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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22938: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte III: de 40 a 59

 


Uma caneca que ainda vai fazer furor entre as bajudas da Guiné-Bissau, na próxima incarnação do "alfero Cabral": "Kiss me, I'm an Alfero" [Beija-me, sou um Alfero]... Imagem que ilustrou a "estória" nº 56, acompanhada da seguinte legenda: "Quando eu voltar à Guiné, em vez dos 'corpinhos' 
[, sutiãs]... , vou oferecer às Bajudas, estas belas canecas"...


Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Lista das estórias cabralianas, por ordem numérica e cronológica - Parte III: De 40 a 59 (*):

São "estórias"publicadas no nosso blogue, entre novembro de 2008 e maio de 2010. 

Jorge Cabral (1944-2021), ex-alf mil at art, cmdt do Pel Caç Nat 63 (Fá Mndinga e Missirá, 1969/71), era muito querido e popular entre a malta da Tabanca Grande: basta referir, por  exemplo, que o seu poste de parabéns,  do dia 6/11/2009 (P5221) teve 1531 visualizações e 30 comentários.

E a propósito, da "estória" nº 56 (Cum caneco, alfero apanhado à unha!), escreveu na altura o nosso editor LG o seguinte:

(...) "A cabraliana, a estória cabraliana, é já um género literário, reconhecido e estudado na Universidade. Daqui uns anos alguém fará douramentos sobre este material altamente revelador da dissonância cognitiva e falta de alinhamento dos bandos que, na Guiné, por detrás do arame farpado, defendiam a honra da Pátria (Bruno dixit)...

Como se pode deduzir da leitura de mais esta cabraliana, o boato (desmoralizante) tinha um efeito dissolvente no moral das nossos tropas, como um dia opinou um PIDE/DGS à minha frente, no Café do Teófilo, em Bafatá. Como é possível imaginar o nosso Cabral, o único, o verdadeiro (porque o outro era um renegado...), apanhado à unha e depois em altos conciliábulos e quiçá orgias com o Corca Só e a sua corja de Madina/Belel ?!...

Ainda bem que o Cabral tem, por fim, a oportunidade histórica e soberana de, aqui, no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, lavar a sua honra e reafirmar o seu impoluto patriotismo. A guerra da Guiné foi demasiado real para a gente sequer poder ficcioná-la ou fazer humor negro, com ela, com os seus heróis e com as suas vítimas.(...)



(...) Claro que lembro do Tosco! Havia pretas, mulatas e até uma chinesa. Todas, mais os copos, trataram-me da saúde. Entrava sempre a coxear, por via dos descontos… Mas o meu preferido era o Bolero, onde jantava no primeiro andar, antes do Tango em baixo, tocado a rigor por uma orquestra de cegos. Ainda lá fui após o 25 de Abril. A mesma orquestra, as mesmas putas, mas a música mudara – Todos em coro cantávamos a Internacional (...).

13 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3446: Estórias cabralianas (41): O palácio do prazer, no Pilão (Jorge Cabral)

(...) De Bissau conheci muito pouco. Apenas o Pilão, e neste Os Dez Quartos, um palácio do Prazer. Era o local ideal para um sexólogo, pois tendo todos os quartos o mesmo tecto e paredes incompletas, ouviam-se os murmúrios, os gritos, os ais e os uis, deles e delas, em plena actividade. Sempre que lá fui, abstraí-me um pouco da minha função e dediquei-me à escuta, tentando até catalogar os clientes por posto, ramo, forma, jeito, velocidade e desempenho (...)

26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3519: Estórias cabralianas (42): As noites do Alfero em Missirá e uma estranhíssima ementa (Jorge Cabral)

(...) Eram calmas as noites do Alfero? Deviam ser, pois assim que pôs os pés em Missirá, cessou imediatamente a actividade operacional dos seus vizinhos de Madina. Chegou-se a pensar que o Comandante Corca Só entrara em greve, mas no Batalhão acreditava-se num oculto mérito do Cabral. Aliás, estando ainda em Fá e esperando-se um ataque a Finete, o Magalhães Filipe para aí o mandou, sozinho, reforçar o Pelotão de Milícias. Lá passou oito dias, dormindo na varanda do Bacari Soncó, que o alimentou a ovos cozidos (...).

6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3572: Estórias cabralianas (43): O super-periquito e as vacas sagradas (Jorge Cabral)

(...) Cumbá, a terceira mulher do Maunde, ainda uma menina, sentiu as dores de parto, ao princípio da noite. Às duas da manhã sou lá chamado. Está muito mal e as velhas não sabem o que fazer. Eu também não. Vamos para Bambadinca. Chegamos, mas Cumbá morre e com ela a criança não nascida. Amparo o Maunde, que chora e grita:-Duas vacas, Alfero, duas vacas! (...)

27 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3808: Estórias cabralianas (44): O amoroso bando das quatro não deixou só saudades... (Jorge Cabral)

(...) O Amoroso Bando das Quatro deixou-nos muitas saudades. Mas que noite agradável ... até sonhámos com elas. Só que ainda nem três dias haviam passado, já recebíamos tratamento à fortíssima infecção que nos atingira o dito e adjacências. Graças à Penicilina, o caso seria em breve esquecido, pois afinal tinham sido apenas ossos do ofício, os quais segundo alguns até mereceram a pena... Porém, e estranhamente, os sintomas começaram a surgir nos africanos, soldados e milícias, os quais não tinham usufruído da benesse (...).

2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3963: Estórias cabralianas (45): Massacres e violações (Jorge Cabral)

(...) Corria o ano de 1968, quando prestes a concluir o Curso, não resisti ao convite do Estado – Férias pagas em África, com grande animação e desportos radicais. Primeiro o estágio-praia para os lados da Ericeira, findo o qual, tive um grande desgosto. Tinham-me destinado ao turismo intelectual – secretariado. Felizmente as cunhas funcionaram e consegui ser reclassificado em atirador, tendo passado a frequentar no Alentejo, o estágio-campo. Terminado este, ainda vivi muitos meses de tristeza e inveja ao ver os meus camaradas integrarem satisfeitos numerosas excursões, as quais iam embarcando (...).


31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4114: Estórias cabralianas (46): Inspecção Militar: E todos os tinham no sítio... (Jorge Cabral)

(...) Pois, também eu naquela manhã de Junho me dirigi à Avenida de Berna, ao Quartel do Trem Auto, onde hoje funciona a [Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da] Universidade Nova [de Lisboa].Éramos mais de cem, altos e baixos, loiros e morenos, alguns mancos, pitosgas muitos, um quase corcunda, três gagos e dois tontos. Mandaram-nos despir e pôr em fila, numa literal e verdadeira bicha de pirilau. (...)



(...) Calma, simpática, acolhedora, a Vila de Vendas Novas. Bom vinho, petiscos, raparigas bonitas. Que mais podia aspirar o Aspirante? No Quartel fazia tudo, isto é, nada. Acumulara cargos, Justiça, Acção Psicológica, Revista, Cinema e ainda os discursos da Peluda.Cumpria gostosamente um peculiar horário. Após o toque de alvorada, às vezes de ressaca, de cara por lavar e barba por fazer, corria para a Formatura Geral, onde... passava revista ao Pelotão. Meia hora depois, abancava no Bar e tomava um lauto pequeno almoço, antes de regressar à cama. (...)


8 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4155: Estórias cabralianas (48): A Bandolândia ou uma aula de história em... 2092 (Jorge Cabral)

(...) O Cidadão – Aluno XI7 frequenta a décima semana do Curso Unificado – Primário, Secundário, Universitário, o qual segundo as normas da Declaração de Cacilhas, lher irá conferir o Diploma da Sabedoria.Claro que, quando entrou na escola, já dominava muitas das matérias que antigamente demoravam anos a aprender, pois logo em criança lhe implantaram um chip com todos os conhecimentos básicos. Porém XI7, hoje chegou à aula cheio de dúvidas. É que encontrou uma fotografia do seu trisavô, vestido com uma farda e empunhando um instrumento, talvez uma arma.(...)

