele a sensação de crepúsculo, do tempo parado, das ilusões traídas, e finda tudo num ambiente de dissolução caótica, onde o cometimento de um crime, na pessoa do Tenente, é quase um acto de antropofagia (começa na cumplicidade dos assassinos e acaba na combinação da ocultação do cadáver e no regresso de todos os outros ao marasmo dos dias. Não está implícito em tudo isto, que a vida, a solidão sem fundo e as amarguras dos personagens não sejam tão verosímeis como as alegrias ausentes ou as euforias passageiras."

“ (...) «livro dos seus livros» (...) sobretudo porque alia a exigência a um capital de pesquisas que, estando longe de considerar-se esgotado, é um caso típico da inquietação e daquele húmus criativo que nos torna solitários e nos remete para uma relação sofrida com a vida e com as pessoas. (...) também porque é retoma subtil dos grandes temas que vêm inspirando quase toda a obra de A.
O tema da guerra colonial, p. ex., (...) o inferno dos outros, a solidão punida e punitiva, o espaço do memorizado e do sofrido (...), são outros tantos caminhos recobertos por este livro."
"Fiquem os leitores com a ideia de que a 'monumentalidade' deste romance reside tanto nas suas dimensões físicas como na sua estrutura e na sua actualidade."
In Colóquio Letras, nº82, Novembro de 1984

In Literatura, Antonio Lobo Antunes. Com a devida vénia.
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Notas: artigos da série em

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P3003: Blogoterapia (58): Que o País os beije antes de os deitar fora, e lhes peça desculpa (António Lobo Antunes / A. Graça de Abreu)


Reprodução da capa da edição do semanário Visão, de 27 de Setembro de 2007, em que o escritor António Lobo Antunes deu uma notável entrevista a Sara Bela Luís sobre "A Vida Depois do Cancro".

Fonte: Cortesia de Site Não Oficial sobre António Lobo Antunes (2008)

1. Mensagem do António Graça de Abreu, também escritor, tradutor e investigador, e nosso prezado amigo e camarada, com data de 20 de Junho:


Que o País os beije antes de os deitar fora, e lhes peça desculpa
por António Lobo Antunes/ António Graça de Abreu

Caríssimos tertulianos, camaradas e amigos:

António Lobo Antunes, enorme escritor, foi alferes médico no leste e centro de Angola, de 1971 a 1973 (1). Na sua crónica na revista Visão, ontem, quinta feira, a 19 de Junho de 2008, escreve:

(…) Todos os anos a minha companhia lá da guerra faz um almoço com os que sobejam da miséria em que andámos. Não neste último almoço, no penúltimo, o furriel Firmino Alves começou a anotar os telemóveis dos nossos camaradas para os contactos da refeição seguinte, até que chegou ao Pontinha. Pontinha é a alcunha do ordenança da messe de oficiais, que morava na Pontinha. Como a cabeça dele era grande (continua a ser grande), chamavam-lhe também Porta-aviões, porque dava para os aviões aterrarem.

O Pontinha, como muitos dos soldados, vive com dificuldades. Ao fim de semana engraxa sapatos para equilibrar o orçamento.
(…) Falar dos meus camaradas comove-me: a expressão irmãos de armas é tão verdade. Enquanto nos aguentamos por cá. Mesmo depois. Zé Jorge, continuamos irmãos de armas. Cabo Sota: admiro a tua coragem até ao fundo da alma. Sozinho com a Breda, uma metralhadorzeca, aguentou um ataque. E vive mal, percebem? Como se deixa viver mal um herói? Ao acompanhá-lo ao táxi em que voltava, doente, ao Alentejo, avisei o condutor:
- Você leva aí um grande homem, sabia, um dos maiores homens que conheço

e, como todos os grandes homens da guerra, de uma infinita modéstia, bondoso, sereno. Não lhe chego aos calcanhares. Cabo Sota, tu mereces a continência de um general. O Zé Luís, oficial de operações especiais que em matéria de coragem não necessitava de aprender com ninguém:
- Eram duros

expressão que constitui para nós o supremo elogio. Adiante. Contava eu que o furriel Firmino Alves anotava os telemóveis até que chegou ao Pontinha e como fizera com os outros perguntou:
- Tens um telemóvel, Pontinha?

