Mostrar mensagens com a etiqueta Pepito. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Pepito. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24391: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (36): No Corubal não há ostras (... e muito menos sardinhas de Santo António), mas há coisas que também não há no céu: garoupa do rio (perca do Nilo), lagostins, mexilhão de água doce, crocodilos e hipopótamos, etc.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho... Doces e trágicas memórias, a deste rio... O único e verdadeiro rio da Guiné, já lá dizia o eng. agr. Amílcar Cabral, porque todos os demais são de água salgada, são rias, são braços de mar... É provavelmente o mais belo rio da Guiné, digo eu, que só conheço este, o  Geba, o Mansoa, o Cacine  e mais alguns rios mais pequenos, afluentes...


Um dia destes,  os novos senhores de África decidem construir aqui uma monstruosa barragem, hidroelétrica, à revelia dos verdadeiros interesses do povo guineense... É sonho antigo que vem da independência... E com isso destruir o recurso mais precioso que tem a Guiné-Bissau, para além do seu povo, que é a sua biodiversidade... Não sei se este projeto tem viabilidade (do ponto de vista técnico, financeiro, económico, ambiental e político)... Mas já vimos tanto coisa, em todo o lado (a começar pelo nosso país)...

Ah!, mas Bissau, continua nas "trevas", sem eletricidade, a não ser a de geradores... Hoje põe-se cada vez mas em causa o recuros às barragens hidroelétricas que tem um período de vida útil de 100 anos e um impacto ambiental produtal...

Enfim, o que eu quero sublinhar é que  sem biodiversidade não há futuro, não há desenvolvimento sustentado e partilhado, não há esperança... Oxalá que este  projeto nunca se chegue a concretizar, no Corubal... 

Para bem da Guiné-Bissau e de todos nós, incluindo o povo chinês cujo dinheiro está a ser fortemente investido em África, e não só... Porque a terra não nos pertence, é a nossa casa comum, e temos a obrigação de a deixar, melhor, mais habitável e sustentável, aos que hão-de vir depois de nós, os nossos filhos, netos e bisnetos, europeus, africanos, asiáticos, americanos, australianos...

Também me parece que há hoje  um sério risco de "pesca selvagem" no Rio Corubal, a avaliar pelas fotos de alguns "sites" de caça e pesca, internacionais, que promovem, descaradamente, quase pornograficamente, o saque dos recursos piscícolas do Rio Corubal...

O mar da minha terra também era rico de vida marinha, lançavam-se cem covos, apanhavam-se cem lagostas. E pescador que não apanhasse à linha uma garoupa do seu tamanho era uma merda de pescador... Estou a falar de há 60/70 anos atrás... Hoje até a sardinha foge de nós... En Peniche o número de traineiras deve ter sido reduzido na ordem das 80 para 10... O atum desapareceu do mediterrâneo. E, claro, do Algarve. E as ostras estão a regrssar, lentamente, depois da poluição dos estuários dos nossos rios, o Tejo, o Sado,a ria de Aveiro...

No passado, nunca aprendemos com os erros uns dos outros... Tem sido a ganância de uns poucos que nos empobrece e mata  a todos... Aqui, e em toda a parte... Infelizmente a Guiné-Bissau é um dos países mais ameaçados do mundo, em consequência das alterações climáticas... Não sei se os nossos bisnetos poderão chegar a  conhecer o Rio Corubal, os rápidos do Saltinho e de Cusselinta (e não "Cussilinta", como já tenho visto grafado...) ou o arquipélago dos Bijagós...  

Todavia, a consciência ecológica está a chegar também à Guiné-Bissau: o povo bijagó, por exemplo, está-se a mobilizar para defender e proteger os seus recursos marinhos e florestais, sem os quais corre o risco de perder o seu modo de vida e a sua forte identidade cultural... E são as mulheres que lideram essa luta... Vejam aqui o sítio da ONGD, de base comunitária, Tiniguena. (LG)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Patrício Ribeiro (nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário, fundador e diretor técnico da Impar Lda; tem mais de 130 referências no blogue: autor da série, entre outras, "Bom dia desde Bssau".

1. Pois é, no Corubal não há ostras, dizem camaradas que conhecem bem o sítio, o Saltinho, Cusselinta,  o Corubal, a Guiné-Bissau, do Paulo Santiago ao Zé Teixeira (*)... E agora o Patricio Ribeiro vem dar a confirmação definitiva. Vamos publicar na sua série "Bom dia, desde Bissau" (**).

Mail de hoje, 12 de maio de 2023, às 11:07.

Bom dia, amigos.

Não há ostras no Corubal.

Faço caça submarina no Corubal, desde há mais de 30 anos.

Hoje há ostras que são levadas para todos os locais da Guiné, são arrancadas do tarrafe ou das rochas, mas sempre na água salgada.

Pode-se comer as que são apanhadas no rio de Susana e levadas para o Saltinho. Este ano, comi algumas vezes em Varela, as que são apanhadas em Catão ou Iale.

No rio, há diversos peixes, o mais interessante é a garoupa do rio (perca do Nilo) que chegam algumas aos 10 kg.

Há lagostins, mexilhão de água doce, crocodilos e hipopótamos, etc.

Infelizmente a praia de Cusselinta, um dos paraísos da Guiné, está cheia de redes de pesca. São instaladas todo o ano, sem as levantar, apanham tudo, inclusivamente a mim ... não era habitual, dizem que são de estrangeiros.