12 de Maio de 2009> Guiné 63/74 - P4326: Estórias cabralianas (49): Cariño mio... Muy cerca de ti, el ultimo subteniente romántico (Jorge Cabral)

(...) Dois dias depois de chegado a Bambadinca em meados de Junho de 69, fui mandado montar segurança no Mato Cão. Periquitíssimo, cumpri todas as regras, vigiando a mata de costas para o rio, sem sequer reparar na beleza da paisagem.Mal sabia então, que ali havia de voltar dezenas de vezes, durante o ano que passei em Missirá. Pelo menos uma ida por semana para ver passar o Barco, no que se transformou numa quase agradável rotina.(...)


(...) - Meu Alferes! Meu Alferes! Já chegou o Senhor Abade! - O cozinheiro Teixeirinha, todo eufórico, gritava, à porta do meu abrigo.- Abade - pensei comigo - , o Puím?Magro, simples, humilde, o único Capelão que conheci na Guiné, viera de sintex e, antecipando-se, não esperara por ninguém, entrando no Quartel. Logo após o descanso, a missa foi celebrada, mesmo ao lado da Cantina, no local da Escola. Fiéis, sete, dois comungantes e o Padre, de paramentos verdes. (...)


(...) Tanto nas Tabancas Fulas como nas Mandingas, o Alfero actuava à vontade com as Bajudas, perante a complacência dos Homens e Mulheres Grandes… Aliás não ia além de um acariciar voluptuoso, acompanhado com promessas de encontros no Quartel. Na altura teria merecido o cognome de Apalpador. (...) Em Novembro de 1969, visitou uma Tabanca Balanta, Bissaque [, a norte de Fá, ], e ficou deslumbrado com a beleza das Bajudas, designadamente peitoral…

22 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4723: Estórias cabralianas (52): Em 20 de Julho de 1969, também eu poisei na Lua... (Jorge Cabral)

(...) Na Guiné, há mês e meio, mas já em Fá, havia nessa tarde muito calor. O pessoal dormia e toda a gente procurara a aragem possível. Em silêncio, o Quartel repousava… Eu porém, em tronco nu, saíra, a caminho da fonte mais pequena. Resolvera isolar-me, para escrever, calculem, um poema… Lá chegado, ainda nem escolhera um poiso confortável, quando vejo surgir, não sei de onde, um vulto de mulher, apenas com uns panos, caindo da cintura. (...)

28 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4750: Estórias cabralianas (53): A estranha doença do soldado Duá (Jorge Cabral)

(...) Quando uma noite, em Missirá [, o último destacamento de Bambadinca, a norte do Rio Geba, no Cuor,] o Alfero passava ronda, ficou estupefacto, ao constatar que todos os Soldados de Sentinela se encontravam acompanhados das respectivas Mulheres.- Mas que se passa? – indagou…- É por causa da doença! O Duá apanhou a doença do Victor!- Doença do Victor? (...)

(...) Nem um mês tinha de Guiné e já andava a experimentar todas as mezinhas recomendadas pelo Nanque . Bem, todas não. Nunca bebeu a primeira urina da manhã, remédio infalível para o estômago mas ainda no outro dia o receitou a uma distinta senhora, que calculem, se zangou com ele, por se pensar gozada. Tomou porém todas as demais, desde afrodisíacos a um chá para a tristeza, que o deixou eufórico durante quase toda a comissão… Apesar de tantos tratamentos, a verdade é que o Alfero gozava de excelente saúde. (...)

17 de Outubro de 2009 >Guiné 63/74 - P5117: Estórias cabralianas (55): Marqueses e murquesas ou... Peludas e Peluda... (Jorge Cabral)

(...) Há mais de 30 anos, que montei Escritório [de advogado] na Passos Manuel, entre o Jardim Constantino e o Intendente. Um bom local, com velhos da sueca, sem-abrigo alcoolizados e fanadas matronas em pré-reforma. Eu gosto. Aqui na Rua, já quase todas as lojas mudaram de ramo. Ultimamente, surgiram os Gabinetes de Fotodepilação. A propósito e não sei bem porquê, pois os pensamentos tal como as palavras são como as cerejas, lembrei-me primeiro de Pero Vaz de Caminha e do desembarque em Terras de Vera Cruz, quando os marinheiros depararam com as índias nuas, mostrando “suas vergonhas tão altas e cerradinhas”. E depois da Guiné. De uma espantosa conversa ao serão. O Alferes, os Furriéis, os Cabos, como de costume, falavam de tudo e de coisa nenhuma… Nessa noite, discutia-se um tema interessante – pêlos púbicos. Delas, claro está (...)

28 de Outubro de 2009 > Guiné 53/74 - P5172: Estórias cabralianas (56): Cum caneco, alfero apanhado à unha! (Jorge Cabral)

(..) Há uns dias telefonou-me o nosso Amigo Durães [, da CCS/do BART 2917, Bambadinca, 1970/72]. Estava em Setúbal, com um ex-cabo do Pelotão de Intendência de Bambadinca, o qual lhe jurava que o Alferes Cabral de Missirá havia sido, em 1971, apanhado à mão, quando regressava ao seu Destacamento.

Desaparecido durante dias, fora muito bem tratado pelo pessoal de Madina, passando a não ser incomodado pelos Turras. Garantia o homem da Intendência, a absoluta veracidade do evento, conhecido por todos os seus Camaradas. Queria o Durães saber se eu confirmava o facto. (...)


22 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5522: Estórias cabralianas (57): As duas comissões do Alfero... ou a sua dolce vita em Bissau, segundo a Avó Maria e a Menina Júlia (Jorge Cabral)


(...) A foto do Alfero, fardado de Alferes, no cais do Xime, comprova o que Avó Maria sempre disse. O seu neto Jorge deu-se muito bem na Guiné. Até porque, para ela, nunca saiu de Bissau, que devia ser igual à Lourenço Marques dos anos trinta, quando por lá passou. Essa a razão porque o Alfero, cumpriu simultaneamente duas comissões, uma em Fá e Missirá, outra na capital frequentando os bailes do Governador, os quais descrevia com pormenor em longas cartas, nas quais também falava das eloquentes homilias que ouvira na Sé Catedral. (...)


26 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5889: Estórias cabralianas (58): O Dia do Patacão e a Dívida do Alfero (Jorge Cabral)

(...) Tenho a certeza que os primeiros cabelos brancos do Alfero lhe nasceram nos dias do Patacão.
No final de cada mês, deslocava-se a Bambadinca a fim de levantar o dinheiro para pagar os ordenados aos Militares do Pelotão e aos Milícias. Era o dia do Patacão, ansiado por todos e ainda mais pela multidão de credores, que desde manhã acorria ao Quartel. Usurários, Pré-Sogros e Sogros, Batoteiros Profissionais, Dgilas, Alcoviteiros, Fanatecas, Músicos… havia sempre alguém à espera que o Alfero liquidasse as dívidas dos seus homens. Todos devedores, incluindo o Alfero, que prometera pagar, em prestações suaves, a conta do Fontória, onde em férias, numa noite, oferecera de beber a todos e terminara na Esquadra da Praça da Alegria. (...)


10 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6364: Estórias cabralianas (59): Notícias do Ano 2050, quando formos todos UPV e morarmos num Velhil (Jorge Cabral)


(...) Tenho como sabem, uma máquina do tempo, na qual viajo ao passado. Porém hoje a máquina avariou e em vez de recuar os quarenta anos programados, avançou e eis-me aqui no ano de 2050. Estou vivo e ainda trabalho pois agora já ninguém tem direito à Reforma. Exerço as minhas funções no Instituto da Promoção da Pobreza. Preparo um Estudo sobre o Empobrecimento Lícito e o certo é que já sei as conclusões – empobrecer é legítimo, justo, lícito e patriótico. (...)


