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segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22539: Notas de leitura (1381): "No mato ninguém morre em versão John Wayne, Guiné o Vietname português", por Jorge Monteiro Alves; LX Vinte e Oito, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Quando se pretende biografar uma figura denominada herói lendário, um combatente cumulado pelas mais altas condecorações portuguesas, impõe-se ponderar uma consulta a documentos probatórios, irrefutáveis, socorrer-se do contraditório, ir aos arquivos, quando se pretende uma biografia histórica, não é o caso do livro de Jorge Monteiro Alves que enveredou por uma biografia informal, aqui correm-se inúmeros riscos, suscitam-se imensas dúvidas, é sempre o herói quem comenta as suas façanhas, e persistem as lacunas, é indispensável que a historiografia entre em ação. Mas não se pode retirar o mérito, é o primeiro trabalho jornalístico sobre um complexo personagem sobre o qual há muito a investigar.

Um abraço do
Mário



Biografia informal de Marcelino da Mata, um projeto para entender um herói guineense

Mário Beja Santos

Uma biografia, por definição, pauta-se pela evidência científica: arquivos, consulta de toda a documentação disponível, audição de relatos apaixonados, desapaixonados, sob o efeito do contraditório; contextualização do biografado no seu tempo e pela sua obra; extensa bibliografia, notas das consultas, etc. O trabalho do jornalista Jorge Monteiro Alves sobre Marcelino da Mata, intitulado "No mato ninguém morre em versão John Wayne, Guiné o Vietname português", LX Vinte e Oito, 2021, é uma biografia informal, discorre sobre o personagem, o autor marca as suas distâncias, procura mesmo contextualizar o guineense mais condecorado do Exército Português no quadro da luta armada; mas, como é evidente, é trabalho lacunar, reconheça-se o mérito de procurar retratar o herói no seu tempo, saúde-se a primeira obra sobre alguém que suscita incomensurável admiração ou infindáveis reprovações e repulsa pelos métodos adotados na atividade de combatente.

O contraditório é elementar, tão elementar como a investigação. Julião Soares Sousa, o importante biógrafo de Amílcar Cabral, ousou desfazer lendas, contestar a data da fundação do PAIGC, pôr a nu as pesadas contradições na ideologia do líder que bem procurava camuflar a existência de uma discordância histórica entre cabo-verdianos e guineenses. Tendo Marcelino da Mata pensado em aliar-se ao PAIGC, fruto das represálias que este exerceu na sua família (mataram-lhe o pai e a irmã, grávida de 8 meses), era indispensável apurar a verdade dos factos, confirmar as execuções da primeira e segunda mulher, seguramente que houve testemunhos. Os depoimentos da sua vida são dados por ele próprio. Parece que a ebulição subversiva surgiu de modo espontâneo, e por obra e graça de um acaso tudo começa em Tite em 23 de janeiro de 1963. Ora Marcelino da Mata foi incorporado em Bolama, fez a tropa pelo irmão, será que não há nenhum testemunho sobre este tempo, e depois como condutor-auto e depois no BCAÇ 356?

Monteiro Alves dá-nos uma súmula do dispositivo militar, notas sobre a economia da província ultramarina, e assim chegamos aos efetivos. Temos o general Spínola a reivindicar mais meios (parece que os dois comandantes-chefes procederam igualmente assim, mas foram menos felizes na contemplação, fala-se no novo conceito de guerra trazido por este homem providencial, faz-se o contraponto com o triplo de poder de fogo do PAIGC face a uma unidade militar portuguesa, enfim, nada ficamos a saber sobre o comportamento das nossas forças até 1968. Providencialmente, ficamos a saber como atuavam as nossas forças tudo por causa do que diz Marcelino da Mata: a Batalha do Como, onde ele fez o tirocínio com os Comandos; o herói Marcelino da Mata está em Brá no Centro de Instrução de Comandos da Guiné Portuguesa, em julho de 1964, o Governador e Comandante-Chefe chama-se Arnaldo Schulz, Marcelino colabora com os Comandos, os Gatos, os Fantasmas, os Panteras. E no final do ano engendram um modo de operar, quer fazer operações com um escasso número de militares. Monteiro Alves entende que deve interpolar permanentemente o que faz o herói com as ofensivas do PAIGC e o que se passa na cena internacional. Temos depois a criação dos Roncos de Farim, uma tropa especial lendária a que ele se agregou, tinha à frente um alferes destemido, Filipe José Ribeiro, e Marcelino da Mata fazia parceria com um Mandinga não menos destemido, Cherno Sissé. Chovem as condecorações. Os Roncos chegam a Cumbamori, em dezembro de 1967, estava lá Luís Cabral, viveu uma grande inquietação, mas safou-se. Monteiro Alves vai citando Marcelino da Mata em exclusivo, não dá guarida a outros depoimentos.

Foi várias vezes ao Senegal, em agosto de 1967 resgatou os homens da CCAÇ 1546, que tinham sido apanhados à mão, o prémio foi a Torre e Espada. É 2.º Sargento, criou o seu próprio grupo, os Vingadores. Anda numa completa dobadoira, Schulz parte, Spínola chega e o autor desenvolve as alterações introduzidas pelo novo Comandante-Chefe, os Vingadores sempre no ativo. Cria-se a primeira Companhia de Comandos Africana, a africanização da guerra conhece novos desenvolvimentos. Dá-se a Operação Mar Verde, Marcelino da Mata participa, ataca o quartel da Guarda Nacional em Conacri, é pouco económico no autoelogio:
“Eu arranjei uma metralhadora e comecei a fazer fogo. Aquilo era como disparar contra carneiros. Só à minha conta, numa contagem oficial, ficaram lá 94 estendidos, mas devem ter sido muito mais. Quem ficou aborrecido comigo foi o Calvão, pois alguns dos mortos eram oficiais superiores que simpatizavam com a FLNG e que se deviam juntar à revolta. Mas eu não sabia de nada disso. Nem ninguém do meu grupo. Quem me levava essas instruções era o alferes. Mas como ele foi abatido logo à entrada do quartel…”.
Nova condecoração para Marcelino da Mata, graduado em alferes com a especialidade de Comando. Monteiro Alves há ocasiões em que mostra que não teve acesso a fontes documentais, refere calmamente que o PAIGC derrubou um helicóptero no rio Mansoa em 25 de julho de 1970, que vitimou quatro deputados, não foi nada assim, o helicóptero foi metido no golfão em pleno rio, o piloto não conseguiu a manobra correta para dali sair, foi tudo puro acidente.

O autor volta a espraiar-se sobre a cena internacional, Marcelino tinha sido enviado para Cabora Bassa em 1971, Spínola mandou-o regressar, veio para o Centro de Operações Especiais, foi nessa altura que nasceram os Vingadores, Marcelino da Mata conduz uma verdadeira máquina de combate. Estamos chegados a 1973, entram em cena os mísseis Strela, Marcelino tinha anteriormente colaborado na Operação Grande Empresa, a ocupação do Cantanhez, soma louvores e cruzes de guerra. São referidas as ofensivas do PAIGC e a nova ida de Marcelino da Mata a Cumbamori. A 28 de abril de 1974, Marcelino da Mata cai ferido e é mandado para o Hospital de Bissau e evacuado para Lisboa a 2 de maio. A Guiné caminha para ser um país independente. Segue-se uma frase descabelada do autor:
“As últimas tropas portuguesas saíram da antiga província. Mas não trouxeram consigo os Comandos e os Fuzileiros Africanos. A traição portuguesa equivaleu a uma pena de morte para milhares de homens que deram tudo pela bandeira verde rubra”.
Se acaso tivesse consultado a documentação, verificaria que foram efetuadas diligências para trazer todas as tropas especiais, recusaram, quiseram ser remunerados até dezembro. Está-se em crer que um jornalista sabe que existe o Direito Internacional, não se pode interferir na vida interna de um Estado autónomo, pergunta-se que mais diligências poderiam ser feitas a não ser protestar pela diplomacia. Insiste-se na tónica do abandono sem minimamente querer apurar a verdade dos factos.

A biografia informal de Marcelino da Mata certamente que irá despertar novos trabalhos que permitirão abrir luz sobre a complexidade do personagem, já que o seu heroísmo foi incontestável, como o seu destemor, o melhor será aprofundar recorrendo às fontes documentais e aos testemunhos de todas as latitudes. Enquanto é tempo, que já é muito escasso para quem conheceu e combateu ao lado do herói da lenda.


