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segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Ficarei imensamente grato a quem me puder ajudar com informações sobre a CCAÇ 1591 e Mejo. Quando li "Vindimas no Capim", escrito pelo nosso confrade José Brás, encontrei algumas referências a Mejo, mas fiquei-me por aqui. É uma grande surpresas, esta literatura memorial do Coronel Luís Cadete, chegou à Guiné ainda tenente, aqui foi promovida a capitão, vê-se à vista desarmada que aquela terra vermelha se tornou inesquecível, como aliás ele escreve na introdução:
"Mejo foi, no fim de contas, o nosso primeiro amor na Guiné e ainda hoje temos saudades dele, pois puxou por tudo quanto tínhamos de melhor para ultrapassarmos as dificuldades inerentes a uma situação de campanha."
É um livro que não merece ficar confinado a uma pequena edição, não é justo. Há por vezes ressaibos, ajusta contas com a sua própria instituição militar, maldiz a incompetência, mas até apetece recordar a frase icónica de Álvaro Guerra de que aquela terra foi um permanente avolumar de dores e inquietações, mas foi ali que se selou a nossa têmpera pelos anos vindouros.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (1)

Mário Beja Santos

Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses. Nunca li uma introdução a um ambiente tão poderosa e tão viva como Luís Cadete faz de Mejo, a ninguém pode deixar indiferente prosa tão precisa, uma demonstração de um olhar tão fecundo, lembra um geógrafo, um antropólogo, um etnólogo:
“A tabanca que dava pelo nome de Mejo situava-se, sensivelmente, a 9 quilómetros de Guileje, na estrada para Bedanda, na bifurcação para Salancaur Fula, colina com cerca de 110 metros de altitude com o cume em forma de tampo de mesa ligeiramente inclinado para Nascente, com o ponto mais elevado a Poente.
Esta colina, restos de formação rochosa de maior vulto dissolvida pelas chuvas diluvianas e ácidas do Pluvial, há vários milhões de anos, domina vasta extensão do rio Cumbijã que lhe corre a Norte. Com as encostas cobertas de grandes poilões e mato rasteiro, é um ponto de referência importante num território predominantemente plano. A vastíssima bolanha do Cumbijã dava arroz em quantidade que, antes da guerra, quer a Casa Gouveia, representante da CUF no território, quer a Sociedade Comercial Ultramarina, vinham comprar, na época própria, ao cais existente na margem direita, isto é, fronteiro a Salancaur e do outro lado do rio.”


Manifesta o autor a preocupação de que o leitor se insira naquele espaço e até naquele tempo, é um observador cuidado, quer manifestamente que o leitor ponhas os pés naquela terra de combate e em voo picado estamos em Mejo:
“Do ponto de vista militar, Mejo era um retângulo de 100 por 110 metros de lado que dependia da companhia de Guileje que aqui tinha um pelotão para garantir um mínimo de proteção à população regressada. A CCAÇ 1591 foi a primeira a estanciar por lá por 8 meses e meio. Sem instalações para alojar o efetivo da companhia mais os do pelotão destacado de Guileje, os primeiros meses foram vividos em tendas cónicas carcomidas pelo sol e pelas chuvas da Guiné. Os buracos eram tapados por rolhões de capim enquanto se trabalhava no fabrico artesanal de tijolos para a construção de casernas. Quando a CCAÇ 1591 arribou a Mejo, cuja má fama corria infrene por todos os cantos da Guiné, só se via capim verde e alto como um homem de pé, não só no exterior, mas também no interior da posição. Embora pareça inconcebível, aqui andava-se por trilhos ladeados de capim!”.

Segue-se a descrição da população civil e do armamento rudimentar da unidade dependente do comando de batalhão de Buba, ficamos a saber que a população de Mejo era da subetnia Futa-fula, mas não faltavam Fulas-forros.
Não se compadece, tem comprovadamente a memória bem acerada, com as jigajogas do decisor militar e muito menos com as manhosices burocráticas. Qual a importância de Mejo? Fazia parte de um plano de operações que tinha como objetivo principal a ocupação da colina de Salancaur, plano que se iniciara alguns meses antes da chegada de Schultz, concebido pelo comandante militar, pois a primeira medida de Schultz foi cancelar toda a atividade operacional determinada por este comandante. “A ordem alcançou a tropa quando esta já marchava rumo a Salancaur com o Pelotão de Reconhecimento Fox de Guileje a abrir a progressão, nunca mais se pensando em acabar algo que fora bem pensado.”

Mesmo a descrição da chegada da CCAÇ 1591 tem toques de originalidade, houve para ali umas trocas a baldrocas no quartel-general, estavam à espera de outra unidade, o Tenente Luís Cadete é mal recebido por aquela burocracia que tinha a inteligência de uma porta ondulada, lá vão para Brá, metidos numa caverna devoluta sem camas, andaram a fazer carreira de tiro em Prábis e depois metidos na LDG Montante, rumo a Fulacunda. Vão agora começar histórias galhardas, pícaras, de entremeio com lembranças afetuosas, algumas delas, garanto a pés juntos, merecia ser reproduzidas aqui por inteiro. Convém que o leitor não se esqueça que estamos em 1966, o corredor de Guileje ainda não assumira a dimensão infernal com que hoje é por muitos lembrado.

No pórtico das lembranças temos a paixão de Mariama, a bajuda mais bela da tabanca, Luís Cadete burila a quintessência da beleza:
“O corpo era escultural, de fazer inveja à estatuária da Antiguidade Clássica. Tinha um par de pernas deslumbrante, bem torneadas e esguias e a mama alta, firme, delicadamente cheia, como eu nunca vira nem voltei a ver outra e que, conforme à tradição, trazia em liberdade franca; a pele escura de tom avermelhado era acetinada, quente e glabra sem imperfeições. Quando ela passava no seu passo elástico e elegante a caminho da Fonte das Mocinhas – nome pelo qual era conhecida a nascente permanente situada a Sul da estrada para Buba e à entrada da tabanca –, sorrindo de olhos baixos aos piropos do pessoal, ninguém havia na Companhia que se não virasse para a ver passar.”

Mariama apaixonou-se pelo soldado D, rapaz sossegado, disciplinado e respeitador, nado e criado lá para as bandas da Lousã. E era correspondida. E não falta uma pitada forte de romantismo para adubar o romance:
“A Mariama e o D namoravam ao arame farpado e era um regalo vê-los conversando horas a fio sem que se descortinasse o que tanto tinham para segredar um ao outro. Dos olhos da Mariama, a ternura daqueles momentos via-se escorrer ao acariciar o rosto do D. E eu, romântico contumaz, nunca fui capaz de proibir aquelas manifestações de um amor impossível, dadas as circunstâncias.
E, durante cerca de quatro meses, aquele amor entre os dois encheu de ternura quantos viam o D e a Mariama no seu enlevo casto e puro ao arame farpado.”

Vieram os comentários libidinosos, nosso capitão não estava ali para os ajustes, lembrou a Mariama aquela evidência de que qualquer dia o D se ia embora sem consequências, era melhor que ela se protegesse para o futuro, e o final deste episódio é mesmo inesquecível:
“Olhou-me com um certo ar de desafio como quem sabe muito bem o que fazer e enquanto uma lágrima teimosa lhe corria pela cara abaixo respondeu-me, fitando-me nos olhos com o seu quê de desafio:
- Hora di D bai, nó na dita i n’bai faziu sabi toc i D cá esquíci Mariama (quando o D se for embora, vamo-nos deitar e fá-lo-emos e o D nunca esquecerá a Mariama).
Foi assim?
Só eles o saberão.”


Prepare-se o leitor para muito mais.

Aquartelamento de Mejo, imagem de Alberto Pires, com a devida vénia
Outra imagem de Mejo, também de Alberto Pires

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23909: Notas de leitura (1535): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23904: Documentos (41): "Diploma de Cobra", outorgado pelo cap inf Jorge Parracho, cmdt da CCAÇ 3325, "Cobras" (Guileje e Nhacra, 1971/72) ao seu amigo e camarada do tempo da Academia Militar, cap art Morais da Silva, cmdt da CCAÇ 2796, "Gaviões" (Gadamael e Nhacra, 1970/72)

 

Diploma de Cobra

Ao Capitão de Art António Carlos Morais 
da Silva como reconhecimento da CCAÇ 3325 pela
amizade e apoio incondicional que dispensou a esta 
unidade se outorga o grau de "Cobra" honorário.
E por ser verdade e como apreço da CCAÇ
3325,  lhe é passado o presente diploma que usurá
"in aeternum"

O Comandante
JSParracho
cap"

[ Cortesia do cor art ref Morais da Silva]




Foto nº 39



Foto nº 39A


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325, "Cobras de Guileje" (jan / dez 1971) > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto n.º 39, sem legenda > O cap Jorge Parracho (o segundo a contar da direita, na foto nº 39A) com a malta do 5º Pel Art que era comandado pelo alf mil art Cristiano Neves... Operavam três peças de 11,4 cm, apontadas para a fronteira.

O primeiro militar, na primeira fila, a contar da direita para a esquerda, na foto nº 38B, é o alf mil médico Mário Bravo, nosso grã-tabanqueiro. Também passou por Bedanda (CCAÇ 6) e depois pelo HM 241, em Bissau. Os "Cobras de Guileje" estavam longe de imaginar o que aconteceria àquele aquartelamento, um dos melhores da Guiné, dois anos depois... Foi aqui, em 18 de maio de 1973 que começou a Op Amílcar Cabral... (em que o PAIGC mobilizou t0dos os seus meios para "varrer do mapa" o quartel e a tabanca (fula) de Guileje...

As fotos de Jorge Parracho foram disponibilizadas à ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, em 2007, no âmbito do projecto de criação do Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Não traziam legendas, vinham apenas numeradas. Foram por sua vez partilhadas com o nosso blogue pelo nosso saudoso amigo Pepito, o engenheiro agrónomo Carlos Schwarz Silva  (Bissau, 1949-Lisboa. 2014), então diretor da ONG AD e principal promotor do projecto museológico de Guileje. A legendagem é da responsabilidade do editor L.G, que recorreu às informações já aqui publicadas pelo Orlando Silva sobre a CCAÇ 3325].

Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]



1. "Diploma de Cobra" foi um singelo docmnento que me chegou às mãos,  enviado, oportunamente, em 4 de junho de 2022, pelo cor art ref Morais da Silva, na sequência de um mail quem entretanto,  enviara a um grupo de camaradas que tinham passado por Guileje, Gadamael e Bedanda. 

Tinha a intenção de o publicar como prova dos fortes laços de amizade e camaradagem que se criaram, na altura, entre as NT, no TO da Guiné, a par do sentido de humor de caserna que a guerra também cria e alimenta...

Publico, hoje, na série "Documentos" quando se volta a falar de Guileje, com a morte do cor art ref Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 1935-Lisboa,2022). Acrescentava na altura o cor art ref Morais da Silva, à laia de legenda:

"A CCaç Ind 2796 (que comandei em Gadamael) e a CCaç 3325 (Jorge Parracho- Guilege) coabitaram a mesma zona durante 1 ano. O Jorge é do meu curso da AM (veterano) e somos amigos e companheiros de canseiras na Guiné. Dele recebi esta prova de estima e reconhecimento quando terminou a comissão."

Sei que o Jorge Parracho é natural de Mafra e o Morais da Silva é de Lamego. Aos dois deixo publicamente o meu agradecimento e os meus votos de Bom Natal e Melhor Ano Novo de 2023.
___________


(**) Último poste da série > 24 de maio de 2022 > Guiné 61/74- P23287: Documentos (40): A conferência do cor inf Hélio Felgas, proferida na Academia Militar, sem papas na língua, em 10/4/1970 (e depois publicada como artigo na Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-236), que o Amílcar Cabral leu e achou lisonjeiro para si e o seu Partido, citando-o no Conselho de Guerra de 11/5/1970

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23901: In Memoriam (465): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (1935-2022) - Não posso deixar de expressar toda a dor que me vai na alma pela sua partida e revelar o apreço e consideração que sempre tive por si (Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil)


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Augusto Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74) com data de hoje, 20 de Dezembro de 2022:

Caro amigo e camarada Coutinho e Lima
Partiste.


Não posso deixar de expressar toda a dor que me vai na alma pela sua partida e revelar o apreço e consideração que sempre tive por si. Destaco a sua coragem em situações de guerra muito difíceis, mas cuja perceção não esteve ao alcance de todos os seus camaradas. Foi a vítima escolhida, para outros exibirem os seus troféus de glória e se vangloriarem. Os homens que comandou da CCAV 8350, fazem aqui eco de tudo o que de bom fez por eles.
E foi muito. Eles não esquecem.

Recordo aqui um dos momentos mais difíceis da sua vida e da vida de todos nós. Guileje encontrava-se numa encruzilhada de vida ou de morte. Ataques contínuos de armamento, avançado para a época, iam destruindo todas as instalações que se encontravam ao nível do solo. Permaneciam intactos os abrigos, de betão, onde se abrigavam 200 militares e 317 elementos da população. Muita gente para pouco espaço o que, com o avançar do tempo, transportou problemas de saúde.

Tudo começou com uma emboscada, preparada com minúcia, onde as NT tiveram 2 mortos e 11 feridos, a 18 de Maio de 1973. Uma semana antes, o Comandante Chefe preparou-nos para a situação que se avizinhava e garantiu-nos que nenhum ferido deixava de ser evacuado.

Recusadas as evacuações, o Major Coutinho e Lima procurou uma saída. A picada para Gadamael estava bloqueada e a única escapatória era um pequeno riacho, a 5 km de distância, onde a Companhia se abastecia de água e que, naquele momento, estava desimpedido, o que não aconteceu no dia seguinte. Os mortos e feridos, acompanhados pelo Major Coutinho e Lima, dirigiram-se a Cacine, em botes, e posteriormente para Bissau.

Coutinho e Lima relata a situação que se vivia em Guileje, numa reunião pedida para o efeito e solicita o apoio de uma companhia de Comandos ou Paraquedistas. É recusado o apoio e humilhado... Siga para Guileje e será substituído!
Entra no aquartelamento no dia 21, debaixo de fogo, recusando permanecer na mata sob a proteção de um grupo de combate de Gadamael.

Faz o ponto da situação:
- Substituto não aparece. Encontrava-se perto, em Gadamael.
- Instalações destruídas
- Falta de qualquer apoio, apenas a Força Aérea sinalizava a nossa presença. A sua incapacidade era notória, a presença de mísseis Terra-ar era limitadora da sua atividade.
- A artilharia estava desarticulada com a troca inoportuna dos obuses, apenas um obus 14 funcionava, sem estar regulado.
- O acesso à água estava cortado.
- O moral dos militares era diminuto, agravado pela insalubridade dos abrigos, onde permaneciam bastante crianças.

Guileje está perdido. Ficar ou retirar?
Ficar significava um massacre, com mortos, feridos e prisioneiros, com elevada probabilidade. A mata em Guileje era impenetrável na maior parte das zonas e qualquer saída do aquartelamento estava condicionada ao insucesso.
Retirar de modo ordenado, antes do nascer do sol, por um trilho que só a população conhecia era a hipótese menos arriscada.

O Major Coutinho e Lima depara-se com este problema: Durante a noite a decisão de retirar ou não, altera-se. Só às 3 da manhã, decide definitivamente retirar, perante a presença de um representante da população. Desabafa que a sua vida militar terminou ali!
Guiné > Região de Tombali > Guileje > Abril de 1973 > CCAV 8350 (1972/73) > O Alf Mil Manuel Reis junto ao monumento erigido à memória do Alf  Mil Victor Lourenço, dos "Piratas de Guileje", morto em 5 de março de 1973, na explosão de uma armadilha.

Descansa em Paz camarada e amigo.
Os meus pêsames à família.
Manuel Reis

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Nota do editor

Poste anterior de 20 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23900: In Memoriam (464): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (1935-2022), ex-Cap Art, CMDT da CART 494, Gadamael (1963/65), ex-Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné (1968/1970) e ex-Major Art, CMDT do COP 5, Guileje (1972/73)

Guiné 61/74 - P23900: In Memoriam (464): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (1935-2022), ex-Cap Art, CMDT da CART 494, Gadamael (1963/65), ex-Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné (1968/1970) e ex-Major Art, CMDT do COP 5, Guileje (1972/73)

 

Amadora > Auditório da Academia Militar > Sessão de lançamento do livro "A Retirada de Guileje" (Lisboa, DG Edições, 2008), do cor art ref Continho e Lima, em 13/12/08, 17h. O livro foi apresentado pelos, jornalista Eduardo Dâmaso e general Loureiro dos Santos. 
  
Coutinho e Lima (1935-2022) ex-cap art cmdt CART 494, Gadamael (1963/65),  ex-Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné (1968/1970) e ex-major art, cmdt  do COP 5, Guileje (1972/73) 

Foto (e legenda): LG (2008)


1. Chega-nos, de manhã, através de uma mensagem enviada ao Carlos Vinhal, a triste notícia da morte de mais um camarada nosso, aos 87 anos, Alexandre Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 15 de setembro de 1935 - Lisboa, 2022).

Mas na passada segunda feira, já  tínhamos recebido um mail, às 22h12, da Maria Isabel Lima, com a triste notícia e que só agora li por estar acamado:

Sr. Professor: eu sou a M. lsabel Coutinho e Lima. Quero comunicar-lhe, que meu marido, depois de algum sofrimento desde o dia 25 de Setembro, faleceu hoje, cerca das 18horas

O Carlos já mandou  à viúva, D. Maria Isabel Courinho e Lima, por email os pêsames da Tabanca Grande:

"Lamentamos profundamente a perda do marido. Sabíamos que estava a passar menos bem mas não esperávamos esta triste notícia.  A tertúlia deste blogue associa-se à sua dor e envia-lhe as mais sentidas condolências, extensivas a toda a família.  Pedimos o favor de nos enviar, quando souber, os pormenores das exéquias fúnebres.  Ao dispor,  Carlos Vinhal".




Alexandre Coutinho e Lima - A retirada de Guileje: 22 de maio de 1973: a verdade dos factos (rev. texto Maria Filomena Folgado. - 4ª ed. - Linda-a-Velha : DG Edições, 2010. - 473 pp.)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A retirada, dramática mas ordeira, das tropas portuguesas, por decisão, à revelia do Comando-Chefe, do major Coutinho e Lima, comandante do COP5. Segundo informação do Nuno Rubim (de quem não notícas "há séculos" !) a primeira unidade a ir para Guileje foi um Grupo de Combate reforçado da CART 494, em jan / fev de 1964. A Companhia estava a instalar o quartel em Gadamael. Só mais tarde é que um grupo da CART 495, em final de fevereiro desse ano, foi reforçar a guarnição até à chegada das primeiras forças da CCAÇ 726, em 31 de Outubro, permanecendo ainda algum tempo em sobreposição.

A CART 494 era comandada pelo então Capitão Coutinho e Lima, "que assim fica para sempre ligado ao início e fim de Guileje" (sic) ...  

Foto de origem desconhecida, editada por nós, e gentilmente cedida pelo Pepito, fazendo parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje ( © AD - Acção para o Desenvolvimento ).

A decisão, à revelia do Com-Chefe, gen Spínola, de retirar Guileje, em 22 de maio de 1973, foi a decisão mais dramática e porventura mais difícil da sua vida. E destruiu a sua carreira militar. Estebe um ano preso em Bissau. Depois de passar à situação de reforma, Coutinho e Lima fez questão de contar, por escrito, a sua versão os factos, o que fez com coragem, frontalidade e dignidade.  O seu livro, lançado em 2008, teve pelo menos 4 edições.