Passei muitos fins de semana em Coli (no projeto de investigação de árvores de fruto), a 12 km de Aldeia Formosa, também a trabalhar.

Dali muitas vezes saíamos para uma ilha no meio do rio, que está registada em nome da nossa amiga Isabel Levy, local em que o nosso amigo Pepito tinha o prazer de levar os amigos, subíamos o rio 30 minutos de barco e ali acampávamos numa praia de areia, no meio da floresta, com todo o tipo de animais.

Só que os tempos mudam, agora há na zona, além de pedreiras de pedras duralite, a desmatação de milhares de hectares para a plantação de frutos tropicais !!!

Para os amigos, informo que cheguei agora para comer as sardinhas de Sto. António e só depois vou para o leitão. (**)

Abraço

Patricio Ribeiro | impar_bissau@hotmail.com
___________

Notas do editor:


Vd. também 3 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14829: Memória dos lugares (301): Rio Corubal: Já o atravessei a nado, duas vezes, com óculos e barbatanas, vasculhando o fundo, junto à jangada do Ché Ché, de tão má memória... (Patrício Ribeiro, Bissau)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23904: Documentos (41): "Diploma de Cobra", outorgado pelo cap inf Jorge Parracho, cmdt da CCAÇ 3325, "Cobras" (Guileje e Nhacra, 1971/72) ao seu amigo e camarada do tempo da Academia Militar, cap art Morais da Silva, cmdt da CCAÇ 2796, "Gaviões" (Gadamael e Nhacra, 1970/72)

 

Diploma de Cobra

Ao Capitão de Art António Carlos Morais 
da Silva como reconhecimento da CCAÇ 3325 pela
amizade e apoio incondicional que dispensou a esta 
unidade se outorga o grau de "Cobra" honorário.
E por ser verdade e como apreço da CCAÇ
3325,  lhe é passado o presente diploma que usurá
"in aeternum"

O Comandante
JSParracho
cap"

[ Cortesia do cor art ref Morais da Silva]




Foto nº 39



Foto nº 39A


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325, "Cobras de Guileje" (jan / dez 1971) > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto n.º 39, sem legenda > O cap Jorge Parracho (o segundo a contar da direita, na foto nº 39A) com a malta do 5º Pel Art que era comandado pelo alf mil art Cristiano Neves... Operavam três peças de 11,4 cm, apontadas para a fronteira.

O primeiro militar, na primeira fila, a contar da direita para a esquerda, na foto nº 38B, é o alf mil médico Mário Bravo, nosso grã-tabanqueiro. Também passou por Bedanda (CCAÇ 6) e depois pelo HM 241, em Bissau. Os "Cobras de Guileje" estavam longe de imaginar o que aconteceria àquele aquartelamento, um dos melhores da Guiné, dois anos depois... Foi aqui, em 18 de maio de 1973 que começou a Op Amílcar Cabral... (em que o PAIGC mobilizou t0dos os seus meios para "varrer do mapa" o quartel e a tabanca (fula) de Guileje...

As fotos de Jorge Parracho foram disponibilizadas à ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, em 2007, no âmbito do projecto de criação do Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Não traziam legendas, vinham apenas numeradas. Foram por sua vez partilhadas com o nosso blogue pelo nosso saudoso amigo Pepito, o engenheiro agrónomo Carlos Schwarz Silva  (Bissau, 1949-Lisboa. 2014), então diretor da ONG AD e principal promotor do projecto museológico de Guileje. A legendagem é da responsabilidade do editor L.G, que recorreu às informações já aqui publicadas pelo Orlando Silva sobre a CCAÇ 3325].

Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]



1. "Diploma de Cobra" foi um singelo docmnento que me chegou às mãos,  enviado, oportunamente, em 4 de junho de 2022, pelo cor art ref Morais da Silva, na sequência de um mail quem entretanto,  enviara a um grupo de camaradas que tinham passado por Guileje, Gadamael e Bedanda. 

Tinha a intenção de o publicar como prova dos fortes laços de amizade e camaradagem que se criaram, na altura, entre as NT, no TO da Guiné, a par do sentido de humor de caserna que a guerra também cria e alimenta...

Publico, hoje, na série "Documentos" quando se volta a falar de Guileje, com a morte do cor art ref Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 1935-Lisboa,2022). Acrescentava na altura o cor art ref Morais da Silva, à laia de legenda:

"A CCaç Ind 2796 (que comandei em Gadamael) e a CCaç 3325 (Jorge Parracho- Guilege) coabitaram a mesma zona durante 1 ano. O Jorge é do meu curso da AM (veterano) e somos amigos e companheiros de canseiras na Guiné. Dele recebi esta prova de estima e reconhecimento quando terminou a comissão."

Sei que o Jorge Parracho é natural de Mafra e o Morais da Silva é de Lamego. Aos dois deixo publicamente o meu agradecimento e os meus votos de Bom Natal e Melhor Ano Novo de 2023.
___________


(**) Último poste da série > 24 de maio de 2022 > Guiné 61/74- P23287: Documentos (40): A conferência do cor inf Hélio Felgas, proferida na Academia Militar, sem papas na língua, em 10/4/1970 (e depois publicada como artigo na Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-236), que o Amílcar Cabral leu e achou lisonjeiro para si e o seu Partido, citando-o no Conselho de Guerra de 11/5/1970

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23594: Historiografia da presença portuguesa em África (332): Região de Tombali, "chão balanta"? [Cherno Baldé, n. circa 1960 / Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014)]


Distribuição das povoações do Cantanhez, segundo J. P. Garcia de Carvalho (1949) (Desenho de A. Teixeira da Mota) (*)


I. Os militares portugueses que estiveram na Guiné, no período da guerra colonial / guerra do ultramar (1961 / 74), a começar pelos oficiais (quer do QP quer milicianos),  tinham muito poucos conhecimentos etnográficos e historiográficos sobre o território (a não ser alguns estudiosos como o oficial da Marinha, A. Teixeira da Mota e, claro, os agentes da administração colonial... e os missionários). 