___________

Nota do editor:


4 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22874: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica,  das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte I: de 1 a 19


domingo, 9 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22891: Antologia (80): O Natal, mesmo na guerra, é quando um homem quiser (e puder)... (Jorge Cabral, 1944-2021)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Missirá > Pel Caç Nat 63 > 1970 ou 1971 > O Alf Mil At Art Jorge Cabral mais o seu amigo Malan.

Foto (e legenda): ©  Jorge Cabral (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. As mensagens que acompanhavam as  "estórias cabralianas" eram sempre curtas, para não dizer telegráficas. Como esta que acompamnhou a "estória cabraliana" nº 30 (Natal em Novembro). (*)

Querido Amigo, Para ti e todos os Tertulianos, o Bom, o Melhor, o Óptimo!

Estar vivo é já celebrar o Natal!

Abraço Grande
Jorge

PS - Junto Foto. Regressado de uma operação, tinha sempre à minha espera o meu Amigo Malan


Republico a "estória" como homenagem ao nosso "alfero Cabral" (**), o "alter ego" de Jorge Cabral (1944-2021).  A sua sensibilidade humana e o sua capacidade de contar uma pequena história em meia dúzia de linhas continuam a surpreender os seus leitores e admiradores...  "Um Natal em Novembro", chamou-lhe. Em plena guerra. No regulado do Cuor, em "terra de ninguèm". Afinal, o Natal, mesmo na guerra, é quando um homem quiser (e puder). Um texto de antologia (***).


2. Estórias cabralianas (30): Um Natal em Novembro

por Jorge Cabral


Amanheceu igual, só mais um dia em Missirá. Para o Mato Cão, vai o Alferes, uma secção, e o maqueiro Alpiarça. É lá chegar, esperar, ver o barco e voltar. Não há tempo para o sonho – do outro lado nem Gaia, nem Almada…

Já estamos de regresso, ouvimos restolhar. Vem aí gente. Neste lugar só podem ser os turras. Claro que, como sempre, o Alferes empunha apenas o seu pingalim e, em vez do camuflado, enverga camisa branca e calções de banho.

Paramos, agachamos, aguardamos. Porra, e se são muitos? Apanhado à mão, assim vestido, pensa o Alferes… Mas não, são três mulheres e um bebé. Doente, muito doente, informa a jovem mãe. Quem são, de onde vêm, ninguém pergunta.

Monta-se segurança, rodeando a mãe, o filho e o Alpiarça. O bebé está muito mal, quase não respira.
- Dá-lhe soro, aspira o muco, alivia-lhe os brônquios – grita o Alferes, subitamente médico.

Arrebita o bebé, elas agradecem e partem. Não perguntou o Alferes para onde, mas não era difícil adivinhar…

Foi em Novembro, estava calor, o Menino era Braima e não Jesus, nenhuma estrela iluminava o céu, e o Alferes não se parecia com os Reis Magos. Porém ainda hoje, ele acredita, que ali no meio do mato, naquela tarde, aconteceu Natal.

Jorge Cabral

_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2369: Estórias cabralianas (30): Um Natal em Novembro (Jorge Cabral)

(**) Vd. poste de 8 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22890: "Alfero Cabral cá mori": Lista, por ordem numérica e cronológica,  das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte II: de 20 a 39

sábado, 8 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22890: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte II: de 20 a 39




Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Regulado do Cuor > Missirá > Pel Caç NAT 63 > 1971 > O António Branquinho (simulando tocar um instrumento tradicional,talvez um "nhanheiro"...) com uma bajuda e o Amaral (sentado). Segundo a oportuna observação do nosso amigo e consultor permanente para as questões étnico-linguísticas, Cherno Baldé, "o instrumento, na lingua fula, chama-se 'Hoddu', é mais antigo e, provavelmente, serviu de inspiração para a criacão do Kora dos Mandingas.


Foto: © António Branquinho / Jorge Cabral (2007). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Bafatá  > Sector L1 (Bambadinca) >  Missirá > 1971 > Pel Caç Nat 63 > Os furriéis milicianos do "alfero Cabral": da esquerda para a direita, Pires, Branquinho e Amaral, o saudoso Amaral. O António Branquinho é irmão do Alfredo Branquinho, membro da nossa Tabanca Grande.

Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Lista das estórias cabralianas, por ordem numérica e cronológica - Parte II: De 20 a 39 (*):


20 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1679: Estórias cabralianas (20): Banquetes de Missirá: Porco turra e Vaca náufraga (Jorge Cabral)

(...) Em Missirá comíamos, praticamente todos os dias, arroz acompanhado ora de pé de porco, ora de atum ou cavala, com muito pão e sempre altas doses do insípido vinho quarteleiro, o qual, segundo se dizia, era cortado com cânfora, para diminuir os ímpetos. (...)

24 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1696: Estórias cabralianas (21): O Amoroso Bando das Quatro em Missirá (Jorge Cabral)

(...) Nos Destacamentos em que vivi, todos eram bem recebidos, à boa maneira da gente da Guiné, cuja cativante hospitalidade foi muitas vezes confundida com subserviência ou portuguesismo. Djilas, batoteiros profissionais, artesãos, doentes, feiticeiros, alcoviteiros, parentes dos soldados, visitavam o aquartelamento e às vezes ali permaneciam, fazendo negócios, combinando casamentos, tratando-se ou tratando, ou simplesmente descansando. Desconfio mesmo que alguns guerrilheiros terão passado férias em Missirá (...)

12 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1752: Estórias cabralianas (22): Alfa, o fula alfacinha (Jorge Cabral)

(...) No final do ano de 1970, apresentou-se em Missirá um soldado fula – chamemos-lhe Alfa – vindo da prisão de Bissau, onde cumprira pesada pena. Razão da punição – ausência ilegítima durante cento e oitenta dias, quando após intervenção cirúrgica no Hospital Militar Principal, desaparecera em Lisboa. Impecavelmente fardado, com blusão e tudo, usava uma vistosa popa e farfalhudas patilhas, conservando sempre um palito dependurado ao canto da boca. Falava um calão lisboeta e aparentava ser um verdadeiro rufia alfacinha.(...)

5 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1816: Estórias cabralianas (23): Areia fina ou as conversas de Missirá (Jorge Cabral)

(...) Conheci muito bem o Alferes que esteve em Missirá nos anos de 1970 e 1971. Diziam que estava apanhado, mas penso que não. Era mesmo assim. Quem com ele privou em Mafra e Vendas Novas certamente o recorda, declamando na Tapada: No alto da Vela / Fui Sentinela / de coisa nenhuma / Quem hei-de guardar / Quem irei matar… (...).

19 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1857: Estórias cabralianas (24): O meu momento de glória (Jorge Cabral)

(...) Manga de ronco, Pessoal! Spínola veio a Fá, visitar os Comandos Africanos e praticamente toda a população das Tabancas vizinhas compareceu. Homens e Mulheres Grandes, belas Bajudas, e muitas, muitas crianças. A Pátria, pois então… E uma Guiné melhor. O Caco entusiasmou-se. Tanto, que optou por ir de viatura para Bambadinca. E lá partiu em coluna, comandada pelo Capitão João Bacar Djaló (...).

29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1900: Estórias cabralianas (25): Dois amores de guerra e uma declaração: Não sou pai dos 'piquininos Alferos Cabral' (Jorge Cabral)

(...) E o Amor, existiu? Não falo de mulheres grandes a partir catota, nem de bajudas a partir punho, e muito menos das rápidas e alcoolizadas visitas às casas de prazer, para... mudar o óleo. Amor mesmo, paixão, dele para ela, dela para ele. Difícil, raro, mas aconteceu. Contaram-me que uma bajuda que tivera um filho do Furriel X, o seguiu até Bissau, e na hora da partida do navio entrou na água com o bebé, tendo morrido ambos (...).