Dos muitos postes publicados no nosso blogue, chamo a atenção para o poste P267 (dois vídeos e 25 fotos) em que a população de Guileje, trinta e cinco anos depois (por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje, em março de 2008),  homenageou  o Cor Art Ref Coutinho e Lima 

O Coutinho e Lima tem mais de uma centena de referências no nosso blogue. Era uma pessoa afável e um bom minhoto. Gostava de me convidar, a mim e à Alice, para jantar no dia dos seus anos, a 15 de setembro. Ele tinha casa em Benfica, éremos quase vizinhos.  E a esposa, Maria Isabel,  era (é, felizmente está viva) simpatiquíssima. E tinha muito orgulho na decisão do marido de salvar centenas de vidas, em 22 de maio de 1973. Ainda fomos a um ou dois jantares de aniversário. Mas a altura não era das mais convenientes para nós: estávamos  habitualmente na Lourinhã, em setembro. Às vezes falávamos ao telefone. Disse-me há tempos que andava a escrever a história da sua 
CART 494 (Gadamael, 1963/65).  Com a sua morte, perdemos também um manancial de memórias sobre a Guiné do tempo da guerra de 1961/74.

À família enlutada, esposa, filhos e netos  endereçamos os nossos votos de profundo pesar. 

********************

2. Entretanto, cerca das 23 horas do dia, recebemos uma mensagem da senhora Dona Maria Isabel Lima com os pormenores das cerimónias fúnebres do seu malogrado marido.

As cerimónias religiosas meu marido decorrerão na próxima quinta-feira, dia 22. Da parte da tarde haverá uma missa de corpo presente pelas 17h00 na Capela da Academia Militar, em Lisboa, na Rua Gomes Freire.

Na sexta-feira, 23,  o corpo seguirá para Vila Fria, Viana do Castelo, onde será rezada uma outra missa pelas 16h00 e o funeral será logo a seguir.

Muito obrigada
Maria Isabel Lima

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Nota do editor:

Último poste da série de 26 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23817: In Memoriam (463): Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022)... Um excerto do livro "Quebo" (2014): Recordando os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971, "se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida"

domingo, 4 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto

1. Parte V da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


V - gadamael porto…

Avisados sobre a data de partida para Gadamael Porto, deram-nos uma ideia sobre o trajecto: descer o rio Geba, seguir pelo mar, passar entre a costa e o arquipélago dos Bijagós, até ao rio Cacine, com percurso até Gadamael Porto.

Dia 27 de Novembro, lá fomos, rio abaixo, com o equipamento de defesa adequado e acompanhados por uma corveta da marinha de guerra, com os transbordos planeados, sempre atentos às margens e a qualquer movimento suspeito, cumprindo as orientações recebidas, até Gadamael Porto, onde chegámos dia 29.

Início da tarde, chegada a Gadamael Porto.
Acostagem a um porto que mais parecia um pequeno cais de brincadeira, enorme decepção, com sensação estranhíssima de desânimo e vazio, imagem parecida com aquelas pequenas cidades perdidas ou abandonadas do tempo do faroeste, ainda sem ter noção de qualquer realidade.
Depois de desembarcarmos, uma olhada pelo cenário, identificação do verdadeiro solo que estávamos a pisar, pela primeira vez, sem sequer pensarmos no tempo que ali teríamos de viver.
Além do rio lamacento, mais lama do que outra coisa, com caudal quando a maré subia, claro, encontrámos terra castanha, circundada por capim e mata cerrada, parte dela, virgem, aguardando ser desbravada.

Pequenas tabancas de lama e colmo, a par das tabancas construídas pelos militares, à medida que iam chegando, dando vida diferente aquele cenário.
Estas tabancas construídas por nós também eram erguidas com tijolos de lama, feitos em formas de madeira dos nossos caixotes, que eram espalhados pelo chão e coziam ao sol.
A argamassa para a união era feita da mesma lama.
A cobertura era com pedaços de palmeira a servir de base e apoio das folhas de zinco que a Engenharia de Bissau enviava por batelões, chegando metade ao destino, pois os nativos iam desviando o que podiam, durante a viagem.

No meio do aquartelamento, um edifício térreo antigo, uma velha casa de comerciantes libaneses (designada Taufik Saad), dos tempos do comércio entre República da Guiné-Conacry, Guiné-Bissau e Senegal, que já tinha sido aproveitado para edifício do comando.
A um canto, uma pequena tabanca que fazia de enfermaria, onde o furriel enfermeiro, o Vítor Coelho, orientava a actividade possível.
Uma caixa de cartão com medicamentos tinha de ser bem gerida, pois era difícil recebermos medicamentos com a frequência adequada.

Por falar nisto, recordo-me de um indígena Fula que tinha o vício da injecção, pois dizia que tinha dores no corpo: ‘a mi miste agula, corpo di mi, manga di mal…’ (eu quero injecção porque tenho dores no corpo).
A primeira vez, perguntam-lhe o nome, para registo, ele diz: ‘afinal di contas’
E lá estava, todos os dias, a pedir injecção.
Claro que levava injecção, mas de água destilada, e dizia: ‘manga di sabe sabe’ (muito bom!).
Depois, perguntavam-lhe: ‘corpinho di bó?’ (está bom?), a que respondia: ‘jametum!’ (está bom!)
Havia um outro que também lá estava caído, a toda a hora, a pedir pastilhas, e chamava-se ‘dinheiro có’.
Mas ele é que escolhia as pastilhas, pela cor da caixa…

Aquilo que mais chamou a nossa atenção foi a expressão de alívio da companhia que íamos render, cansados, saturados e ansiosos por deixar aquele local.
Mas a saudação à companhia que íamos render foi algo atribulada, ao contrário do que era suposto.
Um ajuntamento de militares, em frente ao tal edifício do comando, como que cercando um militar, tronco nu, calções, sujo e suado, de G3 apontada a uma porta do edifício: ‘Saiam daí, seus covardes, que eu limpo-lhes o sebo!’
Ninguém se mexia, ninguém falava.

Perguntei a um deles de que se tratava, respondendo-me que aquele ‘gajo’ queria limpar o capitão e um alferes que estavam escondidos dentro do edifício.
Da minha companhia, ninguém deu um passo, incluindo o capitão Assunção e Silva.
Eu olhei bem para o ‘gajo’ e vi algo de familiar.
Sim, era ele mesmo: um dos filhos de uma família de marchantes, donos dos talhos de Vieira do Minho!
Aproximei-me, ele virou a G3 para mim, de imediato, ameaçando e que não desse nem mais um passo.
Olhei-o bem nos olhos e perguntei-lhe se Vieira do Minho lhe dizia alguma coisa.
Ficou estático, de repente, o que interpretei como que uma certa abertura para uma iniciativa da minha parte.
Avancei, novamente, desviei a G3 e pedi-lhe que fizesse um esforço para me identificar.

Vitória, pois consegui tocar-lhe num braço e levá-lo uns metros para fora daquele círculo de malta, ao mesmo tempo que lhe dizia as palavras que me iam surgindo.
Largou a G3 e deu-me um abraço sentido, deixando-me aliviado, para espanto de todos os outros.
Tudo acalmou e pudemos iniciar as saudações.

No entanto, o meu capitão Assunção e Silva logo se me dirigiu e, de certa forma, depreciou o meu acto, dizendo que, além do risco que corri, era problema da outra companhia que só eles deveriam resolver.
Isto não me caiu bem, mas interpretei como que um gesto de protecção, mais pelo risco que ele dizia eu ter corrido.

A passagem do espólio militar, nomeadamente, das armas, era uma rotina e envolvia alguma tensão, cujo motivo entendi, mais tarde, quando a companhia rendida foi embora e nós constatámos que os acessórios das armas que tínhamos assinado como recebidos não correspondia ao número real.
Esta operação era feita com intervalos, para dar tempo a que um conjunto de acessórios desse para mais do que uma arma.
Enquanto se sugeria um intervalo, depois de se mostrar uma arma, alguém combinado pegaria no conjunto e colocava-a no local a seguir, como se pertencesse à nova arma.
As numerações gravadas passavam despercebidas, com um pouco de conversa.
O mesmo teríamos de fazer, quando fossemos nós a passar à outra companhia que nos viesse render.

Esta operação tinha mais impacto nas metralhadoras pesadas, a Breda m/938 e a Browning m/952, montadas na periferia do aquartelamento, junto ao arame farpado, embora também pudesse abranger os morteiros 60 e 81 e outro material, nomeadamente, acessórios e munições.
E os velhos Racal TR28, equipamento de transmissões, de origem sul-africana, usados pelos operadores, às costas, sempre que solicitados para participarem em operações, lá estavam sob vigilância apertada, dificultando qualquer ‘marosca’ na passagem para a outra companhia.
E as célebres pistolas Walther de 9mm requeriam uma especial atenção…

Isto acontecia com todos e cada companhia tinha de fazer um esforço redobrado na gestão do material de guerra, no sentido de garantir a mesma defesa com menos equipamento.
Desonesto, estúpido, inaceitável, claro, mas as realidades são diferentes da nossa vontade e necessidade.

Sem demora, escolhemos a tabanca que nos pareceu mais simpática, pela localização e possibilidade de melhoramento.
Dava para os três, o Artur Neves, o Carlos Amaral e eu.
Como ficava mesmo em frente ao que era designado como edifício do comando, acabou por gerar polémica e alvo de ataque cerrado por uma personagem que apareceu depois.

E, para animar a malta, cerca das seis da tarde, primeira flagelação, logo no primeiro dia - um aviso do inimigo!
Eu e o Neves, um dos furriéis do 3.º grupo, estávamos a tomar uma espécie de duche, dentro de uma casinha de madeira, junto a zona dos obuses da artilharia, em que a água possível jorrava de um bidão colocado em cima de umas estacas, que era enchido com uma lata de chouriço.
Típico do ‘periquito’, inocente, ingénuo, inconsciente, reage como se se tratasse de brincadeira, mas logo percebe que a coisa é a sério… Gadamael Porto era um aquartelamento que ainda resistia, mas tinha de cobrir uma zona onde tinham existido outros aquartelamentos e destacamentos que, pela força do avanço e pressão do inimigo, acabaram por ser desactivados, pois era difícil a sobrevivência.

