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sábado, 21 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20757: Da Suécia com saudade (65): "Ao luar, entre nevões, até as renas parecem pavões" (José Belo)


Tabanca da Lapónia

Fonte: Antigo blogue do José Belo, radicado há  cerca de 40 anos na Suécia: "Lappland near Key West" [A Lapónia ao pé de Key West, Florida, EUA]. 

Ao cimo da foto, do lado esquerdo, abaixo do título, há uma frase muito didática e certeira, antietnocêntrica, prevenindo-nos contra a tentação de ver o mundo através do nosso umbigo, a nossa cultura, a nossa religião, a nossa língua, o nosso país, o nosso grupo: "We dont see the things as they are, we see them as we are"... Traduzindo: "Nós não vemos as coisas como elas são, vemo-las como nós somos"... [A frase é atribuída à escritora Anïs Nin (1903-1977)]


1. Comentário de José Belo, Joseph Belo, ex-alf mil inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, e manteve-se no ativo, no exército português, durante uma década; está reformado como capitão inf do exército português: jurista, vive entre Estocolmo, Suécia, Abisco, Kiruna, Lapóbia, no círculo polar ártico, e Key-West, Florida, EUA.

Respondo a duas perguntas dos seus leitores:

"Bem,    vodka a 94º como é que  se bebe? Bem pior que a cachaça que o sr Lima mandava ao filho para Galomaro. Quem beber bem quentinho se deve ficar."  (Juvenal Amado)

"Não dá para mandares,pela UPS, uma amostra do teu vodca a 94% ? Em passando a pandemia, temos que lá ir provar essa obra-prima da tua destilaria...E eu pensar que os suecos eram abstémios compulsivos, por causa da ética protestante luterana e calvinista, e que o álcool era monopólio do Estado ? ...A ASAE lá da Lapónia não te cai em cima".  (Luís Graça)


É certo que a venda de álcool é monopólio do Estado mas o bonito alambique de cobre é...meu!

Neste extremo do extremo norte da Europa devem existir tantos alambiques como famílias de lapöes. Mas em cobre täo bonito...só o do Lusitano e mais nenhum!

O ditado português "Para lá do Maräo mandam os que lá estäo" é mais do que óbvio quando, ao quereres comprar o jornaleco diário na cidade principal cá do sítio, que é Kíruna, tens de fazer viagem de carro de 300 quilómetros/ida e mais 300 quilómetros/volta.

A capital Estocolmo está,lá para o Sul, a mais de 1.500 quilómetros daqui.

2/3 da populacäo sueca,em número mais ou menos igual à portuguesa num país geograficamente 14 vezes maior,vive no centro-sul.

Muitas das regras e regulamentos vistos a estas distâncias e limites naturais de milhares de lagos,florestas e montanhas,tornam-se bastante...relativas. Historicamente para bem,mas também para muito mal.

Quanto à pergunta do Amigo Juvenal, "Como se bebe?,  só posso responder...Bem!

É claro que, se näo pode beber a maravilhosa ,de 'destilações repetidas feita',(e aqui o que mais há é tempo para o fazer), nos tradicionais copos de água aqui usados.

Para encher tais copos para visitantes usa-se a mais infantil vodka de 40% a 50%.

Mas, para os imprescindíveis "fins medicinais",  usam-se pequenas quantidades da multidestilada (a tal!) bem misturada com sumo de limão ,de laranja, algum mel e um pau de canela.

Ao luar, entre nevöes, até as renas parecem pavões!

(Com a minha tradicional humildade... Fernando Pessoa não o diria melhor!)

Um grande abraço do J. Belo


2. Comentário do nosso editor LG:

Mote: "Ao luar, entre nevöes, até as renas parecem pavöes!" (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)

Na Tabanca da Lapónia,
Ao luar, entre nevões,
Até as renas são pavões,
Já estou mal da cachimónia,

Até as renas são pavões,
E eu aqui de quarentena,
Mas o hotel vale a pena,
Venham cá, seus parvalhões.

Ao luar, entre nevões,
Não apanhas nenhum cagaço,
O Zé Belo tem bagaço,
Que até chega aos pulmões.

Já estou mal da cachimónia,
E eu aqui no treco-lareco,
A ouvir o próprio eco,
Na Tabanca da Lapónia.


Luís Graça, um "cacimbado" da Guiné

Lourinhã, 21/3/2020

PS - Se um gajo não morrer da pandemia, morre do pandemónio... Se sobreviver a ambos, vai parar ao manicómio... (no caso de  ainda existirem manicómios...). Como as coisas vão por aí, na outrora bela Itália, nem os médicos já dizem: "Purgai-o e purgai-o e, se morrer, enterrai-o"... Humor (negro) com humor (negro) se paga... Mas os tempos são para recordar  a vigorosa e sábia palavra de ordem do Secretário de Estado do Reino (, 1º ministro), Marquês de Pombal, em 1 de novembro de 1755, perante o acagaçado rei Dom José I: "Enterrar os mortos e cuidados dos vivos".
____________

Nota do editor:

Último poste da série >  20 de março de  2020 > Guiné 61/74 - P20754: Da Suécia com saudade (64): O coronavírus no Círculo Polar Ártico... Como diz o provérbio lapão, "o problema não está em falares com as árvores da floresta, o problema surge quando elas te respondem!" (José Belo)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19392: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte LIX: O estado de coma... alcoólico no passagem de ano de 1968/69, e as crises de paludismo...


Foto nº 1 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 1 de janeiro de 1969 > O meu estado de coma, durante as primeiras horas do dia de Ano Novo de 1969. Furriéís da CART 1744, meus amigos e camaradas, "fazendo-se pensar por enfermeiros"...



Foto nº 2 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > Messe de sargentos >  1 de janeiro de 1969 >  A farra ou a tainada  continua


Foto nº 3 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > Messe de sargentos >  1 de janeiro de 1969 > Os mesmos da parelha anterior, agora com mais dois furriéis, o 1º Sargento Godinho, e o Alferes Gatinho, o careca.



Foto nº 11 >   Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 26 de outubro de 1968,  na minha cama, no meu quarto,com um ataque de paludismo.


Foto nº 12 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 27 de outubro de 1968 >  Na minha cama, no meu quarto, já e fase de recuperação do paludismo.


Foto nº 13 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 28 de outubro de 1968 >  Na minha cama, já com evidentes melhoras, e já a ler uma revista.


Foto nº 14 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > 28 de outubro de 1968 >  Na  minha cama, a convalescer, lendo uma revista, pronto para o próximo combate. 


Foto nº 21 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > Janeiro de 1969 >  Já com a braçadeira de ‘oficial de dia’ num local a que chamavam ‘Casa do Anis’. 


Foto nº 22 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > Fevereiro  de 1969 > Cserna dos soldados > Uma festa de aniversário de alguém, onde já se nota o cheiro a álcool.


Guiné > CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) >  São Domingos, 1968/69

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Virgílio Teixeira, ex-alfmil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) (*)


[Foto à acima , o Virgílio e a esposa Manuela, o grande amor da sua vida, na Tabanca de Matosinhos, Restaurante Espigueiro (ex-Milho Rei), 5 de setembro de 2018. O casal vive em Vila do Conde.  (Foto: LG, 2018)]



CTIG - Guiné 1967/69 - Álbum de Temas:
T091 – O ESTADO DE COMA ALCOÓLICO
UMA SITUAÇÃO REAL DA QUAL NÃO ME ORGULHO
- O COMA PROFUNDO, OS CONVIVIOS, AS FESTAS, OS COPOS E A PERDA DE CONSCIÊNCIA.
- OUTRO TEMA DA PERDA DA CONSCIÊNCIA:
AS DUAS TERRIVEIS CRISES DE PALUDISMO




I - Anotações e Introdução ao tema:


Deixo estas peças – coma, copos e malária – para este fim de ano de 2018.

NOTA PRÉVIA:

Para além de ressalvar os erros e omissões que remeto para final, este tema pode não ser tal como o descrevo, pela razão evidente que o vivi, sem ter consciência do mesmo. 

1 - O tema principal é o ‘estado de coma’ porque passei, na noite de 31 de Dezembro de 1968, para 1 de Janeiro de 1969. Não me agrada, mas nem por isso vou deixar de me lembrar deste episódio e partilhar com outros.

Estamos no final do ano de 1968, com jantar melhorado, antes e depois, muitos copos de bebidas variadas, começa na messe de oficiais, depois na messe de sargentos, acabando junto daqueles com quem mais convivi, os nossos soldados, em especial os condutores. Não sedi se foi esta a ordem mas vamos passando por todas as ‘capelinhas’ como é normal.

Sempre a beber, sempre a misturar, tudo o que tivesse álcool, e rapidamente a mente está toldada, com tantos aromas e tanta mistura, todos querem partilhar um pouco e os copos vão sucedendo uns atrás de outros.

Não sei bem contar esta história, porque na realidade e na prática eu ‘não a vivi’, foi algo que me toldou o cérebro, e já não era eu.