Imagem retirada do Diário de Notícias, com a devida vénia
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Notas do editor

Vd. postes de:

24 de Agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22481: Notas de leitura (1374): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte I (Luís Graça)
e
4 de Setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22513: Notas de leitura (1377): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte II (Luís Graça)


Último poste da série de 11 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22533: Notas de leitura (1380): "Um caminho de quatro passos": temos um novo escritor, o António Carvalho passa o teste, e espero que seja com louvor por unanimidade e aclamação dos seus leitores (Luís Graça)

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22128: 17.º aniversário do nosso blogue (1): Meu caro Luís Graça, tu és um "querido mano" para todos os que têm o privilégio de te conhecer (João Crisóstomo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)


1. Mensagem do nosso camarada João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), com data de 20 de Abril de 2021:

Meu caro Luís Graça,

Tenho seguido como tantos outros camaradas o teu diário tratamento no Instituto de Oncologia. Se não te conhecesse ficaria admirado das tuas qualidades de homem completo, levado neste caso a um grau quase sublime.
Mas contigo e em ti todas as coisas extraordinárias são normais. Mais uma vez a tua vida e o teu exemplo são tremenda inspiração que para todos aqueles que tiveram/têm a data de te conhecer.

Pessoalmente, mesmo entre estes, eu me sinto um afortunado, pois quis o bom destino que além dos muitos elos que nos unem como camaradas da Guiné, se juntassem o facto de sermos vizinhos e termos como comuns amigos indivíduos também extraordinários que tanto têm enriquecido a nossa vida. Já hå muito nos tratamos como mano e irmão. Agora vejo com alegria grande que ao fim e ao cabo tu não és um mano e irmão apenas para mim e mais alguns: tu és um "querido mano" para todos os que têm o privilégio de te conhecer.

Sem intuitos de enaltecimentos ou de querer parecer bem fazendo-te elogios: Obrigado, meu querido mano, pelo que és. A tua vida a nível familiar e social é um exemplo fabuloso, uma verdadeira inspiração para todos nós. Pela tua vida, pelo teu trabalho, incluindo este blogue e tudo o que deste blogue resultou para benefício de cada um de nós, da história da Guiné, de Portugal e não só… de ti se pode com toda a verdade dizer “ porque deles é que reza a história”. Bem hajas!

Para ti e todos os teus, mas neste momento especialmente para ti, um apertado abraço, tão grande como a amizade que nos une

João, Nova Iorque


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PS: Para o caso de não teres visto, aproveito este para te mandar um artigo que acabei há momentos de ler no “Expresso curto”, escrito pela Cristina Figueiredo, editora de política da SIC, na rubrica "o que ando a ler".

Aqui está:

"Agora que se cumprem 60 anos sobre o início da longa e mortífera guerra colonial é boa altura para lembrar, sobretudo aos mais novos, o significado da palavra “Ultramar” para a geração dos seus avós.

A revista do Expresso trazia na semana passada um texto de Jorge Calado sobre as (poucas) fotografias públicas que há do conflito. Mas se faltam as fotos não faltam os livros. Um dos mais recentes é "Palco Sombrio", de Alice Caetano (Emporium Editora, setembro de 2020).
A ideia que preside à obra é original: dar um conteúdo improvável à expressão “teatro de guerra”, narrando um período do conflito nas colónias através do testemunho de um capitão miliciano que, coincidência aproveitada pela autora, também é encenador e ator.


Conheço bem o protagonista: Carlos Nery Gomes de Araújo é meu sogro (fica feita a declaração de interesses).

Foi, como tantos outros, mobilizado contra vontade para combater numa guerra em que não acreditava e de que não sabia se voltaria. Partiu para a Guiné, a bordo do Niassa, em maio de 1968, tinha 35 anos, um filho (o meu marido) com apenas um ano. Sem qualquer formação militar, a não ser o serviço militar obrigatório que cumprira 10 anos antes, foi treinado em Mafra “à pressão”, por quem pouco mais sabia do que ele. Foi no mato que aprendeu, a expensas próprias, como comandar homens, como reagir a ataques, como manter o sangue frio em situações que um técnico do Banco de Portugal, como ele, estava longe de imaginar ter de viver: “A primeira coisa que eu decidi naquela guerra é que não ia morrer ali. Decidi isto ainda antes de lá chegar e acho que foi essa decisão que me salvou. A mim e aos meus homens”.

Voltou intacto, com efeito, e sem ter perdido uma única das vidas humanas que tinha à sua responsabilidade.

Mais de meio século decorrido, uma escritora interessou-se por esta e outras histórias que compõem a sua biografia, indissociável do gosto pelo teatro, que não abandonou nem mesmo naqueles dois anos em África (terminou a sua comissão de serviço com uma encenação de “A Cantora Careca”, de Ionesco, em Bissau) e que continua a ser o seu “elixir da juventude”: aos (quase) 88 anos, é ator residente da Companhia Maior, em Lisboa, e prepara-se para subir mais uma vez ao palco (assim a pandemia o permita) no final do ano.

A sua vida, de facto, dava um livro. Alice Caetano teve essa presciência e em boa hora passou das musas… ao teatro".


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Comentário do co-editor CV:

Neste dia em que se vira mais uma página para um novo ano de existência, o 18º deste Blogue, não podemos deixar de cumprimentar, com uma vénia muito grande, o criador e mentor desta página, o nosso mano Luís Graça.
Embora ele e os seus colaboradores precisem já de uns suplementos vitamínicos, porque são já uns septuagenários cheiinhos de ferrugem, continuam animados e coesos para levar a sua missão o mais longe possível.

Ao Luís, quero desejar a melhor saúde. Presentemente está a precisar de uns retoques, mas no 18º aniversário estará já a cem por cento.

Aos nossos camaradas de armas, e aos nossos leitores em geral, desejo que continuem a acompanhar-nos nesta jornada que também inclui participação activa com o envio de textos e fotos.

Carlos Vinhal
Coeditor

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Notas do editor:

1 - Edição e inserção das imagens da responsabilidade do editor.

2 - Sobre a peça de teatro "A Cantora Careca", levada à cena em Bissau em 5 de Abril de 1970, vd. poste de:

4 DE SETEMBRO DE 2010 > Guiné 63/74 - P6935: A Cantora Careca, estreado em Bissau no dia 5 de Abril de 1970 (Carlos Nery)

3 - Neste dia de aniversário do nosso Blogue, vejam o Poste n.º 1 de:
23 de Abril de 2004 > Guiné 63/74 – P1: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21934: Notas de leitura (1342): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Após anos de prisão, com a saúde abalada mas sempre combativo, Henrique Galvão evade-se do Hospital de Santa Maria e parte para o exílio. Ficarão dignos de nota: (i) a tentativa de uma sólida aliança oposicionista de Delgado e Galvão, será sonho quimérico, a prazo irão desavençar-se, Galvão é anticomunista feroz e tem uma conceção muito sui generis do Império, acredita em Estados multirraciais, será exatamente isso que dirá numa Comissão da ONU, não entusiasmando os legados africanos; (ii) o assalto ao paquete Santa Maria correrá mundo, será sempre uma notícia para o Estado Novo; (iii)nhaverá o desvio de um avião da TAP na linha Casablanca – Lisboa, mais uma inquietação para Salazar, aquele ano de 1961 será horrível do princípio ao fim. 

E no Brasil, mesmo escrevendo febrilmente, Galvão está cada vez mais sozinho, não tem o acompanhamento da família a não ser sob a forma epistolar. Vai perdendo a lucidez e desaparecerá em junho de 1970.
 
É uma das figuras mais complexas da Oposição, ele que era dado como um indefetível de Salazar, que fora um dos forjadores do 28 de maio de 1926, ele que irá aparecer associado, como muito poucos outros, ao feitiço do Império, terá a coragem de denunciar na década de 1940, a corrupção e a escravatura que se praticavam nas mais ricas Colónias, incomodou-o o regime que o foi ostracizando. E não se pode estudar a vida colonial portuguesa nesse período sem conhecer os seus explosivos relatórios que deitam abaixo as teses miríficas da multirracialidade, a que Salazar se agarrou para lançar o país na tão longa Guerra Colonial.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (3)

Beja Santos

“Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro, 2011, é a biografia de uma das figuras mais polémicas de um apoiante de Salazar e do Estado Novo que se insurgiu e se constituiu como um dos mais ferozes adversários do ditador.

Acompanhámos o itinerário deste entusiasta de Salazar e do Estado Novo, escritor febril, polemista, inspetor superior de Administração Colonial, organizador de feiras coloniais, caçador exímio, deputado, organizador de exposições e congressos, primeiro diretor da Emissora Nacional. 

Na segunda metade da década de 1940, Galvão elabora relatórios que desvelam corrupção, compadrio, escravatura e miséria, nomeadamente em Angola, Moçambique e S. Tomé. Gradualmente, será ostracizado e desmotiva-se com Salazar, descrê que o Estado Novo leve por diante um projeto ardoroso para a mística imperial, enfileira-se na Oposição, engendra um bizarro projeto de golpe de Estado, será preso e aqui se inicia um calvário celular que culminará com a sua rocambolesca fuga do Hospital de Santa Maria, em janeiro de 1959. Mesmo preso, escreve obras de toda a espécie, traduz, é um epistológrafo compulsivo.

