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sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Guiné 61/74 – P20029: Memórias de Gabú (José Saúde) (86): Paredes impregnadas de imagens de mulheres. Um lavar de olhos em tempo de guerra (José Saúde)





 1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

As minhas memórias de Gabu

Paredes impregnadas de imagens de mulheres

Um lavar de olhos em tempo de guerra



Lá longe, num outro continente onde o calor humano superabundava, as mulheres passeavam a sua beleza feminina por entre uma multidão de seres terrestre que se deixavam encantar pelas virtualidades expostas em belíssimas formosuras. Senhoras jovens que, aliás, encantavam o mais singular cidadão do mundo que usufruía o prazer em ver o seu fino físico corporal ao vivo e a cores.



Mas, nas trincheiras da guerra os “duros” combatentes confrontavam-se com as representações virtuais que levavam o efebo rapaz ao êxtase. Num devaneio absoluto de um delírio meramente carnal, nós, militares cuja idade permitia resvalar para sonhos românticos onde proliferavam autenticas fantasias, deleitávamos os nossos instintos masculinos para a propagação de simples imagens em papel onde se visualizava o corpo, ou parte dele, de uma encantadora rapariga que transmitia efémeros desejos.

Nas paredes dos nossos insignificantes quartos impregnadas de imagens que vislumbravam corpos esbeltos de gentes femininas, bastava um lavar de olhos para os nossos potenciais desejos prosaicos virem à tona de memórias que pareciam perdidas na desigualdade de um tempo consumido pelos súbditos de uma guerra substancialmente desigual.

Pronunciei atrás a temática quartos, todavia, diz-nos a realidade, e é justo que o façamos, que muitos foram os camaradas que ao longo das suas comissões viveram em autênticos buracos escavados por eles próprios para salvarem a sua própria pele. Buracos desumanos feridos de conteúdos de bons sensos para todos os camaradas que porventura conheceram esses horrores em pleno campo de batalha.

Não conheci, felizmente, essa veracidade, porém, essa foi uma inequívoca certeza que muitos dos nossos camaradas estupidamente aguentaram, mas sempre hirtos aos terríveis momentos que a guerrilha amiúde impunha. Ficou, no entanto, a certeza de histórias contados por aqueles que souberam suportar as trevas de uma guerra que não dava folgas. 

Em Nova Lamego, Gabu, as fotos eram autenticas obras de arte estateladas em tapumes que transmitiam laivos de sexualidade a combatentes vencidos pelas distâncias físicas e que se sentiam carentes de uma visualização real onde a feminidade obviamente atraía o mais vulgar rapazote.

A guerra, no entanto, permitia implícitas circunstâncias que resvalavam somente pelo etéreo mundo de imaginação. Restava, por vezes, incorporar os nossos sentimentos sexuais no cosmos da fantasia. 

Este introito que ouso trazer a público é simplesmente a fidedigna razão de um camarada, tal como muitos outros, que enveredou por desmistificar a originalidade de uma foto que no seu todo invoca a certeza de sonhos deslumbrantes.

E se é verdade que a fatiota domingueira deste velho combatente deixava antever uma “escapadela” à tabanca para um “agasalhar” de instintos somente carnais, por outro lado pretendo deixar vincado que a originalidade das ditas imagens em papel, era algo que certamente proliferava em todos, ou quase todos, os aposentos de jovens envolvidos na guerra numa Guiné onde os espinhos personificavam a dor sentida pela perda de um camarada.

Hoje, tudo é passado e poucos são aqueles que se dignam, sob a sua própria pena, subscrever nacos de uma realidade histórica lusitana acerca da indelével infalibilidade que houve uma guerra recente que parece ter caído no mundo das trevas.

Nós, que por enquanto ainda fazemos peso à terra, lá vamos recordando imagens que geralmente nos tocam, porque pertencemos a uma geração onde a guerra nos apanhou em plena flor de idade e nos enviou para as frentes de combate.

Num intrínseco cruzamento de recordações como antigo combatente, é bom que nunca esqueçamos quem fomos, quem somos e que redundantemente seremos seres prontos a encarar o futuro com uma fugaz expetativa de ver o nosso passado simplesmente compensado. Pessoalmente duvido, como é óbvio, mas o amanhã é literalmente um mistério. Vamos apenas sonhando. 

É neste subtil e atento observar de imagens de outrora, que lanço um lavar de olhos em tempo de guerra para desferir um ataque de amizade a todos os camaradas que pisaram o solo guineense.

Somos eternamente o resultado final de uma peleja que jamais fora nossa e de uma sociedade cujo reconhecimento esbarra simplesmente no limbo do esquecimento. Ergam sempre as vossas vozes, não no muro das lamentações mas para quem de direito.