Não admira, por isso, que haja por vezes, nos nossos escritos, informações erróneas ou menos precisas como, por exemplo, dizer que a região de Tombali é (ou era, naquele tempo)  "chão balanta". (**)

(...) "A população de Bedanda é hoje predominantemente fula, quando a região foi sempre,
ao longo dos anos, chão balanta.(...) (In:"Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, s/l, 2010, pág. 76)

É verdade que os balantas, nos anos 60, estavam em maioria, demograficammete falando e constituíam, só por si, o grosso da guerrilha.  Mas a sua presença na região não tinha mais do que 40 e tal anos... Vários grupos étnicos foram passando por aqui ao longo dos séculos, a começar pelos nalus... 

A este respeito, vamos reproduzir dois pontos de vista, guineenses, o do Cherno Baldé (assessor do nosso blogue para as questões etno-linguísticas) e o do nosso saudoso amigo engº agrónomo Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014), cofundador e líder histórico da ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau.


(i) Cherno Baldé (n. circa 1960, em Fajonquito, economista, vivendo em Bissau), comentário ao poste P23590 (**):

(...) Alguns esclarecimentos que se impõem sobre a situação da área de Bedanda, conforme descrita no presente Poste:

1. (...) "Sabe-se que populações balantas emigraram, nos anos 20/30, para a região de Tombali e ali desenvolveram a cultura do arroz. No sul, os balantas (mas também biafadas, mandingas, nalus, sossos...) são aliciados pelo PAIGC. A economia da região fica totalmente desarticulada. Bedanda, em pleno chão balanta, é agora ocupada maioritariamente por fulas fugidos do Cantanhez e doutras partes."

Efectivamente, como descrito no incio deste parágrafo, os Balantas no sul não estão no seu práprio "chao", são imigrantes que vieram do Norte onde está situado o seu chão, mais ou menos na região situado entre os rios Geba e Cacheu ou Farim. 

Bedanda, assim como toda a Peninsula de Cubucaré (maior parte da região de Tombali, que vai de Guileje até Cabedu na foz do rio Cumbijã), é chão Nalu, mas que estava sob domínio Fula desde a segunda metade do Século XIX. 

Por isso os régulos assim como os Chefes de Tabancas são da etnia Fula sem surpresas porque estão em terras conquistadas a ferro e fogo quando a presença portuguesa na zona se limitava a alguns presidios e feitoras, nomeadamente Bolama e, mais tarde, Buba, para contrariar ao avanço do exército do estado fula de Futa-Djalon. 

Foram os portugueses que promoveram e encorajaram o regresso de Nalus e Biafadas às suas terras de origem donde tinham sido expulsos pelos novos conquistadores vindos das montanhas de Boé e de Futa-Djalon, estando praticamente acantonados em algumas ilhas e zonas de tarrafo nos rios e na costa maritima. E, ironia do destino, serão estes (Biafadas e Nalus) os primeiros a se levantar contra a presença militar portuguesa no ataque ao quartel de Tite em 23 de janeiro de 1963.

2. (...) "O capitão não aceitava que a população sob o controlo das suas tropas vivesse pior do que a população controlada pelos guerrilheiros. Do lado deles não havia falta de arroz, mancarra, mandioca e óleo. Do lado da tropa tinham apenas cana, tabaco e panos que os comerciantes traziam de Bissau, e o arroz que compravam às mulheres dos guerrilheiros." (...)

Evidentemente que sim, era o estado normal das coisas antes do eclodir da guerra em 1963. Para aquelas populações, o mais importante era a sua subsistência social e económica dentro dos limites e condições materiais que lhes permitiam sobreviver e não a guerra, num circuito comercial multissecular de trabalho e de troca de produtos que consideravam normalissimo, não fora as alterações repentinas, surgidas do conflito em presença e da vinda, cada vez mais numerosa de forças expedicionarias destinadas a impulsionar a contraguerrilha. 

E, na opinião de muitos analistas, teria sido esta a fase em que, de facto, os portugueses perderam a guerra, ao perderem a possibilidade do controlo da população, designadamente Balanta que, incompreendidos e maltratados acabaram por vacilar para o lado dos "terroristas" com os quais, à partida, não partilhavam os seus ideais politícos e nem tinham quase nada em comum, sendo a maioria de origem urbana e pertencentes a outras etnias do país e dos países vizinhos.