Pede acolhimento na Embaixada da Argentina, a sua escrita tem verdadeiramente ácido sulfúrico, como é o caso da Carta Aberta a Salazar, que começa deste modo:

“Pois é verdade, meu caro Manholas Júnior: evadi-me das tuas garras, dos teus ódios incansáveis, da tua Gestapo todo-poderosa e seus algozes, das tuas mordazes, dos teus juízes e tribunais especiais, dos teus tiranetes enriquecidos e condecorados, dos teus bordos tubarões e idólatras mercenários, das tuas ‘notas do dia’ e ‘notas oficiosas’, do teu exército de ocupação e respectivos generalecos, das tuas prisões e campos de concentração, do teu mercado de favores, dos teus discursos sem resposta, das tuas mentiras magistrais, da tua corte de vampiros e cretinos, dos teus venais e pederastas, dos teus negreiros, dos teus eufemismos tartufescos, da tua Oligarquia, da tua Fazenda, do teu Rebanho.”

Falando de si, afirmava com orgulho: 

“Nunca fui desleal para com o adversário político nem persegui humildes ou vencidos – mas ataquei de frente alguns vilões cujas mãos tu havias enchido de varas”.

E parte para a Argentina, aqui o seu trabalho político era desinteressante, não existia uma comunidade de imigrantes significativa. Neste período, corresponde-se regularmente com Humberto Delgado, este está no Brasil, onde cria o MNI – Movimento Nacional Independente, para o qual arregimenta pessoas da sua confiança, caso de Galvão. Este começa a escrever no jornal da Oposição, o Portugal Livre.

Em abril de 1960, germina a ideia de assaltar o paquete Santa Maria, Galvão ajudara a criar o DRIL – Directório Revolucionário Ibérico de Libertação, a que se juntaram alguns galegos comunistas e anarquistas. O plano era assaltar a pérola da marinha mercante portuguesa, com cerca de 600 passageiros e 370 tripulantes, que fazia a rota Lisboa – Miami. 

Os 24 combatentes do DRIL embarcaram no Santa Maria em La Guaira, na Venezuela, e outros em Curaçau, começava o assalto que seria revelado pela imprensa mundial, mobilizando várias forças aéreas, era uma verdadeira bomba no palco da opinião pública mundial. 

Após negociações, os assaltantes abandonam o paquete no Recife, o recém-eleito Presidente Jânio Quadros acolheu Galvão. Dias depois, em Luanda, dá-se o assalto à 7.ª Esquadra da PSP, estão envolvidos a UPA e o MPLA, não houvera qualquer relação entre os dois acontecimentos, o assalto ao Santa Maria não tivera qualquer ligação com o desencadear da subversão em Angola.

Os últimos anos de vida de Galvão terão forros de dramatismo. Nunca se quis ligar aos movimentos de libertação, germinou uma tese própria, evolutiva, de que as colónias portuguesas fariam parte de uma ampla federação e que seriam países multirraciais, será ultrapassado pela corrente revolucionária. Aliás, a rotura de Delgado com Galvão virá a dar-se com as divergências de opinião quanto à colaboração com os comunistas e à independência imediata das Colónias. 

Galvão irá a Marrocos mas nunca estabelecerá contatos com a CONCP – Confederação das Organizações Nacionalistas nas Colónias Portuguesas, Galvão não estava disposto a aceitar a autodeterminação nas Colónias. É neste contexto que com o apoio de Palma Inácio, Camilo Mortágua e outros se desvia um avião da TAP, que partia de Casablanca para Lisboa, isto em 10 de novembro de 1961, lançaram-se panfletos e regressou-se a Casablanca.

A vida no Brasil tece-se de intrigas e divisões, Galvão não para de escrever, pede apoios internacionais, nas Nações Unidas acabará por ser ouvido. Galvão, apoiado pelo Comité Pró-Democracia em Portugal, irá apresentar um pedido ao Presidente da 4.ª Comissão das Nações Unidas para ser ouvido relativamente aos territórios ultramarinos. A diplomacia portuguesa insurge-se, e em 9 de dezembro de 1963, Galvão chegou à ONU para ser ouvido como peticionário. Tudo irá decorrer numa atmosfera um tanto surreal. Perante mais de 100 delegados, Galvão defendeu que se os dirigentes democráticos portugueses fossem libertados e Salazar renunciasse ao poder, se encontraria uma solução para a situação Angola – Moçambique, no sentido de uma espécie de autonomia birracial para os territórios ligados a Portugal. Os delegados africanos não mostraram entusiasmo. Mas o Estado Novo sofreu um revés, um oposicionista fora escutado por uma Comissão das Nações Unidas.

Galvão vai-se afastando do realismo político, quebram-se todas as alianças, vão morrendo companheiros da primeira hora, Delgado é assassinado, Galvão continua a escrever em O Estado de São Paulo, mas vai adoecendo, embora obcecado com a ideia de invadir Portugal, a lucidez esvai-se, vai viver no Sanatório da Bela Vista onde Mário Soares o irá visitar em 1970, onde em 25 de junho ele deixou o mundo dos vivos.

Após o 25 de abril, será alvo de evocações e em 10 de junho de 1991 foi condecorado postumamente com a grã-cruz da Ordem da Liberdade.
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Notas do editor

Poste anterior de 15 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21904: Notas de leitura (1340): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21909: Notas de leitura (1341): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte I - O direito, o dever, o prazer... e a dor da memória (Luís Graça)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21904: Notas de leitura (1340): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
 
É incontestável que a viragem política de Henrique Galvão se irá processar depois das suas viagens e relatórios a Angola e Moçambique, como inspetor superior de administração colonial. Diz preto no branco que há escravatura, miséria, corrupção na administração, nomeações de gente incompetente. Forma-se na Assembleia Nacional uma forte oposição, os interesses colonialistas não podem ser ofendidos e muito menos denunciados. Galvão, completamente desiludido, ingressa na oposição, irá apoiar a candidatura de Quintão Meireles e elabora planos quiméricos para um golpe de Estado.
 
Sentenciado, irá parar a Peniche, serão anos de prisão a que se seguirá uma espetacular fuga do Hospital de Santa Maria e o exílio na Argentina. O que não deixa de ser impressionante é o que aquele homem escreve e o que escreve tem sempre marcas do seu coração em África, indeléveis.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (2)

Beja Santos

“Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro, 2011, é a biografia de uma das figuras mais polémicas de um apoiante de Salazar e do Estado Novo que se rebeliou e se constituiu como um dos mais ferozes adversários do ditador.

Depois de uma acumulação de triunfos, Galvão, deputado da União Nacional e Inspector Superior de Administração Colonial, apresenta na Assembleia Nacional o “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”. A reunião tinha um caráter absolutamente privado, e a denúncia não tem precedentes, saltam das suas palavras verdades com punhos, do género:

“Todos sabemos como são pouco rigorosas as estatísticas demográficas e de produção referentes às colónias africanas. Nem todos, mas muitos sabem que, além de pouco rigorosas, induzem por vezes em erros perigosos. Alguns, mais raros, sabem o resto, isto é, como estas estatísticas são por vezes fabricadas”.

Debruçando-se sobre o recrutamento da mão-de-obra pelo Estado, deixa siderados os membros da Comissão das Colónias:

“Em certo ponto de vista, a situação é mais grave do que a criada pela escravatura pura. Na vigência desta, o preto comprado, adquirido como animal, constituía um bem que o seu dono tinha interesse em manter são e escorreito, como tem em manter são e escorreito o seu cavalo ou o seu boi. Agora, o preto não é comprado – é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre. E ao patrão pouco interessa que ele adoeça ou morra, uma vez que vá trabalhando enquanto existir – porque quando estiver inválido ou morrer reclamará o ‘fornecimento’ de outro. Há patrões que têm 35% de mortos entre o seu pessoal durante o período do contrato. E não consta que algum tenha sido privado do fornecimento de mais quando mais precisar”. 

Finda a apresentação do relatório, Albino dos Reis, o Presidente da Assembleia Nacional, foi conciso no despacho: 

“Foi enviada uma cópia ao Sr. Presidente do Conselho. Arquive-se este original sobre rigorosa reserva.”

Mas Galvão não desarmava, denunciava nas suas intervenções enquanto deputado nomeações erradas, escrevia nos jornais. Meses depois, o novo Ministro das Colónias, Teófilo Duarte, determina que se faça uma inspeção extraordinária em Moçambique, Galvão é o escolhido, irá debruçar-se sobre o povoamento, emigração e economia indígenas, haveria que cooperar com o Governador-Geral. O ministro entregou a Galvão instruções complementares secretas, cinco folhas datilografadas que versavam sobre diversos aspetos da realidade moçambicana. Também o ministro pretendia saber se seria viável a ideia de substituir o recrutamento individual (de trabalhadores para S. Tomé) por outro coletivo, abrangendo não só famílias mas ainda grupos de aldeias limítrofes. 