Por volta da meia-noite, os oficiais do Batalhão foram convidados para o fim de ano na Casa do Administrador local, que passa inevitavelmente à meia-noite, pelo champanhe, que não me lembro se era nacional, mas presumo que era Francês.

Esta é a machadada final, pois pouco depois já era o ‘Novo Ano de 1969’, e a partir daqui não posso contar mais nada, pois perdi natural e vergonhosamente todos os sentidos, e assim entrei em estado de ‘coma alcoólico’. Não é bonito, nem feio, foi assim, não fui o único, nem serei o último.

Acordei já a meio da manhã desse primeiro dia de Janeiro de 1969, na minha cama, vestido com um pijama, que quase nunca o vestia, era em Terylene, nylon ou polyester azul-escuro. 

Procurei saber onde estava e o que me tinha acontecido, lentamente acordo e tento procurar todos os meus bens pessoais, que não tinha – o meu relógio Omega, a minha Câmara Konica, os meus documentos, a minha carteira, o meu dinheiro, a minha lanterna, o meu cordão e medalha em ouro, enfim as minhas coisas pessoais. Nada vejo, nem tenho a quem perguntar. 

Levanto-me tomo o duche com o recurso habitual à lata e o bidão de água, visto-me e vou tomar águas da Perrier, nem pensava em comer. A nossa capacidade de sobrevivência é enorme, os nossos anos ainda de jovem têm uma grande vantagem, pois rápido recupero.

Sei que me observavam, muita gente sabia o que se tinha passado, mas eu não. 

Passaram-se muitas horas desde que perdi a consciência, não fazia a mínima ideia do que aconteceu, e nem hoje sei ao certo, talvez me ocultassem por razões de ética e camaradagem. Mas constou-me que estaria deitado numa berma, e já a ser rodeado por população local, Felupes e outros.

Acabo por saber que foi um grupo de Furriéis milicianos, da CART 1744, com os quais eu convivia numa constante camaradagem e brincadeira, nunca tinha vivido assim antes, foram eles que me conduziram para o meu quarto e a minha cama, despiram-me a roupa e vestiram aquele pijama que raramente usava. Devem ter preparado uma grande brincadeira com esta situação. Contaram-me, eles e outros do meu Batalhão, mais ou menos, não quis mais saber. Entregaram-me tudo, pois tiveram a preocupação que nada ficasse perdido ou fosse roubado.

Não almocei, bebi sempre águas, e à noite já estava novamente com eles, bem fresco e com aquela pedalada que hoje já não tenho, onde se fizeram algumas cenas hilariantes, era afinal dia de ano novo. Tudo na messe de sargentos, onde se juntaram praças e oficiais.

Mais tarde com a revelação do rolo que estava na minha máquina fotográfica, venho a encontrar, entre outras, esta que apresento – Foto Nº 1.

Eles, neste período de tempo, á vontade, durante a noite, vestiram-se como se fossem médicos e enfermeiros, simulando e bem, uma transfusão de sangue, acho que é isso que aparece na fotografia, que eles com a minha máquina me tiraram, e assim ficou na minha história, da qual muito se falou depois, mas já não me lembro de nada, porque não ‘assisti’ ao vivo a este momento único.

Não deixo de agradecer a todos por aquilo que me fizeram, se ninguém me socorresse, o que ara quase impossível, pois naquela meio tão pequeno ninguém passava despercebido, talvez as coisas levassem outro rumo, mas foi assim e tudo correu bem, talvez agora a figadeira se vai queixando de tanta barbaridade, que não me orgulho, mas também não me lamento de nada.

Faz agora – 1 de Janeiro de 2019 - 50 anos que tudo aconteceu, e continuo vivo, e nessa noite já estava em novas brincadeiras, com aqueles que eu mais apreciava, eram os operacionais da CART 1744, a Companhia de Intervenção. Sempre achei aquela Companhia do Capitão Serrão como um exemplo a seguir, levavam aquela vida como se fosse uma brincadeira, mas quando era para trabalhar e intervir, não faltaram nunca. 

Tudo começou mal mas acabou em bem, mas poderia ter tido outro desfecho.

2 – Meti aqui neste tema, mais umas fotos e passagens. Ou seja por que razões aconteciam estas coisas, esta a mais grave, começava tudo em festas de aniversários e petiscada, e depois acabava tudo com os copos. 

Tenho mais de uma centena de fotos que não tenciono publicar, pois não são cenas que me dignifiquem, são demasiado ultrajantes para o meu posto e para a minha função, como para qualquer um dos outros camaradas, pois estamos todos à molhada nas mesmas fotos.

3 – Aproveitei também para anexar algumas fotos daqueles terríveis momentos em que estamos a ferver a mais de 42º, com a Malária, a doença do mosquito, o Paludismo. 

Para muitos que sabem o que isto é, não preciso de explicar muito, mas entramos em delírio nos primeiros dois dias, até que a célebre ‘Terramicina’ comece a fazer o seu efeito e a temperatura comece a baixar. Numa situação de temperatura ambiente acima de 35º e mais, temos tanto frio como se estivéssemos na neve, as ajudas eram poucas, o Médico não sei bem o que fazia, mas o nosso Enfermeiro, o já falecido Furriel Veiga, estava ali para ajudar no que podia e era com certeza orientado pelo nosso Médico, posto que ele atingiu já na vida civil, acabou por cursar medicina.

Apanhei por duas vezes esta peste, uma vez em Nova Lamego, outra em São Domingos.

II – Legendagem das fotos:

F01 – O meu estado de coma, durante as primeiras horas do dia de Ano Novo de 1969.

A simulação bem-feita dos dois Furriéis, meus amigos e camaradas da CART 1744, que infelizmente não me recordo dos seus nomes, fazendo passar-se por enfermeiros, numa missão de transfusão de sangue, de soro, ou mais vinho e álcool...

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, durante a madrugada do dia 1 de Janeiro de 1969.

F02 – Na messe de Sargentos a brincadeira continuou, com fantasias de ano novo. A mesma ‘parelha’ que me socorreu com a transfusão de ‘soro alcoólico’ agora com novas vestes e cenas que não era normal ver na classe e messe de oficiais. Só gostavam de jogar.

Foto captada em São Domingos, na messe de sargentos, na noite do dia 1 de Janeiro de 1969.


F03 – Na messe de Sargentos, em cima da mesa, uma cena qualquer que não distingo. Os mesmos da parelha anterior, agora com mais dois furriéis, o 1º Sargento Godinho, e o Alferes Gatinho, o careca.

Foto captada em São Domingos, na messe de sargentos, na noite do dia 1 de Janeiro de 1969.

F11 – Na minha cama, no início de um ataque de Paludismo, talvez a delirar.

As fotos podem ter sido tiradas por qualquer camarada meu no nosso quarto, mas não sei.

Pode ver-se um balde com água e talvez gelo, para molhar a toalha e colocar na cabeça, as dores eram terríveis, e afectavam-me bastante.

E lá estão os comprimidos – LM  [, Labortório Militar,] – para todos os males.

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, no dia 26 de Outubro de 1968.

F12 – Na minha cama, na cura do Paludismo, já com evidentes melhoras.

As fotos podem ter sido tiradas por qualquer camarada meu no nosso quarto, mas não sei.

Pode ver-se já as garrafas de água Perrier, com as quais combatia a desidratação.

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, no dia 27 de Outubro de 1968.


F13 – Na minha cama, já com evidentes melhoras, e já a ler uma revista.

As fotos foram tiradas por um camarada a meu pedido.

De salientar, agora que estou a apreciar, as paredes estavam repletas de fotos, de mulheres que faziam capas nas revistas internacionais da época. Sem entrar em cenas ousadas, uma simples figura feminina, com roupa interior ou de praia, era uma delícia para a malta toda.

Não sei se cá na metrópole desse tempo, existiam revistas destas, não me lembro. 

Apenas sabemos que não haveria ‘motorista’ de pesados, que não tivesse na sua cabina do camião, algumas capas destas revistas, mais tarde bem ousadas.

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, no dia 28 de Outubro de 1968.


F14 – Na minha cama, a convalescer, lendo uma revista, pronto para o próximo combate. 

As fotos foram tiradas por um camarada a meu pedido.

Foto captada em São Domingos, na minha cama, no meu quarto, no dia 28 de Outubro de 1968.


F21 – Já com a braçadeira de ‘oficial de dia’ num local a que chamavam ‘Casa do Anis’. 

Esta e outras tantas fotos, representam a razão por que poderiam aparecer situações extremas, incluindo o Coma.

Na companhia de alguns soldados do meu Batalhão, uns à civil, outros fardados. E sempre com o copo na mão, que não era água de certeza. Não sei se a Casa do Anis, era o nome de alguém, ou se era um sítio onde se bebia ‘anis’!

Não percebo também os olhares arregalados de todos os presentes, mas sei que todos me respeitavam. Este era um serviço de 24 horas sempre presente e atento.

Foto captada em São Domingos, na Casa do Anis, tomando uma qualquer bebida em Janeiro de 1969.


F22 – Uma festa de aniversário de alguém, onde já se nota o cheiro a álcool.

Era neste ambiente que nasciam os exageros, aos quais nunca faltava à chamada.