27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2135: Estórias cabralianas (26): Guerra escatológica: o turra Boris Vian (Jorge Cabral)

(...) Fá Mandinga fora sede de Batalhão e de Companhia, possuindo muitas e boas instalações. Chegados em Julho de 1969, optámos por ocupar apenas dois edifícios. Quanto aos restantes, convenci o Pelotão, que o respectivo acesso estava minado, razão porque só eu lá poderia entrar. É que vislumbrara duas belas e isoladas vivendas, as quais intimamente destinara a uso próprio. Uma serviria para encontros amorosos. Na outra, utilizaria a casa de banho, lendo e meditando... E assim se passou (...).

22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2204: Estórias cabralianas (27): Turra desenfiado encontra Alferes entornado (Jorge Cabral)

(...) Já é noite cerrada e o Alferes de Missirá continua em Bambadinca. Numa mão o copo, na outra, o pingalim, encostado ao balcão do Bar, declama. Trata-se do longo poema de Jacques Prévert, “L’orgue de Barbarie” (2). É interrompido, engana-se, esquece-se, volta atrás, mas não desiste. Moi je joue du piano / Disait un / Moi je joue du violon / Disait l’autre (...).

14 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2350: Estórias cabralianas (28): O Hipopótamo, as Formigas e o Prisioneiro (Jorge Cabral)

(...) Nem me lembro qual o Periquito que se apresentou naquele dia em Fá. Mas sei que ao anoitecer, saiu, equipado e armado, cumprindo a minha ordem. Objectivo: caçar um hipopótamo (...).

16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2354: Estórias cabralianas (29): A Festa do Corpinho ou... feliz o tuga entre as bajudas, mandingas e balantas (Jorge Cabral)

(...) Porque estamos no Natal, recordas o teu de 1969 e um ataque a Bissaque. Eu passei o meu em Fá, e dias antes, noite dentro, quando já o comemorava por antecipação, acorri a defender a Tabanca de Bissaque, guiado pelo Marinho.Este era um velho, seco e pequenino, guardião das instalações de Fá, desde os anos 50(...).

21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2369: Estórias cabralianas (30): Um Natal em Novembro (Jorge Cabral)

(...) Amanheceu igual, só mais um dia em Missirá. Para o Mato Cão, vai o Alferes, uma secção, e o maqueiro Alpiarça. É lá chegar, esperar, ver o barco e voltar. Não há tempo para o sonho – do outro lado nem Gaia, nem Almada…Já estamos de regresso, ouvimos restolhar. Vem aí gente. Neste lugar só podem ser os turras. Claro que, como sempre, o Alferes empunha apenas o seu pingalim e, em vez do camuflado, enverga camisa branca e calções de banho (...).


28 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2386: Estórias cabralianas (31): As milagrosas termas de Missirá (Jorge Cabral)

A fim de prevenir abusos, a segurança à Fonte, no banho das bajudas, pertencia em exclusivo ao Alferes, o qual nos primeiros tempos guardou uma prudente distância, depois foi-se aproximando e acabou no meio delas, esfregador e esfregado com sabão vegetal, após o que branqueava os dentes com areia. Diziam que aquela água possuía propriedades terapêuticas, curando todos os males de pele, não havendo lica que lhe resistisse (...).


10 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2426: Estórias cabralianas (32): Nanque, o investigador (Jorge Cabral)


(...) O Alferes era calmo. Afável, prazenteiro, nunca se irritava. Naquela tarde porém explodiu. É que constatou que as valas estavam a ser utilizadas como retretes.Reuniu o pessoal e, no mais puro vernáculo de caserna, descompôs o Pelotão, furriéis, cabos, soldados, brancos e negros… Que vergonha! Pois não haviam assistido à valente piçada que ele sofrera, na semana passada, quando o Major Eléctrico (2), visitara o Quartel, e criticara tudo, desde a limpeza das panelas ao comprimento do seu bigode!? (...)

4 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2612: Estórias cabralianas (33): Quatro Madrinhas de Guerra (Jorge Cabral)

(...) Madrinhas de Guerra? Pois também herdei uma. Uma não, quatro. Emprestado ao Pelotão, havia um Cabo velhinho, o Carvalho, que se correspondia com catorze. A bem dizer não fazia mais nada. Logo pela manhã, montava a banca e escrevia, escrevia…Acabada a comissão, Carvalho distribuiu as madrinhas. Das quatro que me calharam, três duraram pouco, o que não me admirou. Para cada uma, inventara uma estória, assumindo diferentes personagens e construindo cenários, nos quais a realidade da guerra surgia transmutada, mais parecendo um antigo romance de cavalaria. (...)


10 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2623: Estórias cabralianas (34): O Alferes, o piano e a Professora (Jorge Cabral)

(...) Em Maio de 71, o apanhanço do Alferes excedera todos os limites. Os Amigos da CCAÇ 12 haviam partido e ele, com os seus vinte e três meses de mato, refinara a excentricidade, espantando agora os periquitos de Bambadinca.Naquele dia resolvera visitar a Professora (3). Com que intenção, não sei. Líbido? Mera curiosidade? Alguma aposta? Talvez de tudo um pouco… e se viesse à rede… pois então… (...)

14 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2841: Estórias cabralianas (35): A bajuda de Belel, os Soncó e o amigo dos turras (Jorge Cabral)

(...) Também eu entrei em Belel em Junho de 1971. De Missirá até lá e de lá ao Enxalé, percorri o trajecto na companhia dos Páras e do Comandante do Pelotão de Milícias de Finete. Saímos ao fim da tarde de Missirá, e pela manhã deu-se o assalto à Base. A resistência não foi muito forte, pois muitos fugiram. Ainda assim, alguns ficaram prisioneiros. Recordo um que ostentava umas divisas vermelhas de Cabo. Não se destruíram as instalações, armadilharam-se, designadamente, um depósito de arroz. (...)

20 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2862: Estórias cabralianas (36): Uma proposta indecente do nosso Alfero (Jorge Cabral)

(...) Um Pelotão mesmo à medida do Alferes, sem qualquer vocação guerreira e que apenas ali estava… porque sim. Para eles o Cabral devia ser rico pois lhe pediam tudo e às horas mais despropositadas… Às vezes no meio da noite, era acordado, porque durante o dia chegara um vago parente que era preciso presentear…Com infinita paciência lá ia aguentando. Já comprara oito pares de óculos escuros e cinco rádios para uso alternado, quando alguns soldados resolveram arranjar mais uma mulher, recorrendo mais uma vez aos seus préstimos. Impossível garantiu, mais mulheres custariam uma fortuna. (...)

9 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3040: Estórias cabralianas (37): A estranha 'missão' do Badajoz (Jorge Cabral)

(...) Em Missirá existiam sempre cinco ou seis adidos. Um enfermeiro, um cozinheiro, um motorista, dois soldados dos Morteiros e às vezes um mecânico, como o célebre Pechincha. Vinham de Bambadinca, cumprir uma espécie de castigo, pois Missirá representava o isolamento, o mato e o perigo.Chegavam receosos e um pouco atarantados, mas, passado algum tempo, parecia que o castigo se transformara em prémio e já ninguém queria regressar. Gostavam de ali estar, naquele quartel–tabanca, onde muitos nem sequer se fardavam e quase não existia hierarquia. (...)

23 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3225: Estórias cabralianas (38): O Alferes roncador e a almofada (Jorge Cabral)

(...) Desde miúdo que adormeço rápido e de imediato inicío um ressonar fortíssimo,audível até pelos vizinhos. Dizem-me uns que são silvos assustadores, parecendo urros de touro ou de leão. Outros garantem que se assemelham aos sonoros sinais dos antigos vapores, quando iniciavam a marcha.Ora, ao segundo dia de Bambadinca, mandaram-me à noite montar segurança junto à pista de aviação. Claro que foi chegar, assentar, adormecer e ressonar… O Pelotão quase que entrou em pânico, com o Sambaro a empunhar a bazuca. (...)