O efectivo do aquartelamento completava-se com quatro pelotões distintos:
- um pelotão de cavalaria, comandado pelo alferes Gomes e furriéis Oliveira Soares, Martins Soares, Manso, Barreiros, Rio e Vitoriano, com duas viaturas blindadas Fox, velhinhas;
- um pelotão de artilharia, comandado pelo alferes Vasco Pires e furriéis Krus, Carvalheda e Oliveira, com três obuses;
- dois pelotões de milícia, muito importantes na progressão dentro da mata cerrada e picagem, utilizando a designada pica, uma espécie de pingalim em ferro, cabo de madeira, para ir picando o solo, no sentido da detecção de minas. Ainda me recordo de alguns nomes dos milícias: camisa conté, mamadú biai, abdulai baldé, samba camará, amadú bari, mamadu embaló,…

Falei em Carvalheda que suponho deve conhecer ou, pelo menos, de ouvir falar, ligado à rádio, o Armando Carvalheda.
"O Carvalheda, sim, o Carvalheda da rádio, não me recordo do nome da Rádio."
Da Antena 1, o Armando Carvalheda, que começou na Emissora Nacional, em 1972 ou 1973, já tínhamos regressado da Guiné, hoje, ainda na Antena 1.
Foi mobilizado, mais ou menos na mesma altura que eu, tendo ido parar a Gadamael Porto, para fazer parte do pelotão de artilharia.
Pouco tempo depois, pelo ‘trabalho’ desenvolvido pela mulher, em Lisboa, e por influência do João Paulo Dinis, também da Rádio, foi transferido para Bissau, para a Rádio, passando a fazer parte do PFA, programa das forças armadas, onde cumpriu a comissão, até finais de Outubro de 1972.
É assim, mais um exemplo de sorte, mas com o trabalho e forte empenho de alguém…

Por falar em Rádio, recordo uma curiosidade que ficou célebre, protagonizada por um operador dessa Rádio, um guineense formado pelos profissionais do continente que, quando iniciava o seu turno, nos discos pedidos, dizia:
‘E o PIFAS muda di ritimo! Pr’a Mamadu Jaló, qui firma no Catió, cançon Giani Morandi, non son dinho di bó!’

Os reconhecimentos e operações diárias tinham de manter-se, rigorosamente, e não podíamos deixar-nos cair na tentação de receios ou sentimentalismos, porque sabíamos da existência de comunidades indígenas, com mulheres e crianças, dentro dos espaços militares do PAIGC, aliás, como o nosso caso…
Isso não significava falta de responsabilidade ou de bom senso da nossa parte, mas estávamos ‘metidos’ naquilo, logo, sentido natural de defesa do nosso espaço e da nossa pele, o sentido humano espontâneo, mesmo que… desumano…
Também as armadilhas e minas tinham de ser montadas e instaladas, a par do levantamento das AP, minas antipessoal e AC, minas anticarro do inimigo, para posterior colocação nas supostas zonas de passagem do inimigo, junto à fronteira.
Foi montado um fornilho, pelo nosso pessoal de minas e armadilhas, com a supervisão do Carlos Amaral, um dos furriéis do terceiro grupo, na zona oriental do aquartelamento, no topo do arame farpado.
Era composto por um bidão de duzentos litros - dos que nos enviavam para abastecer as coitadas GMC - cheio de todo o tipo de desperdícios de metal e vidro, tnt e combustível, com uma ligação de fios eléctricos, do interior para o exterior, depois conectada a um detonador.

E os episódios foram surgindo, naturalmente, à medida das circunstâncias de cada momento de guerra, com mais ou menos consequências.
As flagelações, o meio mais utilizado pelo PAIGC, com o uso de diversos tipos de armas pesadas, obus, canhão sem recuo SPG82, os lança granadas RGP2 e RPG7, morteiro 120 perfurante, mísseis, algumas vezes, utilizando very-lights, para iluminação e melhor localização do aquartelamento, um designado ‘ataque aos arames’, chefiado pelo célebre Nino Vieira, mais flagelações, emboscadas, enfim, todo o conjunto de variantes cénicas daquele tipo de guerra, sabida subversiva e de informação.
O tal fornilho, infelizmente, não funcionou, quando foi accionado para fazer face ao designado ‘ataque aos arames’, a tal operação liderada pelo Nino Vieira.
Se tivesse funcionado, o resultado negativo para os guerrilheiros do PAIGC teria sido muitíssimo maior.

A Força Aérea representava uma boa ajuda, com os heli-canhão e os Fiat, em operações RVIS, voos de reconhecimento, mas tinha muita dificuldade de progressão, pois as antiaéreas do PAIGC, sem esquecermos os célebres mísseis terra-ar Strela (SAM7), fabrico soviético, estavam bem posicionadas, ao longo da fronteira, na nossa frente, e já tinham feito estragos, noutras ocasiões.

Para o Daniel ter uma ideia das múltiplas acções que entram nas probabilidades de ocorrência, apanhámos um infiltrado no lado da tabanca, onde tínhamos a pequena comunidade local sob nossa protecção, em cima de uma tabanca, ao anoitecer, a fazer sinais de luz com uma lanterna, bem na direcção da fronteira, uma das formas de facilitar a localização exacta do aquartelamento, no meio da mata.
Interrogado, concluiu-se ser um elemento guerrilheiro do PAIGC que se infiltrou na zona, vindo da fronteira em frente, cuja missão era aquela, apenas: marcar o ponto exacto do nosso aquartelamente, permitindo a regulação das armas já montadas ali perto de nós, para o ‘espectáculo’ que começaria, pouco depois.
Os guerrilheiros do PAIGC, supondo que o seu enviado tinha cumprido a missão e já estava retirado, em segurança, já tinham tudo preparado e estavam mais perto de nós do que poderíamos pensar, a prepararem mais uma operação que, caso conseguissem o resultado previsto, poderia ser o fim de Gadamael Porto, o fim de todos nós.
Ali ficou, deitado no chão, bem no centro do aquartelamento, como primeiro castigo, até tudo terminado…

Sim, porque o arraial começou pouco depois, durando umas horas, com as armas dos guerrilheiros do PAIGC bem reguladas, indicação da lanterna do infiltrado, prisioneiro…
Foi uma das noites horríveis de baixas e destruição, até termos ficado sem munições das armas pesadas, principalmente, ‘supositórios’ (munições dos obuses)!
Contra as expectativas dos guerrilheiros do PAIGC, que nem notaram que estávamos sem munições, a nossa sorte, os resultados não foram o suficiente para acabarem com Gadamael Porto.

No dia seguinte, a nosso pedido, chegaram dois hélis, um destinado ao prisioneiro, outro para os feridos, todos com destino a Bissau.
As ‘salgadeiras’ (urnas funerárias) vinham de batelão, a nosso pedido via rádio, depois de cada baixa declarada.
Depois de tudo tratado, as ‘salgadeiras’ eram enviadas, em batelão, para um outro aquartelamento perto, Cacine, como entreposto, antes de partirem para Bissau.

Depois, dois dias sem dormir e quase sem comer, para levantarmos o que era possível do aquartelamento.
Aqui, a vertente psicológica manda e vence!

Uma outra tarefa, bem desagradável, eram as colunas a Guilege, que fazíamos algumas vezes, para abastecimento de mantimentos, géneros alimentícios e material de guerra.
Os géneros que nos enviavam, acondicionados em redes, deixados cair dos hélis, ou trazidos de batelão, quando possível, eram repartidos com Guilege.
Era a única forma de Guilege os receber, o que justificava o sacrifício e riscos e nos motivava para tal operação.
Porquê? Porque Guilege não podia ser abastecido de outra forma, nomeadamente, de heli, pois estava um pouco mais a leste, ainda mais junto à fronteira, perto de Kandiafara, um posto militar do PAIGC, dentro da Guiné-Conacry, onde as antiaéreas estavam alerta, permanentemente.

Era um percurso de alguns quilómetros, por picada, com alguns homens a montar segurança, ao longo do percurso, mas de difícil progressão, pois os guerrilheiros do PAIGC andavam por ali, como rotina, e algumas vezes nos dificultaram a vida e nos causaram mossa…
Este percurso fazia parte do célebre ‘corredor da morte’, com início em Kandiafara, atravessando a fronteira, passando por Guilege e seguindo para Gadamael Porto.
Deste designado ‘corredor da morte’, também faziam parte Ganturé, Gadembel e Aldeia Formosa, compondo toda a zona de acesso às Matas Morés e Cantanhês, onde o PAIGC tinha estruturas fortes de protecção e tratamento dos feridos, uma espécie de hospital de campanha subterrâneo, e onde o acesso era quase impossível.

O PAIGC andava sempre em cima desta zona, pois tinham o objectivo de ir ganhando terreno, desde a fronteira, o que já tinham conseguido, de certa forma, e a prova estava nos nossos aquartelamentos e destacamentos desactivados ou abandonados, porque as nossas tropas já tinham atingido o limite da resistência, como Sangonhá, Gadamael Fronteira, Cacoca, Tombombofa, Ganturé, Gadembel.

Gadamael Porto tinha a missão de controlar e defender toda a zona, uma ZA (zona de acção) alargada, que requeria um esforço acrescido, originando um grande desgaste…
Um dos problemas da nossa posição e fragilidade, comum às outras zonas da Guiné, residia no facto de que tudo era perto, tudo se concentrava em área reduzida, os passos que se davam não permitiam a mais pequena distracção ou facilidade, uns metros de progressão poderiam terminar em tragédia, pela surpresa, claro.
Ouvi isto, ainda na metrópole, mas só o confirmei ali, quando comecei a viver essa realidade, sem poder voltar para trás.
Mesmo que pensasse na possibilidade desta alternativa, o pensamento nos homens que tínhamos preparado e ‘treinado’ sobrepunha-se a qualquer alternativa.