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

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12 DE JULHO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19973: Memórias de Gabú (José Saúde) (85): "Exército" de abelhas (José Saúde)

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19973: Memórias de Gabú (José Saúde) (85): "Exército" de abelhas (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

As minhas memórias de Gabu 

A mata e os seus mistérios
“Exército” de abelhas

Num esmiuçar de imagens que nos transportam aos tempos da guerra, viajo por terras de Gabu e recordo aquelas horas passadas no mato em que o perigo espreitava e o pessoal era, num outro prisma, também fustigado por um “exército” de abelhas que não davam tréguas ao mais resistente combatente.

Caminhando à toa e sempre pensando no IN que poderia “andar ali perto”, ainda que por outro lado a mensagem passada assentasse basicamente por não descuidar os princípios que a guerrilha impunha, a mata escondia mistérios que muito surpreendia o previdente caminhante.

O habitual camuflado que transportávamos no corpo no interior declarava-se, também, como uma peça fundamental que nós não dispensávamos perante as adversidades que a dureza do matagal envolto em segredos impunha a cada momento.

Procuro o significado de camuflado, melhor, recorro à definição do verbo camuflar, sendo a resposta que aquele usual fardamento era um investimento para “disfarçar ou encobrir” as nossas presenças perante a minuciosa miragem de um IN sempre atento às movimentações das nossas tropas.

Hoje, traga-vos como recordação os austeros momentos em que os enxames de abelhas colocavam o pessoal num autentico frenesim. Sabeis, por certo, que as suas picadas não eram, e nem tão-pouco o são, “coisa” meiga de aguentar, logo as suas surpreendentes “emboscadas” impunham respeito.

Resguardadas em refinadas “trincheiras” de defesa, espreitavam o inimigo que, naquele caso, se julgava imune a eventuais ciladas destes laboriosos “bicharocos”, uma vez que depois de incomodadas soltavam os seus ferrões em direção a um prossuposto adversário que se via completamente desorientado face ao mordaz ataque do tão nefasto e émulo “opositor”.

Este pequeno introito esbarra numa situação em que assisti a um “ataque” de abelhas na região de Gabu. Íamos no mato, há um camarada que inadvertidamente tocou numa árvore e num repente tínhamos em cima de nós um batalhão destes perniciosos “bichos”.  

Os zumbidos eram assustadores, houve camaradas com o ferrão destes maliciosos “insetos” cravados na pele, a malta correu desalmadamente por tudo o que era sítio, existiu, evidentemente, uma momentânea dispersão, seguindo-se o toque a reunir mas com os olhos bem abertos não fosse o diabo tece-las.

Após reunir as tropas a malta comentou o sucedido, houve quem se divertisse com a marosca e outros queixosos pelo então infeliz ataque. Tudo, porém, se enquadrava com o teor do terreno pisado. 

Nas minhas memórias de Gabu guardo, religiosamente, situações em que também fui um agente que interveio nas mais diversificadas situações, sendo que os meus neurónios, não adormecidos, ainda conseguem relatar nacos de um passado distante mas sempre atuais e essencialmente de acordo com as lembranças de todos os meus caríssimos camaradas. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

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29 DE JUNHO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19930: Memórias de Gabú (José Saúde) (84): Rapaz franzino, de reposta fácil e acertada. O Dias e sua rebeldia. (José Saúde)

sábado, 29 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19930: Memórias de Gabú (José Saúde) (84): Rapaz franzino, de reposta fácil e acertada. O Dias e sua rebeldia. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem da sua série. 

Memórias de Gabu


Rapaz franzino, de reposta fácil e acertada

O Dias e sua rebeldia

Natural de Setúbal, uma cidade que se espraia nas maravilhosas águas do rio Sado, o furriel miliciano Dias assumia o dom de um peculiar militar essencialmente altivo. Estava-lhe, quiçá, na massa do sangue. A sua singularidade na guerra apresentava-se consubstanciada à exemplar rebeldia, não obstante tratar-se de um escriturário que procurava cumprir a missão que lhe tinha sido dada. As esferográficas não lhe davam dificuldades de maior e nunca se familiarizou com as G3.

A sua estatura física era algo débil. Franzino, de resposta fácil e acertada, o Dias não dava tréguas ao mais arrojado camarada. O protesto surgia naturalmente. Era, pressuponha-se, um eterno insatisfeito e não lidava nada bem com a hierarquia militar, isto de entre outros contratempos que a missão na guerra obrigava.

Muitas foram as vezes que se sentava à mesa, para almoçar ou jantar, sem proferir uma única palavra. Havia ocasiões que chegava com frases escritas num cartaz em cartão, outras  vezes numa folha “A4”, e colocava esse panfleto à frente do prato da refeição. “Temos protesto”, comentava a malta. 

O conteúdo desses ditos resvalavam, na generalidade, para o campo da protestação. Murmúrios silenciosos que eram tão-só revoltas que lhe iam na alma. Recusava uma pequena observação de camaradas com os quais vivia quotidianamente. Remetia-se, por vezes, a um profundo silêncio.