25 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3237: Estórias cabralianas (39): O Marido das Senhoras (Jorge Cabral)

(...) Todos nós tínhamos uma fé. Os africanos eram na sua maioria muçulmanos, os europeus católicos e eu era tudo. Frequentava a mesquita e a igreja, mas também prestei culto aos Irãs balantas. Porque não? O mais religioso de todos era porém o furriel Paiva. No seu abrigo–quarto construíra um pequeno altar, onde colocou quatro imagens das Santas da sua devoção e, entre elas, o retrato de Salazar. (...)

_____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22874: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte I: de 1 a 19

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22874: "Alfero Cabral ca mori": Lista, por ordem numérica e cronológica, das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte I: de 1 a 19



Guiné 61/74 > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71) > Um intelectual das Avenidas Novas de Lisboa no meio dos Mamadu > Jorge Cabral, ex-alferes miliciano de artilharia, comandante desta unidade ao tempo do BCAÇ 2852 e do BART 2917.


Guiné > Região de Bafatá  > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "O 1º Cabo Monteiro, já falecido. Às costas, um pequenino Alfero Cabral " (JC)... 

A par da tragédia, a guerra da Guiné foi também um peça do Teatro do Absurdo... Jorge Cabral teve o grande talento e o especial mérito de nos mostrar, com um toque de genial humor, esse outro lado da guerra, que era o nosso quotidiano de gente com um grão de saudável loucura que nos ajudou a sobreviver ao "non-sense", o não-sentido de tudo aquilo que ali fomos obrigados a representar ou viver...

Fotos (e legendas): © Jorge Cabral (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Os restos mortais do Jorge Cabral (Lisboa, 1944 - Cascais, 2021) ficam doravante no cemitério do Lumiar. Mas o "alfero Cabral ca mori", o "Alfero Cabral" não morreu... Ficará connosco, na Tabanca Grande,  e as suas "estórias cabralianas"  estarão aqui, ao alcance de um clique, sempre que as quisermos (re)ler...

Temos 94 "estórias cabralianas" publicadas, numeradas de 1 a 94. A primeira foi publicada em 6/1/2006 e última em 16/1/2017. Só parte destas "estórias" foram publicadas em livro, em vida do autor (*).  Por outro lado, lançado em plena pandemia o livro não chegou a muitos dos seus leitores e admiradores.
 
Perdõem-me a imodéstia, mas fui eu quem descobriu, acarinhou, alimentou ... esse filão de humor do mais fino quilate que são as "Estórias Cabralianas"... O título, se não erro, também foi sugestão minha, que o "alfero" logo agarrou.

Mês a mês, desde os princípios de 2006, com maior ou menor regularidade, como quem paga uma dívida a um amigo, o Jorge lá me foi mandando o seu material ... Sempre lacónica nos seus emails, dizia-me: Sai estória, aqui vai estória, para desanuviar, para desopilar... 

Uma estória aqui, outra estória acolá (sem h, como fazia questão de sublinhar, que era para ninguém as confundir com a "realidade" e levar a sério o estoriador)... E, nesse ritmo de produção artesanal a que ele nos habituou, lá a chegou  às 64 ao fim de cinco  anos...(A nº 64 foi publicada em 9/11/2010)... A uma média, portanto, de doze por ano, 1 por mês...

2006 - 16 | 2007 - 15 | 2008 - 12 | 2009 - 14 | 2010 -    7  || Subtotal= 64.

Depois,  a produção tornou-se mais espaçada, a partir de 2011 (, cicno por ano, em média):

2011 -  5 |   2012 -  6 |  2013 -  8 | 2014 - 2 | 2015 - 5 | 2016 - 2 | 2017 - 2 || Subtotal = 30.
 

Eram short stories (ou micro-contos) que lhe vinham à cabeça e que ele passava a papel e depois a computador, entre duas aulas na Universidade ou duas audiências em tribunal. Um género literário que ele cultivava como ninguém... 

Enfim, eram sempre um belíssimo pretexto para falar da sua querida Guiné e das suas gentes com quem ele, de resto, continuava a privar de perto, na Universidade Lusófona: agora filhos de ministros, de combatentes da liberdade da Pátria, ou descendentes das mais puras estirpes das aristocracias fulas, mandingas ou manjacas...

E da Guiné ele só falava com (com)paixão e ternura, através dessa criação única, e que já entrou na galeria dos imortais da blogosfera, que é o nosso "Alfero Cabral", o seu "alter-ego", romântico, apaixonado, arrebatado, esotérico, excessivo, quixotesco, rocambolesco, pícaro, delicado, temerário, extravagante, poético, sensível, absurdo... Só não é brigão nem fanfarrão, mas tem uma vaga costela do pipi das Avenidas Novas e do Vavá, misturada com a máscara do furtivo irã do pensamento mágico que poisava nos poilões das tabancas balantas (Bissaque, Mero, Santa Helena, Nhabijões...).

Desconcertante, sempre, o nosso "Alfero"!... Recordo-me de, há uns anos atrás, ele ter-me perguntado, com o ar mais sério deste mundo,  se não queria comprar, a meias com ele, a Tabanca de Finete:
- Estás a ver, a bolanha, o Rio Geba, a rede preguiceira, uma bajuda para te enxotar as moscas!... O que é que um homem quer mais quando chega a SEXA ?!

Noutra ocasião, confidenciou-me que tinha de voltar a Fá... Porquê ?
- Deixei lá uns escritos importantes, escondidos num buraco tapado por um tijolo, no alto do depósito de água, que ainda lá continua de pedra e cal!...

Nunca o ouviu queixar-se da triste sina, à boa maneira dos tugas, nem esconjurar Deus, Alá ou os irãs, sempre sabendo pelo contrário tirar o melhor prazer e sábios ensinamentos de cada momento: 

"(...) Aqui estou novamente a falar dos meus tempos da Guiné. Tempos que não foram nem os melhores, nem os piores da minha existência. Foram sim, diferentes. Como se naquele período, eu tivesse vivido numa galáxia distante, onde fui outro Jorge, se calhar mais real, se calhar mais autêntico… Claro que essa experiência me marcou e muitas vezes aquele Alfero regre ssa e faz das suas… como aliás o prova a história de hoje. (...)

Por outro lado, sempre discreto mas atento, paisano de corpo e alma, filho degenerado, desconjuntado na farda de "Alfero do Mato" que lhe enfiaram pela cabeça abaixo:

(...) "Caros Amigos, hesitei muito em mandar mais uma estória. Ainda por cima sobre esquentamentos... Mas que raio de ex-combatente sou eu, que não falo da guerra? Pergunto-me, às vezes, se lá estive? Parece que sim. Um ano em Fá, outro em Missirá (acreditem, o mesmo do Beja Santos...), doze dias em Bambadinca, e dezoito na Ponte do Rio Undunduma. Conheci muito pouco e sempre de passagem. Enxalé, Xime, Mansambo e Xitole, de partida para operações. De Bafatá, o Teófilo e as Libanesas, mais umas damas simpáticas que trabalhavam na horizontal... à entrada da cidade. Não transitei por Bolama. Nem tive IAO. De rendição individual passei em quinze dias dos cafés da Av de Roma para a Ponte do Rio Undunduma...

"Confesso que nunca percebi muito da guerra... Fui apenas um simples Alferes de Mato, que comandou Destacamentos e alinhou em todas as operações para as quais o Pel Caç Nat 63 foi escalado. Mas se não percebi então, hoje ainda percebo menos... Estou porém agora a tentar aprender no Blogue!" (...)

Logo a seguir ao seu 77º aniversário (, em 6/11/2021), falando ao telemóvel e sentindo-se um pouco mais animado (depois do "grande ronco" que foi a ida à porta da sua casa, no Monte Estoril, de um numerosa representação das suas antigas alunas, as suas queridas "almas"), ele ainda me prometeu uma derradeira "estória", a propósito de um contacto de alguém da Guiné-Bissau... Já não teve, infelizmente forças para a escrever e ma mandar...
 
Está na altura de as ler, quem as não conhece. Ou de as reler, quem as já leu no devido tempo mas mas precisa de refrescar a memória... Curiosamente, só a partir de 2008 é que os nossos leitores começaram a deixar comentários nos postes desta série...  Por exemplo, a "estória nº 29" (poste P2334, de 16/12/2007) (**), uma das mais conhecidas e populares (, tendo batido o recorde,  com um total até agora de 1738 vizualizações), não tem um único comentário...