Não posso esquecer a criatividade e habilidade do Ferreira, o nosso furriel mecânico e sua equipa, na concepção de peças improvisadas para fazer funcionar as velhas GMC.
Uma das GMC tinha o equipamento mais ou menos completo, mais coisa, menos coisa, e servia de carrinho de choque para fazer andar as outras duas, que não tinham qualquer equipamento, acelerador, travão, embraiagem, limitando-se a uma velocidade engrenada.
Estas GMC eram usadas no transporte dos bens para abastecimento a Guilege, sem as quais não seria possível.
Depois de uns sacos de terra colocados em cima de algumas partes das viaturas, a única forma de reduzir o impacto provocado pelas minas anticarro, lá ia a coluna, na expectativa de missão cumprida, sem grandes estragos… A par dos episódios de guerra, as condições atmosféricas, bem agressivas, eram mais uma dificuldade a vencer e deixavam rasto de destruição, como nos aconteceu.
Trovoadas e chuvas monumentais, aumentavam as dificuldades dos terrenos que, já por si, eram bem ingratos.
Quando a coisa dava para o tornado, então, era esperar que alguma coisa ficasse de pé!

As duas pequenas viaturas blindadas do pelotão Fox ficaram reduzidas a uma só, pois a outra foi destruída por um disparo do canhão sem recuo dos guerrilheiros do PAIGC, aquando do ‘ataque aos arames’ de que lhe falei, de que resultaram baixas para as nossas tropas, mas muitas mais para os guerrilheiros do PAIGC.

Como tudo estava organizado/montado pelos guerrilheiros do PAIGC, mesmo ao cimo do aquartelamento, à saída do arame farpado, sem termos noção do que se tratava, muito menos, do efectivo e arsenal lá montado, foi decidido sair uma Fox, comandada pelo Oliveira Soares, e um pequeno efectivo da nossa companhia, escalado no momento, eu de um lado com dois ou três homens, e o Ponte, comandante do primeiro grupo, com mais dois ou três homens do outro lado, mas logo ‘levámos nos queixos’, uma morteirada de canhão sem recuo, sendo obrigados a parar e a optar por morteirada 60, o mais fácil de manusear, naquelas circunstâncias, já com o condutor morto e o Oliveira Soares ferido.

De noite, as coisas tornam-se ainda mais difíceis…
O resto, foi morteirada 60 e 81, acompanhados de batidas de obus, pois sabíamos que os ‘gajos’ tinham de recuar e retirar para a fronteira.
Na madrugada, constatámos o rasto de sangue bem marcado das baixas dos guerrilheiros do PAIGC, estendendo-se até à fronteira, e capturámos o material que deixaram, como vários carregadores de AK47, vários invólucros de canhão sem recuo, uma Tokarev 7,62 mm (origem soviética).
Ainda guardo fotos deste material, além de um invólucro de canhão sem recuo, fabrico chinês, que resolvi trazer, para fabricar um cinzeiro de pé.

Além disso, encontrámos um guerrilheiro morto, na mata, deixado pelos outros, talvez porque já não conseguiam levar mais mortos e feridos.
Era um chefe de grupo, pela forma como estava equipado, que calculámos ter cerca de dois metros, um pé de dimensões ‘anormais’ e uns roncos (anéis simbólicos) nas mãos.
Claro que ninguém deve mexer, pois fica armadilhado, uma prática corrente de qualquer dos lados.

Nós tínhamos conhecimento das baixas e destruições que causávamos ao PAIGC através da Rádio Libertação da República da Guiné-Conacry.
Era comum ouvirmos o Amílcar Cabral dirigir-se a nós, iniciando com as seguintes expressões:
‘Jovens colonialistas e assassinos de Gadamael Porto,…’

Uns dias menos ansiosos do que outros, uns dias menos atribulados do que outros, o que nos esperava durante os muitos meses que se seguiriam.
A população da Tabanca que tínhamos de proteger e que nos dava um certo apoio logístico, como era o caso das lavadeiras, envolvia algumas etnias como Fula, Tanda, Papel.
As nossas roupas eram lavadas um pouco à ‘porrada’ sobre as pedras carcomidas e agressivas da bolanha, naquela água salgada, resultando em botões partidos e alguns rasgões.
Mas isso nada nos importava, pois queríamos os camuflados lavados, sem aquela lama agarrada e a cheirar mal.

Só a população tinha direito a abrigos subterrâneos, que tínhamos de assegurar.

As entidades importantes da Tabanca eram o Padre, normalmente, muçulmano, o Régulo, ou chefe da Tabanca, e o Cipaio, o polícia da Tabanca.

Eu tive a sorte de ser bem recebido e acolhido na Tabanca, onde me refugiava, muitas vezes, ao anoitecer, participando em serões da família das minhas lavadeiras, a Cira e a prima Cadi, todos sentados no chão, à luz ténue e dissimulada de um pequeno bocado de madeira aceso, com grande esforço para entender o que diziam, pois os dialectos eram muitos, normalmente, cada etnia o seu dialecto - mas lá ia conseguindo, mais coisa, menos coisa.
O crioulo usado nesta zona era um idioma pobre, uma mistura de influências latina, francesa e inglesa, de outros tempos, mas os cabo-verdianos falam um crioulo mais rico, mais aperfeiçoado.
Mas, como tínhamos mais do que uma etnia, o próprio dialecto ou idioma não era igual em todas elas.

Na Guiné-Bissau, além do nosso português, fala-se o crioulo cabo-verdiano, o fulbe, o mandê e o mandinga, embora não usado em todas as etnias, dependendo das influências de vários povos, nas suas movimentações nómadas.
Cada homem grande, caso tivesse património, como galinhas, vacas, porcos, cabritos, pequenas parcelas de terra cultivadas, arroz (bianda), amendoim (mancarra), poderia ter mais do que uma mulher, regime poligâmico.
E não havia descriminação pela idade pois, apesar de velhos, tinham várias mulheres, algumas delas bajudas (raparigas).
Em determinadas zonas, embora eu nunca tenha sabido quais, também se praticava o regime poliândrico, pelo qual uma mulher pode ter vários homens, desde que reúna condições para tal.

Em Gadamael Porto, o património limitava-se a umas galinhas e umas pequenas parcelas de cultura de arroz e amendoim, quando as condições de segurança permitiam.
Cheguei a comer galinha cozinhada com frutos vermelhos da palmeira, tudo envolvido em bianda (arroz cozinhado).
E todos metíamos a mão dentro da meia abóbora seca, puxando e enrolando os bocados na mão, tipo almôndegas, que levávamos à boca.

Não esquecerei o rigor e disciplina impostos na Tabanca, controlados pelo Cipaio.
Por exemplo, uma cena que me deixou marcado, aconteceu com uma bajuda acabada de casar com um homem grande, mas os chamados casamentos forçados, negociados.
Na noite de núpcias, a consumação do casamento era feita na presença de uma mulher grande (mulher casada), com o objectivo de mostrar o pano sujo de sangue.
Depois da cerimónia, a bajuda, agora, mulher grande, resolve escapar-se para os lados da bolanha.
Apanhada pela população e pelo Cipaio, o castigo é brutal, começando com as chicotadas da praxe, continuando com outros castigos de que prefiro não falar…

Também não mais esquecerei a cultura da circuncisão, lá conhecida por fanado.
Tantos miúdos massacrados, cuja operação era feita com uma espécie de machadinha ou catana, em ferro, em cima de um improvisado pequeno cepo de madeira!
As infecções proliferavam e, alguns não resistiam!

"Ouvi falar e li alguns artigos sobre costumes e tradições de povos de diversos locais do planeta, alguns dos quais ainda parados no tempo, segundo a nossa cultura, claro.
Aquilo que o Adolfo acaba de me relatar, apesar do contexto, leva-me a pensar nas organizações humanitárias que angariam voluntários, com o objectivo de desenvolverem iniciativas, nomeadamente, na área da sensibilização e apoio alimentar, saúde, educação.
E nunca será demais, pelo contrário, sabemos que muitas e muitas acções continuarão na expectativa de resultados satisfatórios…"


Pois, mas algumas tradições estão presas a crenças religiosas, fora de tudo o que consideramos de bom senso ou racional, mas passaram séculos e sabe-se lá quantos mais passarão…

Não posso deixar de falar nas dúvidas, suspeições e reticências constantes com que tínhamos de conviver, uma vez que se tratava de uma guerra de informação, subversiva, em que tudo e todos os que nos rodeavam eram, supostamente, suspeitos.
Dizia-se, por exemplo, que o Padre era o maior ‘turra’ que tínhamos dentro daquela pequena comunidade, havendo alguns sinais disso, mesmo…
Por exemplo: sempre que tínhamos flagelações mais prolongadas e agressivas, o Padre nunca estava na Tabanca, tinha arranjado maneira de sair para Bissau, na véspera…

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné

sábado, 22 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23730: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte IV: 3.º Episódio, "O Corredor da Morte"...Valeu pela prestação dos nossos "camarigos" Giselda e Miguel Pessoa (Carlos Vinhal / Luís Graça / Hélder Sousa / Morais Silva / Joaquim Mexia Alves / Manuel Resende / António J. Pereira da Costa / Joaquim Costa / Jorge Ferreira)

 

Sic Notícias > Primeiro Jornal > Grande Reportagem > "Despojos de Guerra", 3.º Episódio: O Corredor da Morte (31' ) > 20 de outubro de 2022 > Miguel Pessoa e Giselda Antunes: fotogramas do "trailer" (2' 37'') (Com a devida vénia...) 


1. Seleção de comentários dos nossos leitores (*)

(i) Carlos Vinhal:


"Neste episódio, Giselda revela os processos de salvamento e conta como era recolher soldados feridos em territórios controlados pelas forças inimigas."

Esta expressão não será da autoria da nossa querida Enfermeira Paraquedista Giselda. Uma coisa era um "território" onde o conflito acontecia, outra seria um "território controlado" pelas forças inimigas.

Estas séries documentais são feitas para consumo do grande público, aquele que não esteve "lá", portanto nelas cabe tudo, incluindo imagens que não têm nada a ver com o que "lá" se passou.