Estes relatos e bravatas de "heróis de Ponta Cabral" são muito tipicos dos primeiros anos do conflito quando a guerra ainda parecia quase "uma brincadeira de mau gosto de um punhado de pretinhos do Ultramar". (...)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Iemberem > Simpósio Internacional de Guileje  (1-7 de março de 2008)> Visita ao sul > Dois homens grandes da Guiné, o Engº Agrónomo Carlos Schwarz (Pepito, para os amigos), fundador e director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, e o Aladje Salifo Camará, régulo de Cadique Nalu e Lautchandé, antigo Combatente da Liberdade da Pátria, o rei dos nalus, na altura com 87 anos e entretanto já falecido em 21 de janeiro de 2011, em Cadique, capital do seu reino. O rei dos nalus considerava o Pepito como "filho adoptivo". (***)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservad
os. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


(ii) Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (Bissau, 1949 - Lisboa, 2014), engº agrónomo, cofundador e director da AD - Acção para o Desenvolvimento. Excertos do poste P3070 (**)

(...) O reduzido número de fontes escritas torna muito difícil conhecer com detalhe a história do povoamento humano de toda a zona de Cantanhez. (...)

Recorremos a alguns documentos a que tivemos acesso (...). Na ausência de outras fontes, recorremos a entrevistas aos mais velhos, Homens Grandes, portadores e transmissores da História oral de geração em geração (...).

(...) Parece (...) indiscutível que os Nalus eram o povo que habitava esta zona, em especial os sectores de Cubucaré e Quitafine, e em alguns pontos isolados do Cubisseco, quando aportaram os primeiros portugueses a esta costa de África.

(...) Com a Convenção Franco-Portuguesa de 1886, procede-se a uma nova delimitação das possessões  do rei dos  Nalus: a França cedia a Portugal a zona de Cacine por troca com a Casamança.(...)

(...) Por volta de 1860 dá-se a invasão Fula que vêm de Boké na Guiné-Conakry e do Boé no Futa Djalon que apertam os Nalus contra o mar e os obrigam a refugiarem-se nas ilhas de Melo e de Como, certos da dificuldade dos Fulas em se confrontarem com a água.

De forma inesperadamente rápida os Nalus começam voluntariamente a converter-se ao islamismo e consequentemente a abandonarem a escultura, muito semelhante à dos Bagas da Guiné-Conakry, de rara beleza e simbologia.

Trinta anos depois (1890) dá-se a chegada dos Sossos, vindos de Boffa na actual Guiné-Conakry, os quais se aliam aos Nalus para se oporem ao expansionismo Fula.

É por volta de 1896 que grande parte dos Nalus que habitavam as ilhas passam ao continente e, chefiados por Cube, antigo escravo e depois batulai do régulo Fula do Forreá, fundam inicialmente a tabanca de Cabedú e sucessivamente as de Calaque, Cafal, Cauntchinque e por último, em 1926, Cadique.

Mais recentemente, por volta dos anos 1920, verifica-se a chegada massiva dos Balantas, vindos da zona de Mansoa, os quais, numa fase inicial, não são recebidos muito cordialmente pelos Nalus.

Segundo Garcia de Carvalho, na altura Chefe de Posto Administrativo de Bedanda, em 1946, os Nalús, em número de 910 almas estavam repartidos por três territórios englobando 19 tabancas:
  • Regulado de Guiledje: tabanca de Cafunaque (8 pessoas)
  • Território de Cantanhez: tabancas de Catomboi (5), Camecote (15), Camarempo (15), Sogoboli (25), Catchmaba Nalú (30) e Caiquene (25)
  • Território de Cabedu: tabancas de Cafine (60), Calaque (50), Cafal (100), Fonte Iamusa (20), Cai (10), Cassintcha (40), Catombakri (40), Cabedú (200), Catesse (50), Catifine (50), Cabante (20) e Ilhéu de Melo (40).

Por outro lado, Artur Agusto Silva, recorrendo ao Censo de 1960 que apresenta números credores de confiança, assinala a existência em toda a zona, e não exclusivamente na antiga Bedanda, 3009 Nalus.

Com o início da luta de libertação nacional desencadeada em 1963, os Nalús acabam por aderir na sua quase totalidade ao movimento pela independência da Guiné-Bissau, vivendo e sendo protagonistas exemplares na construção das primeiras zonas libertadas, em Cantanhez. (...)

Em 1946 havia 1295 Futa-Fulas em todo o sector de Cubucaré, o que representava 0 segundo grupo com maior número de habitantes. (...) 

Nos anos 1920, os Balantas, fruto dos massacres perpetrados em Nhacra e Mansoa por Teixeira Pinto, na chamada guerra de pacificação, e pelos trabalhos forçados a que eram sujeitos na construção de estradas, decidem imigrar para o sul, primeiramente para o Cubisseco e depois para Tombali.

Inicialmente o seu relacionamento não foi bom com os Nalus que não os receberam bem. Mais tarde a situação modificou-se, tendo estes aprendido as técnicas de orizicultura de bolanha salgada e passado a praticá-las. Instalaram-se nas zonas ribeirinhas, ao longo do rio Cumbijã, praticando um sistema de produção de bolanha, em que o arroz de bolanha salgada era o elemento quase exclusivo do sistema. 

Rapidamente passaram a ser a etnia mais numerosa, tendo sido registados 7165 habitantes em 1946, em 29 tabancas do sector de Cubucaré.

(...) Chefiados por Lourenço Davy, um número muito reduzido de Sossos terão chegado a Cantanhez vindos de Boké, por volta de 1891, criando a tabanca de Camecote, muito perto da de Iemberém.

Especialmente ligados ao comércio, impõem a sua língua como o crioulo de Cantanhez. Embora em 1946 apenas com 490 habitantes concentrados em 4 tabancas, acabam por determinar que a língua sossa seja falada por todas as outras etnias como instrumento financeiro de comercialização dos produtos. (...)