Chegado a Moçambique, Galvão atira-se ao trabalho, sem deixar, no entanto, de caçar. Escreve o autor:

  “Galvão depara-se, em Nampula, com uma operação de recrutamento de serviçais para S. Tomé e envia um telegrama ao Ministro das Colónias. Alerta-o para a gravidade do despovoamento e para o facto de esse recrutamento só se dever efetuar se fosse largamente excedido o número de indígenas que a lei permitia recrutar. Em outubro, Galvão escreve ao Encarregado do Governo-Geral de Moçambique: “O estado de miséria em que se encontram e apresentam os condenados e desterrados cumprindo pena em Marrupa excede todos os limites e falta de decoro e humanidade. A maioria não tem qualquer vestuário nem agasalho ou se apresenta com farrapos sórdidos de casca de árvore. E assim se encontram não só nos calabouços como nos trabalhos públicos em que são empregados”.

Galvão regressa profundamente indignado com a miséria e os abusos que presenciara. Em 1948, o Ministro determinou que Galvão se deslocasse com urgência a Angola, a fim de aí completar o estudo da questão indígena iniciado em 1945, sob as orientações de Marcello Caetano. Embarca em julho e regressa em dezembro, verá desmandos da Administração Colonial verdadeiramente revoltantes. Galvão escreveu a Salazar pedindo-lhe para lhe expor verbalmente o drama político, económico, social e o caos administrativo que encontrara em Angola. 

Será recebido pelo ditador em janeiro do ano seguinte, nada transpirou. E o relatório enviado ao Ministro era uma bomba: o Governador-Geral tinha procurado encapotadamente torpedear a inspeção; tinham-se instituído novas causas de despovoamento, o fornecimento de trabalhadores era pura escravatura, os indígenas eram arrebanhados à força para trabalhar em S. Tomé, e muito mais. Iniciara-se uma guerra aberta com sólidas instituições do Estado Novo, um amigo de Salazar, Mário de Figueiredo, líder parlamentar da União Nacional, troca palavras ásperas com Galvão, forma-se um círculo de hostilidade, negam-se os fundamentos das denúncias, 

Galvão sabe que está isolado. Lança-se na verrina, a sua escrita torna-se num permanente descasca pessegueiro, escreve artigos extremamente ácidos, uma ironia velada, mas os leitores percebiam para onde iam as flechas. Mário de Figueiredo participou disciplinarmente de Henrique Galvão, este foi recusado como candidato da União Nacional, amargurado, Galvão é informado que um juiz determinara a abertura de diversos processos disciplinares e criminais contra dezenas de funcionários angolanos.

Em 1951, Galvão apoia a candidatura de Quintão Meireles, é o seu homem de comunicação, escreve furiosamente comunicados, faz denúncias, só pensa no derrube do regime salazarista. No ano seguinte, a PIDE invade a sede da Organização Cívica Nacional, de que Galvão faz parte, virão a descobrir-se documentos que, embora quiméricos, faziam supor que Galvão urdira planos para um golpe de Estado. 

Começa o calvário das suas prisões, é transferido para o Forte de Peniche, tinha sido condenado a três anos de prisão celular. É um período que Francisco Teixeira de Mota descreve com ricos pormenores até chegarmos a panfletos da autoria de Galvão que tinham o título de Moreanto (Movimento de Resistência Anti Totalitária), anti salazarista, anti fascista, anti nazi, anti comunista e anti negocista, os ataques a Salazar eram vitríolo. 

Em contestação pela sua prisão, Galvão vai fazer greve de fome, toda esta atmosfera de peripécias é descrita com enorme vivacidade, Galvão não desarma, é transferido para o Hospital de Santa Maria, Galvão escreve a toda a gente, incluindo o Cardeal Patriarca de Lisboa. E dá-se o julgamento do Moreanto, Galvão é condenado a 16 anos de prisão maior.

 A partir de agora, aquele ativista do Império só podia contar consigo próprio, como observa Teixeira da Mota: 

“Se não se invadisse, ou enlouquecia ou morria na prisão, e as duas últimas hipóteses eram inaceitáveis para o seu orgulho pessoal e para o ódio que tinha a Salazar” e é no Hospital de Santa Maria que terá lugar a sua rocambolesca fuga.

(Continua)
Imagem do livro "Henrique Galvão, Um Herói Português". Músicos guineenses na Exposição Colonial do Porto. Fotografia de Domingos Alvão, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21869: Notas de leitura (1339): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21869: Notas de leitura (1339): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
 
O nome de Henrique Galvão faz parte do rol dos malditos da oposição a Salazar, o seu nome, quando invocado, é automaticamente associado ao desvio do paquete de Santa Maria. Homem do 28 de maio, de 1926, deixou um legado impressionante: na literatura, na obra teatral, na narrativa de viagens, na etnografia; foi executante exímio de eventos ligados ao Império, nomeadamente em 1934 e 1940; o regime confiou-lhe a criação e a direção da Emissora Nacional, o seu amor a África era obsessivo, criou uma mística imperial que não se coadunava com o que ele irá ver enquanto inspetor superior de Administração Colonial. Encontrará uma oposição cerrada aos seus relatos crus em que desvela casos de escravatura e corrupção, em Angola. 

Nesse preciso instante, em 1947, ele que tantas juras de fidelidade dirige a Salazar, prepara a rutura.
Poucas figuras, fora da oposição comunista, darão tantas dores de cabeça a Salazar e ao seu regime. Mas o que será sempre incontestável e por todos reconhecido é o seu amor a África.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (1)

Beja Santos

Oficial do 28 de maio, mas antes sidonista, ginasta, publicista e epistológrafo compulsivo, exilado em África, depois do “Golpe dos Fifis”, aqui nasce uma paixão que o acompanha até ao túmulo, 

África será uma das tónicas dominantes da sua existência, Governador de Huíla, autor teatral, embaixador de feiras comerciais, figura pública após a coordenação da Exposição Colonial do Porto de 1934, deputado da União Nacional, Diretor da Emissora Nacional, Inspetor Colonial, galvanizador na Exposição dos Centenários, figura incómoda da Assembleia Nacional, caçador exímio… e a partir de 1947 uma das figuras mais incómodas do regime quando Galvão apresenta na Assembleia Nacional o “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”, estava inoculado o vírus dos ódios que o elevado número de inimigos, dentro do próprio regime, de governantes à administração colonial. Inicia-se um processo que de afeiçoado indefetível de Salazar o leva ao completo repúdio, às prisões, ao assalto ao paquete de luxo Santa Maria, ao exílio e à solidão. 

Em “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota (foto à direita, acima), Oficina do Livro, 2011, temos os dados biográficos relevantes desta figura polémica de um enamorado de África que foi a primeira figura da oposição portuguesa a ser ouvida por uma Comissão das Nações Unidas, em Estados Gerais de Descolonização.

Henrique Galvão (1895-1970) levou uma vida gloriosa e trágica, publicista irreverente desde a juventude, adere entusiasticamente ao 28 de maio de 1926, é plumitivo feroz contra os republicanos, adere a um golpe do período da ditadura militar, é exilado em África, nomeado Governador do Distrito do Huíla, onde começa a ganhar notoriedade e o afeto das populações, quando é recambiado para Lisboa, a sua saída deu origem a numerosas manifestações de pesar. 

Escreve um livro polémico, “Em Terra de Pretos: Crónicas de Angola”, foi rejeitado no 4.º Concurso de Literatura Colonial, Armando Cortesão, Agente Geral das Colónias, pronunciou-se de forma arrasadora sobre a obra. 

Em 1931, acompanha o Ministro das Colónias, Armindo Monteiro, à Exposição Colonial de Paris, certamente que aqui tirou ideias para o que irá concretizar na Exposição do Porto, em 1934. Escreve o relato dos feitos do General João de Almeida na ocupação do Sul de Angola. Sempre ativo, o então Tenente Henrique Galvão ausenta-se para as colónias portuguesas na qualidade de Diretor de Feiras de Amostras Coloniais.

E chega o seu primeiro momento de glória, a Exposição Colonial do Porto. Com um orçamento extremamente reduzido, Galvão vai ser o mentor de um evento único que se espalhará pelos jardins e pelo Palácio de Cristal, com aldeias de indígenas das colónias e os seus habitantes expressamente trazidos para o Porto. 

Da Guiné virão 63 indígenas, predominam Fulas, Balantas e Bijagós, para os quais se irá construir uma aldeia lacustre. Artistas como Eduardo Malta e o fotógrafo Domingues Alvão deixam obra feita. Realiza-se o I Congresso Militar Colonial, entre outros eventos. Elege-se a Rainha das Colónias, Galvão preside ao júri composto por Amélia Rei Colaço, Aurora Jardim Aranha, Eduardo Malta e Mimoso Moreira.
 