E o Pontinha logo a mostrar serviço:
-Não, mas a minha mulher tem um microondas.


(…) Boaventura, Nini, Licínio, vocês todos, caramba, como a gente somos irmãos. Unamuno, que muito respeito, tem páginas admiráveis sobre a valentia dos portugueses. Tens razão, Zé Luís, eram duros. Ganas de explicar às mulheres deles, aos filhos deles, o orgulho que tenho em ser amigo dos pais, em que os pais sejam meus amigos. Não: irmãos de armas. Não: irmãos. E bons como o pão. Ao lado disto que maior elogio se pode fazer? Ao menos que o País o beije antes de os deitar fora e lhes peça desculpa. E há mais anjos para além dos padeiros, de arma nas unhas mata fora. Nenhum deles é banqueiro, claro. Nem administrador. Nenhum deles joga golfe. Jogaram golfe num campo de um só buraco onde não é a bola que cai. É um rapaz de vinte anos.

E acabo aqui, antes que seja tarde para marcar o número de um microondas.


Camaradas de Portugal e da Guiné, depois de ler este texto, duas grossas lágrimas correram-me pelo rosto. Que o nosso País nos “beije antes de nos deitar fora e nos peça desculpa”. Que a vossa Guiné-Bissau vos beije também, “antes de vos deitar fora e vos peça desculpa.”

Sem complexos nem traumas de colonialista, sem complexos, sem traumas de colonizado, vamos ler outra vez o texto do António Lobo Antunes.

Depois, vamos adormecer em paz.

Um abraço,
António Graça de Abreu
S. Miguel de Alcainça,

20 de Junho de 2008
Ano do Rato
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Nota de L.G.:

(1) Vd. postes de:

6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)

9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2267: Inquérito online: O que é um camarada



Imagem: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

1. Dos editores do blogue:

Assunto - Sondagem (semanal):

Concordas ou discordas da definição de camarada que dá o António Lobo Antunes (médico, psiquiatra, escritor e ex-alferes miliciano médico, em Angola, no leste, em 1971/73) ?

"Camarada não é bem irmão, amigo, companheiro, cúmplice... é uma mistura disto tudo com raiva, esperança, desespero, medo, alegria, revolta, coragem, indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas" (António Lobo Antunes, 2007) (*)

Período de votação: de 8/10 a 14/10/2007.

Escolhe uma das cinco respostas possíveis (na coluna do lado esquerdo da página principal do blogue):


Discordo totalmente (1)
Discordo (2)
Não sei / Não discordo nem concordo (3)
Concordo (4)
Concordo totalmente (5).

Houve 70 respostas válidas. A grande maioria dos respondentes (87%) concorda ou concorda totalmente com a belíssima definição do António Lobo Antunes.

3. Primeiros comentários dos nossos camaradas:


(i) J. L. Vacas de Carvalho:

Claro que concordo. Nunca uma definição de camarada, como nós a entendemos, foi tão bem descrita. E ainda hoje, 35 anos depois, sinto exactamente isso. Poderá não ser uma lágrima, mas é um abraço, poderá não ser uma revolta, mas é uma recordação, poderá não ser um desespero, mas é uma amizade. Para todos a minha camaradagem. Zé Luís.


(ii) Joaquim Mexia Alves:

Também eu concordo. E acrescento, (se é possível acrescentar ainda mais), é uma entrega: Confio-te a minha vida, e tu confias-me a tua!
Abraço camarada do



Joaquim Mexia Alves

(iii) Torcato Mendonça:

Camaradas: CONCORDO! Gostei das respostas do Vacas de Carvalho e do Mexia Alves. Quando vi, já noite dentro, o post, ia responder. Cansado, entreguei-me a Morfeu. No outro dia escrevi quatro folhas de A5. Abuso e não passei à tecla. Talvez um dia vire escrito...tem a ver, também, com a beleza e qualidade dos escritos e temas do Blogue, nas semanas que estive fora. Foram lidos e digeridos qual ruminante.