Se, nos primeiros 15 anos do pós-independência (1973), a situação das migrações para a região de Cantanhez não sofreu mudanças significativas, já nos últimos 15 anos se vem registando uma tendência para um acentuado crescimento demográfico. (...) (****)

[ Selecção / revisão / fixação de texto/ negritos: LG ]
___________

Notas do editor:



segunda-feira, 23 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23286: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (25): Cacheu, restos que o império teceu... - II (e última) Parte


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu > O que resta do Monumento em homenagem do "V Centenário da Morte do Infante Dom Henrique [1460-1960]... Nas proximidades fica a antiga Casa Gouveia, agora comvertida em Memorial da Escravatuar e do Tráfico Negreiro.


Foto nº 2 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Cacheu > "Este monumento ...em que a pedra não está a aguentar...como nós", escreve o Patrício com fina ironia...


Foto nº 3 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) > Aspecto parcial, com alguns dos 16 canhões de bronze...


Foto nº 4 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu >  Forte de Cacheu (séc. XVIII): exterior e porto


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Chacheu > Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro >  O museu foi inaugurado em 8 de julho de 2016... mas já apresenta sinais de degradação (manchas de salitre nas paredes interiores, por exemplo, visíveis nesta foto...) > O grande mentor deste projeto museológico foi o nosso amigo Pepito (1949-2014) que já não viveu para poder assistir á sua inauguração. É aqui lembrada por uma foto (da autoria de Luís Graça: Lisboa, Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade de Lisboa, 2006...e tal como o retratado, a palmeira também já não existe...)... Na foto à sua direita, o antigo edifício da Casa Gouveia, em ruínas, que foi recuperado para nele ser instalado este museu. 

O projeto da construção deste memorial, dando continuidade ao projeto Percurso dos Quilombos, recebeu um financiamento da União Europeia e  resultou dos esforços e colaboração da ONGD guineense Ação para o Desenvolvimento (AD), da Associazione Interpreti Naturalistici (AIN), de Itália, da COAJOQ, Cooperativa Agropecuária de Jovens Quadros e a Fundação Mário Soares.

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda (e última) parte de um conjunto de fotos que nos foram enviadas recentemente pelo nosso colaboador permanente Patrício Ribeiro (Bissau), sobre a cidade do Cacheu e os restos da presença portuguesa (*). Fotos tiradas no domingo, dia 15 de maio, no Cacheu onde esteve em trabalho.

Sobre o Mmeorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro, em Cacheu, ver aqui um excerto de página da UCCLA:

 Guiné-Bissau, Cacheu > Inaugurado memorial de escravatura em Cacheu

A cidade de Cacheu (Membro Efetivo da UCCLA), no norte da Guiné-Bissau, conta, desde o dia 8 de julho, com um memorial dedicado à escravatura e tráfico negreiro, erguido num edifício em ruínas cujas obras de reabilitação foram custeadas pela União Europeia.

O memorial consiste num pavilhão multiusos, salas de formação, residência para investigadores e um museu que preserva alguns artefactos que marcavam o dia-a-dia dos escravos. A população de Cacheu contribuiu com os artefactos - colheres de cozinha, tachos, correntes, ferros que serviam para marcar os escravos depois de passados em lume, chicotes - que podem ser contemplados no museu.

A iniciativa é da organização guineense Acão para o Desenvolvimento (AD), com apoios de várias organizações locais e internacionais, nomeadamente a Fundação Mário Soares de Portugal que forneceu técnicos para a reabilitação arquitetónica do antigo edifício da Casa Gouveia hoje transformado no memorial.

O memorial foi apresentado como sendo um espaço que visa "valorizar a memória de uma realidade que marcou profundamente os países africanos e ainda hoje permanece com grande acuidade nas sociedades dilaceradas pelo tráfico negreiro".

A ideia da construção do memorial foi iniciada pela AD em 2010, no âmbito do projeto Percurso dos Quilombos, sempre contando com o apoio financeiro da União Europeia, dai que o representante desta comunidade na Guiné-Bissau, Vítor dos Santos, tenha enaltecido o trabalho realizado até aqui. "O memorial inicia hoje um longo caminho representando um elemento de união entre o presente e o passado e o futuro da comunidade em seu território bem como uma ligação com outros territórios (...) Estados Unidas, o Canada e o Brasil na perspetiva da compreensão da própria historia e da construção da memória histórica".

O ministro guineense da Cultura, Tomas Barbosa, disse que o memorial deve ser usado como um chamariz para os descendentes de escravos para que possam voltar à terra dos seus antepassados. (...)

Fonte: Excertos de UCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa > Guiné-Bissau, Cacheu > Inaugurado memorial de escravatura em Cacheu. Publicado em 09-07-2016 (com a devida vénia...)
___________

Nota do editor:

sexta-feira, 18 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)


NRP Vasco da Gama (F330) na sua visita a Tallinn, capital da Estónia, entre 27 e 31 de março de 2008. Pormenor, imagem editada pelo nosso Blogue, da autoria de Ivo Kruusamägi da Wikipedia estoniana (2008) (Com a devia vénia ao autor e à Wikimedia Commons)

Guiné > Região de Cacheu > Varela > Maio de 1968 > A extensa praia de Varela...


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Patrício Ribeiro, Ilha de Orango, 2008. 

