1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2021:
Queridos amigos,
Quando se pretende biografar uma figura denominada herói lendário, um combatente cumulado pelas mais altas condecorações portuguesas, impõe-se ponderar uma consulta a documentos probatórios, irrefutáveis, socorrer-se do contraditório, ir aos arquivos, quando se pretende uma biografia histórica, não é o caso do livro de Jorge Monteiro Alves que enveredou por uma biografia informal, aqui correm-se inúmeros riscos, suscitam-se imensas dúvidas, é sempre o herói quem comenta as suas façanhas, e persistem as lacunas, é indispensável que a historiografia entre em ação. Mas não se pode retirar o mérito, é o primeiro trabalho jornalístico sobre um complexo personagem sobre o qual há muito a investigar.
Um abraço do
Mário
Biografia informal de Marcelino da Mata, um projeto para entender um herói guineense
Mário Beja Santos
Uma biografia, por definição, pauta-se pela evidência científica: arquivos, consulta de toda a documentação disponível, audição de relatos apaixonados, desapaixonados, sob o efeito do contraditório; contextualização do biografado no seu tempo e pela sua obra; extensa bibliografia, notas das consultas, etc. O trabalho do jornalista Jorge Monteiro Alves sobre Marcelino da Mata, intitulado "No mato ninguém morre em versão John Wayne, Guiné o Vietname português", LX Vinte e Oito, 2021, é uma biografia informal, discorre sobre o personagem, o autor marca as suas distâncias, procura mesmo contextualizar o guineense mais condecorado do Exército Português no quadro da luta armada; mas, como é evidente, é trabalho lacunar, reconheça-se o mérito de procurar retratar o herói no seu tempo, saúde-se a primeira obra sobre alguém que suscita incomensurável admiração ou infindáveis reprovações e repulsa pelos métodos adotados na atividade de combatente.
O contraditório é elementar, tão elementar como a investigação. Julião Soares Sousa, o importante biógrafo de Amílcar Cabral, ousou desfazer lendas, contestar a data da fundação do PAIGC, pôr a nu as pesadas contradições na ideologia do líder que bem procurava camuflar a existência de uma discordância histórica entre cabo-verdianos e guineenses. Tendo Marcelino da Mata pensado em aliar-se ao PAIGC, fruto das represálias que este exerceu na sua família (mataram-lhe o pai e a irmã, grávida de 8 meses), era indispensável apurar a verdade dos factos, confirmar as execuções da primeira e segunda mulher, seguramente que houve testemunhos. Os depoimentos da sua vida são dados por ele próprio. Parece que a ebulição subversiva surgiu de modo espontâneo, e por obra e graça de um acaso tudo começa em Tite em 23 de janeiro de 1963. Ora Marcelino da Mata foi incorporado em Bolama, fez a tropa pelo irmão, será que não há nenhum testemunho sobre este tempo, e depois como condutor-auto e depois no BCAÇ 356?
Monteiro Alves dá-nos uma súmula do dispositivo militar, notas sobre a economia da província ultramarina, e assim chegamos aos efetivos. Temos o general Spínola a reivindicar mais meios (parece que os dois comandantes-chefes procederam igualmente assim, mas foram menos felizes na contemplação, fala-se no novo conceito de guerra trazido por este homem providencial, faz-se o contraponto com o triplo de poder de fogo do PAIGC face a uma unidade militar portuguesa, enfim, nada ficamos a saber sobre o comportamento das nossas forças até 1968. Providencialmente, ficamos a saber como atuavam as nossas forças tudo por causa do que diz Marcelino da Mata: a Batalha do Como, onde ele fez o tirocínio com os Comandos; o herói Marcelino da Mata está em Brá no Centro de Instrução de Comandos da Guiné Portuguesa, em julho de 1964, o Governador e Comandante-Chefe chama-se Arnaldo Schulz, Marcelino colabora com os Comandos, os Gatos, os Fantasmas, os Panteras. E no final do ano engendram um modo de operar, quer fazer operações com um escasso número de militares. Monteiro Alves entende que deve interpolar permanentemente o que faz o herói com as ofensivas do PAIGC e o que se passa na cena internacional. Temos depois a criação dos Roncos de Farim, uma tropa especial lendária a que ele se agregou, tinha à frente um alferes destemido, Filipe José Ribeiro, e Marcelino da Mata fazia parceria com um Mandinga não menos destemido, Cherno Sissé. Chovem as condecorações. Os Roncos chegam a Cumbamori, em dezembro de 1967, estava lá Luís Cabral, viveu uma grande inquietação, mas safou-se. Monteiro Alves vai citando Marcelino da Mata em exclusivo, não dá guarida a outros depoimentos.