Um jornal relata o acontecimento:

“A um sinal dado por mão forte, as concorrentes erguem-se, desnudando os bustos. Sobre o peito, em cores garridas, uma banda de cetim indicando a colónia a que pertenciam. A Guiné iluminava o maior número. Foi vencedora Maria, ‘a virgem quipungo’ que conseguiu 7 minutos de aplausos enquanto dava sucessivas voltas ao estrado”. 

O povo do Porto e do país inteiro adotara a Rosinha, uma jovem Balanta da Guiné, eleita como Dama de Honor e que provocava verdadeiras romarias à tabanca da Guiné. Relatava o Jornal de Notícias:

“Rosinha, a negra que entontece os brancos, tem sido muito visitada na sua aldeia e há, até, quem lhe leve pequenos presentes. Para todos os que a visitam revela uma pequena surpresa, um sorriso. Há quem se contente só com isso, mas outros, como um da sua cor, quis mais – e beijou-a. Hoje deve estar arrependido deste gesto – custou-lhe 800$00, e essa quantia por beijar uma negra é um pouco forte”.

Um triunfo não vem só, é eleito deputado, depois Duarte Pacheco, Ministro das Obras Públicas e de Comunicações convida-o para organizar e dirigir a Emissora Nacional, nesta época a sua correspondência com Salazar entrara na rotina. 

As suas relações com o sucessor de Armindo Monteiro nas Colónias, Francisco José Vieira Machado, serão desde logo conflituosas. Escritor incansável, não para de escrever. Abandonando a Emissora Nacional, vemo-lo em 1937 a fazer uma inspeção aos Serviços Administrativos de Angola. O que manda a Salazar é muito incómodo: 

"Tão facilmente se encontra o heroísmo que comove como a miséria que confrange como a patifaria que revolta”.

 Farta-se de caçar, e volta a Lisboa onde elabora quatro relatórios. No início de 1938 entrega, na sua qualidade de Inspector Superior de Administração Colonial, no gabinete do Ministro das Colónias, o seu relatório sobre a “Mão-de-obra de Angola para S. Tomé”. É explosivo à solta, leem-se coisas como esta: 

“Durante a minha permanência na Colónia, tive conhecimento de que pelo Governo da Província de Benguela se pensava enviar para S. Tomé um contingente de indígenas do Bailundo, com o pretexto de castigar uma presumida insubmissão dos mesmos. Não houve insubmissão de espécie alguma. Mas, ainda que a houvesse, o Código de Trabalho Indígena e o Estatuto dos Indígenas não admitem tais processos de punição, muito semelhantes a processos condenáveis de escravatura”

E refere o autor: 

“Apoiado em números, muitos deles obtidos com enorme dificuldade dos serviços da Curadoria dos Indígenas, Henrique Galvão descrevia a enorme tragédia que se abatera sobre os indígenas de Angola recrutados para S. Tomé desde o início do século XIX. Os contratos eram por dois ou três anos e, no entanto, em 1934, ainda havia um elevado número de serviçais que tinham sido levados para S. Tomé, entre 1909 e 1922, e que aí permaneciam. A política de repatriamento era uma tragédia”.

Comentando o documento, o autor observa que para Galvão, a situação que se deparara era a negação do Império que queria construir. O Estado-Novo em África não existia e a realidade com que se confrontava eram os comportamentos mais aberrantes e a maior miséria.

Embora já muito incómodo para uma facção do regime, Salazar confia nele sem nenhuma hesitação, nomeia-o Diretor da Secção Colonial da Comissão dos Centenários, a Galvão caberá um conjunto de tarefas como a dos festejos, a Secção Colonial da Exposição do Mundo Português, as Festas de Guimarães, o Cortejo do Mundo Português. 

É um incontestável artífice do efémero. Começara, em finais de 1940, o afastamento de Galvão do regime, vira o suficiente para estar profundamente desiludido. A mudança decisiva irá ocorrer na Assembleia Nacional com o polémico “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”.
Nada ficará como dantes.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21834: Notas de leitura (1338): "Voando sobre um ninho de STRELAS", por António Martins de Matos; Edições Ex Libris, 2020 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21099: Notas de leitura (1290): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (5) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se põe um fim a uma demorada, propositadamente extensa, análise de um trabalho de leitura obrigatória para o investigadores da guerra da Guiné, obra redigida com suficiente clareza e incisão que permita todos os leigos os mais amplos esclarecimentos sobre a vida e obra de Cabral.
Julião Soares Sousa foi justamente premiado pela sua primorosa investigação. Esta edição corrigida e aumentada introduz, em meu entender, um quociente de perplexidade quanto ao maior número de hipóteses de envolvimentos em torno do assassinato. A despeito de documentação fundamental ter desaparecido, estar extraviada ou irremediavelmente perdida, factos são factos, Cabral foi assassinado por guineenses e todas as recriminações dos conjurados iam contra a unidade Guiné-Cabo Verde. É um mistério denso que se presta a imensa especulação. Porém, não se esqueça que em 1980 Nino Vieira, de colaboração íntima com combatentes guineenses e até civis, afastaram os cabo-verdianos e pôs termo a um sonho de Cabral que, comprovadamente, não tinha pés para andar.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (5)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

No aceso da luta de libertação, Cabral é confrontado com um punhado de dossiês escaldantes: as relações com os outros movimentos de libertação têm aspetos agudos, Cabral e Mondlane não têm identidade ideológica, por exemplo; procurou-se o lançamento de ações de guerrilha urbana, foram pouco consequentes mas segundo o líder importantes no plano político e psicológico; caminhou-se para a proclamação do Estado da Guiné e militarmente Cabral desenhou com um conjunto de colaboradores uma ofensiva sobre Guileje que só se concretizará em Maio de 1973; toda a problemática de Cabo Verde é forçada à hibernação, Cabral transfere para as frentes de guerra esses quadros apetrechados que se revelarão determinantes, caso de Pedro Pires, Osvaldo Lopes da Silva, Agnelo Dantas e Silvino da Luz, entre muitos outros; o ano de 1972 obriga Cabral a deslocações incessantes, embora se julgando amplamente informado do que se passa na guerrilha e em Conacri, acentuam-se as crises internas, é no regresso de uma visita à União Soviética em Novembro de 1972, onde lhe é garantido o apoio com armas modernas, como os mísseis Strela, que Cabral é alertado para a existência de graves problemas em Conacri, o mundo das informações alterara-se, não só a PIDE/DGS conseguira infiltrar informadores ao mais alto nível como dezenas de combatentes reuniam à luz do dia e havia mesmo ideias de refazer o partido, contava-se para isso com combatentes carismáticos como Osvaldo Vieira e com o antigo presidente do partido, Rafael Barbosa.

E assim chegamos ao assassinato, tema que conhece novos desenvolvimentos nesta edição corrigida. Há muitas conjeturas, o autor usa e abusa do consta, do alegadamente, do presume-se. Há versões coincidentes sobre o se passou naquela noite, Ana Cabral a tudo assistiu, ouviu as primeiras discussões, o primeiro disparo quando Cabral não aceitou ser preso, a conversa seguinte em que Cabral propunha uma discussão sobre os problemas de relacionamento entre cabo-verdianos e guineenses, sucederam-se os tiros fatais, os conjurados, seguramente de acordo com o plano previamente traçado, dividiram tarefas, prenderam Aristides Pereira e levaram-no para uma lancha com outros reféns, incluindo a mulher de Cabral; meteram na prisão um elevado número de cabo-verdianos, nem um só guineense, avisaram-nos de que seriam fuzilados ao amanhecer; e foram libertados os membros do complô, todos guineenses, que se encontravam aprisionados, punidos por rebeldia; outros dirigiram-se ao palácio de Sékou Touré, Óscar Oramas, o embaixador cubano assistiu a essa conversa, os conjurados alegaram sempre a fricção insanável entre Guiné e Cabo Verde, o presidente da Guiné Conacri mandou prender os conjurados e pediu apoio naval aos soviéticos para irem buscar Aristides Pereira. Entre as muitas pistas Julião Soares Sousa retoma algumas delas não têm base de sustentação: não há um só documento que comprove qualquer colaboração da Armada Portuguesa; não há um só documento que conduza a qualquer associação entre a PIDE/DGS e os implicados na conjura de Conacri, pelo contrário, nas horas subsequentes em Bissau Spínola deplorará a morte de Cabral, ele não tinha outro interlocutor, e o diretor da PIDE em Bissau envia para o diretor da PIDE em Lisboa um relatório que no todo ou na parte é manifesto da não implicação da polícia política portuguesa nos acontecimentos de 20 de Janeiro de 1973; continua a insistir-se na liderança de Momo Touré no assassinato, este não possuía qualificações, capacidades ou reconhecimento por parte dos altos quadros combatentes, seria, quanto muito, um cabeça de turco a executar um plano pré-combinado, não será de excluir conivências diretas de Nino Vieira e Osvaldo Vieira, que ficaram na sombra. Julião Soares Sousa carreia nova informação, caso do relatório da delegação jugoslava às cerimónias fúnebres de Cabral, ou relatório de Agostinho Neto. E centra-se nas hipóteses de cumplicidades internas e externas centradas em Sékou Touré e nas autoridades portuguesas. Para sermos francos, nada de novo. Trazer à colação a “Operação Albatroz”, bem como a “Operação Safira”, igualmente nada traz de esclarecedor, não há provas concludentes que associem tais iniciativas ao assassinato de Cabral.