Este episódio foi o que mais me interessou particularmente porque nele intervieram duas pessoas que muito prezo e que viveram a guerra nas suas vertentes mais duras. A Giselda porque viu e lidou de perto com o sofrimento e a morte de camaradas combatentes, e o Miguel, ele próprio uma vítima de armas poderosas, numa altura em que a guerra assumia um ponto de não retorno.

Uma coisa ficou por dizer é que o Miguel Pessoa voltou a voar nos céus da Guiné apesar do grande susto que apanhou em Março de 1973, quando o seu Fiat foi derrubado.

Muito obrigado a ambos porque muito lhes devemos enquanto infantes.

21 de outubro de 2022 às 15:15

(ii) Luís Graça:

Carlos, estamos de acordo: há sempre "questões terminológicas" nestes trabalhos de jornalistas que são "leigos" nestas matérias, eles e elas: é uma geração que nem sequer fez a tropa, muito menos pôs os pés na Guiné do nosso tempo... Ainda bem para eles, que são muito mais novos do que nós...

Confesso que dou de barato estes erros ou imprecisões... Mas nós temos a obrigação de pugnar pelo rigor... De qualquer modo, é preciso perceber que o estilo destes programas de "grande reportagem", para mais em televisão, não admitem demasiadas legendas, notas de rodapé e muto menos "explicadores" em voz "off record"... Isto não é uma aula ou uma conferência..., é um programa de televisão.

Se entares em pormenores "demasiado técnicos" (como o uso do napalm, que foi explicitamente falado pelo Miguel, e que precisava de ser "conteztualizado"; ou o funcionamento do míssil Strela), estás feito: o programa não capta a atenção do telespectador... Não te esqueças que estamos em "horário nobre", em competição com outras estações, e a Sic Motícias não é a RTP 2 ou o Canal História...

De qualquer modo, fizeste bem em lembrar que o nosso Miguel Pessoa teve que "voltar para o castigo", depois de recuperação no "resort" do Hospital Militar Principal, em Lisboa... É ele que que nos conta na sua apresentação à Tabanca c Grande, no já longínquo ano de 2009 (ainda escrevíamos todos Strella com dois ll):

(...) "Cumpri a comissão na Guiné no período de 18NOV72 a 14AGO74, com um intervalo passado em Lisboa (entre 7ABR73 e início de AGO73) para recuperar das mazelas sofridas quando da minha ejecção de Fiat G91, depois de atingido por um SAM-7 Strella durante um apoio de fogo ao aquartelamento do Guileje." (...)

21 de outubro de 2022 às 16:08

(iii) Hélder Sousa:

Pois sim senhor, um conjunto de circunstâncias favoráveis permitiram-me ver este episódio.

E, é verdade, também reparei em imprecisões, imagens de outros locais que não a Guiné, expressões menos acertadas ou carecendo de explicação mas, e há sempre um "mas", posso dizer que gostei bastante.

E gostei, logo à cabeça, pela serenidade dos depoimentos dos nossos camaradas e amigos, sem alardes de heroísmo, sem fanfarronices, sem vitimização. Tudo com sobriedade e até, em alguns momentos, com a revelação de situações dramáticas referidas como se "não fosse nada".

Gostei também porque, embora de forma abreviada, ficaram alguns tópicos para que, quem quiser, possa aprofundar e conhecer melhor aqueles tempos, aqueles locais, aquelas situações.

O proverbial humor do Miguel está bem retratado na forma brincalhona como se dirige à Enfermeira Giselda sobre a "temperatura da água" aquando do seu (dela) resgate da DO. A forma com a Giselda relatou o "embate" com a triste realidade com a "dar a mão" ao moribundo é realmente cativante.

Também poderia ser motivo para mais e melhores explicações a advertência/conselho que o Sr. Tenente-Coronel Brito deu ao Miguel de que não estava ali para medalhas mas para ajudar aqueles 40 mil que "lá em baixo" precisavam de ajuda.

Por fim, devo dizer que o "saldo" do episódio é positivo e que deixa margem para continuidade.

21 de outubro de 2022 às 16:56

(iv) Morais Silva:

Independentemente das imprecisões ou erros, o importante foi que a Sofia Pinto Coelho deu à luz um impressivo retrato do sofrimento de muitos e da abnegação, coragem e solidariedade de muitos outros.

Das enfermeiras páras guardo a imagem de prontidão e cuidado com que recolheram os meus feridos e os conduziram para lugar seguro no HM 241 considerado no mato como passaporte para a sobrevivência.

Com os pilotaços, só tenho dívidas, tantas foram as vezes que me apoiaram, eficazmente e sem delongas, quer em evacuações quer em apoio de fogos.

Para a minha camarada Giselda vai um abraço de muita estima e reconhecimento do, agora velho, capitão de Gadamael 1970-72. Para o Miguel Pessoa, meu contemporâneo na AM que não na Guiné, vai um grande abraço e o desejo de muita saúde.

Gostei de vê-los e rever a história incrível de que são protagonistas.

21 de outubro de 2022 às 18:14

(v) Joaquim Mexia Alves:

Valeu pela grande, sincera e emotiva prestação da Giselda e do Miguel, queridos amigos. O resto teve o enviesamento habitual com a profusão de imagens de Amílcar Cabral a contar mentiras e imagens de bombardeamento de napalm em sítios que não são a Guiné e a velha conversa dos territórios libertados e da supremacia aérea

Parabéns à Giselda e ao Miguel pelo seu contributo cheio de sensatez, bom senso, e verdadeiro

21 de outubro de 2022 às 20:25

(vi) Manuel Resende:

Comento só para dar um abraço ao Miguel e Giselda. Gostei muito de vos ver e ouvir. Andava ansioso pelo dia 20.

Não sabia que voltaste a voar para ir ver onde estava a Giselda, no acidente. Pelo menos percebi isso.

Já sabia a tua estória, do Marcelino da Mata a dizer "sou eu, o Marcelino", contado pelo próprio Marcelino, e igual com a tua versão.

Continuação de boa saúde para ambos e a ver se em Janeiro nos encontramos. Abraços,  Miguel e Giselda

21 de outubro de 2022 às 23:54


(vii) António J. Pereira da Costa:

Foi um mau programa de TV e, por ele poderemos avaliar os outros que, se calhar não conhecemos tão bem por se terem passados noutros TO...

Faço coro com o Mexia Alves: "Valeu pela grande, sincera e emotiva prestação da Giselda e do Miguel, queridos amigos".

Estou farto das imprecisões e de tudo do resto de que o Helder Valério fala (imagens de outros locais que não a Guiné, expressões erradas ou carecendo de explicação).

Como se diz às vezes "se não sabes jogar à bola porque não vais aprender? Mas não é assim! Estes "programas" mal feitos não são inocentes...

Enfim é a TV que temos. Que se escuda num trailleur demasiado longo e com numa ficha técnica final que nunca mais acaba. Ainda não entendi porque é que os noticiários têm que durar mais de hora...

Não se esqueçam que são estes "programas" que ainda por cima chegam atrasados vários anos, que vão ficar em arquivo e que futuramente farão fé, perante as "novas gerações eventualmente interessadas".

Já foi aqui perguntado: "O que querem os ex-combatentes?" Várias vezes a resposta foi "Respeito!" Programas construídos assim, passados mais de um ano depois de gravados, não são uma prova de respeito. Não sou adepto de que vale mais assim do que nada. E ficar agradecido - como os pobrezinhos - também não fico.

22 de outubro de 2022 às 11:26

(viii) Joaquim Costa:

Para quem não esteve lá,  “come” tudo como se fosse real e passado na Guiné, nomeadamente a injeção do piloto Pessoa.

Para os ex-combatentes é uma fraude. Como já alguém disse: Merecíamos mais respeito.
Ou melhor, o Pessoa e a Giselda mereciam mais respeito.

Acredito que a reportagem acaba por dar uma imagem aproximada do que foi o "annus horribilis"  de 1973, aproveitando imagens reais mas descontextualizadas. Tivessem o cuidado de visitar o nosso blogue e tudo seria mais real… e mais barato.

Quanto ao facto de dar voz, também, ao outro lado, não obstante sabermos como funciona a propaganda na guerra, ouvir só um lado, não seria sério, nem honesto… nem democrático. Ninguém é detentor de toda a verdade. Já nos basta as Coreias, Chinas, Rússias, etc.

Ficam as excelentes prestações dos nossos Maiores: Giselda e Pessoa. Contudo sou da opinião que é melhor isto que nada
 
22 de outubro de 2022 às 12:13

(ix) Jorge Ferreira:

(membro da Tabanca da Linha e da Tabanca Grande, ex-al mil, 3ª CCAÇ, Nova Lamego, Buruntuma e Blama, 1961/63):

(comemtário no Facebook da Tabanaca Grander)

Magnifico contributo para as actuais gerações se aperceberem do que foram as vicissitudes dos "então" jovens de 60/70.

Faço minha a frase "estas séries documentais são feitas para consumo do grande público".

Grato aos depoimentos dos Camaradas Giselda/Miguel Pessoa.
22 de outubro de 2022 às 12:48
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 21 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23727: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte III: 3.º Episódio, "O Corredor da Morte" ou.... "Uma história de amor improvável em tempos de guerra" (protagonizada por Miguel Pessoa e Giselda Antunes)

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23682: Notas de leitura (1503): "Deixei o meu Coração em África", por Manuel Arouca; Oficina do Livro, 2016 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Manuel Arouca, moçambicano de Porto Amélia, que diz ter tido uma adolescência rebelde, e que descreve cenas moçambicanas neste seu romance, procurou criar uma fantasia digna de um melodrama e ficcionou um palco dos mais duros que se possa imaginar para pôr o personagem, Rodrigo Pereira dos Santos, um menino fino, dado à boa libertinagem, e que no meio daquele arrebol de afetos se mantém fiel à Isabel, noiva de um bom sacana, que na Manutenção Militar de Bissau tudo faz para denegrir Rodrigo que anda em Guileje a tirar fotografias espantosas de peito feito, quase indiferente aos morteiros 120. 