Foi várias vezes ao Senegal, em agosto de 1967 resgatou os homens da CCAÇ 1546, que tinham sido apanhados à mão, o prémio foi a Torre e Espada. É 2.º Sargento, criou o seu próprio grupo, os Vingadores. Anda numa completa dobadoira, Schulz parte, Spínola chega e o autor desenvolve as alterações introduzidas pelo novo Comandante-Chefe, os Vingadores sempre no ativo. Cria-se a primeira Companhia de Comandos Africana, a africanização da guerra conhece novos desenvolvimentos. Dá-se a Operação Mar Verde, Marcelino da Mata participa, ataca o quartel da Guarda Nacional em Conacri, é pouco económico no autoelogio:
“Eu arranjei uma metralhadora e comecei a fazer fogo. Aquilo era como disparar contra carneiros. Só à minha conta, numa contagem oficial, ficaram lá 94 estendidos, mas devem ter sido muito mais. Quem ficou aborrecido comigo foi o Calvão, pois alguns dos mortos eram oficiais superiores que simpatizavam com a FLNG e que se deviam juntar à revolta. Mas eu não sabia de nada disso. Nem ninguém do meu grupo. Quem me levava essas instruções era o alferes. Mas como ele foi abatido logo à entrada do quartel…”.
Nova condecoração para Marcelino da Mata, graduado em alferes com a especialidade de Comando. Monteiro Alves há ocasiões em que mostra que não teve acesso a fontes documentais, refere calmamente que o PAIGC derrubou um helicóptero no rio Mansoa em 25 de julho de 1970, que vitimou quatro deputados, não foi nada assim, o helicóptero foi metido no golfão em pleno rio, o piloto não conseguiu a manobra correta para dali sair, foi tudo puro acidente.
O autor volta a espraiar-se sobre a cena internacional, Marcelino tinha sido enviado para Cabora Bassa em 1971, Spínola mandou-o regressar, veio para o Centro de Operações Especiais, foi nessa altura que nasceram os Vingadores, Marcelino da Mata conduz uma verdadeira máquina de combate. Estamos chegados a 1973, entram em cena os mísseis Strela, Marcelino tinha anteriormente colaborado na Operação Grande Empresa, a ocupação do Cantanhez, soma louvores e cruzes de guerra. São referidas as ofensivas do PAIGC e a nova ida de Marcelino da Mata a Cumbamori. A 28 de abril de 1974, Marcelino da Mata cai ferido e é mandado para o Hospital de Bissau e evacuado para Lisboa a 2 de maio. A Guiné caminha para ser um país independente. Segue-se uma frase descabelada do autor:
“As últimas tropas portuguesas saíram da antiga província. Mas não trouxeram consigo os Comandos e os Fuzileiros Africanos. A traição portuguesa equivaleu a uma pena de morte para milhares de homens que deram tudo pela bandeira verde rubra”.
Se acaso tivesse consultado a documentação, verificaria que foram efetuadas diligências para trazer todas as tropas especiais, recusaram, quiseram ser remunerados até dezembro. Está-se em crer que um jornalista sabe que existe o Direito Internacional, não se pode interferir na vida interna de um Estado autónomo, pergunta-se que mais diligências poderiam ser feitas a não ser protestar pela diplomacia. Insiste-se na tónica do abandono sem minimamente querer apurar a verdade dos factos.
A biografia informal de Marcelino da Mata certamente que irá despertar novos trabalhos que permitirão abrir luz sobre a complexidade do personagem, já que o seu heroísmo foi incontestável, como o seu destemor, o melhor será aprofundar recorrendo às fontes documentais e aos testemunhos de todas as latitudes. Enquanto é tempo, que já é muito escasso para quem conheceu e combateu ao lado do herói da lenda.
Imagem retirada do Diário de Notícias, com a devida vénia
____________Notas do editor
Vd. postes de:
24 de Agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22481: Notas de leitura (1374): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte I (Luís Graça)
e
4 de Setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22513: Notas de leitura (1377): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte II (Luís Graça)
Último poste da série de 11 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22533: Notas de leitura (1380): "Um caminho de quatro passos": temos um novo escritor, o António Carvalho passa o teste, e espero que seja com louvor por unanimidade e aclamação dos seus leitores (Luís Graça)