Esta definição é, quanto a mim, a cereja em cima do bolo. Sublime. Tenho a crónica do Hospital colada no Livro D'Este Viver... e esta já a colei No Meu Nome É Legião.

Transformou-se o Lobo Antunes; entende melhor quem sofre, sabe hoje a infinidade de uma noite num hospital e, na entrevista ora dada, abre-se...bem eu gosto de o ler. Não devo é escrever e chatear com uma tão longa e parva resposta. Basta dizer – CONCORDO!
Abraços Camaradas do, Torcato Mendonça



(iv) Paulo Santiago:
Numa destas quintas-feiras à tarde (compro a Visão no Sábado) uma amiga,disse-me:
- Vem uma crónica do Lobo Antunes a falar de ti e dos teus amigos.

Achei estranho,acabando por comprar a Visão com antecedência de dois dias. Fiquei tocado com aquela definição de camarada, é tudo aquilo que penso mas, não saberia descrevê-la com aquela simplicidade do autor de Fado Alexandrino.

Tal como o Zé, também me isolei, nos últimos meses de comissão, em Contabane, escapando-me às bravatas do tonto do Lourenço.
Um abraço de amizade e camaradagem
Santiago

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Nota dos editores:

(*) Vd. post de 9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (Abril de 1968/Janeiro de 1969) > Um pequeno luxo, no aquartelamento em construção (e rapidamente abandonada meses depois, em Janeiro de 1969): a messe de oficiais... No chão, assinalado a vermelho, o famigerado repelente contra os mosquitos...


Foto: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados.

1. Damos hoje início a uma nova série: Humor de caserna. Será iniciada com a reprodução do post de 9 de Novembro de 2004 > Portugas que merecem as nossas palmas - XII: António Lobo Antunes (Luís Graça)


É seguramente muito melhor a escrever livros do que a dar entrevistas. O gajo (o senhor gajo...) não se sente bem no papel de entrevistado: é desconfortável lê-lo, dá a ideia de que anda com papelinhos amarelos no bolso, daqueles de tipo autocolante, com citações de gajos tão ou mais famosos do que ele, com frases feitas, e pequenas histórias prontas a servir...

Achei-o mais piegas, mais ternurento, menos cínico, mais portuga, na entrevista que deu hoje ao Adelino Gomes, no Público. A pretexto da homenagem que lhe estão a fazer, a esta hora, em Lisboa. E do seu último romance, Eu hei-de amar uma pedra (Lisboa: D. Quixote, 2004, 616 pp., 19 euros no hipermercado mais próximo de si; se for adolescente e não tiver graveto, faça um choradinho junto do autor, numa sessão de autógrafos, de preferência na presença do editor).

A homenagem é a dos seus vinte e cinco anos de carreira literária. E a da sua consagração de escritor de nível mundial. Vão cá estar grandes críticos literários: a portuguesa Maria Alzira Seixo, a espanhola Maria Luisa Blanco, o sueco Mats Gellerfelt, o alemão Wolfram Schütte. Ele, António Lobo Antunes, o melhor escritor de língua portuguesa da actualidade, podia já dar-se ao luxo de fazer birras, de mandar os portugas à merda, de cobrar a factura por ser mal amado na sua terra e no Hospital Miguel Bombarda. Mas não, ele faz o frete de ir ao Teatro Muncipal São Luís, de dar entrevistas, de autografar livros, de mostrar um sorriso amarelo aos leitores que lhe compram os livros e o lêem.

Com a idade e a fama, o nosso António está a ficar mais consensual, mais nacional, mais bem comportado. A sua ferida narcísica está melhor. Ou, pelo menos, não está pior. E os portugas rendem-se à evidência do êxito e, mesmo se o não lêem nem o entendem, tiram-lhe o chapéu. É um dos nossos poucos produtos de exportação. É, pá, o gajo (o senhor gajo...) tem mesmo de ser bom, para ter o êxito que tem na estranja, na Alemanha, na Suécia, na França, nos States... Esse argumento convence o papalvo, e o portuga pode ser saloio mas não é parvo.