Se algo de muito bizarro se procurasse na literatura da guerra colonial passa pela inacreditável viagem de uma dama grada do Movimento Nacional Feminino até Guileje e de uma fuga de Rodrigo com Isabel pelo meio das matas para assistir a um bombardeamento de Fiats, no meio do delírio até uma cobra venenosa foge de Isabel, como se esta tivesse dotada de poderes sobrenaturais. Assim concebeu Manuel Arouca o amor em tempos de guerra, veremos para a semana que o melodrama até tem ingredientes para acabar bem.

Um abraço do
Mário



Deixei o meu coração em África, por Manuel Arouca (1)

Mário Beja Santos

Manuel Arouca [foto à direita] é nome conhecido não só da literatura de entretenimento como autor de argumentos de telenovelas e séries televisivas e mesmo argumentos de cinema. A recensão desta obra justifica-se porque o personagem, Rodrigo Pereira dos Santos, foi furriel em Guileje, estamos em 1968 e 1969, o primeiro período da sua comissão. Chancelado por uma arquitetura muito comum à chamada literatura de aeroporto, não falta na obra a tentativa de caraterização da atmosfera da vida das classes altas da linha da Costa do Sol, de Sintra e Lisboa, há para ali bastante volúpia, sexo e desejo de aventuras. Para o leitor mais interessado sobre os aspetos capitais da trama, avança-se com o que vem escrito na badana da capa:

“Isabel recebe um manuscrito em condições inesperadas e misteriosas. O seu autor, Rodrigo, desaparecido há seis anos e dado como morto, relata as experiências e as vivências, os factos e as emoções, os encontros e os desencontros que marcaram a sua vida. O leitor é levado numa viagem que, por um lado, o transporta aos loucos anos 60 na alta sociedade lisboeta; e, por outro, à sedução de África. Se encontramos a guerra de guerrilha, difícil e intensa, deparamo-nos também com o glamour de uma vida aventureira, célebre pelos safaris, helicópteros e pela ousadia do quotidiano das fazendas. Uma história que reflete tanto os avatares da guerra como as encruzilhadas do amor de uma sociedade representativa de um Portugal esquecido por alguns e inesquecível para muitos”.

Tudo começa no Estoril, Isabel atropela uma africana que era portadora de uma boa resma de papel A4, a sinistrada é hospitalizada e Isabel vai ler todos aqueles papéis que trazem o nome de Rodrigo, trata-se de um relato autobiográfico em que Isabel está no seu pódio de afetos. Este Rodrigo, que levou uma adolescência em libertinagem, tinha como referência modelar o seu tio Rodrigo, herói da I Guerra Mundial, condecorado pelo Presidente dos Estados Unidos. A narrativa está toda intercalada entre vários tempos e ambientes, Rodrigo já está em Castelo Branco, a Guiné à vista, regressamos ao ambiente familiar, às festas em Cascais, fala-se mesmo muito naquele conjunto de festas emblemáticas coincidentes com a morte política de Salazar, tudo portanto em 1968, Rodrigo é doido por sexo e duas jovens, mesmo em hesitação emocional, têm papel preponderante no seu coração, Leonor e Isabel. 

Tudo se passa em atmosferas seletas, há ministros de Salazar e senhoras muito ativas no Movimento Nacional Feminino. Numa lubricidade bem temperada, Rodrigo quer ir às de facto com Leonor, esta troca-lhe as voltas. E Rodrigo parte para a Guiné, no Uíge, vai-nos apresentando outros participantes. Cita-se Fernando Pessoa, ficamos a saber alguma coisa de quem é o Bastos, nascido em Moscavide, que foi preparado para a vida por uma prostituta profissional, a Fernandinha, e Jaime, nascido em Penacova, licenciado em Direito, fez a recruta em Mafra e conseguiu a extraordinária proeza de ser despromovido por inépcia, manda o bom senso que já estamos no inacreditável.

Entrámos em plena intriga romanesca, o rival de Rodrigo chama-se Armando, é oficial da Manutenção Militar em Bissau, um bajulador de primeira, escrevia ao ministro de Salazar e pai de Isabel cartas contando coisas sobre Amílcar Cabral que vêm em centenas de livros e faz uma apologia do General Spínola, assim:

“O General Spínola não transpira, o que é um fenómeno com este clima. É um homem extremamente metódico. Toma o pequeno-almoço cedo, come sobretudo fruta, especialmente papaias. Não bebe café, bebe sempre um copo de água morna a seguir à refeição porque ajuda à digestão. De seguida, visita as unidades. Ao meio-dia, impreterivelmente, está de volta ao Palácio do Governador. À uma hora, almoça. Uma refeição sóbria, até porque tem problemas de rins”.

 E por adiante, até chegarmos ao polo da admiração: 

"O General Spínola, e isso é unânime entre os oficiais que com ele contactam mais diretamente, inverteu a filosofia da guerra implantada por Schulz, posicionava as tropas num sistema clássico de quadrícula e corria atrás dos acontecimentos. Éramos arrastados pelas atividades do inimigo. Spínola traz um conceito novo, e cria uma estratégia própria, a de ter iniciativa. Não há dúvidas de que com Spínola temos uma nova Guiné. Até no que concerne aos transportes das tropas que chegam da metrópole e são, depois, enviadas para os respetivos quartéis. No tempo do General Schulz, eram na maior parte das vezes enviadas em lanchas pelos braços do mar, sem qualquer proteção, alvo fácil de ataques que poderiam facilmente derivar numa tragédia de grandes proporções. O Comando-Chefe classifica esta forma de colocar as tropas no seu destino de total irresponsabilidade”.

Se até este momento a narrativa é de uma piroseira minimamente cuidada, chegámos ao descaro de quem não estudou e atira umas bojardas apimentadas de santificação.

Estamos agora em casa de Isabel, que lê embevecidamente o manuscrito, ela está na companhia de Chico, presume-se que é o marido, há lá uma criança com seis anos que fala só e constantemente com a mãe. Rodrigo conta a viagem para Cacine numa LDG, aqui houve separação de tropas, seguiram para Gadamael Porto, e no dia seguinte, às revoadas, eram largados de avioneta em Guileje. O Comandante da Companhia é o Capitão Ivo Ferreira, cabo-verdiano altamente patriota, leva o obus até perto da fronteira e larga umas boas ameixas em bases onde se acantonam gente do PAIGC. Rodrigo fotografa tudo, o capitão açambarca o material fotográfico, dá-o como confiscado. O médico, o Dr. Branco, é um alcoólico incorrigível. Guileje é flagelada com morteiros 120, Rodrigo, impávido e sereno, tira fotografias a esmo no meio da algazarra. Começam as baixas, morreu o Santos, alguém que esperava o fim da comissão para entrar num seminário. As cartas de Rodrigo para Isabel são incandescentes, não faltam saudades e pedidos de companhia.

Estamos agora em janeiro de 1969, os amigos e a família chique de Cascais e arredores encontram-se, a guerra colonial é coisa que não existe nas suas vidas. Mas algo de extraordinário vai acontecer, a mulher do ministro de Salazar, uma alta graduada do Movimento Nacional Feminino, vai a Bissau levar uma oferta de vulto, faz-se acompanhar de Isabel. Quem vai a Bissau também vai a Guileje, as senhoras são recebidas com pompa e circunstância, no meio da receção calorosa estoira um foguetório, a gente do PAIGC não perdia oportunidade de indispor as visitantes. Decorre a flagelação informal e desta vez Rodrigo sai do quartel na companhia de Isabel, embrenham-se na mata, vai tirar fotografias ao ataque aéreo, saiu de Bissalanca uma parelha de Fiats G-91 que destroem a força atacante, fica tudo esturricado. Um dos amigos de Rodrigo naquele grupo de alta sociedade era Ricardo, filho de um dos milionários moçambicanos, um jovem que só vestia no Pestana e Brito, está numa Companhia de Comandos que parte para Moçambique. Vamos assistir à descrição da vida da gente fina em Lourenço Marques e até a um encontro com Jorge Jardim. Armando, em Bissau, destila mentiras e informa o ministro de Salazar que a guerra na Guiné estava praticamente ganha.

“As visitas do General Spínola aos nossos aquartelamentos são momentos épicos. Nas tabancas próximas, antes das visitas, estas são aliciadas com ofertas, como aguardente de cana e folhas de tabaco. Depois, as bases inimigas que se encontram mais próximas das nossas posições são bombardeadas impiedosamente. No seio dos terroristas instala-se o medo e a discórdia. Já não falta muito para que eles icem a bandeira branca, implorando tréguas, pois dificilmente aguentarão por muito mais tempo a nossa pressão e a das próprias populações da Guiné”.

(continua)
Carlos Santos, da Companhia de Cavalaria 8350 ‘Os Piratas de Guileje’. Imagem retirada do jornal Correio da Manhã, com a devida vénia

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23665: Notas de leitura (1502): "De África a Timor", uma bibliografia internacional crítica (1995-2011), por René Pélissier; Centro de Estudos Africanos da Universidade de Porto e Edições Húmus, 2014 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23647: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (96): Os geradores nos quartéis também forneciam eletricidade para a população civil? (Manfred Stoppok, investigador alemão, a fazer um estudo sobre a história da energia elétrica na Guiné-Bissau, 1890-2020)


Diorama de Guileje > 2008 > A casota do gerador Lister: miniatura, da autoria de Nuno Rubim, destinada ao Núcleo Museológico de Guileje, Guileje, região de Tombali, Guiné-Bissau


Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2008). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Um gerador de marca Lister, parecido com o que deveria existir em Guileje. 

Imagem retirada da Net:  Nuno Rubim (2007)



1. Mensagem de Manfred Stoppok (foto à esquerda), antropólogo social, investigador de pós-doutoramento, da Universidade de Bayreuth, Alemanha

 
Data - 26 de setembro de 2022, 16:44
Assunto - A electrificação e os militares na Guiné-Bissau nos anos 1960

Exmos Senhores,

O meu nome é Manfred Stoppok, sou investigador pós-doc na Universidade de Bayreuth,  Alemanha. 