Pode notar-se sempre de copo na mão, na maioria são soldados condutores, dois furriéis, o Carvalho, e o outro atrás de um copo que pode ser o Camolas. Lembro os nomes dos soldados condutores, o Ermesinde, o Bourbon, o Pita e outros.

Terá sido uma das últimas fotos e convívios com o meu pessoal em São Domingos, pois de seguida, antes do fim do mês, já estava em fuga para mais umas férias no Porto.

Foto captada em São Domingos, numa Caserna de Soldados, em meados de Fevereiro de 1969.

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».


NOTA FINAL DO AUTOR:


# As legendas das fotos em cada um dos Temas dos meus álbuns, não são factos cientificamente históricos, por isso podem conter inexactidões, omissões e erros, até grosseiros. Podem ocorrer datas não coincidentes com cada foto, motivos descritos não exactos, locais indicados diferentes do real, acontecimentos e factos não totalmente certos, e outros lapsos não premeditados. Os relatos estão a ser feitos, 50 anos depois dos acontecimentos, com material esquecido no baú das memórias passadas, e o autor baseia-se essencialmente na sua ainda razoável capacidade de memória, em especial a memória visual, mas também com recurso a outras ajudas como a História da Unidade do seu Batalhão, e demais documentos escritos em seu poder. Estas fotos são legendadas de acordo com aquilo que sei, ou julgo que sei, daquilo que presenciei com os meus olhos, e as minhas opiniões, longe de serem ‘Juízos de Valor’ são o meu olhar sobre os acontecimentos, e a forma peculiar de me exprimir. Nada mais. #


Acabadas de legendar, hoje,

Em, 2018-12-30
Virgílio Teixeira

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segunda-feira, 30 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18881: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 63 e 64: que grande burro!, aposto que nenhuma mulher acreditava nesta treta [, o meu voto de castidade]...





Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Aerograma do Natal de 1973


Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;


(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook;  é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.


2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerograma as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xxiv) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xxv) vê, pela primeira vez. enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; mada um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...

(xxvi) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné.


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 63 e 64

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


63º Capítulo  > Natal e  Passagem de Ano 1973 


Adoeci e fui evacuado para o hospital, em Bissau. Não havia camas vagas na enfermaria e fui parar ao quartel dos Adidos, medicado com meia dúzia de comprimidos e um xarope. Não informei nenhum familiar, nem escrevi a ninguém sobre o meu estado de saúde. O meu mapa ficou em branco durante três semanas.

Apenas tenho comigo uma foto da noite de Natal de 1973 para provar que a passei nesse local. Embora não goste, vou contar de memória, e muito resumidamente, o que se passou na noite de Natal.

Os únicos soldados estranhos à unidade que estavam nos Adidos eram eu e mais cinco colegas. Falhara o nosso regresso a Fulacunda que devia acontecer antes do Natal, por falta de transporte. Não sabendo que não iríamos regressar ao quartel, eu e os meus colegas gastámos o dinheiro quase todo na boémia, em Bissau.

Orgulho-me do que fiz nessa época, juntamente com um sargento que nunca conhecera antes. Alugámos um táxi e fomos ao quartel-general, onde o cabo cozinheiro que ficou a substituir o meu amigo Castro nos arranjou batatas, bacalhau, grão-de-bico, ovos e me emprestou mil escudos. 

Dividindo os gastos com o senhor sargento, comprámos bebidas e vários produtos ligados ao Natal, que conseguimos encontrar nas lojas de Bissau. Com autorização do oficial de dia nos Adidos, pudemos usar a cozinha e recordo que cozinhámos em terrinas e não em panelas. O certo foi que mais uma vez festejei a ceia de Natal em franco convívio e, podem acreditar, também nessa noite as bebidas chegaram para mais de cem soldados dessa unidade que eu e o sargento andámos a distribuir por quem estava de serviço.

Acordei de manhã na cama do sr. oficial de dia com uma garrafa de whisky ao lado. Foi ele que mandou o ordenança deitar-me completamente embriagado.

Obrigado, sargento.

Na noite de passagem de ano de 1973 para 74, ainda pior estávamos. Tinham-nos dito que regressaríamos antes do fim do ano sem falta e isso não aconteceu. O dinheiro que ainda restava do empréstimo teve de chegar para todos. Comemos o rancho do quartel.

No dia 3 de Janeiro de 74 já estava em Fulacunda e no dia seguinte voltava ao normal. Se é que conto a seguir pode entrar nos padrões da normalidade!


64º Capítulo  > A boite Shá Tuá [Chez Toi]


“Deves estranhar só teres recebido dois aerogramas meus neste tempo todo e um apenas dizendo que ia para Bissau e outro com desenhos alusivos à quadra natalícia”.

A realidade é esta: durante um tempo achei que não me safava e decidi cortar com tudo.

- Penso que não devo andar a ficar muito bom da tola -disse eu ao 1º sargento Santos.

“Estive doente e devo voltar para o hospital outra vez em breve parece que será logo no inicio de Fevereiro. Ninguém me diz o que tenho, ou não sabem, ou não querem dizer. Sei que estou a ficar outra vez com pouco peso, se morrer que se foda estou farto disto.

Agora temos de viajar de barco porque derrubam os aviões. Disseram-me que os “turras” tem uma arma nova que se chama RPG 7, decerto é com essa arma que derrubam os nossos aviões. Ou decerto até tem mísseis. Até o Zé Leal que foi passar uns dias a Bissau em gozo de férias, foi no barco que eu vim. Tive pena dele não ir quando eu estava lá.

Ao menos tenho aqui aquele chato do Zé Alves e os outros amigos do costume, mais o tal que conheceu a namorada por carta que também tem nome. É outro Silva.

Durante os dias que estive em Bissau fui a um local frequentado pelas chamadas mulheres da vida fácil é uma boite (diz-se buáte) que se chama Shá Tuá mas fui lá só para ouvir música. Está lá um conjunto formidável cujo baterista é um rapaz chamado Álvaro Azevedo que ainda é primo dos meus familiares de Amarante e que era o baterista dos Pop Five Music Incorporated. Só estive lá mais ou menos duas horas mas nem dancei contentei-me apenas em ouvir musica e em tomar umas bebidas.

Não posso de maneira alguma dizer que naquele ambiente não senti desejo de ter relações sexuais, senti sim até porque as boites existem mesmo para isso, simplesmente sempre que se trate de mulheres que não sejas tu eu não levo ao fim os meus desejos, contigo custa-me resistir mas se não estás a meu lado está a tua imagem e pelo muito que te amo não posso de maneira alguma trair-te. Confesso que nunca fui assim e até era bastante mais volúvel, mas agora sou teu e apenas vivo para ti, portanto podes ter confiança em mim, eu amo-te e apenas os teus braços é que me abrigam pois só envolto neles tenho a certeza dum amor cheio de pureza”.


Que grande burro! Aposto que nenhuma mulher acreditava nesta treta. Então a Amélia é que nem pensar!

domingo, 1 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18798: (Ex)citações (338): Quem não sabe beber, que beba m..., dizia um durão de Bambadinca... Mas, camaradas e amigos, era mesmo m... a famosa "água de Lisboa" que nos chegava aos nossos quartéis para matar a nossa dor e a nossa sede... (Luís Graça / Virgílio Teixeira)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > Otubro de 2010 > Restos arqueológicos... uma garrafa de Bussaco (sumo de ananás ou laranja), marca que era (e ainda é) comercializada pela Sociedade de Refrigerantes Buçaco, Lda, empresa familiar fundada em 1921... Mas podia ser uma garrafa de vinho verde Casal Garcia, ao "ventre da guerra" não faltava anda do "uísque escocês" à "água de Lisboa"... Foto do nosso saudoso Pepito (1949-2012).

Foto (e legenda): © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018). Todos os direitos reservados


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 (1972/73) > Legenda: "Nesta foto está o Figueiral em frente (ao meio) de óculos escuros e a comer uma cabritada com a garrafa de Casal Garcia à frente. Eu estou do lado esquerdo da foto, com o frigorífico atrás de mim. De costas para a foto está o Pinto Carvalho. Do lado direito da foto, em primeiro plano está o Alferes Bastos, o homem do obus (Alf de Artilharia) e logo a seguir, portanto à esquerda do Figueiral, está um segundo tenente de que não me recorda o nome. Era habitual haver um abastecimento via barco por mês e que vinha sempre escoltado pela Marinha, ficando o Oficial instalado lá no quartel [, em Bedanda, na margem esquerda do Rio Cumbijã]"

Foto (e legenda): © António Teixeira (1948-2013) / Blogue Luís Graça & Caramadas da Guiné (2013). Todos os direitos reservados



 1. Um camarada nosso, que passou como eu por Bambadinca,  era pouco ou nada tolerante para com as bedeiras... dos outros, sobretudo quando mexiam com a sua "área de conforto"...  Costumava ele comentar, com ar sarcástico, nessas ocasiões em que o deus Baco falava mais alto que os outros deuses todos do Olimpo:  "Quem não sabe beber, que beba... merda!"... 