Membro da Tabanca Grande desde 6/1/2006.

1. O Patrício Ribeiro, que vai passar em breve a nosso colaborador permanente para as questões da geografia e economia da Guiné-Bissau,   país lusófono onde vive  desde 1984, ou seja, há quase 40 anos. Fundou uma empresa, a Impar Lda, que tem levado a água e a luz a muitas tabancas recônditas. O seu filho está a dar continuidade ao negócio, mas ele não é homem para se reformar: não se reformou aos 70, também não se vai reformar aos 75 (a completar no dia 11 de outubro de 2022). Está cá e lá, entre Águeda e Bissau, descobriu agora as delícias da vida de agricultor, além de avô.


(i) A propósito da foto acima, do Virgílio Teixeira, tirada em maio de 1968,  escreveu o Patrício Ribeiro, em 8 de janeiro de 2018 (**):

Varela... Estas árvores que se vêm na foto [, de cima,], já foram levadas pelo mar.

Tenho aqui perto [, em Varela],  uma pequena palhota para passar alguns fins de semana. Há 20 anos estava a mais de 250 metros do mar, agora o mar já está muito mais perto; dentro de algum tempo, já posso pescar com a cana, a partir da minha varanda…

Neste mesmo local, numa clareira, aterraram os helicópteros da fragata Vasco da Gama, para recolher os Portugueses que aqui estavam encurralados na guerra de 1998.  Foi num destes helis que o nosso saudoso Pepito, saiu.

Eu também aqui estava… Mas tinha por missão ajudar a sair outros Portugueses que se encontravam no interior, em Canchungo e Cacheu. Como não apareceram às horas combinadas, estive em S. Domingos e depois em Ingoré (, sem combustível e em situação de guerra),  à procura deles… E de onde, a partir dos rádios da Missão Católica, comuniquei com a fragata a informar que estavam atrasados para a sua evacuação…

Ao fim do dia, também saí desta praia [, de Varela,] numa canoa nhominca, acompanhando os últimos 10 portugueses que quiseram sair, assim como de outras nacionalidades,  a quem a fragata autorizou o embarque… 

Como destino, “o pôr do sol”, o poente… Passados 18 milhas, mar adentro, lá encontramos a nossa frota com 3 navios dos “filhos da escola” que na parte final nos vierem cumprimentar nos botes e mandar subir pela escada de corda, para a fragata Vasco da Gama. (**)

(ii)  Informação complementar do Patrício Ribeiro sobre a sua ação heróica em Varela, logo a seguir ao golpe de Estaddo de 7 de junho de 1998 (***):

(...) Já não foi possível os helis da fragata Vasco da Gama voltarem a aterrar na praia, havia quem os quisesse deitar abaixo… mas fomos acompanhados pelo ar, de onde recebíamos ordens, por vezes mandavam-nos, à nossa canoa, desviar de alguns obstáculos, que havia no mar …

Luís, o comentário que enviei sobre as fotos da praia de Varela, foi a partir da minha lareira nas margens do Vouga [, em Águeda], onde há frio e foi com um copo de tinto na mesa …

Gosto de falar da minha praia de Varela de que adoro; dos banhos na água quente a 30º, das minhas pescarias diretamente para o grelhador, acompanhadas por umas bacias de ostras, etc…

O que escrevi no comentário, é um pequeno resumo dos diversos capítulos vividos naquela época, mas muitos deles ainda os considero 'classificados' …

Quando nos voluntariamos a ajudar os outros, quando pessoas a chorar nos pedem para não os deixar para trás …,   a “formação militar não o permite", vem ao de cima...

E, por força das condições, passamos a ser o elo de ligação entre o resto do mundo e o interior de um país em guerra, de onde não é possível informar os familiares: onde estamos, que estamos vivos … Repara, não havia telefones e as fronteiras estavam fechadas, quer internamente, quer com os países vizinhos e estas últimas estavam a ser bombardeadas. Bissau ficava longe e não  se sabia o que se passava no interior.

E quando do exterior… nos pedem a colaboração, através do nosso “bombolom”, para encontrar esta e aquela pessoa de quem não se tem notícias há muitas semanas … certamente qualquer um de nós ajudaria, se tivesse condições...

Os restantes capítulos vão saindo, quando alguém tocar na "ferida".

Luís, depois de ter saído na canoa nhominca, que, no regresso, na minha presença, carregou da fragata Vasco da Gama a primeira ajuda humanitária para a Guiné, destinada à Missão Católica de Suzana,  eu voltei para Portugal. Não, não fiquei lá...

Mas passados 2 meses regressei à Guiné, via Dakar e táxi aéreo para Bubaque, dali para Bissau em vedeta de guerra, que foi construída no Alfeite e que estava na mão dos militares senegaleses.

De Bissau por vezes saía para Varela, quando recebia um 'papelinho' avisando que era melhor ir dar uma volta… Pegava na minha mochila com uma lata de atum, atravessava a pé as bolanhas e lá ia eu para banhos.

O aeroporto de Bissau, esteve fechado quase um ano… Quando da morte do 'Nino', tinha ido passar o fim de semana à ilha de  Orango…

Na morte do Ansumane Mané, estava fora de Bissau...Ao reentrar em Bissau encontrei quase uma centena de milhares de pessoas, a saírem a pé. Algumas já iam para lá de Nhacra. Fiz um apelo na rádio RTP África, para mandarem transporte, afim de apanharem as pessoas que estavam a dormir à beira da estrada, sem qualquer condição.