E o Sampaio, que é da geração dele, e amigo dele e da família dele, achou por bem dar-lhe a grã-cruz-de-não-sei-quê. Espero que não tenha sido o Sampaio, o irmão do Daniel Sampaio, mas o Presidente, o Presidente de todos os portugas.

Este país é pequeno (em latim, parvulu, que deu parvo). E há vizinhos e amigos por todo o lado. Este país continua a ser o Bairro de Benfica dos anos cinquenta e sessenta. A Benfica das hortas e dos quintais, da couve portuguesa e dos coentros. E depois temos a lágrima fácil ao canto do olho.
Eu gosto do António, do escritor, que não do homem (que não conheço, vi-o uma vez na Feira do Livro, com o ar de quem estava ali a fazer um grande frete, contrariamente ao Zé Cardoso Pires, que era a humanidade em pessoa, um e outro autografando livros aos meus filhos, a Joana e o João). Confesso que não sou um serial reader do António, mas quando pego num livro do gajo lei-o de rajada.

Não resisto a fazer copy and paste desta carta que ele mandou de Angola a um dos manos mais novos, quando esteve no cu de Judas [, Era então alferes miliciano médico, tinha 28 anos, e estava recém-casado.] Vem hoje no Público.

O estilo é o da Guidinha, do saudoso Stau Monteiro. Presumo que a carta seja autêntica, e que o original, agora desenterrado do baú, esteja nas mãos do irmão. Reconheço nele (e nela, a carta) o estilo desalinhado e irreverente do futuro grande escritor. Um gajo como ele não precisa de ser adjectivado nem muito menos da grã-cruz-de-não-sei-quantas. O Portugal que o viu nascer é que precisa de homanegeá-lo. Acredito que ele não se sinta bem na sua pele, ao ser hoje apaparicado por tanta gente, no São Luís. E de ter honras de telejornal. Ele, no fundo, gosta, diz que não gosta, mas gosta, como qualquer primata social...

A vaidade é própria dos primatas, que são animais sociais, territoriais e... predadores. E vai gostar de ainda, um dia destes, receber o Nobel. É ele e nós. Com ele há uma parte de nós, dos portugas, que é apaparicada. E nós estamos mesmo com necessidade e desejo de sermos apaparicados.

Tivemos o Saramago, outro mal amado; temos agora o António, que está de reserva. Ainda o temos o eterno Manuel de Oliveira, que já está no Guiness por ser o realizador mais velho do mundo ainda a trabalhar... Não temos muito mais, talvez o Siza Vieira, talvez a Paula Rego, talvez o António Damásio, talvez o Figo, talvez até o Francis Obikwelo e o Deco, outros dois portugas de corpo inteiro...

Não vou dizer que o gajo, o António, o Lobo Antunes (1), é um génio e escreve bem, que isso ele já sabe, a gente já sabe. A crítica reconhece-o. Mas palmas, pelo menos, apetece-me dar-lhas e mandar-lhas neste dia. O António é um dos portugas que merece as minhas, as nossas palmas. Não fui à tua festa, pá, mas fiz-me de certo modo representar por cinquenta por cento dos meus genes. Já comprei o teu último romance e tenho-o à mesa de cabeceira: prometo lê-lo por estes dias de Outono.

Luís Graça

PS - Este escrito está datado. É de 2004. E pretendia ser uma pequena, singela, ternurenta, homenagem ao escritor António Lobo Antunes, por parte de um dos seus leitores. Hoje, passados três anos, há mais razões para estender essa homenagem ao homem (e ao nosso camarada), que sorriu à morte com meia cara... Quem se olha ao espelho e vê a morte, como muitos de nós que estivemos na guerra, tem muito respeito por quem a enfrenta com coragem, à morte, à adversidade, à doença... António, viveremos até aos cem anos, para continuar a ler as tuas fabulosas crónicas e perdermo-nos nos labirintos dos teus romances e das nossas vidas... Desculpa o tratamento por tu, mas aqui na nossa Tabanca Grande todos somos iguais, somos camaradas. Além disso, ainda não te puseram no Panteão Nacional, com a bandeira verde-rubra por cima!... Figas, canhoto!... E obrigado pela sopa que nos tens dado.