O adágio ficou, e acho que se tornou um dos 10 anti-mandamentos  do bar de Sargentos de Bambadinca... (O primeiro devia ser, se bem me lembro: "O camelo só bebe de oito em oito dias,  não sejas camelo"...).  Afinal, aprendemos a "beber", e a beber com conta, peso e medida, nessa grande escola que foi a tropa e a guerra... em matérias de álcoois etílicos... (Claro que hoje o mandamento é outro, por razões de saúde: Não sejas burro, sê camelo, bebe muita água...).

Também não vou citar, por razões óbvias, o nome do meu querido camarada... até porque é meu amigo e vizinho... e faz parte do 'quadro de honra' da Tabanca Grande!... Mas por outro lado, se ele me ler, e como sei que ele tem sentido de humor, não me vai por certo levar a mal... Nem ele nem ninguém, incluindo os "meninos copos de leite" que também os havia, embora poucos, no meu tempo...

Cardinas, cadelas, carpantas, carapantas, carraspanas, pifos, pielas, tosgas, bezanas, narsas, bubas, borracheiras... afinal, quem não as/os apanhou?  Do sacristão ao capelão, do básico ao senhor major, do furriel ao capitão, do corneteiro ao escritas... quem não apanhou o seu "pifozito"? 

Pretextos não faltavam: o calor, a distância, as saudades, a depressão, a solidão, a camaradagem, a festa, a guerra, a morte... E meios para matar a sede e a dor também não faltavam, do uísque ao vinho do Porto, da "água de Lisboa" até ao "vinho de cana", mesmo intragável que este fosse  para o palato mais avariado do "tuga"...

Uma ressalva: nunca se bebia sozinho, ninguém apanhava cardinas sozinho, era tudo ao molhe e fé em Deus... Uma garrafa era para se partilhar... Uns aguentavam-se melhor do que outros, os "velhinhos" tinham mais treino ou mais manhas do que os "periquitos"... Primeira regra de oiro: nunca faças misturas... Enfim, são tudo histórias para contar... aos bisnetos, se a gente lá chegar aos netos e depois aos bisnetos...

Os nossos soldados fulas, que eram abstémios por prescrição da sua religião muçulmana, bem nos avisavam: "Eh, furriel, água de Lisboa, manga de cabeça grande"!... O que eles não sabiam era que a "água de Lisboa" que chegava aos rios e braços de mar da Guiné, do Geba ao Cacine, do Corubal ao Cacheu, era mesmo uma... "merda". Ou uma "zurrapa", uma palavra que continuamos usar para dizer vinho mau, estragado ou que sabe mal...

Não se sabe muito bem qual a origem da palavra, mas pode ser do castelhano... "Zurrapa" [s. f., quer dizer, segundo o dicionário de castelhano, "brizna o pequeña porción de materia que se halla en los líquidos y que poco a poco se va sentando y formando poso" (...): "el café está lleno de zurrapas"].

"Vinho a martelo", também se dizia na época... Estava na moda, quando regressei da Guiné, o "vinho a martelo", uma mistura hidroalcoólica que era depois "queimada" nas destilarias da região, às claras ou às escondidas...

Também se falava em "vinho batizado" com água do cais do Beato, no estuário do Tejo... Era ali que ficavam os grandes armazéns de conhecidos comerciantes de vinhos,  a granel, que terão feito belas  fortunas a mandar pipas de vinho marado para o preto e para o tuga...

Costuma-se, de resto, citar, com ou ou sem rigor histórico, um destes homens que fizeram fortuna no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses... Terá feito questão de lembrar, antes de morrer, aos herdeiros, filhos e netos, o segredo do sucesso da sua vida e dos seus negócios "Não se esqueçam, meus filhos, que das uvas também se faz vinho"... A história pode ser anedota, mas encerra uma verdade cruel...


2. Vinho de uvas, e bom... quem o bebeu na Guiné? Poucos, afinal, porque o bom era raro e caro... Mas temos aqui, no nosso blogue, alguns "expertos" nesta matéria... E que já aqui falaram há dias "de cátedra"sobre o tema (*)... 

Vamos lá recuperar alguns dos seus comentários, seria um pena "perdê-los" (**).

(i) Virgílio Teixeira:

(...) O que eu me lembro eram todas as bebidas alcoólicas, de todo o tipo até às mais caras, nem preciso de dizer os nomes pois era de tudo. O tabaco a mesma coisa, desde o Português Suave até ao Gitane e outras. Bebidas só me lembro das seguintes que eram misturadas com o álcool. Águas Perrier, Vichy, ambas francesas, e Castelo Portuguesa, para misturar com o Whisky. Depois a Tónica da Schweppes para o Gin, normalmente Gordon's.

Outras bebidas, tipo Fanta também me lembro, Laranjinha ou Laranjina C, Cocas, eu não era cliente destas bebidas doces. A laranjada Convento não me parece ter visto. Quase nem me lembro de que marca era a cerveja, normal ou bazuca, Sagres ou Cristal? Água apenas raramente bebia, só mesmo misturada com whisky e muito gelo.

Vinhos verdes também tinha, mas mandava vir para mim, de Bissau ou da Metrópole. Com isto fazia inveja e inimizades com os oficiais superiores que bebiam aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba. Ninguém se embebedava com aquilo, além disso era servido 'ao quente'.

As latas de que falei de frutas da África do Sul, isso havia muita lata, mas não sei o nome de nenhuma marca, lamento. Estas latas, também nós a utilizávamos, como 'tipo chuveiro'. Na casa de banho, havia um bidão de 500 litros, do gasóleo, depois enchia-se diariamente de água que vinha dos camiões, como não havia sistema de chuveiro, utilizávamos estas latas de frutas para deitar pela cabeça abaixo e assim tomava-se o banho. Muito mais tarde inventou-se um sistema de os bidões ficarem por cima do telhado, uns tubos,  umas grelhas e uma torneira e lá tínhamos os chuveiros, um luxo. Só que no banho de fim de tarde era uma desilusão, a água saia muito quente, pois estava exposta ao sol, não servia. Então voltamos ao bidão no WC, para os banhos da tarde, e para os da manhã já servia o chuveiro, pois durante a noite não baixava mais do que 20º, talvez. Enfim, histórias. (...)

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

(...)" aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba" (...). Dizes bem, Virgílio.

Foi na Guiné que eu, e muitos de nós, aprendemos a conhecer o "vinho verde branco"... Marcas como a Aveleda, as Três Marias, o Gatão, o Lagosta... eram muito procuradas. E eram caras, quase tanto como um garrafa de uísque novo... Aquela "trampa", gazeificada, fresca, sabia "pela vida"... E os otários pagavam 35 pesos por uma garrafa!... Um luxo!...

Ora, eu hoje suspeito que muito do vinho verde que a gente lá bebia era feito "a martelo"... Uma parte seria da minha região, a Estremadura Oeste, que tinha vinhos brancos, de baixo grau alcoólico... e que seguiam para o Porto, em camiões-cisterna, para depois serem misturados com os verdes, gaseificados e exportados para a Guiné, para a tropa, para o "tuga", para o "preto".

Hoje sou produtor de vinho verde, uma aventura que me aconteceu por via... uterina. E sei um pouco mais da história do vinho verde... Nos anos 60, pouco vinho branco se fazia, na região demaracada, a maior do país... talvez 10% no total... O forte era o "tinto", muito dele oriundo de "produtores diretos" como o Jaquet  (lê-se "Jaquê"...),  que resistiam a tudo o que eram doenças e não precisava de "tratamento"... Hoje é proibido, felizmente...

Fizeram-se grandes fortunas com os "engarrafados" e os "entalados", durante a "guerra do Ultramar".. Infelizmente é assim, em todas as guerras... O "vinho verde" (mas também as "conservas de peixe") foi o "volfrâmio" de alguns, poucos, que encheram os bolsos com a nossa fome e a nossa sede...

Nós, o Zé Soldado, fez a guerra, comeu e bebeu merda... Como sempre, em todas as guerras...


(iii) VirgílioTeixeira:

(..)" aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba" (...)

Quero esclarecer que bebi muita daquela zurrapa, era vinho branco escuro, sem sabor, misturado com gelo, ou ao natural, com um pouco mais de álcool. O vinho verde, esse, mandava vir de vez em quando, e bebia mesmo na messe fazendo natural inveja, digo eu agora, mas não era essa a ideia.
Aquela zurrapa, normalmente, dava volta aos intestinos, e as diarreias e outros males intestinais eram devido também a esse vinho, isto para 'pessoas mais delicadas'!!!

Li que a malta da Intendência, brancos e pretos, nos barcos com os abastecimentos, furavam as pipas, bebiam metade e emborrachavam-se e depois para pôr ao nível juntavam água do rio, e por vezes álcool etílico e assim enganavam as tropas. E fizeram-se,  como bem dizes grandes fortunas às custas disto, mas quem nesse tempo pensava nisso? Eu não.


(iv) Tabanca Grande Luís Graça:

Também aprendemos a beber o "Mateus Rosé"... Em dia de festa, lá se puxava pela nota e mandava-se vir um "Mateus Rosé"... Que chique!... O dinheiro escorria, sujo e feio, era o "patacão da guerra"...