Vamos reparar essa injustiça. É a melhor forma de homenagearmos o seu autor e nosso já saudoso camarada Jorge Cabral.


2. 
Lista das estórias cabralianas, por ordem numérica e cronológica - Parte I: De 1 a 19:


20 de Abril de 2007 > Guiné 63/7 4- P1682: Estórias cabralianas (1): A mulher do Major e o castigo do Alferes (Jorge Cabral)

(...) Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso. (...)

23 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1688: Estórias cabralianas (2): O rally turra (Jorge Cabral)

(...) Numa tarde de tédio convenci o motorista da viatura existente em Missirá, um humilde Unimog, a dar um passeio. Pretendia visitar o Enxalé, seguindo pela estrada de Mato Cão, pela qual não passava qualquer veículo há muito tempo. (...)


23 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1689: Estórias cabralianas (3): O básico apaixonado (Jorge Cabral)

(...) O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão. Para os Destacamentos eram mandados os especialistas que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás! (...)

18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - P437: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos.

(...) Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética . Assim, no rescaldo do ataque ao Batalhão, lembro o primeiro, à noite, de G-3 em bandoleira, pedir-nos:- Se houver ataque, acordem-me (...).

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - P454: Estórias cabralianas (5): Numa mão a espingarda, na outra...

(...) Penso que, já em 1971, apareceu no Batalhão [de Bambadinca], um Alferes de secretariado, corrido de Bissau, por via de uns dinheiros. Chegou acompanhado de uma dama, sobre a qual corriam os mais variados boatos. Dizia-se, calculem, que ela tinha sido uma prenda de aniversário ao Alferes, enviada pelo pai, milionário do Porto. (...)

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá

(...) Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.-Alfero, Alfero, é Spínola! - gritam os meus soldados (...).

17 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - P620: Estórias cabralianas (7): Alfero poi catota noba

(...) Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O Despacho do Exmo. Comandante do CAOP Dois referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”. Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de Bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha (...).

13 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - P690: Estórias cabralianas (8): Fá Mandinga no Conde Redondo ou o meu Amigo Travesti

(...) Na década de 80, dava aulas nocturnas numa Escola na Duque de Loulé e costumava descer a Avenida para tomar o Metro. Eis que uma noite, me vejo perseguido por um Travesti que me grita:- Meu Alferes! Meu Alferes! Alferes Cabral!... Tomado de terror homofóbico parei, negando conhecer a criatura, de longas pernas e fartíssimos seios. (...)

20 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - P707: Estórias cabralianas (9): Má chegada, pior partida

(...) Com destino à Guerra, viajei no Alfredo da Silva, quase um cacilheiro, durante doze dias. Em primeira classe, sete oficiais e uma dona puta em pré-reforma habitavam um ambiente de opereta, jantando de gravata, com a estafada dama na mesa do comando. Depois havia a valsa… Cheirava a mofo, a decadência, ao fim do Império (...).

3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro

(...) Desde que cheguei, e durante o primeiro ano, o Pel Caç Nat 63, foi pluriétnico. Mandingas, Fulas, Balantas, Manjacos, Bigajós, estavam representados. Pluriétnico e plurirreligioso, com um Manjaco, Pastor Evangélico, um Marabú Mandinga Senegalês, vários adoradores de muitos Irãs, e até alguns crentes na Senhora de Fátima, vivendo todos em Paz ecuménica, sob a batuta do Alferes agnóstico com tendências panteístas, que pensava que nada o podia surpreender (...).


4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P936: Estórias cabralianas (11): a atribulada iniciação sexual do Soldado Casto

(...) À noite, após o jantar, nós os nove brancos do Destacamento, continuávamos à mesa, conversando. Falávamos de tudo, mas principalmente de sexo, mascarando a nossa inexperiência, com o relato de extraordinárias aventuras que assegurávamos ter vivido. O nosso motorista havia até desenhado num caderno as várias posições, indagando de cada um:- E esta, já experimentaram? (...)

20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor

(...) No dia seguinte a ter ocupado Fá Mandinga, apresentaram-se no quartel as lavadeiras, cinco ou seis bajudas, todas alegres e simpáticas. Uma, Modji Daaba, chamou-me logo a atenção pelo seu porte e beleza. Bonita de cara e perfeita de corpo, possuía um ar nobre e altivo que me cativou. Imediatamente a contratei como minha lavadeira exclusiva, tendo acordado uma remuneração superior na esperança de algumas tarefas suplementares… (Periquito, ainda não sabia, que com as bajudas mandingas era praticamente impossível ir além de algumas carícias peitorais…). (...)


28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1128: Estórias cabralianas (13): A Micá ou o stresse aviário (Jorge Cabral)

(...) Terminada a especialidade de Atirador de Artilharia, permaneci como aspirante, em Vendas Novas, na respectiva Escola Prática. Aí me atribuíram variadas funções, Justiça, Acção Psicológica e Cultural, Revista Literária, etc, etc, pelo que quase nunca fiz nada. Quando me procuravam num lado, estava sempre no outro…Na Justiça, creio que apenas dei andamento a um processo, enviando uma deprecada para Angola, a perguntar se o Furriel Patacas possuía três mãos. (...).



24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1313: Estórias cabralianas (14): Missirá: o apanhado do alferes que deitou fogo ao quartel (Jorge Cabral)

(...) Julgo que aconteceu em Março [de 1971]. O dia decorrera em Alegria. Chegara a Missirá uma arca frigorífica a petróleo, oferta do Movimento Nacional Feminino, e cedo começaram as libações.Seriam três ou quatro da manhã, sou abruptamente despertado. Tiros (?). Rebentamentos (?). Fogo! Saio do abrigo nu, e deparo com meio quartel a arder.Ataque nunca podia ser! O Tigre [Beja Santos] já estava na Metrópole, Missirá era agora um oásis de paz, vigorando um tácito pacto de não-agressão (...).

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1344: Estórias cabralianas (15): Hortelão e talhante: a frustração do Amaral (Jorge Cabral)

(...) Chamavam-lhe, os africanos, o furriel Barril, não sei se pela sua compleição física, se por via da fama e do proveito que ganhara como bebedor quotidiano e calmo. Estou a vê-lo ao serão, bebendo à colher, com paciência e estilo, enquanto o alferes declamava, e o maqueiro Alpiarça escrevia a uma das dezenas das madrinhas de guerra. (...)


14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1369: Estórias cabralianas (16): As bagas afrodisíacas do Sambaro e o estoicismo do Sousa

(...) Aos Domingos vestíamo-nos à paisana e dávamos longos passeios à volta da parada, imaginando praças, avenidas, ruas, adros de igreja e até estações de comboio. Depois entrávamos na Cantina e invariavelmente pedíamos 'Um fino e tremoços' (...).


10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1419: Estórias cabralianas (17): Tirem-me daqui, quero andar de comboio (Jorge Cabral)

(...) Creio que foi em Fevereiro de 1971, que em Missirá, recebi a ordem de Bissau – um dos furriéis passava a ser Professor, com dispensa de toda e qualquer actividade operacional. Ponderada a situação, optei pelo Amaral , cujo porte rechonchudo e as maçãs do rosto vermelhuscas, lhe davam um ar prazenteiro e bonacheirão, nada condizente com as funções de comandante de secção combatente (...).


26 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1463: Estórias cabralianas (18): O Dia de São Mamadu (Jorge Cabral)

(...) Entre os dez militares metropolitanos do Destacamento de Missirá, apenas o Alferes era do Sul e de Lisboa – um rapaz de Alvalade, passeante da Praça de Londres e frequentador do Vává. Todos os outros, furriéis, cabos, e adidos especialistas, vinham do Norte ou das Beiras. (...).