As conclusões da obra recapitulam toda a evolução de um pensamento e de uma ação, podem ser encaradas como uma síntese feliz. No entanto, não se percebe o que leva o autor depois de relevar de que não se possui documentação irrefutável que leve ao reconhecimento dos autores morais a escrever que a chave do enigma se encontra na documentação da PIDE/DGS, da Aginter Press e dos Serviços Secretos de Conacri e assevera: “Acreditamos também que algum arquivo privado possa a vir resolver o mistério. Pelo menos pouco a pouco mais dados têm vindo a terreiro, ajudando-nos a reconstruir o puzzle tão complexo. Toda esta documentação sumida poderá esclarecer os meandros em que o assassinato foi orquestrado a partir de Lisboa e a maneira como algumas organizações secretas europeias penetraram o PAIGC com a cumplicidade de guineenses e de elementos da oposição ao regime de Sékou Touré”. Não nos aprece igualmente crível que Spínola tenha abandonado o seu lugar de governador por causa da proclamação unilateral da independência, Spínola sabia que a prazo o desfecho militar lhe era desfavorável, aprovara-se uma retração do dispositivo era o primeiro sinal da derrocada, preferiu ir para Lisboa preparar a derrocada do regime de Caetano, com quem se incompatibilizara.

Ao findar a análise deste importantíssimo documento, reitero a sua importância e a obrigatoriedade da sua leitura, para investigadores e todos os interessados.
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Notas do editor

Postes anteriores de:

1 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

8 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21054: Notas de leitura (1288): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (3) (Mário Beja Santos)
e
15 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21078: Notas de leitura (1289): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21078: Notas de leitura (1289): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Trata-se neste texto da evolução do pensamento de Cabral nos seus últimos anos de vida, das atividades desenvolvidas tanto no campo diplomático, na vida do partido como na atividade operacional. Cabral desenhou a manobra que conduzisse à criação do Estado da Guiné e encostasse o regime de Lisboa à parede, após o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau. Aqui também se fala nas lutas internas e nas tensões que irão desembocar no seu assassinato.
Não me canso de dizer que este trabalho é uma das maiores referências da historiografia, a despeito das discordâncias sobre certos olhares de Julião Soares Sousa. Não posso entender a importância que se atribui a Momo Touré, é para mim incompreensível que se aluda a uma vitória militar no Como, se fale em milícias para defender régulos e na exclusiva política de bombardeamentos de Schulz.
Reparo que a africanização da guerra se iniciou, sem equívocos, com Louro de Sousa, se intensificou com Schulz (basta lembrar as unidades militares que se constituíram no seu tempo no CIM, de Bolama e a formação de milícias cumpria outra lógica que a de proteger régulos). E, como direi mais adiante, as teses agora levantadas sobre o assassinato de Cabral adensam a bruma e a camuflagem sobre algo que muitos guineenses recusam como evidência: foram combatentes da primeira hora, e guineenses, que assassinaram Cabral.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (4)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Estamos no auge da luta armada, Cabral vai se confrontado com a política de Spínola “Por uma Guiné melhor”, consigna que se traduzia em habitação, educação, saúde e alguns desafios sociais par a população guineense. Basta recordar que entre 1969 e 1973 foram construídas mais de 8 mil casas, mais de 60 aldeias melhoradas e milhares de pessoas reagrupadas dentro de uma estratégia que procurava cortar cerce a pressão de guerrilheiros, apara trocar alimentos e obter informações. Como recorda o autor, no domínio das comunicações, foram alcatroadas mais de 500 quilómetros de estradas e no setor da saúde construíram-se e recuperaram-se mais de 50 postos sanitários. As escolas primárias viram duplicar o número de alunos. Entre 1963 e 1974, de modo a proteger o arroz das águas salgadas, foram construídos cerca de 650 diques. Para encontrar uma reposta, Cabral procurou incrementar a produção do Sul e em todas as parcelas onde a presença da guerrilha e populações tivesse uma certa estabilidade e procurou denodadamente ajuda internacional para melhorar a oferta dos Armazéns do Povo.

Com a luta armada a soprar de feição, e após o abandono decidido por Spínola de várias posições, o PAIGC avançou com reformas político-militares e administrativas. Recorde-se que o abandono de Béli e de Madina do Boé fez estender a influência do PAIGC em direção à região do Gabu e ter um domínio quase total da margem direita do rio Corubal; o Corredor de Guileje passou a ser patrulhado pelas tropas especiais e o aquartelamento de Guileje passou o ser o símbolo da presença portuguesa no Sul. Aumentava o espaço de influência do PAIGC e redobravam os problemas. Cabral apostava no combate ao analfabetismo e estimulou a criação de escolas e a difusão de educação nas chamadas áreas libertadas; no domínio da saúde, apareceram postos sanitários, hospitais regionais e setoriais e clínicas ortopédicas, quer no interior do território, quer na Guiné Conacri e no Senegal.

O autor estudou atentamente não só o quadro ideológico em que evoluiu o pensamento de Cabral ao longo da luta armada, como estudou as diferentes movimentações do lado português para obter informações, contar com agentes duplos e infiltrar os seus homens. Repetidamente se ouve falar em Momo Touré como líder de insurreições. Momo era um combatente da primeira hora, foi preso e depois dado como reabilitado. Era empregado de mesa num restaurante de Bissau, o Pelicano. Continua-se sem entender como vários estudiosos falam de Momo Touré como o líder desencadeador da atmosfera envenenada que se vivia em Conacri, em 1972, e como ele preparou a insurreição que culminou no assassinato de Cabral. Tenho para mim que na ausência de provas factuais sobre a organização do complô e o que o inspirava, usa-se miticamente o nome de Momo Touré como se este tivesse dotes político-ideológicos suficientes para mobilizar quem foi mobilizado. Quanto muito, seria um cabeça de turco, tal como nos aparece Inocêncio Cani. Os investigadores continuam perplexos com a falta de provas sobre os autores morais, parece que tudo se sumiu pelo chão abaixo, os documentos dos interrogatórios, a recolha de provas a que teriam procedido as diferentes comissões de inquérito. Nesse sentido, é bem fácil especular sobre os alegados autores morais. Cabral sabia das tensões, ao modelizar a estrutura do PAIGC a partir de 1970 tentava duas coisas ao mesmo tempo: uma descentralização centralizada e livrar-se dos clichés e conotações socialistas e comunistas. Não podendo abrir uma frente de guerra em Cabo Verde, aproveitou esses quadros qualificados, virão a ter uma extraordinária importância nos acontecimentos de 1973: basta pensar nos nomes de Osvaldo Lopes da Silva, Manecas, Silvino da Luz, Agnelo Dantas, entre tantos outros. Cabral sabe que há cansaço entre os seus combatentes, desenvolve de 1971 para 1972 uma extraordinária ofensiva diplomática junto da ONU, da OUA, percorre continentes a denunciar a situação da Guiné, pede à URSS armamento moderno, difunde em todos os auditórios a originalidade revolucionária guineense. Julião Soares Sousa, bem a propósito, também nos fala da como Cabral procurava extrair lições dos graves erros ocorridos depois das muitas independências africanas, estava atento aos riscos do neocolonialismo.

Cabral fora líder incontestado na direção da luta pela libertação das colónias portuguesas. Agora a guerra evoluíra nas três frentes, as suas relações com Eduardo Mondlane estavam eivadas de tensões ideológicas, o MPLA ocupava uma posição modesta no teatro angolano. Enquanto se envolve nessa ofensiva diplomática desenha também a estratégica militar, exige aos seus quadros maior atividade operacional e propõe mesmo a guerrilha urbana. O autor lembra que de 1969 a 1971 houve ataques a Bafatá, Bissau, Bolama e Gabu, mas com consequências mínimas.