2. Humor de caserna > A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (2)

Carta da Guerra em Angola Enviada por Lobo Antunes ao Irmão Mais Novo
Público, Terça-feira, 9 de Novembro de 2004 (com a devida vénia...)

Remetente:
António Lobo Antunes
Alferes-médico SPM 2676

Ex.mo Sr. Manuel Lobo Antunes
Travessa dos Arneiros, 14
Lisboa 4
Metrópole

Redação: A Sopa
27-04-1971, em Ninda

Querido Manuel,

Eu estou em Angola. Eu gosto muito de Angola. Eu vim para Angola num barco muito grande, com muitos soldados. Eu vou voltar de avião. Eu vou aí em Setembro. Eu tenho patilhas. Eu tenho cabelo rapado. Eu tenho muitas saudades de todos, tais como da Margarida. Angola é em África. África tem leões, macacos, gazelas, elefantes, pacaças, palancas e muitos pretos. Os pretos tem um cabelo com muitos caracóis e dentes brancos. Os pretos não falam português, falam preto. A gente não percebe os pretos a falar preto. Os pretos às vezes falam português. Os portugueses nunca falam preto. Em Angola há muito calor todo o dia. Eu tenho uma espingarda mas ainda não matei ninguém. Eu visto farda. Farda é um fato igual para todos. Eu como coisas que não gosto de comer mas como porque há muita gente com fome e não devemos desperdiçar. A colher fica em pé na sopa de tal maneira a sopa é grossa. A sopa serve também para pegar tijolos uns aos outros. Há casas que foram feitas graças à sopa. A sopa tem muitas coisas dentro, que a gente tem de mastigar, e às vezes corta-se a sopa com a faca. A sopa é mais dura do que um bife muito duro. As colheres de sopa caiem no estômago da gente com um barulho parecido com pedras a cair num poço. Eu não gosto de sopa. Eu nunca mais como sopa. Já me nasceram dentes na barriga para moer a sopa, e os meus intestinos, a fazerem a digestão da sopa, parecem mesmo um motor de traineira. Quando me sento à mesa e vem a sopa tenho medo porque a sopa parece cimento. Eu estou forrado de sopa por dentro. Quando me assoo sai sopa do nariz. Quando espirro espirro gotinhas de sopa. Outro dia tiraram-me sangue e um talo de couve saiu-me da veia e entupiu a agulha. De vez em quando, quando há feridos, fazem-se transfusões de sopa, e a gente vê o grão e o feijão da sopa a saírem de um para entrarem no outro. Quando há feridas é preciso desinfectar a sopa que sai da ferida. Se se espreme uma borbulha aparecem logo bagos de arroz de sopa. A sopa é o nosso pior inimigo, a espiar a gente do fundo das panelas duas vezes por dia, ao almoço e ao jantar, a sopa ataca-nos. A sopa já fez muitas baixas. Às vezes a sopa traz brindes como os bolos-reis tais como baratas, insectos, borboletas, que morreram envenenados pela sopa. De maneira que a gente vai começar a usar a sopa como remédio para os ratos. Os americanos já nos pediram para a gente mandar sopa para o Vietname, porque os comunistas morrem todos se a comerem. Eu gostava muito de dar sopa à sopa. Eu vou acabar. São horas de comer a minha sopa.

António Lobo Antunes
Vítima nº 07890263 da sopa
Morto no campo de batalha do refeitório com um ataque agudo de sopa

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

(2) A bianda, o tacho, a comes-e-bebes, o rancho, além do álcool, era talvez a principal preocupação do tuga na Guiné... O supremo luxo era um bifinho com batatas fritas e ovo a cavalo, em Bissau, Bafatá, Nova Lamego, regado com vinho verde ou com umas bazucas... Veja-se, nos nossos cancioneiros, como o fantasma da fome, a pulsão da comida (e da bebida), inspirava os nossos poetas e humoristas de caserna. É apenas uma amostra... Também deveria fazer parte de qualquer filme-documentário sobre o qutodiano das NT, nos buracos (aquartelamentos e destacamentos) em que vivia... Esta também é outra face da guerra. Talvez um dia alguém a consiga passar para o garnde écrã. Como diz o Jorge Cabral, a 'nossa' guerra nãi teve apenas duas faces, era caleidoscópio...