Já fui várias vezes à Guiné-Bissau, e neste momento faço um estudo sobre a história da eletricidade no país.

Eu descobri nos arquivos históricos ultramarinos em Lisboa que, durante a guerra de 1961/74,  uma grande parte da capacidade de produção de eletricidade estava nas mãos das forças armadas portuguesas: dos 59 lugares com geradores fora de Bissau, 47 tinham somente um gerador nas mãos das forças armadas, e somente 19 tinham uma distribuição civil.

Em termos da capacidade de produção, ambas, a administração civil e as forças armadas,  tinham cerca de 1 MW cada um no total.

Este aspeto é provavelmente uma coisa muito especial no desenvolvimento do sector de energia. Neste sentido, tenho algumas perguntas, na resposta às  quais os senhores talvez me possam ajudar.

(i) Os geradores dos militares forneciam eletricidade em geral somente para os quartéis – para uso próprio – ou também forneciam eletricidade para as unidades administrativas, escolas, hospitais,  etc.? Ou até mesmo para alguns particulares ou comerciantes?

(ii) Ou havia uma iluminação pública das ruas naqueles lugares? 
Em pelo menos alguns casos isso acontecia, havia eletricidade para a administração, mas eu não sei se isso  era a regra ou a exceção.

(iii) E, bem interessante para mim, o que é aconteceu com os geradores militares na hora da independência da Guiné-Bissau? O mais provável é que os geradores tenham sido levados para Portugal, o que significou a perda de quase 50% da capacidade de produção fora do capital Bissau. Ou será que estes equipamentos ficaram na Guiné?

Eu agradecia muito se os senhores puderem e quiserem partilhar as suas experiências comigo ou então indicar-me  onde posso encontrar documentação sobre estas coisas.

Eu também estarei em Lisboa por duas ocasiões nos próximos meses – no final do outubro de 2022 e no início de fevereiro de 2023 – e teria muito gosto em ter um encontro pessoal com quem quiser partilhar as suas informações e memórias relativamente a este assunto,

Com os melhores cumprimentos
Dr. Manfred Stoppok

[Revisão e fixação de texto, negritos: L.G.]

Manfred Stoppok | Post-Doc Researcher

f: funded by Fritz Thyssen Foundation
a: University of Bayreuth – Social Anthropology
e: manfred.stoppok@uni-bayreuth.de
w: www.history-electrification.com



Capa do livro "A Engenharia Militar na Guiné: o Batalhão de Engenharia". Coordenação do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa: Direção de Infra-estruturas do Exército, 2014, 166 pp.


Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, lado nordese do quartel e um dos abrigos, sobranceiros à tabanca, e a morança do comerciante português Rodrigo Rendeiro, do outro lado do arame farpado... Ficava do lado direito, quando se subia, vindo de Bafaté e do rio Geba, a famosa rampa de acesso ao quartel e posto administrativo de Bambadinca. São visíveis, na foto (se for ampliada), os postos de iluminação pública, ao longo da rua principal (que ia do quartel até ao porto fluvial).

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem...

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário do editor LG:

Meu caro Manfred: vamos tentar  ajudá-lo (*). Obrigado pelo seu contacto. Procurei  melhorar a sua mensagem em português. Mas não temos, à partida, grande informação (e muito menos conhecimento)  sobre a eletrificação da Guiné-Bissau no nosso tempo (1961/74). E falta-nos, enquanto antigos combatentes, uma visão geral sobre a situação da eletrificação do território... 

Nos quartéis, havia pelo menos um gerador (nalguns casos, haveria um sobresselente para suprir avarias) que funcionava preferencialmente à noite. Nunca ou raramente estavam a operar 24 horas por dia. Fez-se um esforço por eletrificar todos os aquartelamentos localizados em povoações importantes. E isso competia à engenharia militar (BENG 447).

Havia quartéis maiores do que outros, e alguns estavam implantados nas próprias povoações, sendo natural que contribuissem para a ilumição pública fora do perímetro do arame farpado, nas proximidaxes da porta de armas e na rua principal da localidade (caso de Bambadinca, Teixeira Pinto, Nova Lamego, Farim, Catió...). 

Em localidades como Bambadinca (onde eu estive, de julho de 1969 a março de 1971, e que teria, na altura 2 mil habitantes, e cerca de 400 militares), e que era um posto administrativo fazendo parte do município  de Bafatá (a segunda maior cidade do território, a 30 quilómetros, a nordeste),  o perímetro militar integrava as instalações e a casa do chefe de posto, a escola (com a casa da professora, cabo-verdiana), bem como uma capela cristã... O edifício dos correios, se bem recordo, já ficava fora... As casas comerciais estendiam-se ao longo de uma rua de trezentos metros que era ilumianada, tanto quanto me lembro... O resto (duas tabancas) ficava às escuras... O gerador militar também fornecia luz ao posto de intendência no porto fluvial, na margem esquerda do rio Geba Estreito, a escssas centenas do aquartelamento, sede de um batalhão (BCAÇ 2852 e depois BART 2917)...

Os frigoríficos (tanto dos comerciantes civis como os da tropa, e de um ou outro particular) eram alimentados a petróleo. E alguns de nós, graduados,  tinham também pequenos frigoríficos, nos quartos para manter frescas as bebidas  como a cerveja... (Um luxo, a cerveja gelada, o gelo para o uísque, a água de Vichy e de Perrier...).

Por outro lado, temos ainda a memória do cinema ambulante, que passava, mesmo no tempo da guerra, por algumas povoações mais importantes do leste da Guiné. E havia localidades que tinham sala de cinema (Bafatá, Teixeira Pinto, Nova Lamego...).

É importante que fale com os nossos camaradas do BENG 447, o Batalhão de Engenharia nº 447, que estava sediado em Brá, Bissau, e era responsável também pela construção e eletrificação das instalações militares no mato.

Fica aqui o seu apelo. Vamos ver se aparece informação relevante para si e o seu projeto sobre a história da electricificação da Guiné, terra a que nos ligam fortes laços afetivos e muitas memórias (boas e más). Vejo que fala e/ou escreve português. Isso facilita os contactos. Boa sorte, boa saúde, bom trabalho. LG

PS1 - Temos ideia que houve, no tempo do governador  Sarmento Rodrigues (1945/49) e depois do general António Spínola (1968/73), uma melhoria da eletrificação do território. Mas não temos informação detalhada. Por outro lado, Bissau estava muito melhor iluminada, à noite,  antes da independência do que depois. Em 2008, quando lá voltei, a cidade vivia às escuras. Fale também com o nosso camarada Mário Beja Santos, que é um enciclopédico estudioso da história da presença portuguesa no território, bem como  o nosso camarada Patrício Ribeiro, fundador e diretor da empresa, com sede em Bissau, Impar Lda, do sector de energia.  Dar-lhe-ei depois os contactos,

PS2 - O nosso José Nunes (José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade no BENG 447 (Brá, 15Jan68 - 15Jan70) esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau. Tem, por certo, conhecimento da matéria. (Vd. o precioso poste P2470, de 22 de janeiro de 2008 " (**)
___________


(**) Vd. 22 de janeiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)

(...) Estive na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970. Fiz assistências e electrificações em aquartelamentos, Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglés, Bolama, Bissum-Naga.

Acerca dos manuais que o Camarada Coronel NUno Rubim precisa, deve ser difícil pois nunca os vi em 2 anos e um dia de Comissão, nem na escola Militar tivemos acesso a eles.

Os grupos geradores mais utilizados eram: 500/250 KVA, 150, 50/47,5 KVA.

No Quartel General (QG), na Central nova, havia dois Dorman de 250 KVA, com 6 cilindros, refrigeração a água por radiador e, um grupo gerador de emergência Lister de 75 KVA.

Na Central velha, existia operacional um Deutz de 12 cilindros em V, refrigerado a ar e um Lister de 50 KVA.

Na Engenharia 
 [ BENG 447] e no Hospital Militar estavam os grupos geradores maiores.

No mato, normalmente, encontravam-se geradores com potências de 50, 20 e 7,5 KVA.

As marcas Stanford e Frapil para pequenas potências até 20 KVA. As motorizações eram diversas: Dorman, Deutez, Lister e EFI produção nacional.

Em Porto Gole havia um Lister de 47,5/50 KVA, na Ponta do Inglês havia um Gerador de 20 KVA que lá fui levar com um operador de Motores Fixos 
[ e que se avariou, obrigando o pessoal a recorrer à iluminação a petróleo com garrafas de cerevja] .

Ajudei a transferir o grupo gerador, na lama, da LDP (Lancha de Desmbarque Pequena)  para cima do Unimog, a descarregar no local e a fazer ligações de potência.

Por azar, o meu camarada inverteu a polarização na excitação e o gerador ficou inoperacional.

Tive de me pirar porque fui lá desenfiado só para ajudar e para ver se o Operador vinha no mesmo dia para Bissau, mas ficaram sem iluminação e o Engenheiro ficou lá até ao próximo transporte, regressando eu a Porto Gole onde levei uma valente piçada.

Ponta do Inglês 
[destacamento do Xime, na foz do rio Corubal], iluminação? A bazucas [garrafas de cerveja, de 0,6 l] cheias de petróleo penduradas no arame farpado.

A iluminação nos aquartelamentos era feito com cibes 
[ rachas de troncos de palmeira] a fazer de postes, linhas de cobre nú de 2,5 mm2, circuito fechado em anel, lâmpadas Philips 150 Watts spot.

Os quadros eléctricos eram em baquelite, equipados com fusíveis ou disjuntores quando os havia.

Não havia uniformização nos geradores, tal como muita coisa era comprada ao sabor de quem dava melhor percentagem, mas a maioria dos aquartelamentos tinha geradores de 7,5 ou 20 KVA. (...)

 

Vd. também postes de:

26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)