(v) Virgilio Teixeira:

Havia nos vinhos verdes vários tipos de 1.ª classe:

Em primeiro o Casal Garcia - já o bebia antes da tropa, e ainda hoje está na moda - o Gatão, o Aveleda e o Lagosta,  tudo dentro do mesmo nível.
Depois os 3 Marias, eram garrafas de 2.ª classe, eram de 1 litro, e não era de rolha, mas sim de cápsula. Vendia-se muito em Bissau, quando ia comer ao Zé d'Ámura os passarinhos fritos com molho picante, ele servia esse vinho e bebia-se uma garrafa num abrir e fechar de olhos. Os outros eram servidos nos melhores restaurantes, portanto mais caros, talvez fossem ao preço de uma garrafa de whisky da tropa.

O Mateus Rosé nunca bebi isso na Guiné, porque pensava que era doce. Aliás só comecei a beber cá depois da tropa, quando casei em 1970; lembro-me bem que nos dias 25 de cada mês - data do meu casamento e dia de receber o pré no meu emprego - ia a um restaurante na Povoa de Varzim - O Ricardo, hoje é mais um Tourigalo - comer uns camarões tigre fritos com piripiri, quando eles ainda eram relativamente baratos, e bebíamos uma garrafa de Mateus Rosé, e até fiz uma pequena coleção delas vazias. Coisas do passado.

(...) Transcrição de uma passagem do que escrevi no meu livro (inédito), acerca do vinho, copiei agora, e não está longe do que tinha dito atrás.

A mistura que faziam nas barcaças, era com água salgada, não era álcool etílico como disse, aliás se eles o tivessem bebiam mesmo álcool puro, penso eu!

O vinho gelado em garrafa e as invejas na messe de oficiais: Durante muito tempo eu mandava vir da metrópole caixas de vinho verde branco que era nessa altura o célebre Casal Garcia em garrafa ou então o Aveleda em botijas tipo garrafão redondas. E mais tarde vinha mesmo do comércio local de Bissau, caixas e caixas de vinho verde. 

O que era servido na messe de oficiais era de pipa, e era rasca, muito fraco, era misturado com água salgada e fazia-se negócio com ele, mas ainda bebi muito quando não havia outro e sinto ainda hoje esse cheiro e sabor, pois normalmente não estava gelado nem fresco por falta de frio nos frigoríficos, e por isso as canecas com essa bebida que vinham para a mesa eram acrescentadas de blocos de gelo das arcas, mais fácil de conseguir e por isso era meio vinho e meio água. 

Eu não gostava nada daquilo. Sinto ainda o sabor amargo desse líquido de cor castanha a que chamavam de vinho branco. As minhas garrafas eram metidas na arca frigorífica, e para mim vinha uma garrafa com vinho geladinho, às vezes até era mesmo congelado, e a pingar no copo, aquilo fazia uma inveja de morte a todos, mas em especial ao meu inimigo especial, o major Henriques, que no meio da refeição perguntava alto onde é que eu arranjava esse vinho, ao que eu respondia que o comprava com o meu dinheiro, mas ele insistia que isso custava muito, e eu lá lhe respondia que em vez de deixar a maior parte do meu vencimento em casa, ficava sim com ele todo na Guiné, e então preferia comer e beber bem em vez de ter dinheiro para quando regressasse, pois nem sequer sabia se regressava ou não. (...)
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18777: Fotos à procura de...uma legenda (106): "As sobras do rancho da tropa"... e as latas de conservas, "made in Portugal", que as crianças levavam à cabeça (Valdemar Queiroz / Museu de Portimão / Virgílio Teixeira)

(**) Último poste da série > 16 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18640: (Ex)citações (337): A propósito das deserções nas fileiras do PAIGC, há um provérbio africano que diz "Todos os cães podem ser bravos, mas são mais bravos dentro das suas moranças", o mesmo quer dizer, dentro dos seus "chãos" (Cherno Baldé, Bissau)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18137: O meu Natal no mato (45): Um Natal antecipado: 23 de dezembro de 1967 em Gadamael Porto (Mário Gaspar), ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART  1659 (Gadamael  e Ganturé, 1967/68) > O Natal antecipado de 1967. Eu a fumar, à esquerda o furriel enfermeiro Durães, atrás o furriel mecânico Justo.

Fotos (e legendas): © Mário Vitorino Gaspar (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Mário Gaspar [foto atual à esquerda; ex-fur mil at art, minas e armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes, reformado; e ainda cofundador e dirigente da associação APOIAR; tem tem c. 100 referências no nosso blogue]

Caros Camaradas

Só hoje me lembrei do Natal passado na Guiné, passaram 50 Anos. Um dia que não esqueço.
Bebi 7 garrafas de Vermute Cinzano, ainda hoje não sei como consegui sobreviver. Depois fui fazer uma Patrulha. O PAIGC não apareceu.

Gostaria de saber o que cada um pensava no momento.

Um Bom Natal e um Ano Novo de 2018 com Saúde para toda a Tabanca.
Mário Vitorino Gaspar

PS - Ando de bengala.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1967 > CART 1613 (1967/68) > Ao centro, o Francesinho, alcunha do sold at António de Sousa Oliveira, transbordando de energia e de alegria, uns meses antes de morrer, no "corredor da morte", em 28/12/1967, no decurso da Op Relance. Era natural de Celorico de Basto (, tal como o seu infortunado camarada, o António Lopes) e emigrante em França. É a única foto que temos dele.

Foto: © José Neto (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613  (1967/68) > O Nuno Tavares da Costa Machado, alf mil art (aqui ainda aspirante miliciano, ainda na metrópole), morto no decurso da Op Relance, em 28/12/1967, no corredor de Guileje. Foi a  agraciado a título póstumo com a Cruz de Guerra de 3.ª classe. 

.Foto: © Aníbal Teixeira (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


[Op Relance: Em 27/12/1967:

Missão – Emboscada no “corredor” de Guileje.
Forca executante: CART 1613 (incompleta);  1 Gr Comp da CART 1659;  1 Gr Comb da CCAÇ 1622; Pel Caç Nat 51;  Pelotão de Milícias 138

Resultados obtidos: Causados ao IN 4 mortos prováveis e feridos vários não controlados; as NT sofreram 3 mortos, 4 feridos graves (3 milícias) e 3 feridos ligeiros (2 milícias). Os mortos foram o alf mil art Nuno da Costa Tavares Machado, o sold at António Lopes e António de Sousa Oliveira, todos da CART 1613]


2. O meu Natal no mato (45): 23 de Dezembro de 1967 em Gadamael Porto, um Natal antecipado

por Mário Gaspar


Passaram 50 Anos!

Fomos informados pelo Comandante da Companhia (CART 1659) que se festejaria o Natal no dia 23 de Dezembro. O intermediário deste “serviço informativo” era o régulo Abibo Injasso. Razão: visto ter recebido a informação que seríamos atacados na noite de Natal. Acostumados a tudo, não deixámos de considerar esta situação inacreditável. Era a guerra e naquela guerra inclusive o Natal fora antecipado.

Desloquei-me ao abrigo onde estavam quase todos os militares da minha Secção para lhes dar a novidade. Verdade! Estávamos 24 horas de Serviço sem licenças de fins-de-semana e dispensas de recolher. Não foi publicado nem numa Ordem de Serviço e muito menos no Diário do Governo. De tronco nu, chinelos e calção mudei de vestimenta e vesti-me à civil.
– Ó pessoal! – disse em voz alta – O Natal este ano é a 24 de dezem­bro.
– O quê? Meu furriel está a brincar, não está? – disse em voz alta um soldado.
– A brincar eu? Já receberam as prendas da família e das senhoras do Movimento Nacional Feminino. Não sabem o que é o movimento femi­nino? – disse rindo, calando-me de imediato.
– Diga nacional... Tão bom que é montar e cobrir. Já nem sei o que isso é. A última vez foi na minha aldeia, com uma puta, quando estivemos de licença. Foi uma foda tão boa. – disse o soldado deitando-se no chão de terra do abrigo, fazendo flexões. – Foi assim!

O soldado não parava de fazer flexões, num sobe e desce e ria-se.
– Tu és virgem, meu cabrão, ainda tens os três... – respondeu um camarada.
– Tenho é as tuas três primas quando formos embora daqui! – res­pondeu levantando-se, batendo com a cabeça na G3 pendurada na cama.
– Foi castigo porra! – riu.
– É verdade que dizem que o Natal é todos os dias. Dizem, mas é uma grande treta. O Natal deveria ser todos os dias, o que é totalmente diferente. 

Os soldados entretanto lá continuaram o diálogo.
– Já me disseram, o Natal aqui é diferente. Lá na minha parvónia e, eu só vi o mar quando assentei praça, o Natal é a 25 de Dezembro, aqui é a 24. Não há mulheres brancas estamos longe dos nossos pais, namoradas, noivas, dos familiares e amigos. O correio vem quando vem, não temos dinheiro, comemos mal.