Entra-se numa nova fase, a de procurar a proclamação do Estado da Guiné, era uma etapa que segundo o líder fundador iria mudar tudo, Portugal ficaria num grande dilema: sair da ONU e ficar fora da lei ou ficar, reconhecendo a independência do país. Julião Soares Sousa também observa que Cabral pretendia levar a cabo entre Setembro/Outubro de 1972 uma esmagadora ofensiva sobre Guileje e escreve:  
“O objetivo visado era Guileje mas com manobra de diversão sobre Guidage, no Norte, e Gadamael, no Sul, de modo a atrair a atenção as tropas portuguesas e assim atingir o objetivo primordial que era a conquista de Guileje vital do ponto vista logístico e para a segurança das populações do setor de Balana. O aquartelamento de Guileje, na frente de Balana/Quitáfine, era na opinião de Amílcar Cabral, o mais bem fortificado aquartelamento português em 1972. As unidades portuguesas aí estacionadas (duas companhias e infantaria, unidades de cavalaria e artilharia) tinham por missão impedir a utilização da principal via de reabastecimento das forças do PAIGC, a partir de Kandjafra, que aparecia nas cartas militares como Corredor de Guileje. Por isso, o líder do PAIGC estava absolutamente convencido de que com a queda de Guileje tudo à volta cairia. Fazia mesmo depender a derrocada do regime colonial na Guiné de uma eventual queda deste importante campo fortificado, pois aliviaria a pressão do exército português na zona da fronteira, precipitando o desenvolvimento de ações militares e abrindo novas perspetivas para a resolução do conflito”.
Mas entendeu-se não haver condições para essa ofensiva, ela só terá lugar depois do PAIGC possuir mísseis terra-ar. Em simultâneo, na ONU fazia-se mais uma tentativa para Portugal negociar com os movimentos de libertação nacional.

Nesta fase da narrativa, o historiador introduz o novo serviço de informações a cargo de Alpoim Calvão, fala-se em alegados contactos de Cabral com a oposição ao regime de Sékou Touré e estamos agora no olho do furacão das crises internas. Assim se chega ao assassinato de Cabral em Conacri.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21054: Notas de leitura (1288): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21054: Notas de leitura (1288): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Muitos foram os historiadores e investigadores que se debruçaram sobre o pensamento e ação de Amílcar Cabral, basta pensar em Patrick Chabal, Mustafah Dhada ou Lars Rudebeck. Porém, nenhum deles foi tão longe no aprofundamento do estudo da ideologia de Cabral, na análise da gestão da orgânica política e militar do PAIGC, nas tensões internas que se esboçaram entre políticos e militares, sobre qual tipo de socialismo o líder histórico procuraria praticar após a independência.
Julião Soares Sousa é um investigador altamente documentado, usa a propósito testemunhos de participantes e maneja a observação e a dedução em torno do líder histórico com inegável mestria e independência. O que, insiste-se, torna esta obra uma referência incontornável para estudar os fundamentos históricos da Guiné-Bissau a partir da vida e obra de um dos maiores revolucionários africanos de sempre.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (3)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Convém relembrar, telegraficamente, os elementos já biografados, a infância, a formação e os estudos em ambientes cabo-verdianos, a preparação universitária em Lisboa e a conscientização anticolonial; o nacionalismo guineense e como Amílcar Cabral congeminou os fundamentos ideológico-estratégicos da unidade Guiné e Cabo Verde; a passagem à clandestinidade e o exílio, as tensões em Conacri e em Dakar com os outros movimentos de libertação, a acreditação do PAIGC em África e no mundo socialista; a preparação para a luta armada com o auxílio da China e da URSS e de alguns países africanos.

Estamos agora num ponto importante do trabalho de Julião Soares Sousa: o pensamento e a ação de Cabral, a sua originalidade a partir da análise da sociedade guineense, mas também no confronto com o colonialismo português e o modelo montado pelo Estatuto do Indigenato; a sua produção teórica foi manifestamente inovadora sobre o papel da cultura no processo de libertação nacional. A par desta teoria e prática revolucionária, Cabral foi montando dentro dos movimentos de libertação das colónias portuguesas uma ofensiva diplomática em África, nas Nações Unidas, junto dos países comunistas e nos fóruns revolucionários. A luta armada conheceu logo em 1963 o grande sucesso que foi a desarticulação da região Sul e a abertura da frente Norte de tal modo que se chega a 1964 com a presença portuguesa muito reduzida na região Sul, o rio Corubal fica praticamente sem controlo das forças armadas portuguesas e a frente Norte corta o acesso a Bafatá, este eixo vital para o abastecimento do Leste processar-se-á através de Bambadinca até finais de 1969, a partir daí o porto do Xime ganha preponderância. Cabral contava com muito auxílio africano, praticamente não chegou. Este fenómeno teve diferentes causas: a grande rivalidade e proliferação dos movimentos nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde, no início da década de 1960; a vaga de instabilidade política com golpes de Estado e a profunda divisão entre países moderados e os radicais de tendência revolucionária. Cabral não desiste, pede armamento, a URSS torna-se no principal fornecedor, mais tarde serão aceites apoios cubanos e chegar-se-á mesmo, dos anos 1960 para os anos 1970 a receber apoio escandinavo não militar.

Cabral teve que agir com firmeza logo no Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, cortou cerce os abusos contra a população, viu aprovado um plano de reformas e de reorganização que os diferentes estudiosos do PAIGC dão como cruciais para a implantação do PAIGC e que se traduziram por: organização do partido; criação das FARP; reforço das guerrilhas em todo o território; criação do exército popular e das milícias populares. Era também a guerra pela conquista da população numa fase em que as forças armadas portuguesa agiam com grande beligerância, o General Arnaldo Schulz pretendia fazer uma ofensiva militar à custa de bombardeamentos, Lisboa assegurou-lhe um aumento significativo de efetivos e deu-lhe luz verde para começar o processo da africanização da guerra, com a formação de milícias, depois de caçadores nativos e até de forças especiais; além disso, Schulz não descurou a aliança histórica com os chefes islamizados enquanto desenvolvia um plano de ocupação do território, de ofensivas sobre o Morés e outros santuários. Nas Palavras de Ordem, de 1965, Cabral escrevia: “Temos de destruir tudo quanto pode servir ao inimigo para continuar a sua dominação sobre o nosso povo, mas temos ao mesmo tempo que ser capazes de construir tudo o que é necessário para criar uma vida nova na nossa terra”. Note-se que Cabral foi cuidadoso com as destruições, tinha noção que havia infraestruturas indispensáveis para depois da independência, mas não se coibiu de mandar dinamitar pontes que eram estratégicas para o seu inimigo, caso da ponte sobre o rio Gambiel, que ligava o centro localizado em Mansoa até Bafatá. Cabral encorajou as populações das “áreas libertadas” a aumentarem a produção, a prover a alimentação dos combatentes, a venderem produtos no mercado exterior (fundamentalmente na Guiné Conacri) para se adquirirem bicicletas, sal, sandálias, sabão e tecidos. Em finais de 1966, abastecimento agravou-se, os raides da aviação portuguesa atingiam seriamente a produção e as colheitas, foi por esse tempo que se acelerou a criação de armazéns do povo, criados em 1964.

A questão ideológica ia ganhando premência, Cabral tinha a noção que o trabalho político para elevar o nível dos trabalhadores dava amostras de insuficiência, era preciso mobilizar, divulgar palavras de ordem, estar atento aos problemas e aspirações das populações, era esse o trabalho dos comissários políticos e dos quadros competentes. Ele dirá mais tarde e sem ambiguidades: “Podemos derrotar os tugas em Buba ou em Bula, podemos entrar e tomar Bissau, mas se a nossa população não estiver politicamente bem formada, agarrada à luta como deve ser, perdemos a guerra, não a ganhamos”. Será sempre profundamente crítico pelo trabalho desenvolvido pelos agentes responsáveis pela difusão ideológica, pelas confusões e contradições que estes agentes revelavam na hora de aplicar as diretivas do partido.

O historiador mostra claramente que houve lutar internas e crise de liderança em todo o tempo de luta armada: tentativas de formação de outros partidos, tentativas de assassinato de Cabral, as populações e os combatentes davam sinais de desânimo pois os bombardeamentos afetavam os principais celeiros do PAIGC situados no Sul, no Quitáfine. Davam-se deserções, que chegaram a tomar proporções graves, Chico Té chegou a sugerir a prisão dos familiares dos desertores.

Cabral ia sendo sujeito às críticas feitas à sua liderança. A melhor resposta que encontrou foi o seminário que teve lugar em Conacri, de 19 a 24 de Novembro de 1969, ao qual assistiram quadros políticos e militares, velhos e jovens, Cabral não se escusou a abordar as questões quentes e de denunciar racistas, tribalistas, oportunistas no meio dirigente do PAIGC. Foi autoritário e mesmo dogmático com a questão da unidade Guiné e Cabo Verde, quem não concordava devia abandonar as fileiras do partido. Ciente de que o partido estava infiltrado e que o número de informadores crescia, procurou aumentar a segurança e o controlo internos. A partir de 1970 a estrutura do partido conheceu modificações de monta, o líder do PAIGC acabou com a antiga estrutura composta pelo comité central, o Bureau Político, o comité das inter-regiões com a nova estrutura, na cúspide do poder ficavam três membros fundadores do PAIGC: Amílcar Cabral, Luís Cabral e Aristides Pereira.