18 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1534: Estórias cabralianas (19): O Zé Maria, o Filho, Madina/Belel e um tal Alferes Fanfarrão (Jorge Cabral)

(...) Bambadinca era então para o Alferes, feito nharro de Tabanca, a Cidade. Para lá ir, fazia a barba, aprumava o seu único camuflado apresentável, munia-se de alguns pesos e, acima de tudo, preparava o relim verbal sobre ficcionadas aventuras operacionais, que iriam impressionar o Comandante. Antes de entrar no Quartel, habituara-se a abancar no Gambrinus local, o tasco do Zé Maria, bebendo, petiscando e conversando. Um dia encontrou o Senhor Zé Maria, muito preocupado. O filho adolescente que estudava em Lisboa, ia chumbar. (...)

(Continua)

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22852: In Memoriam (421): Jorge Pedro de Almeida Cabral (Lisboa, 1944- Cascais, 2021), ex-al mil at art, cmd Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71), advogado, professor de direito penal no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, nosso colaborador permanente e autor da impagável série "Estórias cabralianas" (de que se publicaram cerca de uma centena de postes)






Jorge Pedro de Almeida Cabral, advogado, professor de direito penal,
alferes mil at art, cmdt Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71) 
(Lisboa, 1944 - Cascais, 2021)

com 4800 amigos. Com a devida vénia aos seus autores...



1. Deixou-nos hoje, o Cabral (*). Aos 77 anos (**). Cansou-se de brincar às guerras, morreu na única guerra que ele verdadeiramente temia, o cancro do pulmão... "Estou a morrer, estou a morrer", dizia-nos ele a alguns de nós por estes dias, por estas semanas... Não o levávamos a sério, a princípio ... Um humorista não morre. O "alfero" Cabral, o nosso anti-herói,  não podia morrer!

Estou em Vila Nova de Gaia, telefonou-me o Benjamim Durães a dar-me a funesta notícia... À hora do almoço... Sei que era uma morte anunciada,  mas a família, e sobretudo os amigos,  acabam sempre por ser surpreendidos, s
obretudo  quando se  está mais longe, quando chega o "carteiro da morte".  

Depois  já  não dava para mantermos a ilusão de que ia "correr tudo bem"... Não correu, ele vinha desanimado do hospital de Cascais onde estava a ser tratado. Tornou -se penoso telefonar-lhe. A conversa, "do outro lado da linha", era lacónica e não deixava antever nada de bom. Havia já sinais  de que o sopro da vida se estava a apagar. 

Mesmo assim, a festa que as suas antigas alunas (as suas "almas" ou "almas peregrinas",) do Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa lhe fizeram, no seu último aniversário (6/11/2021) deixaram-no extremamente emocionado. "Chorei", confessou-me ele, nesse dia, já ao fim da tarde (***).

2. O nosso blogue deve-lhe muito. Foi um dos nossos históricos. Colaborador permanente, e sobretudo autor de uma série absolutamente "impagável", as "estórias cabrialianas" (, de que publicou em 2020, em livro, com o mesmo título, o 1.º volume, sonhando ainda  lançar um 2.º, quando entretanto o seu editor também adoeceu de cancro...). Fiz questão de lhe escrever o prefácio, gesto que o sensibilizou.

Tem cerca de 230 referências no blogue. E eu não hesito em dizer, como já aqui disse, que ele foi uma das estrelas da nossa Tabanca Grande.  

Escrevo "a quente", quase em cima do joelho... Vou a caminho de Candoz, onde a Net nem sempre se apanha com qualidade e velocidade... Mas quero fazer-lhe, por estes dias,  uma bonita homenagem de despedida no blogue. Como acontece nestas ocasiões, quando se perde alguém que muito se ama ou se estima, queria dizer-lhe tantas coisas que nunca há tempo, em vida, para se dizer...

Confesso que estou desolado, perdi/perdemos um bom amigo e camarada. Não creio que ele tivesse inimigos. Por onde passou deixou a "peugada" de um grande ser humano, um homem bom, um professor venerado e sobretudo amado. Ao seu filho, neto e irmão (que não conheço pessoalmente), aos seus amigos e amigas do peito, às suas "almas",  transmito a nossa dor e o nosso preito de homenagem.

Aos nossos leitores, e nomeadamente aos amigos e camaradas da Guiné, peço que nos mandem fotos e pequenos depoimentos sobre o Jorge Cabral, criador da figura do "alfero Cabral". Com ele, morreu também o nosso "alfero", o único, o inimitável, cujo voz ainda ecoa pelos matos do Cuor: "Não fujam não tenho medo... É o alfero Cabral... E Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum"...

De resto, ele nunca escondeu que tinha um "grãozinho de loucura", coisa que fazia parte dos genes dos ilustres Cabrais, mas sempre modesto, definia-se como simples "escrivinhador"...  Pessoalmente, considerei-o como um dos melhores escritores do "teatro do absurdo da guerra" que nos calhou em sorte. Ninguém poderá falar do nosso quotidiano, nos quartéis do mato, na Guiné, de 1961 a 1974, sem evocar a figura do "alfero Cabral".

Mais do que ninguém ele soube dar-nos (ou devolver-nos) o seu/nosso lado mais solar, alegre, romântico, maroto, brejeiro, provocador, irreverente, desconcertante, descomplexado, histriónico, humorístico, burlesco, pícaresco, saudavelmente louco, da nossa geração,  o lado próprio próprio dos verdes anos (contrabalançando o outro lado mais negro da nossa história de vida,  quando os gerontocratas da Pátria nos mandaram para a guerra: afinal, são jovens que matam e morrem nas guerras)... 

Enfim, para o "alfero Cabral" a guerra não foi só "sangue, suor e lágrimas"... (Curiosamente, poucos sabem que ele tinha passado, se bem que efemeramente,  também pelo Colégio Militar, foi uma das "ratas" de 1955...).

Mestre do microconto, da "short story", senhor de uma ironia fina, foi responsável por alguns dos melhores postes que aqui fomos publicando, entre 2006 e 2016. E, como eu já lembrei, é pena que os os "periquitos" da Tabanca Grande, os que entraram mais recentemente,  não o conhecessem. De facto,  de há meia dúzia de anos a esta parte, tinham vindo tinho a  rarear as "estórias cabralianas",  série que chegou quase à centena de postes.

Saibamos honrar a sua memória e o seu talento... Ele iluminou a nossa "caserna" com o seu humor desconcertante... Vamos sentir a sua falta.  

Luís Graça, em nome da nossa equipa de editores e colaboradores.
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(**) Vd. poste de 16 de outubro de 2007 > Guiné 63774 - P2180: Blogpoesia (5): O vigésimo sexto aniversário de um gajo nada sério, Missirá, 6 de Novembro de 1970 (Jorge Cabral)

(...) Aniversário

por Jorge Cabral

Vinte e seis ou Mil, conto pelos dedos
Os anos que vivi, eu não sonhei
Este tempo de angústia e de medos,
Que soletro e nunca sei.
Que Guerra é esta? Onde não estou!
Que rio aquele? Não cheira a Tejo!
Que combate? Combato, mas não sou.
E quando olho o espelho, não me vejo!
Aqui em Missirá, escravo e senhor
Invento-me. E guarda – prisioneiro
Bebo, fingindo em alegria, a Dor.

Hoje faço anos… e continuo inteiro.

Missirá, 6 de Nov. 1970 (...)

sábado, 6 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22693: Antologia (79): "Alfero Cabral", oficial e cavalheiro... ou o último dos românticos do império (Jorge Cabral, autor de "Estórias cabralianas", 1º volume, 2020)


Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. 
Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. 


1. Faz hoje anos, porém está doente (*). Continua a ser uma das estrelas da nossa Tabanca Grande. Autor da série "Estórias Cabralianas" (, de que publicou em 2020, em livro, com o mesmo título,  o 1º volume), aceitou incarnar a figura impagável do "alfero Cabral". 