(...) A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê
É preciso protecção.

(...) Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!

Hino de Gandembel


(...) Quando cheguei a Bolama
Muita fome lá passei
De fome julguei morrer
Mas desta ainda escapei.

(...) De noite cheguei a Empada
Estava tudo iluminado,
De manhã fui passear,
Fiquei decepcionado.

Comecei a comer melhor
Depois que cá cheguei,
Mas foi à minha custa,
Pois cá me desenrasquei.

Houve cabritos e cabras,
Mortos a tiro e paulada
Que para matar a fome
Não nos custava nada.

Neste rol de matança
Também há porcos e leitões
Que para nós mais tarde
São grandes recordações. (...)

Cancioneiro de Empada


CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês.
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:

MANUEL VIEIRA MOREIRA.

Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968

Cancioneiro do Xime

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

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Visão, 4 de Outubro de 2007 > Crónica do António Lobo Antunes (com a devida vénia à revista e ao autor...).

Imagem digitalizada por Zé Teixeira. Alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Mensagem, com data de 5 de Outubro de 2007, enviada pelo nosso querido amigo e camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70), actualmente residente em Matosinhos, bancário, reformado:

Caríssimos editores

Na revista Visão desta semana vem este extraordinário artigo sobre a morte de um camarada que o escritor António Lobo Antunes escreveu (1).

Creio que com a devida vénia merece ser dado a conhecer a todos os antigos camaradas.

Devo dizer que quem mo trouxe foi o meu filho, com o seguinte comentário:
-Trago-te um artigo sobre a morte de um antigo combatente que me fez chorar (2) (3).

Bom fim de semana

J. Teixeira
Esquilo Sorridente
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Nota dos editores:

(1) Vd. post 6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)
(2) O escritor reencontrou os seus camaradas do Leste de Angola 34 anos depois do regresso a Lisboa. Nesse espaço de tempo, morreu um dos seus grandes amigos desse, o coronel Melo Antunes (1933-1999).
Vd. o seguinte recorte de imprensa:

António Lobo Antunes reencontra camaradas de há 34 anos
Ana Vitória
Jornal de Notícias, 19 de Novembro de 2005
"Estes são mais que meus amigos. São meus camaradas". Visivelmente emocionado, o escritor António Lobo Antunes abraçou, um a um, chamando-os pelos nomes, cada um dos seus companheiros da comissão de serviço militar obrigatório que desempenhou em Angola, entre Janeiro de 1971 e Março de 1973. Há 34 anos que não via muitos deles. Ontem, juntaram-se todos na Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa, a mesma de onde, há 34 anos, partiram, a bordo do navio Vera Cruz para a Guerra Colonial.
O momento do encontro, carregado de emoção e com lágrimas mal contidas, teve como pretexto o lançamento de "D'este viver aqui neste papel descripto - Cartas da guerra", uma compilação das cartas que António Lobo Antunes, quase diariamente, escreveu na época à sua mulher que ficara em Lisboa.
"Temos todos uma ligação muito forte. Só quem passou por aquilo pode compreender. Partilhamos muita solidão, muito sofrimento, muitos silêncios - e muito medo. Por isso o que nos liga a todos é indestrutível. Este livro é também uma homenagem a cada um dos meus camaradas. Aos vivos que aqui vieram, e aos que já não estão entre nós", disse António Lobo Antunes.
Muitos dos camaradas de guerra que ontem o acompanharam no lançamento do livro, organizado pelas duas filhas do escritor, Maria José e Joana Lobo Antunes, pisaram pela segunda vez o átrio da Gare Marítima de Alcântara. "Só estive aqui há 34 anos, quando parti para Angola e isto era um mar de gente com lenços brancos e lágrimas a despedir-se de nós; e a agora, para o lançamento do livro. Ainda estou um bocado atordoado. Voltar aqui é como reabrir as feridas que a guerra, de uma maneira ou de outra deixou em todos nós, mesmo nos que por ela passaram sem serem feridos". As palavras são de Luís Oliveira, que se tornou conhecido em Angola como o Pontinha (porque morou lá perto) e que ontem mereceu particular atenção por parte do "senhor Dr. Lobo Antunes", que insistentemente reclamava a sua presença.
"Na tropa acabei por ser cozinheiro. Era eu que preparava as refeições do senhor Dr. Cozinhava-lhe uns petiscos, tirava-lhe as espinhas do peixe. Deixava o prato impecável, como ele gostava. Levava uma hora a comer a sopa e hora e meia a saborear o conduto. Sabia que ele escrevia mas nunca nenhum de nós leu esses escritos".
Nestas "Cartas da guerra" agora editadas, como sublinhou João Paixão, da editora Dom Quixote, o que perpassa de uma forma mais marcante é "a força dos silêncios e das ausências". E como diria a filha do escritor, Maria José, "publicar estas cartas é recusar o esquecimento".