Estou farto e ainda não chegámos ao fim do ano. Prometeram-nos ano e meio de comissão. Bastava que construíssemos o cais. O ano terá também 365 dias?

Sei que o nosso capitão não tem culpa. Faz tudo isto para nós termos o nosso Natal. Possivelmente os tipos vão atacar a malta. O furriel Pestana e o Costa lá morreram naquela trampa da armadilha.

A tristeza apossou-se daqueles homens que em janeiro haviam desembarcado na caixa de uma GMC, enterrada no lodo em Gadamael, no sul da Guiné. Chegados no Uíge a Bissau, nem colocámos o pé em terra. Destino uma LDM e Batelão BM-1 e mato. Ao largo de Bissau os carregadores indígenas, falando dialetos que não compreendíamos, vestindo roupas rotas e sujas pediam-nos dinheiro, patacas ou patacões. Era a instrução que não havíamos recebido. A ambien­tação ao clima e os costumes daquelas gentes não constava da instrução.
– Pois é... Referi com a dor no corpo e na alma. Tocara-se na ferida: o Pestana e o Costa não chegaram a este Natal. Haja o que houver, não podemos permitir que outros Pestanas e outros Costas, não passem o próximo Natal com a família.
– Logo vamos ter rancho melhorado?

Era a hora do jantar da noite de Natal antecipada. Todos seguiram. Chegou outro soldado. Trazia uma cerveja nas mãos.
– Vocês nunca mais apareciam e tive que beber qualquer coisa antes do jantar.
– Hoje é melhorado. – ouviu-se.
– Bacalhau com batatas!
– É daquele com cal, mas também não há outro. É melhor que comer o peixe da bolanha.
– Vamos a ver se os cabrões não nos estragam o nosso Natal.

Afastei-me do abrigo. Noite bonita e sem nuvens, não se vislum­brando sequer uma. O sol lá se acomodava, austero.

O pôr-do-sol daquelas paragens era um espetáculo. O Furriel Vagomestre, Casimiro, veio ao meu encontro e caminhámos juntos até à messe de Sargentos. O que denominávamos com messe era um acrescento do casarão onde funcionava a secre­taria da Companhia, feita com cobertura de chapa zincada. Estavam os três Sargentos e uns dez Furriéis Milicianos. A ceia daquele Natal prematuro, era bacalhau com batatas.

Havia luz. Do local onde me sentara, já avistava o cais que prometia o regresso antecipado. Isso porque tinha sido prometido pelo Comandante de Sector. Seria verdade? A verdade por vezes é mentira. Mas que o havia prometido, era verdade. Na hora das refeições sucediam os ataques do PAIGC.

O que pensaria naquele momento a família do Pestana e do Costa? O que estariam a dizer, naquele momento, os familiares de mais de cento e sessenta militares, que ali se encontravam desterrados? Como seria o Natal com a mesa incompleta? Deveríamos estar todos juntos, e não era verdade.

Não havia razões absolutamente algumas para a existência de duas messes e o rancho. Não só naquele dia mas sempre, deveríamos comer todos juntos já que a comida é sempre a mesma. Não era a Companhia uma família? As pausas eram todas elas de meditação.

O bacalhau fora servido. Todos se calaram. Coloquei o azeite sobre o bacalhau e as batatas. Pensava, talvez na morte da bezerra. Descuidei-me com o azeite. O bacalhau nadava.
– É Natal, é Natal... – quebrou a monotonia o furriel Nicolau,  de São Miguel, dos Açores.
– Bacalhau? Não quero bacalhau, que raio de merda.
– Não és português, meu sacana... – disseram dois, o  furriel enfermeiro, Durães e o furriel mecânico, Justo, algarvio.
– Olha quem fala... – respondeu o enfermeiro, de garfo e faca, des­toando da grande maioria, retirando habilmente as espinhas para a ponta do prato com a faca.
– És algarvio, e na História de Portugal lá consta, sempre após refe­rir-se ao rei: “Rei de Portugal e dos Algarves”. Se um é açoriano, outro é algarvio... – disse o furriel enfermeiro.
– Fala o rei de Lisboa, o senhor todo-poderoso do nosso império. Vai mas é às urtigas. – respondeu o algarvio.
– Ouvi dizer que comeste um sonho de Natal feito de algodão. Os teus homens já te conhecem tão bem, sabem que és um grande guloso e arranjaram um tão grande sonho de Natal, foi logo esse que agarraste. Era a esticar a esticar o algodão... – disse o 1.º Sargento Barreira enquanto se ria.
– Comi mais, eram tão bons. Mas a malta também lá foi. Não sei muito bem como fizeram os sonhos, e de onde vieram os ovos.
– Se calhar os pretos ficaram a arder.

Não se falou sobre o Natal antecipado. Uma cafeteira de café é colo­cada sobre aquilo a que chamavam mesa.
– Não se bebe nada? – perguntei com ar zangado.
– O meu irmão enviou-me uma caixa de bolos sortidos... – diz o furriel de transmissões, o Campos – Vamos comer uns bolinhos e compra-se uma garrafa qualquer.
– Ó cozinheiro, vai buscar duas garrafas à cantina, de uma trampa qualquer...

Rapidamente duas garrafas de cinzano, chegaram à mesa. O cozinheiro começou a retirar os pratos da comida.
– Um bolinho à saúde do dono dos bolos –  ouviu-se, numa só voz
– Vai uma saúde a todos.

Estendemos os copos e bebemos. Todo o líquido daqueles copos de dois decilitros mergulhou pelas goelas – como se o tivéssemos combinado anteriormente. Só de uma golada.

Instalou-se o silêncio. Mordia-me o cérebro não se ouvir ninguém. Não seria eu a quebrar o silêncio.
– O meu irmão é um tipo porreiro. – referiu o Campos:
– Lembrou-se e enviou-me uma caixa de bolos. Eu sou uma merda de homem, não valho nada. Ele é um bom tipo. Não presto, nem nunca prestei. A minha família é boa, mas eu sou, mau filho e mau irmão, uma autêntica merda...
– Ena, pá, deixa-te disso – confortou-o alguém, notando-lhe as lágrimas a escorrer pela cara.
– Não presto nem nunca prestei. Vocês são uns gajos porreiros, mas eu não valho nada. Natal? Que Natal é este?
– Nós cá todos bem!...
– Cambada de mentirosos, dizer às famílias tremenda mentira.

Ele não estava habituado a beber, e já eram quase duas dúzias de garrafas de vermute de litro. O que se estava a passar era uma paragem no tempo e na guerra para reflexão. Todos parámos. Só queríamos que o PAIGC fizesse a mesma paragem.

Surdos e mudos. Seres humanos. Pensei na minha mãe, no meu pai, nos meus irmãos, nos sobrinhos, tios, primos, namoradas, amigos e madrinhas de guerra e bebi mais um copo. Dois, três copos.

O 1.º sargento que era 2.º sargento (fazendo na Companhia o serviço de 1.º sargento) cantava o fado. Ele era o mais velho. Subia na vida, cantava sobre um banco, feito de um barril de vinho.

Todos o acompanhávamos, excluindo aqueles que mais bêbedos tinham ido para a cama. Foi nesse momento que fui atingido como – se fosse um rebentamento – por uma voz num tom que me rebentaram os tímpanos. Era o enfermeiro:
– Cozinheiro mais umas garrafas. O cantineiro tem mais.
– É chato, é chato, é sambinha chato..., É muito chato... – cantava o amigo açoriano, que não gostava de bacalhau – uma das canções dos Rangers em Lamego, curso que ele fez e que eu tão bem conhecia, pela curta estadia no mesmo. Não fiquei lá.
– Chatos tens mas é na cabeça... – disse-lhe rindo, enquanto bebia mais um copo. Não eram goles, mas um copo cheio de cada vez.
 Cantemos a outra...
– Et maintenant, que vais je faire…
– … É chato, é muito chato, é sambinha chato... – Continuava o açoriano muito sério batendo com a ponta dos dedos sobre as tábuas acom­panhando um ritmo que eu não percebia muito bem qual a canção que se tratava. A letra era a famosa dos “ranger’s”.
– Ó maestro vai outra música.
– A Guarda Republicana, Republicana, republicana!
 – Vamos a esta  – gritou o sargento.

Assim íamos festejando o Natal antecipado de 1967. A festa ainda não parara, e já não havia tempo para meditações. Todos se foram deitar, uns pelos seus próprios pés, outros com ajuda. Todo o mundo embriagado. Fiquei eu e o Furriel Jorge, que vendia banha da cobra. Acabara a bebida.
– Vamos à cantina? – perguntei-lhe.
– O cantineiro já fechou aquela merda. Vamos acordá-lo... – respon­deu-me levantando-se.
– Vamos embora, toca a acordá-lo, hoje é Natal.