Nós, despertos para os dizeres da sua linguagem escrita nos ditos folhetos, muitas vezes nos interrogávamos da razão dos insubmissos desabafos. Aliás, desconfiávamos que se tratava de alguém que estava ligada à política, ou que por lá tivesse militado mas na clandestinidade. Tanto mais que o Estado Novo mostrava-se austero e sempre atento a movimentações entendidas como subversivas. Por isso, nada de avançar com conjeturas eminentemente arriscadas.

Todavia, o Dias jamais deu a entender qualquer manifestação política que porventura o pudesse comprometer. Ainda assim, a dúvida persistia entre os camaradas. Aliás, o silêncio do nosso amigo era de ouro. Se preparado, ou não, para um possível confronto de ideias, embora a índole fosse diversa, não o soubemos enquanto a guerra permaneceu.

Lembro-me as indiretas para os sargentos, homens com uma ou mais comissões no conflito africano. Creio, não sustentado o discurso como certeza absoluta, que a revolta teria outros contornos. Houve ocasiões em que o Dias manifestamente surgia com um cartaz em branco. Porquê? Só ele o saberia! Nós, não.

De entre os muitos momentos em que o rapaz setubalense não estava virado para “curtir” diálogos com os camaradas, lembro-me das ocasiões em que se predisponha a uma jogatana de futebol, mas pouco ou nada comentava sobre a sua presença na equipa, ou o evoluir da peladinha.

Conhecedores do seu “malvado” feitio, a malta escancarava-lhes as portas e lá fazia parte da equipa dos furriéis. Não jogando absolutamente nada, a sua entrega ao jogo era delirante e o seu correr atrás da bola deixava a rapaziada desvairada de alegria face aos seus pequenos desabafos. Ah, era bom no ping-pong. Raramente perdia uma partida. 

Com umas pernas de “alicate” e de correria desengonçada, as suas fintas com a bola eram enquadradas com a sua própria maneira de ser. O Dias era, de facto, uma personalidade ímpar no interior do aquartelamento.

Após a Revolução de Abril, já em clima de paz, soubemos que ele e o furriel enfermeiro Navas, encetaram algumas visitas a sítios onde o PAIGC se havia instalado. Claro que de pronto deduzimos o significado da efetiva razão das suas manifestações essencialmente silenciosas.

Afinal o Dias era um elemento informado, embora num conceito básico à época, sobre o móbil da luta armada e os princípios pelos quais os movimentos de libertação lutavam num território por eles reclamado.

Soube, em tempos, que o nosso camarada Dias permanecia em Setúbal, sua terra natal, sendo que até aos dias de hoje jamais me cruzei com uma individualidade que me deixou saudades, tendo em conta a sua filosofia de vida por terras de Gabu, Guiné-Bissau.  



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19760: Memórias de Gabú (José Saúde) (83): Os “milagres” do quarteleiro da minha companhia. A metamorfose do vinho batizado com água.

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

As minhas memórias de Gabu 


Os “milagres” do quarteleiro da minha companhia


A metamorfose do vinho batizado com água


As histórias avulsas de guerra na Guiné que habitualmente trago à estampa no nosso blogue, sendo aliás comuns aos camaradas que viveram semelhantes situações, remetem-nos para pequenas narrações do passado mas que ainda mexem com as nossas memórias.

É certo que esta temática não tropeça na filosófica destreza da guerrilha, trata-se, sim, de uma outra peleja travada entre o silêncio de quatro paredes onde a mão do homem se encarregava em trabalhar minuciosamente o material comestível e bebível que havia chegado ao aquartelamento.

Numa manhã calorenta, como era costume numa Guiné sempre a “ferver”, e na condição de sargento dia, predispôs-me a visitar o soldado, cujo nome não recordo, que era tão-só o nosso quarteleiro que em conjunto com o vagomestre, de entre outros comparsas, administrava as “encomendas” que entretanto haviam chegado ao seu novo poiso africano.

Entrei na dita arrecadação, disse bom-dia e passei de imediato à conversa amigável com o quarteleiro que, em princípio, quase recusou a minha passagem ao interior de uma casa contínua onde estava depositava a maioria de todo o material que reabastecia a cantina dos soldados para a feitura do respetivo rancho.

Do que me fora dado observar constatei que o quarteleiro, já feito com essas andanças, lá foi desafiando algumas das teias que envolviam o seu silencioso trabalho mas sob as rígidas orientações superiores.

Ignobilmente confessou-se, em surdina, que a regra passava por desmultiplicarem-se alguns dos conteúdos, sobretudo aqueles cuja feitura original se antevia favorável a uma possível alteração. Logo, subentendi que a eventual marosca estava permanentemente em aberto.

Não vou precisar a quantidade de material propício à prática de tais “milagres”. Não interessa ao tema exposto. É passado e sem sanções a aplicar. Os “milagres” que se faziam tinham, pensa-se, outros evidentes resultados mas estes palpáveis. O bolo seria alegadamente repartido sob o tampo de uma mesa a que só tinham lugar os fiéis apóstolos da ordem que comungavam os restos sobrantes em absoluta comunhão.