(3) Para saberes mais sobre o escritor e o homem:
Blogue Orgia Literária > Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes
Portal da Literatura > António Lobo Antunes (n. 1942)
Site não oficial sobre António Lobo Antunes > Biografia
Wikipédia > António Lobo Antunes

sábado, 6 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)

António Lobo Antunes (n. 1942) foi alferes miliciano médico, no Leste de Angola, entre Janeiro de 1971 e Março de 1973. Pertenceu ao BCAÇ 3835. Tinha acabado de se casar e a mulher, Maria José, estava grávida. Os aerogramas que escreveu a sua mulher, foram publicadas posteriormente à sua morte (ainda recente, por cancro), por inciativa das duas filhas do casal. Título: D'este viver aqui neste papel descripto - Cartas da guerra (Lisboa: Publicações D. Quixote. 2005).


A experiência da guerra colonial marcou muito o início da sua escrita e a feitura dos primeiros livros: Memória de Elefante (1979), Cu de Judas (1981), Conhecimento do Inferno (1981)... A publicação das cartas de guerra (por iniciativa das suas filhas, não sua) reaproximou-o desta temática e dos seus camaradas, muitos dos quais estiveram, 34 anos depois, no cais de Alcântara no lançamento do livro...

Talvez depois disso, o escritor retomou o gosto e o sentido da palavra camarada. Dos tempos do Leste de Angola, ficara entretanto uma grande amizade, com o então Capitão Ernesto Melo Antunes (1933-1999).

Entretanto, Lobo Antunes conheceu, no Hospital de Santa Maria, aos 65 anos, a terrível e frágil condição do doente oncológico... Em Março de 2007 deixou-se operar por um amigo de longa data. Ele próprio revelou, em crónica publicada na Visão (12 de Abril de 2007) e ainda escrita no hospital, que estava a lutar (mal) com um cancro...

Na crónica da última semana, publicada na Visão (4 de Outubro de 2007), evoca com grande ternura e com o seu talento de escritor genial o seu camarada Zé, que terá falecido recentemene em brutal acidente de viação na auto-estrada de Cascais. Dele diz: "África ficou para sempre dentro de ti, a roer-te, e deu cabo da tua vida"...

A crónica começa assim, dando a melhor definição que eu alguma vez li sobre o que ser um camarada. Só o Lobo Antunes poderia escrever isto:

"Não morreste na cama mas morreste entre lençóis de metal horrivelmente amachucados na auto-estrada de Cascais para Lisboa e a gente ali, diante do teu caixão, tão tristes. Eras meu camarada, que é uma palavra da qual só quem esteve na guerra compreende inteiramente o sentido: não é bem irmão, não é bem amigo, não é bem companheiro, não é bem cúmplice, é uma mistura disto tudo com raiva e esperança e desespero e medo e alegria e revolta e coragem e indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas" (...).

Vou pôr esta definição de camarada na primeira página do nosso blogue (citando o ilustre autor, com a devida vénia...).