Ao mínimo problema, a estrada principal era fechada a viaturas, em Safim.

Assim. como da morte dos restantes [altos dirigentes do país...], estava fora, por Varela, Contuboel, etc.

(iii) Comentário do nosso editor LG:
 
Patrício Ribeiro, português,
nascido em Águeda, em 1947,
criadoe casado em Angola,
com família no Huambo,
ex-fuzileiro em Angola de 1969
a 1972, a viver na Guiné-Bssau
desde 1984,
fundador, sócio-gerente
e director técnico
da firma Impar, Lda-


O Patrício Ribeiro não é por acaso que era conhecido em Bissau, ainda até há pouco, como o "pai dos tugas"... Os jovens, cooperantes, rapazes e raparigas, tinham por ele um enorme respeito e admiração na altura em que o meu filho, João Graça, o conheceu em dezembro de 2009, em Bissau...

Esta história do resgaste de diversos portugueses e 
outros, em plena guerra civil (que começou com o golpe de  Estado de 7 de junho de 1998), perdidos em Varela, Canchungo  e Cacheu, devia merecer honras de título de caixa alta nos jornais da época e nas parangonas dos telejornais... Não me dei conta que isso tenha acontecido... Mas é uma verdadeira história de heroísmo que nos 
honra a todos!...

Recorde-se que na sequência daquele conflito, foi 
montada pelo Governo Português uma operação de resgaste de cidadãos portugueses e de outras nacionalidades. Essa operação, com o nome de código Crocodilo.   envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas. A componente naval foi  constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio. A atuação dos
dois helicópteros foi fundamental para o êxito da missão. A força naval foi comandada pelo CMG Melo Gomes.
(Vd. P. Conceição Lopes, CFR: Operação Crocodilo. "Revista da Armada", julho de 2013, pág. 20).

A história do resgate, efectuado por conta e risco do Patrício Ribeiro, em Varela, já a tinha  ouvido contar, na tabanca de São Martinho do Porto, há uns largos anos atrás, talvez em 2012, da boca do saudoso Pepito (1949-2014), um dos "encurralados", em junho de 1998, em Varela, onde também tinha casa de praia, já do tempo dos pais

O Patrício conseguiu metê-lo, a ele e à família, e a mais cidadãos, num dos helís da fragata Vasco da Gama, ancorada ao largo, a 18 milhas, fora das águas territoriais do país, com mais os dois navios de apoio...

Eu já sabia, além disso, que, na impossibilidade de voltar o heli a Varela, o Patrício se metera na sua canoa nhominca, levando mais um grupo (10 pessoas, de nacionalidade portuguesa e outras...) ao fim da tarde, pelo mar fora, até à fragata salvadora!...

Camaradas, 18 milhas náuticas numa canoa nhominca ( embarcação em que ele é perito e que muito admira!),  são mais do que 33 km pelo mar adentro... Não é para todos, é para quem aprendeu a amar e respeitar o mar, como ele,  que foi "filho da escola" da Armada...

Já aqui escrevi e volto a repetir: Esta história incrível tem de ser melhor conhecida de todos nós... O Ribeiro Patrício, que é um homem modesto, nosso camarada, ex-grumete fuzileiro, deveria ter sido condecorado no 10 de junho por este feito de grande coragem,  altruísmo e patriotismo!... 

Amigos e camaradas, se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores!

Reparem: durante o conflito político-militar, sangrento, de 1998/99, o Patrício Ribeiro foi incapaz de estar longe da Guiné mais do que dois meses... Ao fim de dois meses, voltou a entrar  no país via Dacar, Senegal.

O Pepito e a família, cuja casa no bairro do Quelélé, em Bissau, foi pilhada e destruída pela soldadesca senegalesa, que apoiava o 'Nino' Vieira, esteve refugiado em Cabo Verde, creio que à volta de um ano... O Pepito tinha nacionalidade guineense, e este foi um dos acontecimentos mais marcantes (e traumatizantes) da sua vida, segundo me confidenciou em vida... Voltou à Guiné. para recomeçar a sua vida, uma vida nova... O Patrício Ribeiro, por sua vez, é português, é alias o português mais guinéu da Guiné-Bissau... onde continua a viver e trabalhar desde 1984.

Esperemos que o Patrício Ribeiro, agora à beira dos 75 anos, possa passar mais tempos, entre nós, à lareira e à beira do Vouga, de modo a ter tempo e pachorra para a começar a "abrir o livro"... Um homem que sabe muito da história recente da Guiné-Bissau,  saberá até de mais, pelos círculos em que se move, mas sempre o achei uma pessoa cautelosa, discreta, afável e fiável, além de solidária e generosa. (****)

____________

Notas do editor:

(***) Vd. poste de 11 de janeiro de  2018 > Guiné 61/74 - P18200: (De)Caras (104): Patrício Ribeiro, nascido em Águeda, criado em Angola, "filho da escola" da Armada, ex-grumete fuzileiro, empresário em Bissau, ator e observador da história recente da "pátria de Cabral", o "homem certo no sítio certo"... Ou melhor: o "tuga" que sabe mais da Guiné, e para quem a Guiné "sabi di mais"...