Estes esquemas que roçavam a eventual filantropia restritamente individual, mas por outro lado distribuída por quem tinha o poder das coisas, apresentava-se como um bom pé de meia na contabilidade dos volúveis aventureiros onde o deve e o haver se apresentava literalmente emparelhado para que os números finais batessem certos, sendo as contas exequíveis modelos, género à merceeiro, onde o papel pardo era então transformado em folhas de “excel”.

Um dos “milagres” feitos pelo quarteleiro era a metamorfose do vinho batizado com água. Recordo, perfeitamente, como ele transformava o precioso líquidos dos deuses em vinho aguado.

O bom do homem tinha um alguidar em inox limitando-se em abrir as pipas recém chegadas mas copiosamente sob um minucioso comando de mãos e de visão. Quando o liquido chegava normalmente a meio o atinado rapaz fechava o pipo, sendo que o outro meio era “recalcado” com água vinda da Fonte da Várzea do Cabo, uma nascente onde o pessoal se reabastecia e que se situava na estrada que ligava, e liga, Gabu a Piche.

Claro que os soldados tinham sido sonegados em beber um vinho que de original pouco tinha. Mas, ao que dava para entender, a malta bebia, comia, divertia-se, sendo que os mais vivaços, reconhecendo a maldade feita, lá mandava umas “bocas” ao rapaz que, entretanto, se refastelava na sua abençoada “mansão” saboreando a refeição e bebendo vinho de primeira qualidade.

O cálculo final dos custos monetários, individual e/ou coletivo, eram contas de outros rosários. Tudo, ou quase de tudo, resvalava para dados contabilísticos que “engordavam” carteiras alheias. O bom do mancebo limitava-se a comer e beber do bom e do melhor. Ou não fosse ele o autêntico fiel de um armazém onde tudo era contabilizado ao pormenor.

Mais uma pequena história de Gabu retida na mente deste vosso velho camarada que lá vai fazendo das tripas coração visando, estritamente, o relatar de factos que ainda me enchem por completo a alma.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

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quarta-feira, 24 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19714: Memórias de Gabú (José Saúde) (82): Recordando (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Memórias de Gabu
Recordando

O tempo passava por cuidados intensivos. Sair para o mato impunha precaução, quer a missão passasse por mais uma patrulha às tabancas onde a finalidade era efetuar a inevitável incumbência pela então chamada “psicó”, ou para a proteção de uma coluna, ou para mais uma noite passada no mato a contar as estrelinhas, sendo a guerra feita pelos zumbidos dos mosquitos que não davam tréguas ao sossego do militar prontinho a dormir mas… acordado. 

Usufrui de profícuos conhecimentos obtidos em Penude, Lamego, Curso de Operações Especiais/Ranger, aquando a minha mobilização para a guerra acontecesse certamente jamais abdicaria do que me fora ensinado em pleno sopé da Serra das Meadas, a "bíblia sagrada" de todos os ranger’s. 

O curso como instruendo fora, para todos, literalmente penoso, sendo que na condição de instrutor readquiri uma outra bagagem, esta acrescida como fundamental no momento áureo em que a guerra era uma verdade indesmentível. Estávamos, digamos, no auge de uma peleja que não dava descanso e as nossas mobilizações invariavelmente assumidas como certezas absolutas. 

Havia preceitos, ordens e princípios básicos que impunham regras de autodefesa. Em Gabu conheci a realidade da guerrilha e aos poucos consegui introduzir no grupo a noção da responsabilidade. Uma veracidade que passava, naturalmente, pela preparação da saída. Nada de “baldas” e nem de facilitismos.

Ao cimo da parada do quartel em Nova Lamego, era comum o pessoal juntar-se de fronte a um casario com destinos diversos. O armazém do material de guerra ficava mesmo em frente. Ali o pessoal formava, distribuíam-se munições de entre outro material que porventura pudesse ser utilizado, organizavam-se as incumbências de cada militar, dirigiam-se umas palavras aos camaradas e lá partíamos para a forjada “paz” de um IN que não descurava um pequeno descuido do pessoal.

Um belo dia preparei a rapaziada, nada de gozos e nem tão-pouco falta de respeito, para um momento de todo impensável. Estávamos de partida para mais uma ida para o mato e por perto passava o capitão Rijo, comandante a nossa companhia, que esboçou a sua admiração com a inesperada postura do furriel.

Com o grupo formado e com o capitão Rijo a olhar a malta de soslaio, eis que solto um grito à ranger que se propagou exaustivamente por todo o recinto: dois passos em frente, bem trabalhados, os calcanhares e as solas dos pés a emitirem um som enorme, corpo hirto uma magistral paulada e do interior das minhas cordas vocais lá entoei “Vossa Excelência meu capitão dá-me licença que mande avançar o grupo!”.