Suspende-se aqui os dados biográficos de Cabral, veremos proximamente as tentativas de abertura de uma frente de guerra em Cabo Verde, a questão do socialismo e a construção do Estado no pensamento de Cabral e todo o processo diplomático e discussão interna para se chegar à proclamação do Estado da Guiné. Cabral prosseguia o sonho de se chegar à independência e com o reconhecimento do Estado na Guiné-Bissau obter apoios militares que levassem a presença portuguesa ao seu termo. Será nesse contexto que se urdiu um enormíssimo complô que levará ao seu assassinato, cujos autores morais ainda estão por esclarecer.

(Continua)
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Notas do editor:

Postes anteriores de:

11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
e
18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21029: Notas de leitura (1287): “Guerra e política, em nome da verdade, os anos decisivos”, por Kaúlza de Arriaga; Edições Referendo, 1987 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dada a extensão e a importância que se confere a este livro, justamente premiado com o Prémio Fundação Gulbenkian História Moderna e Contemporânea de Portugal, aborda-se neste texto a passagem de Cabral para a clandestinidade, a sua ligação íntima ao movimento anticolonial português, a sua instalação em Conacri, a tentativa de conversações com Lisboa, a procura de apoios, os preparativos militares, a organização ideológica do líder fundador e a sua visão de unidade Guiné Cabo Verde e o advento da luta armada.
Se o segundo semestre de 1962 foi fundamentalmente ditado por atos de sabotagem que gradualmente desarticularam o Sul da província, 1963 assume-se como o tempo da instalação de duas frentes, a Sul e a Norte e a tentativa falhada na revisão do território, os excessos rápidos foram tais que Cabral chegou a acreditar que a vitória estava próxima. Mas a reação de Lisboa foi enorme, o dispositivo militar crescerá exponencialmente. Como veremos com o desenvolvimento da luta armada.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (2)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Amílcar Cabral abandona discretamente Lisboa e em 1960 vamos encontrá-lo no Norte de África em reuniões relacionadas com as lutas anticoloniais da chamada África portuguesa. Segue depois para Conacri, cabe-lhe montar a organização do PAIGC, esboçar uma ofensiva diplomática que permita formação de guerrilha para muitos jovens, acesso a armamento, apoio financeiro, e muito mais. Julião Soares Sousa descreve detalhadamente os combates espinhosos travados com organizações nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde em Conacri e em Dakar. Rafael Barbosa é o mobilizador dentro da Guiné Portuguesa. Em Dakar e Conacri o PAIGC goza de enorme hostilidade e vai vencê-la. No plano diplomático, e a nível do MAC (Movimento Anticolonialista), Cabral vai capitanear informações sobre o colonialismo português, terá a maior importância a sua viagem a Londres, trabalha ativamente na frente internacionalista, em grande unidade com figuras como Mário de Andrade e Viriato da Cruz, políticos de proa do MPLA.

O autor consagra ampla reflexão à problemática da unidade africana e à unidade Guiné e Cabo Verde, estuda-as num certo paralelismo, encontra pontos de simbiose. Os sonhos de unidade africana cairão praticamente todos na água. Cabral concebe um projeto de união sub-regional, alegando que guineenses e cabo-verdianos partilhavam uma origem ancestral comum, referia-se à circunstância dos escravos transportados para as ilhas terem sido exclusivamente originários da Guiné, que havia identidade administrativa desde o século XVI e até 1879 entre as duas colónias. Toda a documentação que irá elaborar na viragem da década de 1960 insiste nesta identidade de interesses, vai encontrar enorme oposição. Por exemplo o cabo-verdiano Leitão da Graça defendia que não havia ligações históricas entre aquelas duas colónias, dizendo mesmo: “Na época colonial, a Guiné e Cabo Verde estiveram ligados organicamente mas para o interesse do colonialismo”. Cabral procura replicar dizendo que os cabo-verdianos jamais poderiam comandar os destinos da Guiné, seriam os guineenses a decidir depois da independência quem iria dirigir o país. Estava lançada uma semente de surdo descontentamento, passava a ser tabu mencionar-se as relações rancorosas entre guineenses e cabo-verdianos, estes eram os mandantes do poder colonial, chefiavam a administração, possuíam negócios, eram inequivocamente racistas. O descontentamento ficará adormecido até aos acontecimentos brutais de 20 de Janeiro de 1973, em Conacri.

Conquistada a liderança do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde, apoiado por Sékou Touré, Cabral escreve a Salazar propondo conversações para a independência das colónias, nunca obterá resposta. Em Dakar, o PAIGC não tem uma vida fácil, Leopoldo Senghor apoia a FLING e o MLG, estes dois partidos irão fundir-se mais tarde. De 1961 para 1962, a repressão sobre os militantes do PAIGC na Guiné enche as cadeias, é impressionante a vaga de prisões, em Março de 1962 Rafael Barbosa será preso, mas a subversão não para, a partir do segundo semestre de 1962 todo o Sul da Guiné entra em tumulto. Usando a expressão do autor, Cabral e o PAIGC entraram na fase do “Estado em construção”. Aqui Soares Sousa detém-se longamente sobre o pensamento ideológico de Cabral em matérias como o imperialismo, o neocolonialismo, a cultura e libertação nacional e como esta já estava a gerar cultura e identidade específicas.

Escreve ao autor que até Janeiro de 1963 a estratégia de Cabral amparava-se na ideia do restabelecimento da legalidade internacional, do direito dos povos á autodeterminação e à independência. Mas foi incitando uma atmosfera de subversão, tinha poucas ilusões de que Salazar aceitasse os ventos da história, a onda da descolonização. A violência e a luta armada foram-se gradualmente substituindo aos métodos pacíficos, começaram os preparativos para o início da guerra. Cabral era simultaneamente um marxista típico e atípico, aceitava a parte funcional da ditadura do proletariado mas tinha uma visão própria do proletariado, da vanguarda pequeno-burguesa mas dizia sem ambiguidade que “por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto”. Cabral estudava e mandava estudar a estrutura social guineense, as sociedades horizontais e as verticais, as razões que levavam Fulas e Mandingas a apoiar os portugueses, a posição ambivalente dos comerciantes e dos camponeses, o seu apreço pelo campesinato Balanta. Entendia que a política de mobilização na Guiné não podia incidir sob os mesmos princípios dogmáticos adotados na Argélia ou na China. Muito menos podia ser justificada a luta de libertação com base em conceitos sobre o colonialismo ou o imperialismo. Na Guiné, o problema da alienação de terras nunca se colocou. “Para que a mobilização produzisse os resultados desejados devia incidir sobre aspetos da realidade que fossem inteligíveis para as massas. A atenção devia estar virada para os seguintes problemas: o baixo preço dos produtos agrícolas, a obrigatoriedade de pagamento de impostos, os abusos perpetrados pelos funcionários administrativos. Não foi por acaso que a subversão eclodiu justamente em zonas controladas por companhias monopolistas e em terras predominantemente habitadas por Balantas”.

Logo em 1961, quando o MLG atacou em Julho S. Domingos, Cabral se apercebeu que era indispensável acelerar o processo preparatório militar. Nesse ano os primeiros quadros partiram para a China. Marrocos e o Gana dotaram o PAI/PAIGC com as primeiras armas e munições. Depois da China, Moscovo tornar-se-á no principal aliado e fornecedor militar. Em Agosto de 1962 as sabotagens ganharam expressão no Sul, foram o antecedente próximo da luta armada. Esta inicia-se formalmente em Janeiro de 1963, eivada de dificuldades, ainda pouca preparação militar, armamento muito deficiente, processos intimidatórios que Cabral irá punir no ano seguinte, no congresso de Cassacá. A surpresa da estratégia utilizada foi muito grande, o dispositivo militar português instalara-se a contar com refregas nas fronteiras. E a seguir ao caos instalado na zona Sul que levou o Brigadeiro Louro de Sousa a escrever para Lisboa que o controlo era praticamente total por parte do PAIGC com exceção das povoações junto aos rios, a escalada ofensiva estendeu-se para a chamada Frente Norte, Cabral contava que a aceleração das sabotagens desarticulasse por completo a economia colonial, designadamente a monocultura do amendoim. Osvaldo Vieira e Francisco Mendes vão para a zona do Morés e são bem-sucedidos. A Frente Leste abrirá mais tarde, mas os relatório militares portugueses dão conta de situações muitíssimos graves, caso do Corubal que deixou praticamente de ser navegável. A luta armada estava de pedra e cal. Lisboa é forçada a mobilizar cada vez mais batalhões para a Guiné. No interior, PAIGC e as populações aliadas dos portugueses disputam-se encarniçadamente.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)