(****) Último poste da série > 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23088: (In)citações (197): Mais recordações do conflito político-militar de 1998-1999, por parte de quem o viveu por perto, o Cherno Baldé e o Patrício Ribeiro

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22951: Antologia (83): O Cativeiro dos Bichos, conto de Artur Augusto Silva (Cabo Verde, 1912 - Guiné-Bissau, 1983), escrito na Prisão de Caxias, em 1966, e que era uma fabulosa fábula que tinha também uma contundente crítica, implícita, à hipócrita política colonial do Governo Português da época


Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido) e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos... Esta casa será durante alguns anos, até à morte do Pepito, a sede da Tabanca de São Martinho do Porto...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos  (edição de autor, Bissau, 2006 ).  Na realidade, tratou-se de uma edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz, em homenagem à memória, ao talento e ao exmplo cívico do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), que viveu na Guiné-Bissau, de 1949 a 1966, e depois, de 1976 até à data da sua morte.
 

1. Porque muitos dos nossos leitores mais recentes, nunca ouviram falar sequer do seu nome, aqui vai um pequeno apontamento biográfico sobre o autor deste livro de contos, Artur Augusto Silva (1912-1983) (, que tem 32 referências no nosso blogue). 

Para quem quiser ter uma informação mais detalhada e contextualizada, ver aqui a sua biografia, profusamente ilustrada, da autoria do seu filho João Schwarz da Silva, na sua página, Des Gents Intéressants" (em francês e em português).

Artur Augusto Silva


(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) ainda estudante, foi director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) de 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura: dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, publicados no livro "O Cativeiro dos Bichos", como o Zé Faneca, pescador da Nazaré;

(vii) em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com António Carneiro mas também com  Amílcar Cabral (de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes);

(ix) participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau, onde a sua esposa, dra. Clara Schwarz da Silva, foi professora;

(x) visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;

(xi) cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) em 26 de agosto de 1966,  foi preso pela PIDE, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recordará sempre  "com dor e revolta";

(xiii) esteve preso em Caxias, durante 4 meses, sem culpa formada;

(xiii) em 23 de dezembro de 1966, "por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";

(xiv) em 1967, "Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".

(xv) em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.


2. Em homenagem ao autor, à sua esposa, Clara Schwarz (1915-2016) (que foi durante anos a decana da Tabanca Grande), e aos filhos de ambos,  Iko, já falecido, João Schwarz da Silva (que vive em Paris, e é também nosso grã-tabanqueiro) e  Carlos Schwarz da Silva, Bissau, 1949 - Lisboa, 2012), o nosso querido e saudoso Pepito (cofundador e histórico líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), republicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos deste livro de contos, e que deu o título à obra, "o Cativeiro dos Bichos" (pp. 57/63).

Trata-se uma fabulosa fábula (, se nos é permitido  o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1966, na Prisão de Caxias, tinha também uma contundente crítica,  implícita,   ao sistema colonial, à sua política e à sua justiça; recorde-se que na época era governador (e comandante-chefe) da Guiné o General Arnaldo Schulz, o mesmo que o expulsou da sua tão amada terra de adopção,  e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do longo braço armado da PIDE, e que se depois se opôs ao seu regresso à Guiné: em ofício da subedelegação da PIDE de Bissau, de 19/12/1966, é transmitida ao Diretor-Geral da PIDE a opinião do Governador de que "aquele Senhor não deve voltar à Guiné, pelo menos enquanto se mantiver o terrorismo" (sic).

A propósito das "fábulas guineenses", veja-se também a série que temos estado a reproduzir, a partir do livro  "Lendas e contos da Guiné-Bissau", da autoria de J. Carlos M. Fortunato ("Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.],  s/l, Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017,  102 pp,  ISBN 978-989-8661-68-5 (*`*)

Recorde-se que na cultura dos mais diversos povos as fábulas  (, contos populares,) são também uma forma, indireta, de denunciar e criticar  os abusos do poder dos mais fortes.   Muitas delas, incluindo as  fábulas guineenses,  encerram lições segundo  as quais os animais mais fortes, como o leão ou o "lobo" (hiena), podem ser  vencidos pela "audácia", "coragem",  "inteligência" e "cooperação" dos mais fracos. 



O Cativeiro dos Bichos (pp. 57-63)

por Artur Augusto Silva  (*)


A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.

Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, 
desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
– Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
– O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:
– As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
– O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava crueldade e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.

Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um plano.

Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.

Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
– Na verdade, na verdade – retorquiu o homem. 
– Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. 

Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a seguir fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.

Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta pobreza das partes.

Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.

É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

(Prisão de Caxias, 1966) (***)

 [Revisão / fixação de texto, incluindo negritos,  para efeitos de publicação deste poste: LG, com a devida vénia ]



Arbitrariamente detido pelo PIDE em 26 de agosto de 1966, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, acusado de "exercer actividades contra a segurança do Estado" (sic),  esteve preso em Caxias 4 meses, sem culpa fomada. Foi solto em 26 de dezembro, sem julgamento, por ordem do subdiretor da PIDE, José Barreto Sacchetti.  Repare-se no primeiro documento acima, a assinatura, perfeitamente legível, do agente da PIDE que deteve o advogado Artur Augusto Silva: Benedito Pereira André (que em 1974 era chefe de brigada; terá morrido recentemente, aos 89 anos).


___________

Notas do edtor:

(*) Vd. poste de 20 de maio de  2006 > Guiné 63/74 - P775: Antologia (38): O cativeiro dos bichos de Artur Augusto Silva (Luís Graça)