Reparei que a sua primeira atitude foi de espanto. Ele que era capitão oriundo da GNR jamais lhe terá passado pela cabeça uma atitude tão autoritária de um mero furriel que entretanto levou o oficial a lisonjear-se com a bem-aventurada situação.

Lembro que a sua resposta à minha solicitação não foi imediata. Meditou e num curto espaço de segundos a sua resposta ao devolver-me a continência foi com a singela palavra “pode”.

A malta, sempre traquina, divertiu-se depois à fartazana com a “peça” que o furriel tinha feito ao capitão. Mas a “marca” estava dada para, em situações futuras, o capitão responder atempadamente ao monograma colorido de um ranger que se via a comandar um pelotão de valentes soldados.

Ali não existiam distinções, todos bebiam pelo mesmo cálice e comiam do mesmo prato. Um por todos, todos por um. Era assim a mensagem que diariamente proponha a uma rapaziada que ainda recordo com um respeito imenso.

Histórias avulsas, e sobretudo alegres, empreendidas no interior do arame farpado, mas com o devastador palco de guerra ali por perto.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

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domingo, 14 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19680: Memórias de Gabú (José Saúde) (81): Recordando o saudoso camarada Damásio (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 



As minhas memórias de Gabu

Recordando o saudoso camarada Damásio

Camaradas, 

Lancei, há tempos, no nosso blogue - Luís Graça & Camaradas da Guiné - um tema onde falo da fatídica morte do soldado Damásio.

Não vou exceder-me em considerações sobre o trágico acontecimento, entendo sim como preferível voltar a recolocar parte do meu texto, acrescentado agora uma obra cuja narração refere o horroroso caso.

Tudo se prende com a chegada à minha mão do livro “HERÓIS LIMIANOS da Guerra do Ultramar” cujo autor é Mário Leitão, um dos nossos companheiros nestas lides bloguistas, precisamente num espaço que é de todos e para todos,com o qual tive oportunidade em almoçar a seu lado no último convívio anual que teve lugar em Monte Real, aliás, como vem sendo hábito.

A minha convicção é que todos temos direito a imitar opiniões pessoais e comentar textos, mas alertando que “a perna não deve ir para além do lençol”.Digo bem “chefe” Luís Graça?

A possibilidade em introduzir este tema surgiu quando o meu amigo de longa data Manuel Lourenço Casteleiro Góis, um ex-furriel miliciano que passou, também, como camarada de armas pela Guiné, me falou de um livro que tem em seu poder e que refere em determinado momento o meu nome.

O Mário Leitão, farmacêutico e professor aposentado, faz uma descrição de mortes de vários camaradas limianos que morreram na guerra do Ultramar e lá está o meu companheiro Damásio.

Refere camaradas com os quais lidei diariamente no interior do arame farpado. Fala do processo de averiguações conduzido pelo alferes Santos, sendo o escrivão o furriel Dias, um rapaz de Setúbal, e adianta os nomes das testemunhas ouvidas.

Na página 97 lá está o nome do furriel Saúde que por determinação do QG de Bissau se encarregou de prestar assistência à família. É verdade. Mas adianto mais: todo o espólio angariado foi da minha inteira responsabilidade. Reuni literalmente todos os seus bens pessoais entregando-os depois ao capitão Rijo, comandante da nossa companhia.

Com a devida vénia ao Mário Leitão, reproduzimos uma pequeníssima parte do livro “HERÓIS LIMIANOS da Guerra do Ultramar” do qual é autor, onde refere a morte do soldado Damásio e a angústia de uma família que se deparou com a infeliz notícia.

Obrigado Mário pela tua gentileza. 

“Foi socorrido momentos depois pelo médico militar Dr Amílcar Silva de Nobre Neto, que se encontrava na placa de estacionamento a preparar as referidas evacuações, quem declarou o óbito.

O processo de averiguações, conduzido pelo Alf Mil Cav Manuel Ribeiro dos Santos e assistido pelo escrivão Fur Mil SAM Leonel Vicente de Jesus Dias, teve como testemunhas : 1.º Cabo José Augusto Oliveira, 1.º Cabo Armando Fernandes Alves de Sousa, 1,º Cabo José Luís de Magalhães Pacheco, Sold Manuel Marques Rodrigues, Braima Daimô (civil, condutor da firma TECNIL) e José André Dias (civil). O Fur Mil José Romeiro Saúde foi encarregado de prestar assistência à família, por determinação do QG de Bissau. 

O Relatório de Cerimónias Fúnebres do CTIG, datado de 25 de Abril de 1974, refere que nesse dia, na Casa Mortuária do Hospital Militar de Bissau, foram prestadas homenagens a três militares: Fur Mil José Manuel Augusto Rosa (CCaç 3545/BCaç 3883), Sold Damásio Cervães e Sold Manuel Agostinho Mendonça Oliveira (CCaç 4150). “Após a velada de armas foi celebrada Missa de Corpo Presente e seguidamente as urnas foram transportadas, cobertas com a Bandeira Nacional, para a Casa Mortuária do Cemitério de Bissau”, estando presentes oficiais do Batalhão de Intendência, do Hospital Militar, do Comando-Chefe e Senhoras do MNF.