Não esconde que  tem um "grãozinho de loucura", coisa que faz parte dos genes dos ilustres Cabrais, mas sempre modesto, define-se como simples  "escrivinhador". Pessoalmente, considero-o como um dos melhores escritores do "teatro do absurdo da guerra" que nos calhou em sorte. Ninguém poderá falar do nosso quotidiano, nos quartéis do mato, na Guiné, de 1961 a 1974, sem evocar a figura do "alfero Cabral" (**)

Mestre do microconto, da "short story", senhor de uma ironia fina, é responsável por alguns dos melhores postes que aqui fomos publicando, entre 2006 e 2016. É pena, porém, que os "mais novos", os "periquitos" da Tabanca Grande, não o conheçam. De há meia dúzia de anos a esta parte, foram rareando as "estórias cabralianas", série que chegou quase à centenas de postes. 

Fazendo votos para que o "alfero Cabral"  ainda tenha forças, saúde, coragem, motivação e o tal "grãozinho de loucura" que dá pica à vida, para publicar o seu prometido  2º volume das "estórias cabralianas" (, infelizmente o seu editor também adoeceu, entretanto), republicamos hoje, em dia de festa, um das "pérolas literárias" com que em tempos nos brindou (e que está no seu livro, é a estória nº 17) (**). Mudámos-lhe, porém, o título, liberdade que ele sempre permitiu ao editor do blogue, seu contemporâneo no CTIG e no setor, camarada, amigo e admirador. (***)
 

2. Estórias cabralianas > "Alfero Cabral", oficial e cavalheiro... ou o último dos românticos do império

por Jorge Cabral

Estava calor e todo o quartel dormia a sesta. Em cuecas, o Alfero urinava contra a parede (bem não urinava, mijava, pois na Tropa, ninguém urina, mija). Eis que um jipe se acerca. Nele, três alferes de Bambadinca, acompanhados de duas raparigas. 

Ainda a sacudir “o corpo do delito”, disfarça, cora, mas que vergonha (!). Claro, ninguém lhe aperta a mão. Elas são a filha do Senhor Brandão  [, da ponta Brandão], e uma amiga de Bissau, cabo-verdiana. Vêm visitar Fá. Chama o fiel Branquinho. Que os leve a todos para o Bar, enquanto ele se veste e se penteia. Regressa impecável. À paisana, de camisinha branca, calças azul-bebé.

Há muito pouco a mostrar. Fá já fora sede de Batalhões e Companhias [, sede até 1965 do sector L1, sucedendo-lhe Bambadinca ],  mas ag
ora só o seu Pelotão o ocupa e as redondezas dos principais edifícios encontram-se minadas. 

Dão uma volta e, ao passar por uma ampla vala, que separa o Quartel de cima, do Quartel de baixo, as raparigas reparam que, naquela vala inundada, cresceram formosos nenúfares.
− Tão bonitos ! |− exclamam.

Logo o Alfero mergulha. Porém a vala é funda. Perde o pé, escorrega, cai, estrebucha, mas sem nunca largar as aquáticas flores. Valeu-lhe o Preto Turbado, gigante soldado Bijagó, que o consegue agarrar pelo colarinho e o retira salvo da água pantanosa. Batem palmas as Jovens.

Recomposto, encharcado e cheio de lama, o Alfero deposita-lhes no regaço, qual Magriço de outrora, o troféu, pois… os nenúfares.

Beijam-no, sem receio de se sujarem.
− Que romântico! − dizem.

Olhem se fossem rosas, pensa o Alfero. O pior foi o início da visita. Que se lixe, conclui, afinal os românticos também mijam…


[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  6 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22692: Banco do Afeto contra a Solidão (26): "Por favor telefonem-me, mandem-me um email, visitem-me!", um apelo dramátrico do Jorge Cabral, sozinho em casa, no Monte Estoril, em lutar contra o raio da doença

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21721: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (122): Notícias do blogue no ano de 2050, por Jorge Cabral


Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. 
Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. (Preço de capa: 10 €).

1. Amigos e camaradas, nada como começar o ano de 2021, dando um salto para 2050, antecipando as notícias. Nessa altura, já poderemos fazer viagens tanto ao passado como ao futuro.  

Felizmente,  alguns de nós ainda não morreram de Alhzeimer em 2050. E mesmo os que entretanto foram morrendo (, desta e doutras doenças crónicas degenerativas),  vivem agora num condomínio de luxo lá no Olimpo  dos combatentes, e podem manter uma janela aberta sobre a terra... Sempre distraem a vista...

Dos que ainda andam, cá em baixo, no planeta azul, em 2050, conservando o seu saudável sentido de humor  (, que é o que lhe resta, depois de lhe terem tirado tudo),  é o nosso  "alfero Cabral". Lembram-se dele em 1969/71, o régulo de Fá Mandinga e de Missirá, na antiga Guiné, que fez parte do glorioso império colonial português  ?!...  

Pois, fomos apanhá-lo, 80 anos depois, sempre igual a ele próprio,  ou pelo menos uma cópia perfeita, se não mesmo até melhor do que o original. Vale a pena escutá-lo. 

Para quem, em 2021, continua a caminhar na perigosa picada da vida, cheias de minas e armadilhas, que são os km 70 em diante, é um motivo de alento encontrar um ex-camarada de armas em 2050, sociologicamente classificado como UPV (com prazo de validade completamente ultrapassado), mas espantosamente  lúcido e translúcido. 

Gostei de o ouvir, em 2050, a dar-nos notícias do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e dos Encontros Nacionais da Tabanca Grande, agora virtuais.  

Sinceramente, foi a melhor notícia que até agora recebi nas primeiras horas do Novo Ano de 2021, depois, claro, de saber que a minha neta Clarinha, com um ano e um mês e vinte dias de vida, se havia estreado no Funchal a ver,  com um ângulo de 360º,  o melhor fogo de artifício do mundo na passagem de ano.


 Notícias do ano 2050

por Jorge Cabral

Tenho, como sabem, uma máquina do tempo, na qual viajo ao passado. Porém hoje a máquina avariou e, em vez de recuar os quarenta anos programados, avançou e eis-me aqui no ano de 2050.

Estou vivo e ainda trabalho pois agora já ninguém tem direito à reforma. Exerço as minhas funções no Instituto da Promoção da Pobreza. Preparo um estudo sobre o Empobrecimento Lícito e o certo é que já sei as conclusões - empobrecer é legítimo, justo, lícito e patriótico.

Precisam-se mais pobres para manter os serviços sociais. O crime tem diminuído assustadoramente. Os polícias passam os dias a jogar às cartas, a contar anedotas ou a ver televisão. Felizmente vai ser inaugurada, em breve, uma Escola de Delinquência, na qual sepodem licenciar ladrões e vigaristas, estando até previsto um Doutoramento em Tráfico de Influências.

O meu quotidiano é simples. Apanho de manhã o transporte e, se o perco, tenho logo apoio psicológico, pois há em cada paragem um Psicólogo. Aliás, existem por todo lado.

Ainda na semana passada, quando no Restaurante entornei a sopa, tive logo o respectivo apoio da Psicóloga do Estabelecimento.

 Também há Advogados nos restaurantes, nos cafés e até nas casas de alterne, sempre disponíveis, pois são quatro por cada cidadão.

Moro num Velhil, destinado aos que U.P.V. (Ultrapassaram Prazo de Validade). Embora fosse um antigo canil, a casa é agradável. Recebemos muitas visitas de estudantes e uns gostam muito, outros preferem o Jardim Zoológico.

No meu quarto afixei fotografias da Guiné e no outro dia uma professora perguntou-me se eu é que era o Soldado Desconhecido. Respondi-lhe afirmativamente. Quanto à guerra,  já ouvira falar… Foi depois de Aljubarrota, não foi?

O Blogue sobrevive. O Maestro Luís comanda-o com o olhar, pois já não se usam teclas.

Qualquer dia, teremos mais um encontro da Tabanca Grande. Virtual, claro… mas, com chá e biscoitos!


[Com a devida vénia: Excerto de: Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I. 
Lisboa: Ed José Almendra, 2020]
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