Caminhámos juntos, passando pela tabanca. Muitos negros estavam ainda acordados. O abrigo do cantineiro era do lado de cima do aquartela­mento de Gadamael. Aproximámo-nos do abrigo, esse de terra batida e bidão repleto de terra, com palmeiras a cobrir e, junto do cantineiro, em voz baixa, murmu­rou o meu amigo:
– Cantineiro! Estamos com sede... – disse tocando-lhe nos braços – Este tipo está mesmo a dormir:
– Cantineiro vão umas garrafinhas?
– Porra nem se pode dormir. Vá lá, mas só há duas garrafas. Levan­tou‑se, enfiando os chinelos nos pés, vestindo os calções de banho. – res­pondeu o cantineiro.

Não passámos pela tabanca e fomos diretamente à cantina. Não se via ninguém. Só os que se encontravam de serviço. Avistei no abrigo da minha secção, estava o soldado de serviço.

Tínhamos cada um a sua garrafa. Duas de litro. Estavam quentes.
– Cantineiro, então esta merda está quente? Parece mijo...
– Furriéis! Acabaram‑­se, são as últimas. Até amanhã…

Segurando cada um a sua garrafa, descemos na direção da messe de sargentos. Messe improvisada, como tudo o que existia naquelas paragens. Bebia em tragos grandes, como se o mundo acabasse e sentámo‑­nos debaixo da chapa ondulada de zinco.
 – Bebe, e cala-te ... – disse o meu amigo, com os olhos já muito peque­nos.

Só se ouvia o motor da turbina do posto elétrico.

Já tínhamos ingerido o líquido das garrafas. Pela primeira vez, naque­las paragens, estava mais que embriagado. Pelo álcool, era a primeira vez que tal sucedia. Ficara bêbedo desde que chegara ao largo de Bissau, na noite de dezassete de janeiro, se é que não me anestesiara antes, sim porque todos nós estávamos completamente anestesiados.
– Podias muito bem, estar na tua casa com a família, e eu na minha. A verdade é que não nos teríamos conhecido. Gostava de ir ao cinema, ir ao teatro. Ao Parque Mayer, ao Monumental. Ir às putas. Tanto que adorava ir ao Café Lisboa, na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Entrava por uma porta e saía por outra. Nem que fosse para ver as já caducas das putas, sentadas, bebendo o seu café, olhando para a porta na esperança de ganharem uns cobres. O Café Martinho? Império? Paladium? Vává? Para inte­lectuais e pseudointelectuais. De Sartre debaixo do braço, que embora não o lessem. Mas era fino. Também era moda andar de botins calçados, e sujos de lama, para imitar os estudantes da Escola Agrícola de Santarém, o que não deixava de ter a sua graça. Um dia fui ver um filme com Alberto Sordi. O filme era “Uma vida difícil”, do realizador italiano Dino Risi. Há uma cena, que nem sequer é traduzida, que o personagem que o ator encarna, diz mais ou menos o seguinte:
– Vão‑­se embora daqui que isto é uma merda.

É mais ou menos isto que diz para os tipos, os turistas junto à estrada.
– Por que carga de água estamos aqui desterrados?
– Sou soldador e aqui o que faço? Ando com a G3 nas unhas. Parecemos todos nós, uns burros de carga quando vamos para o mato.
– No mato já nós estamos.
– Os mortos que já houve. É matar e morrer. Foram as mulheres e crianças em Ganturé no batuque. Foi o Vítor e o Costa.

O meu amigo quando falava em Vítor referia‑­se ao nosso grande amigo o Pestana.
– Nós estávamos de licença, lembras‑­te?

Levantou‑­se e sentou‑­se de imediato.
– E o “corredor da morte”. Foi o chavalo que se perdeu. Faço ideia o que ele não sofreu.
– Andou onze dias perdido, e nós sem termos hipóteses de o ajudar.
– É andar, é andar, sempre a andar. Vai mais uma voltinha para aquela menina de amarelo. É como na Feira de Outubro em Vila Franca de Xira, onde nós estivemos.
– E quando aquela merda dos estalinhos rebentavam e nós deitados no chão. O que aquela gente ria.

Falávamos da nossa visita à feira quando estivemos de férias, e mal sabíamos que os nossos camaradas haviam morrido, e ao mais pequeno barulho, era como se estivéssemos no mato.

Roquetadas, morteiradas, tiros, canhoada, minas a estoirar. Era o que tínhamos naquela terra.
– Fornilhos que lindos que são...
– As tripas de fora, sempre a andar. Porrada para cima. Sempre a andar.
– É picar, é picar.
– Ataques quando um tipo come, quando dorme, mas sempre a andar. Mais uma voltinha para aquela menina de amarelo. Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda. Não paga cinquenta escudos, nem vinte tão pouco. Por dez escudos leva esta caneta com aparo de ouro flexível, esta esferográfica e este pincel para a barba.

O meu amigo estava mesmo embriagado. Não parava. Já nos habituara àquelas cenas de vendedor de “banha da cobra”.
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda. Não paga cinquenta escudos, nem vinte tão pouco. Por quinze escudos leva esta caneta com aparo de ouro flexível, esta esfe­rográfica e este pincel para a barba.
– Um bom pincel, és tu... – respondi‑­lhe
– Não estamos aqui para enganar ninguém. Nós somos os únicos que saímos daqui enganados.
– Era a grande casa do Salazar, mas triste casa que mandava. Mandava, éramos carne para canhão. Somos uns imbecis, uns autênticos imbecis
– Eh, pá! Estou com sede. Já falei demais e tenho a garganta seca.

Em Gadamael, naquele momento, para além de nós, estariam acor­dados o pessoal de serviço, e um ou outro negro. O vendedor da banha da cobra olhava‑­me nitidamente, como se fosse um autómato.
– Vamos pedir de beber ao Capitão. – disse o meu amigo.

Quando falo no “meu amigo”, não é menosprezo para todos os outros, mas é que nos ligava uma forte amizade.
– Não estou aqui para enganar ninguém...

Logo à entrada daquele arruamento de tabancas, um negro da popu­lação civil sentado num pequeno banco, olhou‑­nos.
– Eh, pessoal, corpo?

Vestia uma túnica branca, de orar a Alá. A cabeça estava coberta com um gorro de lã, com desenhos ligeiros.
– Manga de chatice, pessoal... – respondeu o meu amigo.
– Pessoal... – continuou... Empresta aqui ao pessoal duas coisas dessas (apontava, referindo‑­se à túnica) e dois gorros?

O negro dirige‑­se para o interior da habitação, fazendo com a mão direita um sinal indicativo para esperarmos. Dá‑­nos aquilo que havíamos pedido, entregando‑­nos. Nós respondemos com um sorriso.

O Jorge vestiu uma das túnicas muçulmanas, dando‑­me a outra. Vestia‑­a e, não sei se me ficava bem. Colocámos ambos os gorros. O negro ria. Muito sérios, abandonámos o negro muçulmano, não sabendo bem se havíamos interrompido a sua oração. Deixámos para trás a tabanca, seguindo para o “comando”. Fomos em direção à cama do comandante da Companhia, Capitão de Infantaria Mansilha. O meu amigo faz‑­me um sinal com as mãos, para ter calma, não escondendo um sorriso.
– Alá, Alá, vinho para cá..., Alá, Alá, vinho para cá...

Repetimos a operação por duas ou três vezes, enquanto o capitão na cama nos olhava sorrindo. Parecia quase mentira mas sorria.
– Naquele caixote está a bebida.

Estávamos ajoelhados, batendo com a cabeça no chão.
– Alá, Alá, vinho para cá...

Levantámo‑­nos. No caixote existiam só copos vazios e água Perrier, água francesa, tipo água castelo.
– Só cá tem água? – disse‑­lhe com ar chateado.
– Bebam que faz bem... – respondeu o capitão.

Eram talvez quatro horas. No dia seguinte fomos ambos chamados ao comando para entrarmos numa patrulha. Eu quase morri, tal foi a bebedeira. Senti‑­me tão mal, e só na hipótese maior, a do PAIGC apare­cer. Fomos castigados, mas que castigo.

Em 27 e 28 de dezembro, a nossa CART participa na operação Relance, montar emboscada no “corredor da morte”, Famora, tendo sido utilizadas as seguintes forças: 1 Grupo de Combate da CART 1659, 1 Grupo de Combate da CCAÇ 1622 e 2 Grupos de Combate da CART 1613.

Fomos emboscados por duas vezes tendo a nossa tropa reagido bem ao fogo e à manobra do PAIGC, que sofreu 4 mortos prováveis e vários feridos não controlados.
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de dezembro de 2017 >  Guiné 61/74 - P18133: O meu Natal no mato (44): Naquele Natal de 1972, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

domingo, 24 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18133: O meu Natal no mato (44): Naquele Natal de 1972, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)


"Tive um Natal feliz apesar da tristeza no meu coração"


“17H00 A nossa ceia de Natal terá todo o sabor de um Natal em nossas casas. Aqui não faltaram as rabanadas, o creme, bolinhos, vinhos da Metrópole, nozes, pinhões, uvas passas etc. Além do bacalhau com batatas." (....)

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > A ceia de Natal de 1972 do 1º cabo cond auto José Claudino da Silva, "Dino" e dos seus amigos Luís, Zé Leal, Zé Alves, Carvalho, Moreira, Esteves. 


Fotos (e legendas): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do livro em pré-publicação, no nosso blogue, do nosso grã-tabanqueiro José Claudino da Silva (*), selecionámos o capítulo (nº 34) em que ele descreve, detalhadamente,  à sua namorada (e futura esposa), como foi o seu Natal de 1972, passado no mato, em Fulacunda.

[O autor, José Claudino da Silva, 'Dino', não corrigiu  intencional-mente as transcrições das cartas e aerogramas que  escreveu, nomeadamente à sua namorada (e sua futura esposa). Esses excertos vêm a negrito e a itálico, neste como nos restantes capítulos.

O 'Dino' nasceu  em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, e  reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande .] .(**)


34º Capítulo > A CEIA DE NATAL DE 1972

Vou tentar transmitir a todos os meus leitores uma das cartas mais incríveis que tenho em meu poder e que foi escrita por mim, hora a hora, nos dias 24 e 25 de Dezembro de 1972.

A carta tem 17 páginas. Seria fastidioso narrar tudo o que está lá escrito, por essa razão irei avançar alguns dos parágrafos:

“17H00 - A nossa ceia de Natal terá todo o sabor de um Natal em nossas casas. Aqui não faltaram as rabanadas, o creme, bolinhos, vinhos da Metrópole, nozes, pinhões, uvas passas etc. Além do bacalhau com batatas. A única coisa que não há é hortaliça mas como já estamos habituados remedeia-se. Temos também o bolo-rei enviado por ti. Veio fazer tamanha balbúrdia que ninguém se entende parece que anda tudo maluco, tive que mostrar o bolo a cada um dos outros e mesmo assim custa-lhes acreditar em tão grande sorte de receber o bolo-rei na véspera de Natal. Obrigado amor deste-me a Maior alegria desde que cheguei aqui.
 

18H00 - Pouco trabalhei. Já está tudo preparado para se cozinhar, passou-se uma coisa que merece um comentário, trata-se da hipocrisia que reina nesta companhia a que infelizmente pertenço. A ceia de Natal para os soldados oferecida pelo comandante, foi batatas cozidas com bacalhau e grão-de-bico o mesmo prato de ontem. Nem um cálice de vinho do Porto ou outra coisa qualquer ofereceu, que fizesse lembrar este dia.
 

19H00 - Esta hora foi agitada. Vou resumir o que se passou. A luz eléctrica falhou, continuamos a cozinhar à luz das velas. Arranjamos um petromax a álcool que se incendiou e explodiu ferindo ligeiramente dois colegas, o apertado abrigo que estamos a usar como cozinha, começou a arder mas apagamo-lo rapidamente. A luz voltou (Tinha acabado o Gasóleo no gerador) e com a luz voltou a boa disposição.

Começamos a cozinhar às 19H45.

Aqui vão os nomes de todos que vamos jantar juntos. Dino, Luís, Zé Leal, Zé Alves, Carvalho, Moreira, Esteves. (Estes tiveram sempre nome. Ainda voltarei a referi-los).

Na mesa os aperitivos eram. Pinhões, nozes, uvas passas, bocadinhos de presunto e salpicão. As bebidas para os aperitivos. Whisky, Rum, Coca-Cola e Martini.

Eram 21H20 quando o bacalhau e as batatas vieram para a mesa. Antes de começarmos a comer o básico do meu capitão veio aqui dar-nos um bom Natal, logo seguido dos 4 alferes, que nem um cigarro ofereceram à malta. Em seguida e quando já estávamos a comer vieram os furriéis e sargentos também desejar-nos boas festas. Beberam e comeram o que lhes apeteceu e em seguida ofereceram uma cerveja a cada um de nós. Já tinham feito o mesmo a todos os camaradas (162) que embora pareça pouco, tem ares de muito porque a intenção é que conta.

Continuamos a refeição com uma disposição que só comprovarás quando vires as fotos que fomos tirando. A mesa foi ficando desarrumada e nós cada vez mais eufóricos. Havia 12 garrafas de vinho, 8 das quais da Metrópole, é evidente que todos estávamos animados. Às 22H00 já tinham passado por aqui mais de 20 colegas a desejar as boas festas. Foram recebidos com alegria e todos de uma coisa ou outra beberam e comeram.

Já passava das 22H30 quando começamos a comer as rabanadas, bolachas, mais nozes e o teu bolo-rei. Nesta ocasião já tinham sido bebidas 10 garrafas de vinho, uma de whisky e uma de Rum. Eu tinha uma garrafa de Porto fui busca-la, o Leal tinha outra também a pôs na mesa, assim como o Esteves. O Alves trouxe mais uma de Rum e o Carvalho uma de whisky.

Tivemos de sair do abrigo e vir para a caserna porque os meus camaradas continuaram a chegar para nos cumprimentar e o Natal de 7 passou a ser de 150. Para cada um. Cabo ou soldado. Furriel ou sargento, houve um copo, uma rabanada, ou uma simples bolacha.

Estás a ver querida? Um capitão e vários alferes cheios de dinheiro, não alegraram em nada os corações dos meus camaradas e nós, 2 cabos e 5 soldados, fizemos com que se canta-se, dança-se e sobretudo que se esquece-se por momentos os nossos familiares, na festa da família.

O teu bolo foi cortado às 22H55. Cortei uma fatia Maior para mim e saiu-me o brinde. Foi essa tartaruga que te mandei. As garrafas continuavam na mesa e o Leal em vez de vinho deitou azeite no copo que bebeu duma golada, foi mais um momento de humor.

Perto da meia-noite o Luís foi à cantina buscar café e o burro do Leal virou o dele pelas calças abaixo. Estávamos todos à civil contrariando as ordens do capitão que ao menos nessa noite, não nos colocou de vigia.

Estou na cama. São 00H30 do dia 25 de Dezembro de 1972.


Vou tentar continuar a escrever para vós, com algumas lágrimas nos olhos. Se alguém que me está a ler participou nesta estúpida guerra, decerto compreenderá as minhas lágrimas. Nos outros leitores também acredito que haja alguma sensibilidade.

Às 10H50 veio um avião Nord-Atlas que lançou três pára-quedas com caixotes que trouxeram fruta, ovos, peixe e frango, possivelmente é para se comer parte disso hoje. Aguardemos.

Até aqui o dia tem decorrido bem. Eram 11H45, estive a distribuir para o refeitório 14 garrafas de vinho do Porto e bolachas, por ordem do capitão, por isso estou a ver que o capitão afinal, decidiu dar hoje alguma coisa à malta. Até te digo! Hoje todos almoçamos no refeitório não é como nos outros dias que oficiais, sargentos e praças comiam em locais separados. Ainda bem. Haja fraternidade ao menos uma vez no ano.




13H00 - Olha meu bem! O capitão é um filho da puta, desculpa o termo mas é assim mesmo que devo dizer. Ainda não fomos comer mas já vi que há uma diferença muito grande. Os oficiais e sargentos têm toalhas e guardanapos nas mesas deles e nós não podemos ter, para nós, tem de ser a mesma coisa de todos os dias. Se eu não fosse obrigado a ir não punha lá os pés.

Hipócritas de merda que mesmo num sítio destes só têm peneiras de que são grandes.

Fui ao refeitório. A comida parecia estar boa mas meteu-me tamanha repugnância estarem os oficiais, furriéis e sargentos dum lado e nós do outro que eu, mais três amigos nem a provamos. Um colega tirou fotos com a minha máquina. Depois enviar-tas-ei para que vejas os senhores fulanos dum lado e o Zé soldado do outro. O engraçado é que no discurso que o capitão fez, afirmou que assim unidos é que estávamos bem. Ele merecia era ir comer com os porcos para perder as peneiras.

É assim, os superiores pouco ligam a nós também sermos seres humanos.

Vim para o meu abrigo, fiz uma omeleta com presunto e comi o resto do teu bolo-rei.

15H30 - Estou a jogar futebol pela formação contra o 1º pelotão.

16H00 - Agora ainda não posso escrever continuo a jogar.

17H00 - Ainda não acabou.

17H15 - Terminou o desafio. Perdemos 3 a 0. Não se pode ganhar sempre, os outros mereceram.

O capitão autorizou que hoje se andasse à civil da parte de tarde. Como estou, e, nem sei porquê, a ficar com espírito de contradição, não me vesti assim.

Fulacunda parecia em festa com os meus camaradas todos bonecos mas eu preferi ser militar.”


Não fui jantar o peixe frito com arroz. Os meus colegas faziam a festa na caserna ao som de viola e harmónica. Fiquei solitariamente no meu quarto até os meus amigos Alves, Leal e outros aparecerem com champanhe. “É bom ter assim amigos” - escrevi eu. Uns com os outros esquecíamos melhor as tristezas.

Terminei o meu relato da véspera e dia de Natal de 1972 exactamente às 22H07 com a certeza que, de facto, os homens não são iguais e isso iria mudar a minha vida futura. Naquele Natal, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam.

Ultima página:

“TIVE UM NATAL FELIZ APESAR DA TRISTEZA NO MEU CORAÇÃO.”

No dia 26, completei sete meses na Guiné.