Sua irmã Marinha Fernandes Cervães, então com 18 anos, estava hospedada em casa de uma senhora, na Rua da Junqueira, quando trabalhava na Marinha, na Cordoaria Nacional (extinta em 1974). Alguns dias depois do desastre chegou um carteiro a sua casa com um telegrama. “Isto não é para mim! Não, deve ser para a senhora da casa! Não, é mesmo para a menina!” Foi um diálogo curto, com o carteiro a fugir. De repente a jovem caiu em si. Percebeu o sentido dos sonhos que a atormentaram durante a semana, especialmente aquele em que o irmão lhe dizia que só ela o poderia salvar. Vagueou durante horas em lágrimas pelas ruas de Belém, até que foi para a casa. A senhoria levou-a ao comboio. Para trás deixou na modista um vestido que andava a provar, que ficaria guardado para a festa da chegada do Damásio. No comboio foi confortada por um jovem, que lhe partilhou a dor pessoal por ter perdido um irmão no Brasil. Adormeceu durante a viagem e quando acordou sentiu que tinha ouvido a voz do irmão pedindo-lhe que tivesse força, porque os pais precisavam dela.

Quando entrou em casa, na Lacada, seu pai estava sentado na cozinha, a chorar. “Era eu que devia ter morrido! Não o meu filho!” Repetia sem cessar essas palavras, exausto de tanto chorar. A mãe estava no quarto, deitada e aos gritos, sem querer ver ninguém. Marinha, cheia de força, contou-lhe pouco a pouco sobre a voz do irmão que ouvira no comboio. Foi surpreendente! Lentamente a mãe foi deixando o torpor em que se encontrava, abriu os olhos e abraçou a filha, tentando posteriormente animar o marido. Outro telegrama havia chegado a Lacada, trazido por um carteiro apressado que viera de bicicleta entregar uma morte ao domicílio, como já tantas vezes fizera. Lucinda, irmã mais nova de Damásio, conta-nos como foi: Quando a tristeza se abateu sobre a nossa casa (caixa), 


No ano de 1974, tinha eu 7 anos de idade, era a mais nova de 4 irmãos. Os meus pais eram pessoas simples, agricultores que trabalhavam arduamente para terem o seu sustento. Nesse ano de 1974 só eu me encontrava a viver com os meus pais, pois meus irmãos já estavam a começar as suas vidas de adultos: o meu irmão mais velho encontrava-se na tropa, na Guiné; o segundo já estava casado e até já tinha dois gémeos; e a minha irmã estava a trabalhar em Lisboa como funcionária da Marinha de Guerra. Só eu estava em casa com os meus pais, frequentando a escola e ajudando-os conforme a minha condição de criança permitia. 

Num determinado dia de 1974, a minha mãe estava a trabalhar num campo perto de casa, quando cá chegou um senhor que se identificou como sendo dos Correios. Trazia um telegrama para a minha mãe e pediu-me que eu a chamasse, dizendo-me, entretanto, para eu assinar um papel. A minha mãe chegou e perguntou: – “Que se passa!? Não gosto nada de receber telegramas!”. O senhor respondeu-lhe, simplesmente: - “Minha senhora, o seu filho morreu, na tropa”. 

Nesse instante, o mundo desabou para a minha mãe. Esqueceu tudo que a rodeava, ficando tolhida, apática e esquecendo-se até de mim, que ali estava ao seu lado, a olhar para ela sem saber o que fazer nem o que se passava. O homem só dizia para mim: -“Assina! Assina!”.

Depois de ele ir embora, a minha chorava descontroladamente e gritava como eu nunca vira. Eu não entendia o que se passava. Levou muito tempo até eu compreender realmente tudo, o que era natural, pois só tinha 7 anos.

Cá em casa nunca mais foi a mesma coisa. Nunca mais houve festas de família e eu não tenho nenhumas recordações do Natal da minha infância, porque, havia sempre a lembrança de meu irmão.

Eu cresci sempre a ouvir os meus pais, os meus irmãos e os amigos a falarem do que ele gostava. Tenho poucas memórias dele, pois era 16 anos mais velho do que eu. Mas como sempre ouvi a minha mãe a falar dele acabei por o conhecer melhor, criando uma imagem mental das suas feições, da sua maneira de ser e da sua vida.

E deste sofrimento familiar, tudo veio! Todos os problemas de saúde que minha mãe sofreu pela vida fora foram derivados desse triste acontecimento. E com o meu pai aconteceu o mesmo, pois o desgosto abalou para sempre a sua saúde.

Já estão os três juntos, na Eternidade! E sei que onde o meu irmão Damásio, a minha mãe e o meu pai estiverem, se encontrarão em paz e serenos, pois sabem que alguém está a deixar a lembrança de um filho querido que morreu na tropa.

Por isso, um bem hajam a todos os que estão envolvidos neste projecto, porque não se esqueceram destes Heróis Limianos que perderam as suas vidas em defesa da Pátria. O meu muito obrigado!

a) Lucinda de Jesus Fernandes Cervães

Foram dois pais sofredores, que tiveram que andar pelos médicos ao longo das suas vidas, porque socos no estômago desta violência afectam irreversivelmente os nossos cérebros e, por tabela, abalam todos os sistemas orgânicos. A Medicina sabe bem o que é o stress pós-traumático e conhece as suas consequências psicossomáticas. Os governantes é que não. Está sepultado em Estorãos”.


Damásio (à esquerda) com o enfermeiro Dinis no navio Niassa a caminho da Guiné (foto do saudoso Dinis retirada do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Aquela morte estúpida na pista de aviação

Damásio, até sempre!

Diz-nos o teor da veracidade do BART 6523 que nos 14 meses de comissão em território da Guiné, o seu efetivo não registou baixas em combate. É certo que o período normal de incumbência das nossas tropas naquela antiga província ultramarina ia para além deste ciclo, porém, a Revolução de Abril de 1974 acelerou o regresso do nosso exército das três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné - com as quais Portugal estava envolvido.

O meu Batalhão, sediado em plena região de Gabu, não obstante os ataques noturnos, particularmente às companhias destacadas no mato – Madina Mandinga e Cabuca -, teve a sorte em não se deparar com eloquentes baixas resultantes de confrontos diretos com o IN, nem tão-pouco deparar-se com rebentamentos das famigeradas minas antipessoais ou anticarros que originavam efetivos para abater nas contas do exército português. As operações feitas no terreno passaram isentas de eventuais baixas que serviam para engrossar a lista de infelizes que perderam a vida em pleno campo de batalha.

A manhã destinou-se para receber correio, transportar feridos que normalmente chegavam a Nova Lamego e receber mantimentos frescos vindos de Bissau. O Damásio integrou o grupo de jovens soldados e lá partiu feliz da vida na esperança que a sua presença na pista seria certamente útil. Predispôs-se em ajudar e tomar conhecimento de camaradas que partiam para Bissau mas na condição de evacuados. 

Porém, sem que nada o fizesse prever o nosso camarada Damásio foi colhido por uma das viaturas e teve morte imediata. O instante foi de dor e de extrema revolta. Ficámos estupefactos e a rapaziada exausta. Lembro o seu corpo inerte num chão vermelho mas onde as lágrimas de camaradas lançavam laivos de raiva numa guerra onde a imprevisibilidade da morte era uma constante. 

Não foi fácil lidar com a situação. O Damásio era um moço educado. Fazia amigos, facilmente. Eu fui um deles. Sei que guardei durante vários anos um documento onde tinha descriminado todas as suas pertenças pessoais que na altura tinha como destino os seus familiares. Nada faltou. Lembro-me desse derradeiro adeus. O choro dos camaradas que o viram partir para a eternidade. Um jovem que vivia, certamente, um mundo de sonhos. 

Senti o vazio nas almas que se abateu sobre os seus familiares. Como explicar-lhes tamanha fatalidade! E nós, homens que convivíamos com ele diariamente, lá longe sem nada podermos transmitir aos seus entes queridos. Impunha-se aconchegar o seu profundo desespero, mas a distância ditava, apenas, o carpir de mágoas pelo seu infeliz último adeus. Ficavam as despedidas mas estas integradas na sumptuosidade de amarras que nos atiravam meramente para um profundo silêncio.

O Damásio ficou-me perpetuamente na memória. Até sempre, camarada!

Conclusão: como foi dura a guerra do então Ultramar!... 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

16 DE MARÇO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19594: Memórias de Gabú (José Saúde) (79): Resquícios de uma guerra que nos fora cruel. Abandonados. (José Saúde)

domingo, 31 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19637: Memórias de Gabú (José Saúde) (80): Momentos de pausa em Gabu. Vagueando pelo tempo sem tempo. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

As minhas memórias de Gabu

Momentos de pausa em Gabu
 Vagueando pelo tempo sem tempo

Numa viagem a memórias consumidas numa Guiné onde os conflitos fluíam amiudadamente, lá vou vagueando, enquanto a vida o permitir, pelas grutas de um tempo sem tempo, cortejando fidedignas imagens em papel, algumas a preto e branco, e recordando camaradas que sempre se dispunham para uma encantadora brincadeira.

Em Nova Lamego, Gabu, o quarto onde fomos colocados era composto por cinco camas de cor creme onde a ferrugem reinava e a coloração já mal identificava a sua originalidade, cinco camaradas, paredes revestidas com fotos de mulheres que ostentavam as suas magnificas virtualidades femininas, corpos aliás esbeltos que remetiam os soldados nas trincheiras a noites de sonhos amorosos, qual estrelinhas do céu caídas piedosamente em leitos famintos, pilotos de motas e de fórmula 1, de entre outros registos que na altura suscitavam interesse.

Todavia, a porta que dava acesso à “casa de banho” continha um dístico que simplesmente dizia “Do not disturb”. No seu interior da WC estava um modesto chuveiro ligado a um “luxuoso” bidão que dantes fora utilizado para gasóleo e era agora suportado por uma armação em ferro no exterior da “mansão”. Claro que a temperatura da água era aquela que o sol, sempre brilhante e calorento, registava.

O letreiro - “Do not distiurb” - teria, presumivelmente, alguma razão de existência. Pensávamos nós. Julgava-se que os camaradas que por lá passaram tenham tido a perceção que aquele recanto, além de abençoado para o encontro com as necessidades fisiológicas, era também um esconderijo quando um ataque do IN porventura acontecesse.

Sugere a curiosidade que perguntemos às nossas consciências o porquê de tal esconderijo e a razão do apelo ao silêncio? Pois é, aquele exímio espaço era nem mais nem menos um refúgio para o pessoal se abrigar de um possível ataque noturno uma vez que a cobertura estava sustentada por sacos de areia.

Sacos de areia? Ah, pois é! A vala, aquela feita de propósito e que visava um eventual salto para o escuro caso o IN nos presenteasse com mais um ataque noturno ficava ali por perto, no entanto nem todos tinham a conveniente agilidade para tentar a sorte, logo aquele esconderijo apresentava-se mais a jeito e fiel para a possibilidade de uma noite de estridentes sons de artilharia pesada.

A talho de foice veio-me à ideia que foram muitas as ocasiões que eu próprio utilizei uma saca de areia debaixo dos pés aquando as saídas para o mato em ações de “psicó” ocorriam. À “boleia” de um Unimog (cabras de mato) e sentado no lugar ao lado do condutor, sentia-me quiçá mais seguro, ou menos sujeito a uma eventual catástrofe .

A princípio a malta, sempre distraída com os perigos da guerra, divertiam-se com os cuidados do furriel. Porém, no meu curso de Operações Especiais/Ranger, em Penude (Lamego), ensinaram-me conteúdos válidos que visavam a precaução a ter no palco do conflito. Assim, precavia-me sabendo, porém, dos iminentes contratempos que o conflito ditava.  

Na verdade a Guiné proporcionava momentos hilariantes. Ou era uma jogatana de futebol em tempo de lazer, ou instantes inesquecíveis passados no bar a saciar gargantas onde um Gin tónico caía que nem uma luva em corpos fatigados pela dureza que a situação impunha, ou em ocasiões onde a malta se divertia e inventava os mais divertidos disparates.

Em primeiro plano está o Rui Fernandes Álvares, um ranger, tal como eu, ao seu lado direito esta personagem chamada Zé Saúde, à esquerda o outro Fernandes, apelidado pela rapaziada de “Charles Bronson” face às suas parecenças com o ator de cinema americano, ao fundo o Rui, um rapaz de Coimbra e que assumiu a função de vagomestre.

Claro que o momento era de uma franca brincadeira. Cantava-se com entusiásticos micros, bailava-se, machos com machos, e a malta divertia-se. 

Estes divertimentos tinham, na teórica conceção que agora sustentamos, outras nuances. Bastava uma dica de um camarada para que desde logo se encontrarem fórmulas para paliativos que visavam somente a “cura” de males maiores.

Estava-se em pleno palco de guerra. A Gabu chegavam e partiam colunas que cruzavam toda a zona Leste. Esporadicamente reencontrava-mos amigos de infância que a guerra juntou nos corredores da peleja.

De Pirada vinham, designadamente, os “velhinhos” cujo final de comissão entretanto se prolongou. Aliás, recordo que o meu BART 6523 foi-lhe prognosticado a sua ida para Pirada em rendição desses camaradas. Lembro, também, que antes da minha partida para a Guiné fui informado que o destino era realmente Pirada, todavia ao chegar informaram-me que a minha via era uma outra.

Só que a rapaziada fixou-se em Nova Lamego e de lá não saiu. Não comento como o processo se desenrolou, visto que a minha chegada deu-se passados creio que cerca de dois meses depois, e não tive a oportunidade para esmiuçar o fundamente da razão.

O propósito deste tema, essencialmente a foto, passa pela óbvia procura em reencontrar estes velhos camaradas, sabendo, no entanto, que o Rui Fernandes Álvares, companheiro do mesmo curso ranger, 1º de 1973, reencontrámos-nos e reatámos a nossa velha amizade. Já me visitou em Beja e resta-me uma viagem a Norte a sua casa em Carvalhelhos, Boticas.

Goza da reforma, tal como eu, e contactamos amiúde via telemóvel. 



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: