Mostrar mensagens com a etiqueta milicianos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta milicianos. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2481: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (11): Malan Camará... e a maldição dos 3 G + 1 J (Manuel Rebocho)

Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Cachambas Balantas, próximo de Jemberém (hoje, ois guineenses dizem e escrevem Iemberém)> CCP 123 / BCP 12 (1972/74) >12 de Fevereiro de 1973 > O Cabo Álvaro, o militar à esquerda na fotografia, pouco depois da captura do mais prestigiado chefe da Guerrilha no Cantanhez, o Comandante de Bigrupo Malan Camará, ferido por um disparo de Sneb (1), "que eu próprio mandei disparar" (Manuel Rebocho).


Foto: Costa Ferreira (gentilmente cedida pelo Manuel Rebocho) (2007).


Malan Camará, um antigo guerrilheiro do PAIGC, que operou na zona do Cantanhez, um dos convidados especiais do Simpósio Internacional de Guiledje. No âmbito do Projecto Guiledje, foi entrevistado pelas equipas de investigadores da AD - Acção para o Desenvolvimento (que gravaram o seu depoimento em DVD). O Manuel Rebocho quer saber se é o mesmo Malan Camará, da foto de cima, ferido e capturado pelo seu Grupo de Combate da CCP 123 / BCP 12, em 12 Fevereiro de 1973. Acontece que Malan é um nome vulgar, entre fulas e mandingas, e Camará é também um apelido muito frequente entre os fulas... Na CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) tínhamos vários Malan e vários Camará, embora nenhum Malan Camará (que julgo ser nome de mandinga) (LG).

Foto: Guiledje - Simpósio Internacional (2007) (com a devida vénia...).


1. Texto do nosso camarada Manuel Rebocho, ex-sargento paraquedista da CCP 123 / BCP 12 (Guiné, Maio de 1972/Julho de 1974), hoje Sargento-Mor Pára-quedista, na Reserva, e doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de doutoramento: "A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975") (2).


Amigos Luís Graça e Pepito:

Na sequência da publicação, no nosso blogue, de algumas fotografias, de antigos guerrilheiros do PAICG, verifiquei, particularmente, a de Malan Camará (3). Enviei um e-mail para o Pepito solicitando a gravação das declarações de Malam Camará.

O Pepito respondeu-me, de imediato dizendo:

“Conto passar por Portugal no final de Março e nessa altura dar-te-ia a gravação da entrevista do Malan Camará. Vou pedir que me façam uma gravação em DVD.
abraço
pepito”


No meu mail não especifiquei a razão do meu interesse. O que eu pretendo saber é se o Malam Camará que surge no blogue, é o mesmo que está na fotografia em anexo, a qual consta na minha obra de doutoramento.

No blogue diz o Pepito hoje, dia 25 de Janeiro de 2008, referindo-se à apresentação pública do Simpósio sobre Guiledje:

“Como o assunto era relativo à História e Cultura, a televisão nacional e a RTP África, sempre mais preocupadas em dar relevo a outras questões mais relevantes como o narcotráfico e a presença da AL-QAEDA, primaram pela ausência. Critérios....”

Naturalmente que é assim, e assim será no futuro, pois não te esqueças que as histórias são sempre contadas pelos vencedores. E, nem os vencedores (PAIGC), nem os heróis portugueses, de Guiledje e Gadamael, integram “a classe de poder em Portugal”. Nota, que classe de poder não significa classe no poder, são classes diferentes.

As discussões que envolvam Guiledje, Gandamael Porto e Guidaje (os três G’s, como define o nosso amigo Leopoldo Amado) e ainda Jemberém, que eu lhe acrescento, não interessam àqueles que se consideram “os donos do 25 de Abril” e que, a partir de méritos que não são seus, se constituem na classe de poder em Portugal.

Só uma pequena achega para ilustrar um pouco esta ideia que é científica, pois resulta da minha tese de doutoramento, na qual me foi atribuída a classificação máxima.

Na sequência do abandono de Guiledje, em que as tropas portuguesas fugiram para Gadamael Porto, no dia 22 de Maio de 1973, ficaram instalados neste último Destacamento cerca de 600 homens, 4 companhias, o equivalente a 1 Batalhão, a que correspondia 1 Tenente-Coronel, 2 Majores e 4 Capitães. No entanto, aqueles homens eram comandados apenas por dois Capitães, e estes milicianos, naturalmente.

Os capitães milicianos foram feridos e evacuados no dia 30 de Maio de 1973, do que resultou que aquelas 4 companhias, ou aquele amontoado de militares portugueses, ficassem tão só sob o comando de um Alferes miliciano, ou de ninguém, para ser mais preciso.

Ao mesmo tempo, em Jemberém, que fica a cerca de 18 km a oeste de Gadamael Porto, no coração do Cantanhez, como sabemos, estavam colocadas duas companhias, também elas, comandadas por um Alferes miliciano (já nem os Capitães milicianos queriam estar nas zonas de combate, sobrava já tudo para os Alferes milicianos).

Se a guerra tivesse continuado, só lá ficavam os Soldados, estou certo. Como afirmo na minha tese de doutoramento, os Oficiais de carreira fugiram literalmente das zonas de combate.

No dia 22 de Maio de 1973, o dia da fuga de Guiledje, Spínola enviou uma nota ao Ministro do Ultramar, dizendo que não tinha meios para continuar a guerra. Em resposta, o governo fez publicar, no dia 13 de Julho seguinte, o Decreto-Lei n.º 353/73, onde determinava uma nova metodologia de formar Capitães, o que desagradou aos Capitães da Academia, que se viam recambiados para o mato, onde eles não queriam estar.

Para combater esta decisão, que não lhe agradava, revoltaram-se contra quem os formou e lhe atribuiu o estatuto que possuíam. Afirmando-se então, que tal revolta, tinha origens em princípios democráticos, o que não era verdade.

Por tudo isto, há que silenciar estes 4 nomes, [(Guiledje, Gandamael Porto, Guidaje (onde estava colocada uma Companhia de nativos, a 19.ª, cujos graduados eram europeus milicianos, e onde a vergonha ainda foi maior) e Jamberém] que eu não apago da minha memória, mas que, como disse, incomodam a classe de poder.

Portanto, meu amigo Pepito, não estranhes e conta só com o silêncio. Mas nem tudo será mau, contas com muitos amigos e com o nosso blogue que não se cala.

Percebeste um pouco da minha mágoa em não estar no “teu/nosso Simpósio”, mas também percebeste porque não posso.

Nota:

Se o Malan Camará das duas fotografias é o mesmo, posso adiantar-te que o ferimento lhe foi provocado no dia 12 de Fevereiro de 1973, nas Cachambas Balantas, próximo de Jemberém (4), por um disparo de Sneb, que eu próprio mandei disparar – era ele, ou eu e os meus homens – foi assim a guerra, que só a conheceu quem a fez.

Malan Camará, ou os homens sob o seu comando, mataram-me um soldado, o Azinheirinha, e feriram gravemente o Alferes, razão pela qual assumi o comando do pelotão.

Mas como vês, ou se pode ver, Malam Camará foi tratado e evacuado de helicóptero para o Hospital Militar de Bissau, onde foi bem tratado. E não foi evacuado por engano, eu pedi uma quarta aterragem de helicóptero, dizendo expressamente que era para evacuar um elemento IN ferido. O General Spínola, que estivera no local falando connosco, ouviu as comunicações rádio e não se opôs, o que permite que eu afirme que este género de humanidade era assumido pela mais alta hierarquia. (*)

Hoje, os que fugiram da guerra, para o ar condicionado, dizem de Spínola “cobras e lagartos”, mas têm mais defeitos do que ele, enquanto o não assemelham nas virtudes.

A guerra em que eu participei, foi uma guerra violenta, mas humana, dentro do possível claro. Não a do ar condicionado nem a da violência gratuita.

Um grande abraço aos dois

E que o nosso Simpósio seja um sucesso

Manuel Rebocho

________________

Notas de L.G.:

(*) Bold da responsabilidade do editor

(1) SNEB: rocket antipessoal, de calibre 37 mm, que equipava o T-6 e que também era usado pelos pára-quedistas (e depois, por outras forças) como LGFog.

(2) Vd. postes do Manuel Rebocho:

14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P877: Nós, os que não fazemos parte da história oficial desta guerra (Manuel Rebocho)

"(...) tomei contacto com o vosso/nosso blogue, através do então Furriel Miliciano José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350 (a que abandonou Guileje, em 22 de Maio de 1973), o grande herói de Gadamael Porto, que, não obstante isso, também não faz parte da história oficial da Guerra da Guiné"(...).

28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação do NRP Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, em 1973 (Manuel Rebocho)

5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

17 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1187: Guidaje: soldado paraquedista Lourenço... deixado para trás (Manuel Rebocho).

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1453: Ninguém fica para trás: uma nobre missão do nosso camarada ex-paraquedista Manuel Rebocho

(3) Vd. poste de 24 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2478: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (9): Inimigos de ontem, amigos de hoje

(4) O Victor Tavares, que pertenceu à CCP 121 / BCP 12, camarada do mesmo batalhão e da mesma arma do Manuel Rebocho (CCP 123 / BCP 12) , já referiu o mesmo episódio, mas as datas não batem certo. Ele diz que quem capturou o Malan Camará foi a sua unidade, a CCP 121, em 22 de Dezembro de 1972. Será o mesmo Malan Camará ? Trata-se de um nome vulgar, mas também já é muita coincidência...

(...) 22 de Dezembro de 1972: captura do comandante do bigrupo de Malan Camará

Dia 22 de dezembro, o primeiro bigrupo da CCP 121 parte para mais um patrulhamento desta vez com destino as Caxambas Balantas, depois de andadas algumas horas atravessando matas, bolanhas e rios alguns de difícil passagem derivado ao imenso lamaçal e arvoredo rasteiro ou Tarrafo aonde nos enterrávamos até à cintura e por vezes mais a cima, tendo que ser ajudados pelos camaradas que mais rapidamente chegavam a margem segura.

(...) Referenciámos três pessoas desarmadas que seguiram o seu destino. Aqui montámos uma emboscada. Passados cerca de 10 minutos aparece uma mulher com uma criança as costas também no mesmo sentido. Poucos minutos passaram e aparecem pela mesma picada mas no sentido inverso 4 Guerrilheiros armados. Quando estes se aproximavam dos nossos homens da frente , estes abriram fogo abatendo de imediato 2 guerrilheiros ferindo os outros dois, tendo um deles conseguido fugir. Capturámos o outro, sendo ele o comandante de bigrupo de Simbeli, Malan Camará. (...)


Vd. poste de 15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2051: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (II parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339,(1968/69) > No final da comissão, em Novembro de 1969, o "autocarro do Amor" está pronto a deixar o "campo fortificado de Mansambo", como lhe chamavam os guerrilheiros do PAIGC, e embarcar no Uíge de regresso a casa...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339,(1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça, ao centro, num dos abrigos subterrâneos do aquartelamento, onde as fotos as estrelas de cinema (Catherine Deneuve ?) ajudavam os jovens, nos seus verdes anos, a alimentar e a sublimar o ardente desejo... de viver! Com Lisboa e o Porto, tão longe... e Bissau (1) pelo meio, mas só para alguns privilegiados....


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga> CART 2339,(1968/69) > No início da comissão, nos dias tranquilos, um guerreiro devidamente ataviado... E ainda havia, escondida, na camisa, a Manelinha, a 6.35, que fez jeito (ou melhor, deu alguma tranquilidade...) numa certa noite no Pilão, a oito dias do embarque no Uíge... É uma bela estória, Torcato! Se não a constasses, os teus filhos, os teus amigos, os teus camaradas, ficariam privados do conhecimento desta tua escapadela ao Pilão... e do prazer da tua escrita.

Fotos: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.

1. Texto do Torcato Mendonça. Enviado do Fundão com a nostalgia própria de um domingo outonal, 18 de Novembro de 2007.

Meu Caro aí vai o resto [da estória] do Pilão. Ao lado, a RTPN mostra A Guerra, em repetição. Que dizer? Digo boa noite ou bom dia…

Um dia falo disso, dos Estudos Ultramarinos, do Prof. Adriano Moreira, outras vidas de minha vida…


Um abraço,

Estórias de Bissau ( ) > O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô
por Torcato Mendonça


(i) Rotinas


Pela manhã ligar o computador, tomar o pequeno-almoço e voltar para espreitar o Blogue. Rotinas.

Hoje dez fotos, recentes, a mexerem comigo e certamente mais nos que por aqueles locais passaram. Trouxeram-me, não prazeres da memória, mas só, isso sim, memórias de um passado distante.

Sentei-me à mesa, com caneta, bloco e escrevo, como sempre ao correr da pena, nesta manhã fria, neste domingo com o Sol a entrar pela porta entreaberta da varanda aquecendo-me, a mim e ao Pluto, com os seus raios do calor de Outono. Ao fundo a Serra da Gardunha, o Monte de S. Brás e Alcongosta – capital da fruta – envoltas pela leve neblina do levantar da geada e orvalho.

Mais ao alto, muito mais alto, num céu muito azul, traços deixados por dois aviões, um vindo o outro indo para Lisboa. Cidade que foi Capital, dizem, de um Império glorioso. Paro em breve reflexão e abano a cabeça em discordância. Continuo a olhar o céu azul e o traço de dois, e mais um, três aviões, certamente a caminho dessa Europa ou sei lá.

Imagino viagem para terra distante. Para a Guiné? Porque não rever aquela terra, as suas gentes, sentir o calor e, nesta época, talvez ainda a chuva. Cumpriria assim a promessa feita em Amedalai, quando do regresso ao meu País. Eu volto. Nunca o fiz. Certamente não o farei. Sinto uma certa mágoa, um certo aperto no peito, uma vontade de voltar aos verdes anos. Hoje, já velho, iria em busca de outros velhos e velhas, mas em paz ou a acertar contas com ela, finalmente. São recordações de prazer e tormento. Fico aqui. Vou sempre ficando aqui, em tempo cada vez mais curto. Paro novamente. Sinto a tristeza do desejo não realizado e a solidão a entrar. Só. É isso, só. As dez imagens, o recordar outras, deixaram-me só.

Se passar à tecla e enviar aproveito para fazer a declaração de voto. Porque não recordar Bissau e o Pilão ? ! Agora não. Vou beber mais um café.


(ii) Declaração de voto

É difícil, muito difícil, pensar hoje como nos meus verdes anos. Regredir quarenta anos não é fácil. Depois, o medo de errar no relato dos factos ora passados. Hoje vejo tudo de forma diferente. Só que os relatos feitos são os do passado e analisados como tal. O ter durante tanto tempo recalcado na memória, bem lá no fundo, tudo isso não dará uma deformação ou erro ao relato actual? Assumamos contudo o que escrevemos hoje. Objectividade, honestidade e, sempre, a tentar relatar o que efectivamente aconteceu.


Difícil responder á sondagem sobre o Pilão!

Não sei se o azeiteiro, chulo ou proxeneta, não terá razão, ao avisar para os perigos da noite no Pilão. Todos, ou praticamente todos, os que passaram pela Guiné deram uma volta pelo Pilão. Qualquer graduado pediu aos militares que comandava para, no Pilão ou noutro lugar da “noite guineense”, terem cuidados redobrados. Desde que se seguissem as regras elementares, próprias daqueles “locais”, o perigo era menor. Todos conhecem as regras, a maioria visitaram cá em Portugal locais de diversão nocturna. Essas regras são estabelecidas pelos donos da noite.

É difícil votar em N/ discordo, N/concordo…. Voto em Discordo. Até porque não gosto de meias tintas e muita gente do Pilão e de outros Pilões são gente boa, igual á que habita por tanta cidade com a “noite”, ali ao lado.


(iii) Bissau e o Pilão


Bissau foi para mim uma cidade de passagem. Chegadas e partidas de e para a Metrópole e uma vinda até ao Hospital Militar. Ao todo, cerca de oito chegadas e partidas que certamente não totalizaram mais de quinze ou vinte dias de estadia. Não sei ao certo. Nesses dias confesso que procurei “viver”. Mas o que era viver numa cidade daquelas? Comer, beber e beber, ter encontros e fazer as visitas possíveis. Visitei pois o Pilão, o bordel, o hotel, a pensão, o quarto particular, o café, o restaurante e até, em Santa Luzia, a piscina.

Conheci gente boa e recomendável, gente, dita, menos boa e não recomendável. São factos que a todos aconteceram. Uns contam-se, outros ficam no arquivo da memória. Um do Pilão, quase no fim da comissão conto; de Santa Luzia, não.

Só um breve relato, certamente aconteceu a muitos, algum ou alguns desejos loucos. Já no fim da comissão tinha dois desejos: comer uma sandes de fiambre e manteiga, acompanhada com uma Cola gelada e depois beber um café duplo… lentamente. O outro era passar debaixo da Ponte do Tejo – 25 de Abril, hoje, pois nessa altura, era Salazar.

Levanto só um pouquito de outre desejo… comer uma branca…ponto!

Satisfiz os desejos?! Razoavelmente. O pão da sandes era bera e não vi bem a parte debaixo da ponte… Era arruivada… a ponte claro… por debaixo.


(iv) O Pilão em Novembro de 69

Bem. Fica para amanhã ou num outro dia qualquer. Nem só o sujeito dos conselhos era chulo. Este, o que me calhou na “rifa” no Pilão, tratava da vidinha por dez réis. Quantos, bem colocados, não a tratavam por milhares?

(…) Em finais de Novembro de 1969, vim para Bissau à espera do embarque. Devido ao Capitão L. Henriques ter menos tempo de comissão e o Alf Cardoso (2º Cmdt) estar no Hospital Militar, doente – felizmente esperava-nos em Lisboa – fiquei eu a comandar a Companhia.

Todos os dias, pela manhã, tinha que aturar o 1º Clemente com a papelada. Depois ia de jipe ver os militares e tratar de vários assuntos. O condutor, bom conhecedor de Bissau, encurtava viagem atravessando o Pilão. Eu ia vendo, fixando lugares e, confesso, ia sempre armado e atento. Foi isso que talvez me tenha safado, no mínimo de levar uma valente tareia, dias depois. Mantive esse costume.

No verão quente de 75, mesmo antes e depois, quando atravessava o Alentejo era mandado parar muitas vezes. Revistado por GNR, aprumados militares e civis, grandes defensores dos valores revolucionários e democráticos. Enojava-me. Só abri a boca, se bem me lembro, duas vezes. Uma para dizer a um GNR:
- Cuidado, esse saco tem fraldas com caca do meu filho… - E.a outra para “pedir” a um oficial, barba e cabelo grande, farda em desalinho:
- .Respeite o uniforme que enverga. - Olhou-me e calou-se. Nunca viram que eu estava armado. Mas que tem isto a ver com o Pilão? Pouco ou nada, a não ser o andar armado.

A tarde ou o fim dela, ficava livre para passear por Bissau. Eram horas então de lanchar/jantar nos lugares habituais. Ostras, camarão, mais um sólido ou outro e muito líquido. Seguia-se a digestão com auxílio de uísque e ida aos lugares de todos conhecidos. Um deles era A Meta. Ainda não ouvi aqui referência a ela. Não se entrava fardado, tinha uma pista de carros e pouco mais. Era do Viriato, ex- Fuzileiro ( como o meu amigo Sargento Fuzileiro “Piçarra” – alcunha devido a cantar bem – o nome era Ludgero e estava talvez na terceira ou quarta comissão). Outras vidas.

Em noite de bom consumo de bebida, acompanhado de dois amigos, fomos até ao Pilão. O taxista largou-nos junto a um dancing ou night-club qualquer. Por ali andei e, como a música não me agradava, vim apanhar ar. Aproveitei um táxi que largava”malta”. Pedi ao taxista para me levar onde houvesse uma cabo verdiana. È já perto. Parou pouco depois, saiu e voltou rápido. Tudo certo. Paguei bem a “corrida” e lá fui. Era jeitosa a Nônô. O resto foi o normal. Só que eu queria ficar mais um pouco, ela a dizer ser tarde e a ficar inquieta. De repente batem forte à porta. Ela olha-me a tremer. Sentei-me na cama, os últimos restos de álcool evaporaram-se. Puxei para junto de mim a cadeira onde estava a roupa. Pus a mão na camisa. Ela abriu a porta a um furacão. Um chulo branco.
- Que raio é isto ? - vociferou o matulão - Veste-te e desaparece.
- Ia já, respondi-lhe.

Puxei a camisa e poisei as mãos na Manelinha (a 6.35,e coitada) e na Zézinha (faca com cerca de palmo e pouco de bom aço). O tipo olhou-me. Fundiram-se olhares de ódio ou de bestas. Ele foi-se, batendo fortemente a porta. Ela estava aterrada. Vesti-me e pedi-lhe:
- Baixa a luz do candeeiro e abre a porta.

Sabia que havia, frente à porta uma vala funda e um pequeno passadiço. Só depois estava a estrada.

Ela abriu, a medo, a porta. Empurrei-a para a rua e saltei, baixo, para o lado. Esperei pouco. Vim rua abaixo, coração a bater e sentidos alerta, pensamento a dizer-me:
- Parvo, a menos de uma semana do embarque.

Estrada com candeeiros de luzes fracas e postes muito distanciados. Aparece um mercado à esquerda e à direita vislumbro dois ou três tipos. Sinto que me olham. Sei onde estou e a estrada, Santa Luzia/Bissau estar logo ali. Chego lá rápido e espero pouco. Ao fundo vejo luzes de uma viatura. Quando se aproxima salto para a estrada com braços ao alto. Pára um jipe, com dois militares. Meto a mão ao bolso e identifico-me. Estava à civil e a custo levaram-me.

Voltei a Santa Luzia na carrinha que parava, salvo erro, próximo da Amura.

No outro dia depois do almoço vim, como era habitual, estar com a Companhia. Descobri a casa dela. Pedi para parar e fui lá. Bati à porta e ela abriu. Olhou-me admirada e recuou. Entrei e acalmei-a.
- Desculpa o empurrão. - Conversamos e fizemos as pazes. Voltei lá mais vezes.

Ela disse-me quem ele era. Encontrei-o junto ao táxi. Reconheceu-me e ficou expectante. Eu tinha as mãos nos bolsos. Sorrimos, porque compreendemos o ridículo da situação.

Falamos e disse-me ter ficado em Bissau a tratar da vidinha. Cá, em Portugal, não tinha grandes hipóteses. Prometeu, em palavra de chulo, não voltar incomodar branco. Ainda utilizei o táxi e bebemos um copo.

O resto arquiva-se.

Poucos dias depois, a 4 de Dezembro de , embarquei. Entrei no barco com medo de me virem buscar para a Comissão Liquidatária. Só pedia:
- Desatraca e anda, Uíge dum cabrão!… - E partiu finalmente.

Ficou o Capitão, para agrado dos Sargentos, a tratar da papelada. Coisas de profissionais.

___________

Notas dos editores:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

(2) Vd. posts de:

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2259: Blogpoesia (7): Nas terras de Darsalam, no Cantanhez, adormeceste, para sempre, como herói, meu querido Sasso (J.L. Mendes Gomes)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (ex-Furriel Mil, CCS do BART 1913, Catió 1967/69) > Catió, Quartel > 1968> Foto 36 > "Um Pôr-do-sol visto do edifício do Comando na direcção à Porta de Armas e depósito de géneros".

Foto e legenda: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (1), enviada em 7 de Novembro último:


Caríssimo Luís

As bolandas complicadas da vida só hoje me deixaram ver o post de 17 de Julho último em que publicaste o meu Embondeiro do Cachil (2).

As duas palavras que me dedicaste comoveram-me. Pela sinceridade. Obrigado. Por essa razão, ficou por esclarecer, da minha parte, a dúvida que me colocaste. (Sobre se é Embondeiro ou Poilão?) Não foi preciso, porque a explicação apareceu lá, muito clara e fundamentada.

Encontrei, entretanto, um poema que escrevi, quando da morte do nosso camarada alferes Mário Sasso, da minha companhia CCAÇ 728, na operação do Cantanhez. Aqui to deixo para publicares, em sua homenagem, se o entenderes.

O nosso/teu Blogue...continua altamente frutuoso e interessante. Parabéns ao seu mentor e novos colaboradores.

2. Comentário de L.G.:

Mesmo com as "bolandas complicadas da vida" (as bolandas e as bolanhas, acrescento eu), tu conseguistes parar para escrever este terno e fraternal poema a um amigo caído em combate no longínquo Dar es Salam, mata do Cantanhez, Guiné-Bissau, em 5 de Dezembro de 1965, a milhares de quilómetros de Lisboa, Portugal, a norte, onde tu hoje vives, ou da Beira, Moçambique, a sudeste, onde o Mário nasceu...

Só um camarada de guerra consegue escrever, nem lamechices nem sem falso pudor, um poema destes a outro camarada de guerra... Todos nós trouxemos, às costas da nossa memória, os amigos que perdemos lá em baixo... E muitos de nós ainda não conseguiram fazer o luto dessas perdas, vivendo com um contraditório sentimento de culpa a sua tão injusta morte... Porquê ele, e não eu ?...

Joaquim, eu sei que Berlim te chama de vez em quando, mas deixa-me dizer-te que tenho sentido a tua falta no nosso blogue... A tua grandeza de alma, a tua estatura moral e o teu talento literário fazem-nos falta nesta nossa (e tua) Tabanca Grande... Até sempre, Mário, até sempre, Joaquim!

3. Poema > Em memória do Alferes Sasso (3)

por J.L. Mendes Gomes


Estou a ver-te,
no regresso:
Alto, esguio,
óculos escuros.
Tato claro, de corte fino.
Tão vaidoso,
pelas tardinhas de Domingo,
calçada velha acima,
até ao quartel
da velha Évora.
De braço dado,
num corpo só,
com tua moça,
formosa companheira,
boa,
das noitadas do fado,
castiço,
de Lisboa...
de ambos vossa amante.
Que encanto!

Parecieis mesmo
um casal americano,
tranquilo e tão ufano,
pelo meio do casario branco,
do coração alentejano!...

Que alegria!...
Que vontade de viver
de ti transparecia
pela semana inteira,
de olhos presos
à tua amada!...

Eras sempre o primeiro:
nas paradas,
secas, militares
e nos crosses atletas,
sem parar,
pelas estradas ermas,
e sem fim,
de sobreiros tristes,
através dos montes
do Alentejo...

Nos desafios permanentes,
pronto e voluntário,
prós exercícios
mais malucos....
Que pavor!...
da maluqueira militar.

Ora endiabrado trepador
daquele palanque,
alto e estreito,
de cimento...
ora dependurado,
na vertigem alucinante
da corda e da roldana...

Nas caminhadas nocturnas,
por aquele mundo,
de eremitério,
prás emboscadas perdidas,
nas veredas, ao luar,
prós golpes de mão,
temerosos, traiçoeiros,
mesmo a fingir,
tu levavas tão a sério...

Que exemplo vivo,
de vontade louca
de viver
o dia a dia,
tu me deste,
sem saberes!...

Quiseram as sortes
pra ti malvadas,
levar-nos a todos,
p'rá Guiné!...

Que romaria e arraial
havia sempre
à tua beira!...
Com a viola e o acordeão!

Tua voz rouca,
bem timbrada,
a retinir,
os fados todos
de Lisboa,
tão saudosa...
fazia dó!
Encantadora companheira
nas noitadas solitárias,
do Cachil e Catió...

Como lembro
tuas horas de desespero,
que vivias,
tão sincero,
em filosofia permanente,
à procura do sentido
da nossa dor,
e nossa vida, sobre a terra...

Que sentidos
desabafos me fizeste,
nas vésperas
da tua hora derradeira,
tão a sós,
em noitada de cavaqueira,
tão fraterna,
num duelo filosófico
e porfia verdadeira...
olhos presos,
bem abertos,
às belezas de paraíso,
das escravizadas terras africanas
e ao futuro da vida
que tanto amavas!...

Como suspiravas
encontrar
o caminho certo,
iluminado
do viver...

Eis que
no alvorecer duma aurora,
de suave e fresca neblina,
quando o sol
nascia em liberdade,
a oferecer mais um dia
ao mundo
e à desavinda humanidade,

depois duma noite,
sem sentido,
inteirinha
a caminhar,
por entre matas densas
das terras de Dar es Salam... (4)
adormeceste,
para sempre,
como herói...
no regaço
dos teus irmãos,
ali ao pé!...

Nunca mais te esqueceremos!...
Ó eterno amigo,
Ó companheiro
Sempre nosso!...

Até à vista!
Querido Sasso!...


__________________

Notas de L.G.:

(1) Sobre a história da CCAÇ 728, vd. os seguintes posts:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu


(2) Vd. post de 17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1963: Blogpoesia (1): O embondeiro do Cachil (J. L. Mendes Gomes)

(3) Mário Henriques dos Santos Sasso, Alferes Miliciano, do Exército, morreu em combate na Guine, em 5 de Dezembro de 1965 (Fonte: Liga dos Combatentes > Mortos no Ultramar)

Sobre o nosso camarada, vd. os seguintes posts:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

(...) Este é o modesto contributo de um combatente da Guiné, um canário de caqui amarelo, nos anos 64-66. É a minha perspectiva pessoal e muito restrita. Feita de memória, e por isso, sem pretensões de exactidão histórica.

A primeira parte sai dum texto romanesco, em que quero homenagear a memória do meu camarada alferes Mário Sasso. A segunda é extraída duma rudimentar autobiografia, que eu já tinha escrevinhado para os meus netos. (...)


2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo


(...) O Mário Sasso, um moçambicano (da Beira) radicado há uns bons anos, na boémia e no fado alfacinha, de Lisboa, era o comandante do 1º pelotão. Tinha feito um bom curso em Mafra e, por feitio, tinha de ser o melhor em tudo. Brioso, procurava ter uma conduta semelhante à figura.

Quis ingressar nos comandos, mas o coração não lhe aguentaria o esforço.Versátil e sensível, tocava viola e acordeão e cantava o fado castiço, ajudado por uma voz rouca, mas afinada. Era o mais citadino dos quatro [alferes da CCAÇ 728]. (...)


29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez


(...) A CCAÇ 728, aproveitando a maré-cheia, saíu, à noitinha, do cais de Catió a bordo de uma LDM; atravessou o estuário do Cacine e foi deixada, nas primeiras horas da madrugada, algures, em terra firme, do território inimigo.

Todo o cuidado era pouco. Tocou ao meu pelotão seguir à frente, logo depois do destemido grupo indígena do João Bacar Jaló.

Caminhou-se toda a noite; quando o dia começava a querer alvorecer, estávamos a atravessar a zona, crítica, de Dar es Salam [ou Darsalam].

De repente, alguns tiros caíram sobre o pelotão que seguia na cauda da fila, comandado pelo alferes Sasso.

A resposta foi pronta e, depressa, tudo se calou.

À frente, nada se tinha passado.Só quando o dia nasceu e um helicóptero chegou, tivemos conhecimento de que o Mário Sasso tinha sido atingido com um tiro nas costas que lhe vasou o pulmão e coração. A esperança de sobreviver era pouca… e assim foi.
(...)

(4) Ou Darsalam, segundo a carta de Cacine.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1997: Álbum das Glórias (22): O Alf Mil Pires, cmdt do Pel Caç Nat 63, em Mato Cão, na festa do meus 24 anos (Joaquim Mexia Alves)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Destacamento de Mato Cão > 6 de Abril de 1973 > O Joaquim Mexia Alves, cmdt do Pel Caç Nat 52, recebe a visita do Pires, cmdt do Pel Caç Nat 63, no dia em que fez 24 anos. Um gesto bonito, de solidariedade e de camaradagem.


Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada, matulão, Joaquim Mexia Alves, ex- Alf Mil Op Esp, que esteve na Guiné, entre Dezembro de 1971 e e Dezembro de 1973, tendo pertencido à CART 3492 (Xitole), ao Pel Caç Nat 52 (Mato Cão / Rio Udunduma) e à CCAÇ 15 (Mansoa).


Caros Luis Graça e camaradas trabalhadores da Tabanca Grande

Corpo di bó ?

Bem hoje é apenas para enviar fotografias do Alf Mil Pires que à data, 6 de Abril de 1973, comandava o Pel Caç Nat 63, sediado em Fá Mandinga.

O Alf Pires foi ao Mato Cão neste dia em que eu fazia 24 anos para me dar um abraço.

Era um gajo porreiro e envio as fotografias para a história dos Pelotões Africanos (1) e para que talvez, vendo-as, se junte a nós.

Não sei se foi ele que substituiu o Jorge Cabral, mas penso que ainda houve outro Alferes de permeio.

Abraço amigo do

Joaquim Mexia Alves

joaquim.alves@termasdemontereal.pt

geral@termasdemontereal.pt
tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029


____

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 28 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1896: Encontro dos Pel Caç Nat 51, 52, 53, 54, 55 e 56 (Henrique Matos)

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1957: Em busca de... (1): Antanho Victor Ribeiro Mendes Godinho, Cap Mil, CART 3492, Xitole, 1972/74 (Álvaro Basto)


1. Mensagem do Alvaro Basto (1) para Manuel Cruz:

Caro Manuel Silva F. Cruz:

Antes de mais gostaria de lhe pedir desculpa por esta abordagem mas, percorrendo o Blogue do Luís Graça, descobri que foi Capitão Miliciano na Guiné e comandante da CART 3493 [,BART 3873, Mansambo e Cobumba, 1972/74].

Eu fui Furriel Enfermeiro no Xitole, na mesma altura, na CART 3492 [, pertencente ao mesmo BART, com sede em Bambadinca,] e, com algum tempo livre actualmente, tenho-me dedicado a executar buscas no sentido de recolher informações actualizadas de todos os oficiais, sargentos e praças com quem (con)vivi de Novembro de 71 a Abril de 74 por terras de África.

Ora acontece que praticamente só me falta o contacto do Antanho Victor Ribeiro Mendes Godinho, na altura capitão miliciano da nossa CART e que decerto conheceu bem por força das responsabilidades que na altura sem dúvida partilharam.

Gostaria de saber se por acaso não tem um contacto qualquer dele, já que todas as tentativas que fiz no sentido de o encontrar têm sido goradas.

Antecipadamente grato e com votos de boa saúde, receba as minhas saudações amigas.

Álvaro Basto

_____________

Nota dos editores:

(1) Vd. post de 26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1888: Tabanca Grande (19): Álvaro Basto, ex-Fur Mil Enf, CART 3492/BART 3873 (Xitole, 71/74)

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1880: Uma farda universal para miliciano se identificar (Beja Santos)


Bilhete de identidade militar do Aspirante Miliciano Mário Beja Santos, emitido pelo Ministério do Exército em 16 de Dezembro de 1967.

Foto: © Beja Santos Beja Santos (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Quando vi o Matos Francisco (1) fardado, até tive a ilusão que ele comprara uma farda com o seu número, tão perfeita é a adequação entre o homem e a indumentária. Para quem não se recorda, quando íamos ao fotógrafo posar para o bilhete que, creio, só servia para os transportes, para a polícia militar e para entrar no Casão, havia dois modelos à escolha, o destinado aos altos e aos baixos. Nada de contemplações com os magros, os macrocéfalos, braços longos ou curtos. Havia gente dentro da bitola e os que escapavam.

Olhando à distância de 40 anos, logo me veio à presença um chapéu estreitíssimo e uma roupa cheia de chumaços que me tornou um atleta, eu fiquei contente porque não mostrei os meus braços de símio, era um magrizelas transformado em atleta e até gostei do meu ar de sargento da polícia. Aquelas fardas estavam ligeiramente sebentas, tais e tantas fotografias tiraram de gente estranha ao equipamento universal.
Para que conste...
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1871: Tabanca Grande (15): Henrique Matos, ex-Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

Guiné 63/74 - P1879: Henrique Matos Francisco, brindo à tua chegada e à memória do nosso Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)

1. Mensagem de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Em louvação dos nossos camaradas, da sua estima, do seu esforço e da nossa memória

Meu Querido Henrique Matos Francisco (1), eu posso imaginar amanhã a estupefacção e a alegria do Queta quando, no dealbar da manhã, eu lhe mostrar a tua foto e o teu ingresso no blogue. Vai haver risada pela certa, o Queta é muito disciplinado, sabe que a nossa agenda de trabalho tem a ver com a ida ao Enxalé, o patrulhamento dos piriquitos da CCAÇ 12 perto de Madina, os trabalhos em Finete nos finais de Julho de 69 e a dolorosa emboscada em Malandim onde alguém me chamou branco assassino (sic).

Mas tenho quase a certeza que o Queta te vai mandar um grande abraço, tu fazes parte do imaginário do Cuor, nas noites de narrativa oral o teu nome vinha à baila, vai ser bom colarmos a existência do 52 aos seus diferentes comandantes, a começar por ti. Quando, no sábado, depois de ler os resumos do Guardian e do El Pais, entrei na nossa pátria de recordações e tu apareceste, quero que saibas que me escorreram algumas lágrimas por ver vincar-se a memória das nossas lutas, tornar-se possível ler a história do combate dos nossos soldados e saber que tu estás bem.

A outra alegria que tive foi saber que tu és jorgense, ilha onde passei férias na região da Calheta. Deves ter orgulho nas belezas naturais do teu chão, não há hortênsias com azul mineral mais intenso que aquelas que vi entre a Calheta e o Topo. E para quem não sabe, a Caldeira do Espírito Santo é uma formusura de lava que transcende todos os espaços mágicos dos ambientes vulcânicos.

Tens aqui no blogue toda a história que se iniciou a 4 de Agosto de 68, tu não estavas, há meses que o Saiegh comandava o 52. Dentro em breve, estaremos em Agosto de 69, aqui findará, mas sem interrupção, o primeiro ano do meu diário de bordo, continuam as idas a Mato de Cão, volto ao Xime, caio novamente doente a ponto de ditar as minhas cartas mais íntimas, assistirei ao desmoronamento psíquico do meu lugar-tenente, farei mais emboscadas, Missirá continuará a sofrer pequenas flagelações, como eu esperava Finete será dura e longamente flagelada, teremos depois uma mina anti-carro não muito longe onde se volatizou um burrinho do pelotão do Zagalo (a propósito, nunca chegaste à fala com o Zagalo?) e por aí adiante.

Amanhã à tarde o teu nome será falado na comunidade guineense que se reúne no Rossio. Depois, pelo telefone, farei constar ao Cherno que Matos Francisco existe e tem coisas para contar. Ele irá a Missirá dar a notícia ao régulo Bacari Soncó. Brindo à tua chegada, desejo-te longa vida e quero contar contigo e o Mexia Alves e o Nelson Wahnon Reis para que a história do 52 fique na memória de Portugal e da Guiné-Bissau.

Recebe um abraço do
Mário Beja Santos.
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1871: Tabanca Grande (15): Henrique Matos, ex-Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1849: Quero prestar a devida homenagem ao meu tio, o Alf Mil Manuel Sobreiro, da CART 1612, morto em Mampatá em 1968 (Nelson Domingues)






Guiné > Guileje > BART 1896 > CART 1612 (1967/69) > O Alf Mil de Minas e Armadilhas, Manuel Sobreiro, natural de Leiria, morto numa acidente com um granada defensiva, em Mampatá, em Fevereiro de 1968. Alguém se lembra dele e das circunstâncias em que morreu ?

Fonte: Nelson Domingues > Blogue > As Verdades do Sobreirito(2007). (com a devida vénia...).

1.Mensagem de Nelson Domingues:

Boa noite!

Espero que se encontre de boa saúde.

(i) Sou sobrinho de Manuel Sobreiro, Manuel Jesus Rodrigues Sobreiro (1942-1968).
(ii) Tombou a 24 de Fevereiro de 1968.
(iii) Causa (oficial ou oficiosa): Acidente .
(iv) Unidade Mobilizadora: RAP 2.
(v) Ramo das Forças Armadasa: Exército.
(vi) Naturalidade: Chã da Laranjeira, Sto. Carpalhosa.
(vii) Posto e nº mecanográfico: Alferes Miliciano de Artilharia nº 0022363.
(viii) Unidade a que pertencia no CTIG: Alferes Miliciano Manuel Sobreiro – 2º comandante da CART 1612.

Eu e a minha família sempre ouvimos falar de muitas verdades sobre o acidente que vitimou o meu tio, mas por mais histórias que haja, o meu desejo é recolher o máximo de informação sobre o meu tio para o homenagear condignamente no dia 28 Fevereiro de 2008, no 40º aniversário do seu desaparecimento.

Não o vou maçar mais, agradeço desde já a sua amabilidade para consultar o humilde blogue que estou a iniciar.

Os meus cumprimentos,

Nelson S S Domingues
Rua de Leiria nº 117 1º Andar
2425-039 Monte-Real

Blogue > As Verdades do Sobreirito


2. Reprodução do post de 12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLV: As malditas formigas pretas do José Teixeira (Zé Neto)

Luís:

A minha intenção era ficar aqui caladinho no meu canto para não entupir a formidável sequência de factos das campanhas da Guiné. (Creio que estamos a construir um monumento histórico e inédito). Mas o José Teixeira tem o condão de me despertar recordações dispersas, pois fala de sítios por onde andei. Admiro-o muito.

E, a propósito das desgraçadas formigas, veio-me à memória a morte inglória do meu conterrâneo Alferes Miliciano Manuel Sobreiro (2º comandante da CART 1612, por ser o mais classificado dos alferes). O Sobreirito (como eu o tratava na intimidade) tinha a especialidade de Minas e Armadilhas.

Em Fevereiro de 1968, precisamente na área de Mampatá, foi encarregado de desarmadilhar uma zona por onde iam alargar uma picada. Quando já tinha bem presa a alavanca duma granada defensiva instantânea e se preparava para introduzir a cavilha foi mordido num artelho por uma dessas formigas. Ao fazer o gesto de sacudir o insecto escorregou-lhe a alavanca e... sucumbiu crivado de estilhaços.

O Alferes Miliciano de Artilharia nº 0022363, Manuel de Jesus Rodrigues Sobreiro, natural de Riba de Aves, Souto da Carpalhosa, Leiria, não morreu em combate. Os senhores da guerra determinaram que foi "morto por acidente". Tanta injustiça que se cometeu!!! Um dia hei-de abordar este tema (1).

3. Comentário de L.G.:

Infelizmente o nosso amigo e camarada Zé Neto (1929-2007) já não está entre nós para poder dar esclarecimentos adicionais sobre a morte do Alf Mil Sobreiro, seu conterrâneo, e que pertencia ao mesmo batalhão (BART 1896). A menos que a sua neta Leonor, de 17 anos, descubra algum escrito, no computador do avô, que volte a abordar este acidente.

De qualquer modo, as nossas saudações ao Nelson, seu sobrinho, por este gesto público de grande ternura para com o tio Manuel Sobreiro, o Sobreirito. Veremos o que pode fazer a nossa tertúlia, de modo a honrar a memória do tio e do sobrinho. Todos nós temos direito à verdade, a começar pelos familiares e amigos dos nossos camaradas que tombaram na Guiné, em combate, por acidente, por doença ou por qualquer motivo. L. G.

__________

Nota de L.G.:

(1) A CART 1612 era um das três companhias operacionais do BART 1896 (As outras duas eram a 1613 e a 1614). Segundo o Zé Neto, esta última, a CART 1614 era "a subunidade turista da Guiné que nunca ninguém do Batalhão conseguiu descobrir a razão de ficar sempre de fora dos petiscos que calharam às outras duas companhias operacionais (1612 e 1613)". E acrescenta, com ironia: "Eu desconfio, mas, para misérias do Celestino já basta!"...

Sobre esta unidade, há já algumas referências na Net. «Vd. o post de:

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço

(...) "Pesadas baixas para a CART 1612, na sequência do recrudescimento da actividade operacional do PAIGC

"Há documentos oficiais que confirmam que em resultado de uma mina anti-carro com emboscada, na estrada Mampatá−Uane, morrem 4 soldados da CART 1612. Não tenho elementos que me permitam concluir se estas acções se interconectam, pois o que então me afirmaram é que a captura dos elementos fora operada num ataque com assalto a um pequeno destacamento.

"Esta Companhia de Artilharia, num curto espaço de tempo, é agressivamente fustigada, e relacionada com as colunas Buba − Aldeia Formosa − Gandembel, perdendo um número incrível de militares, em mortos e feridos" (...).

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1657: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (41): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (3)


41ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 19 de Março de 2007.


Cartas de um militar além-mar em África para aquém em Portugal(3º e última parte)

por Beja Santos



Carta para o Paulo Simões da Costa

Meu estimado Paulo

Recebi a tua carta a caminho de Nampula. Espero que na secretaria tenhas uma existência agradável e nas horas vagas possas apreciar as beleza naturais, que me dizem ser assombrosas. O fotógrafo Luís Soares, que trabalhou com o meu pai, ofereceu-me uma fotografia da ilha de Moçambique que me deixou sem fala.

Por aqui vivemos um período de grandes dificuldades, a reconstruir Missirá, bem afectada por um ataque que incendiou metade das moranças civis. Felizmente que tem sido possível conciliar as obrigações inadiáveis dos nossos patrulhamentos diários com a reconstrução. Tenho muito orgulho nos meus soldados que prescindem férias e descanso.

Dentro em breve irá para Moçambique o Carlos Sampaio, seguramente mobilizado para um teatro de operações. Como tu gostas muito do Malraux (sobretudo o estudioso da arte) quero informar-te que vai seguir pelo correio um livrinho da colecção Miniatura, dos Livros do Brasil, que me surpreendeu pela alta qualidade literária, quando ele tinha a nossa idade. Tu vais ler diálogos imaginados entre um francês possídor de conhecimentos de obras chinesas que troca correspondência com um chinês, fascinado pela cultura ocidental.

Para te despertar a curiosidade, aqui vão algumas passagens. Escreve Ling: "O artista não é aquele que cria mas aquele que sente... o tempo para vós é aquuilo que fazeis dele e nós somos o que ele faz de nós". O correspondente francês procura sensibilizá-lo coma a ideia de nação, o sentido da alma ocidental, as fontes da vida imaginária e o génio europeu. O chinês contrapõe e esclarece a diferença que separa as duas sensibilidades: "Se sonhamos é apenas para pedir aos nossos sonhos a sabedoria que nos recusa a vida. O sonho do chinês não é povoado de imagens, ele não vê nem velhas conquistas nem a glória, mas a possibilidade de apreciar tudo com perfeição, de não se prender ao efémero".

Quando o francês procura esclarecer o chinês acerca das experiências artísticas, fazendo coincidir a história da Europa com a história da sua arte, ele responde: "Para o pensador do Extremo Oriente, o único conhecimento digno de ser adquirido é o do universo. O mundo é o resultado da oposição de dois ritmos que penetram todas as coisas existentes. O seu equlíbrio absoluto seria o nada; toda a criação procede da sua ruptura e implica necessariamente a diferença".

Dou comigo às vezes a pensar nestes labirintos silenciosos onde nos encontramos e ficamos em diálogo como amigos de longa data. Olha a curiosidade: a 11 de Abril de 67, almocei em minha casa com o Carlos Sampaio e a minha mãe. O Carlos levou-me à estação, entregou-me livros, prometemo mantermo-nos em contacto. A seguir apanho o comboio e conheci-te e aqui estamos. Desejo do coração que tudo corra bem contigo e que me ajudes nos momentos mais difíceis e me encorajes a resistir a esta dura canseira. Fica com muita estima.


Carta para José Carlos Megre

Meu caro Zé Carlos

Recebi a tua carta com a revista em que publicaste um poema meu. Tenho muitas saudades do tempo em que na Av da República, 84, 4º, confeccionávamos com o Pedro Roseta e o Barata Moura o nosso Encontro. Tu empurraste-me para as críticas de cinema e teatro, ensinaste-me as manhas para enganarmos a censura, deste-me a conhecer Mounier, aprendi contigo o que era o catolicismo de vanguarda e a importância de muitos títulos da Moraes Editora.

Não te quero deixar sem uma compensação. Imagina tu que antes de ir para a Guiné um amigo me ofereceu um livro da Simone Weil, autora que eu desconhecia, com uma temática extremamente arrojada: uma crente que está nos umbrais da fé, que se sente chamda por Cristo, mas que ainda não pode ultrapassar o silêncio. Vou mandar-te o livro, logo que ele esteja bem digerido. A Simone Weil, militante da Extrema Esquerda que por ser judia é forçada a abandonar a França e conhece exílios na América e em Londres, onde morre precocemente. O livro chama-se Attente de Dieu e é constituído por cartas que envia a um religioso. O que pasma é a sua extrema sinceridade, a sua força espiritual e o conhecimento do cristianismo. Ela aproxima-se da Igreja, mas está cheia de dúvidas.

Dou-te só dois pequenos exemplos da beleza desta escrita: "A infelicidade está verdadeiramente no centro do cristianismo. Amar a Deus ou amar o próximo passa pela infelicidade. Não podemos amar a Deus senão olhando a Cruz". E mais adiante: "No amor verdadeiro, não somos nós que amamos os infelizes em Deus, é Deus em nós que ama os infelizes. Quando estamos mergulhados na infelicidade, é Deus em nós que ama aqueles que nos querem bem". Aqui, neste ponto ermo, esta espera de Deus veio em meu auxílio. Espero que aprecies esta grande senhora que foi professora de filosofia e que quis combater na Guerra Civil de Espanha, uma agnóstica que um dia confessou: "Cristo desceu e tomou-me".

Zé Carlos, tomei a decisão de não voltar a publicar poemas, não sou poeta, o que escrevo é uma xaropada, há que ter respeito por quem paga jornais e revistas. Acresce que o que me vai na alma muitas vezes é tão doloroso que receio confundir a conjuntura com o sentimento definitivo. O que escrever vou guardar, sem quaisquer compromissos. Sempre que puderes, manda-me os jornais para eu ter saudades do ideal e da alegria com que colaborava no nosso jornal E escreve-me sempre pois um dia esta guerra vai acabar e tu vais ajudar-me a recomeçar. Obrigado por tudo.

Carta para Cristina Allen

Meu Adorado Amor

Chegaram ontem duas cartinhas tuas. Agradeço-te as visitas que fizeste ao Fodé e ao Paulo, isto quando estás a fazer frequências. Antes de falar do que tem aqui acontecido, quero dizer-te que o teu antigo professor de Expansão Portuguesa, o Teixeira da Mota, fez de mim seu ajudante para confirmar alguns dados. Penso que ele anda a preparar seja um livro acerca do Teixeira Pinto, seja sobre as guerras da pacificação da Guiné, assim que lhe disse que estava vivo o último filho do régulo Infali Soncó, logo me mandou uma bateria de perguntas acerca desse lendário guerreiro que derrotou o Teixeira Pinto nas guerras do Oio.

Recolhi o depoimento de Alage Soaré Soncó com o auxílio do Benjamim Lopes da Costa e do principe Samba, que dominam perfeitamente o mandinga. Não te vou prender com o relato destas peripécias, ele foi amado e condecorado pelas autoridades portuguesas que mais tarde traiu sem piedade. O que gostei mais no relato deste Alage Soncó foi uma história passada em 1915 em que o Governador, que na altura vivia em Bolama, então a capital, se deslocou aos regulados do Leste da Guiné, onde se deu um grave incidente.

Infali saiu de Sansão (aqui ao pé de Missirá) acompanhado por músicos em sinal de boas vindas. Foi tal a algazarra dos músicos e o avanço de uma multidão a correr para o séquito do Governador que um alferes, desconhecedor do significado daquela fanfarra, mandou disparar, dando origem ao cerco dos portugueses pela gente de Inafali.

Foi preso um alferes, dois sargentos e catorze praças, que ficaram reféns, enquanto o Governador se punha em fuga. Começaram as hostilidades e um pouco á semelhança do que se passa hoje, começaram os ataques do Geba. Entretanto, o alferes, que vivia perto aqui de nós, em Aldeia do Cuor, apaixonou-se por uma linda negra de nome Cumba Mané. Como numa ópera ou numa tragédia literária, assim que vieram resgatar o alferes, este suicidou-se, há quem diga por insanidade mental, há quem diga que por um grande amor pela Cumba, que ele não queria abandonar (2). O que aqui te escrevo, juro-te que me foi contado e transmiti ao Comandante Teixeira da Mota.

Informo-te que já chegaram camas, lençóis e fronhas para substituir tudo o que foi devorado pelo fogo. Como as obras se vão prolongar por mais um mês e meio, como as casas ainda estão em construção, não é possível viver de outra maneira de que atamancados nos abrigos, à espera de dias melhores.

Dois meninos meus amigos vieram visitar-me, o Mazaqueu e o Abudu Cassamá. Prometi-lhes material escolar e roupa nova no mercado de Bambadinca. Espero dentro de dias passar uma semana em Finete, a dar apoio ao novo Comandante, Bacari Soncó. Vamos fazer um telheiro para as mulheres do chefe de tabanca, instalações sanitárias e dois abrigos.

Como tu achas graça às trivialidades, segue-se mais uma . Através da confidencial 1704/01/69, o Batalhão de Engenharia mandou-nos uma agradável mensagem: "Motoserra segue hoje via barco. Fica como material carga". Um mês depois do ataque a Missirá chegam as malditas chuvas e imprevistos tornados. Tenho casas alagadas, o tecto da casa de Uam Sambu andou pelos ares e veio cair na parada.

Bambadinca informou-me ter dado apoio às propostas para condecoração de três bravos soldados, Cherno Suane, Mamadu Djau e Mamadu Camará. O Almeida e o pelotão 63, que estão em Bambadinca, passaram um mau bocado numa emboscada na zona do Xime, foi uma duríssima hora debaixo de fogo em que foi preciso a aviação vir tirar do apuro e mesmo assim teve três soldados estilhaçados com gravidade.

Deixo boas e más notícias para o fim. Chegou o Casanova que me entregou o Chopin interpretado por Samson François (prelúdios) e por Vladimir Ashkenazy (os dois concertos). Não sei como te hei-de agradecer bem como aos teus pais. Volto a andar sem dinheiro, já tenho idade para resistir a certos impulsos mas apareceu aqui o soldado Sadjo Seidi em pranto com as dívidas do pai que ameaça matar-se se não paga as dívidas e passei-lhe para as mãos os meus últimos 500 escudos...

E logo o Sadjo me perguntou se para o mês que vem lhe posso emprestar dinheiro para comprar nova mulher já que a primeira fugiu com o outro que vive na povoação de Geba. Como te recordas, palmaram-me 1500 escudos que deixara em cima da mesa, ainda não estou recomposto com a violência desta agressão e aproveitei para dizer aos soldados quando nos reunimos que há bandidos que nos queimam as casas e há outros que nos roubam sossegadamente dentro delas. Mudando de assunto, o Djaló Indjai escreveu-me, já está a restabelecer-se e vai contactar-te.

Estou a ler Espera de Deus de Simone Weil. Desculpa hoje não te falar da obra, tal o cansaço. Amanhã quem vai de manhã cedo a Mato de Cão é o Casanova, temos os cibes cortados e quero estar presente na montagem do forro dos abrigos, onde depois metemos cimento dentro e por cima da chapa zincada. Mas este livro tocou-me tão profundamente que resolvi escrevinhar um textinho que é só para ti:

Caminhada

Tu és a minha companhia da viagem.
Quando a minha memória se povoa de pássaros cegos,
quando uma melodia de sal me traz à lembrança o cerco destas bolanhas,
onde os lótus frutificam dentro da água de arroz, insensíveis aos vermes,
tu vens na confidência das línguas de fogo,
tu vences esta solidão que se evapora nos alto fornos
resgatando a esperança
que está imobilizada na estrada acima do rio
para onde vou partir a pensar em ti
e na tua coragem textual.
Tu és a minha companheira de viagem.
Por isso, antes de partir
falo silenciosamente no açude dos tímpanos
e quero que saibas: é fausto este amor, é um concerto polar
este amar.
Graças a ti, há todo o sentido em esquecer estes pingos da noite, conferindo direito de nos ocupares a sombra
neste gigante equatorial de matas que se sucedem,
aguardando a tua mensagem.
Tu és o sentido da caminhada.



Este textinho é um arremedo poético que não mostrarás a ninguém. Quanto à má notícia, as mulheres dos soldados e milícias foram até à fonte de Cancumba e quando estavam a espalhar a roupa a corar explodiu uma daquelas armadilhas que o Reis montou à volta. A mulher do soldado Dauda Seidi teve que ser evacuada com o peito todo estilhaçado. Vou trazer o Reis em breve, já não aguento estes sobressaltos. Desculpa, agora vou mesmo dormir. Recebe todo o meu amor e escreve-me depressa.

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. último post desta série > 30 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1637: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (40): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (2)


terça-feira, 6 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1567: Histórias de Vitor Junqueira (8): Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira foi alferes miliciano de uma companhia açoriana que fazia parte do COP 6, cujo comando era Mansabá. Sempre foi um homem exigente consigo e com os outros, como o prova este execertyod e e-mail que mem amdou a pedir para correcções de pormenor ao etxto que hoje se publica: "Como alguém (tu?) já disse, no Blogue não há lugar para mentirosos. Porque a mentira tem a perna curta, um mentiroso apanha-se mais depressa que um coxo. E na Tertúlia há sempre a possibilidade de alguém conhecer a versão autêntica da nossa história. Por isso despendi várias horas a redigi-la, consultando papéis, relendo relatórios, conferindo datas, para que fosse expurgada de imprecisões ou lapsos. Uma das vantagens de a guerra da Guiné ter sido feita essencialmente por milicianos, é podermos dispor hoje de imenso material classificado na mão de civis" (VJ).

Foto: ©
Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados.



Guiné > 1971 > Excerto do Relatório da Operação Larga Agora , na região do Oio (13-15 de Junho de 1971), em que participou o Vitor Junqueira, enquanto comandante de 2 Grupos de Combate da sua açoriana CCAÇ 2753... Apreciação do autor do relatório:

"Considero excepcional o comportamemto na função do Agr 5 (CCAÇ 2753) (-) do Alf Mil de Inf Victor José Anastácio Junqueira que, imbuído de alto espírito de missão, soube formnar com os 2 Gr Comb que comandava, uma equipa extremamente coesa e perfeitamente consciente do que lhe incumbia. Em todas as acções de contacto IN manifestou calma absoluta, clareza e rapidez de decisão. Julgo perfeitamente apto para comandar uma CCAÇ em operações".

Foto: © Manuel Lema Santos (2007). Direitos reservados.

Texto enviado em 21 de Fevereiro de 2007 pelo Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa tertúlia (1).


Prezado amigo Luís,

Com a ousadia própria dos atrevidos, tomei de empréstimo um excerto de uma folhinha de Mestre Agostinho da Silva, como prólogo do episódio que hoje pretendo compartilhar com meus irmãos do mato. Fi-lo por duas razões, sendo a primeira aquela que emana do próprio texto, acrescida do receio de ser tomado como uma espécie de arrivista das letras, usurpador de um espaço que é de todos, ciente que estou de que jamais compactuarias com tal despautério.

A segunda razão tem a ver com o facto de Agostinho da Silva, de quem conheço pouco mais do que a biografia, me ter agarrado desde a primeira linha numa espécie de encantamento reforçado pelas entrevistas que deu para a televisão, e que acompanhei como um devoto. Figura singular, misto de profeta e frade franciscano, e acima de tudo, pedagogo experiente, cativava a audiência como certamente prendia os seus alunos. Aos meus olhos personificava o bom rebelde, de coração puro e despojado, para quem a estupidez humana constitui o maior drama do nosso tempo. Teria ele também alguma empatia com movimento anarquista, que tantas simpatias conquistou entre a estudantada dos meus tempos de Coimbra? (1)

“Queridos amigos,

Parece que toda a gente está de acordo em que o mundo inteiro se encontra em crise. Como isto me parece demasiado vasto para eu poder ser útil, decidi que sou eu quem está em crise e talvez consiga sair dela com três princípios: O de me ver livre do supérfluo, o de não confundir o verbo amar com o verbo ter, o de prestar voto de obediência ao que for servir, não mandar. Nestes termos comunico a todos os Amigos que não imporei a ninguém a leitura de textos meus …

Setembro de Lua Cheia e de 93.”

Agostinho da Silva, Filósofo, in Folhinhas.

E agora, vamos ao relato. Procurarei que seja tão rigoroso quanto a minha memória o permitir, tão neutro e isento quanto a farronquice deixar, apimentado q.b. para que não adormeçam ao lê-lo. Leva dedicatória:

“Para um tertuliano especial, o Manuel Lema Santos, que se reclama de meio chaparro, meio estremenho, integralmente português. Pelas palavras simpáticas e pelo desafio (*)”.

Quem desce Cacheu a partir de Farim em direcção ao Tiligi, deixando Binta para trás, chega a uma zona onde o Pedro Lauret viu a mina-vaca (**). Notará então que o rio descreve quatro curvas sendo uma delas, uma grande chouriça de concavidade virada para sul.

Nesta concavidade, situada a leste do Leto, acomoda-se a Ponta do Tancroal, uma projecção de terra firme que reduz ao mínimo a distância entre margens. Este acidente topográfico era inteligentemente aproveitado pelas forças do IN, como porta de entrada para as áreas do Oio e Morés. Posso garantir que em algumas ocasiões em que passei por aquelas bandas, não era difícil ouvir por cima do silêncio da mata, o ruído próprio de embarcações motorizadas (2) cambando o rio, certamente levando reforço em homens e material a uma vasta área onde as NT raramente incomodavam as populações sob controlo do PAIGC.

Conheci bem essa região. A beleza e serenidade da paisagem eram verdadeiramente idílicas. A fertilidade do solo, onde lalas e bolanhas bem cuidadas produziam milho, arroz, mandioca e hortícolas a que se juntava abundância de gado, evidenciavam uma excelente organização social e administrativa. As tabancas, constituídas por pequenos aglomerados de moranças construídas a céu aberto e não sob a copa das árvores como em outras zonas, apresentavam-se bastante dispersas, rodeadas por trincheiras, dispondo algumas, de abrigos e espaldões para armas pesadas.

Embora não existisse praticamente população civil desarmada (3), a tropa de linha, sujeita a movimentos de rotação e rendição como em qualquer exército convencional, ocupava instalações segregadas da restante população. Ao contrário do que muitos crêem, mantinha com os residentes apenas as indispensáveis relações em matéria de autodefesa e abastecimento de víveres. E nem sempre eram as melhores (4)!

A ligação entre estas populações e os militares era feita através dos comissários políticos, aos quais o braço armado do PAIGC se encontrava subordinado. Aqui constatámos também a existência de depósitos de bens essenciais, desde os alimentares a outros considerados de primeira necessidade como chinelos, panos e até material escolar. Possuíam instrumentos de medida e livros de escrituração. Julgo que estas estruturas seriam os embriões de outras de maior amplitude chamadas Armazéns do Povo, que viriam a ter um papel importante num ensaio de economia colectivista, no período pós-independência.

Ainda no Tiligi, foi-nos desvendado um enigma que durante muito tempo me intrigou. Sabendo que um dos grandes receios (terror!) das NT empenhadas em operações de maior envergadura era o de ficarem desmuniciadas, o que obrigava à celebérrima disciplina de fogo, como é que o IN emboscava duas, três vezes seguidas e tendo eles, armas com cadências de tiro idênticas às nossas, não pareciam afectados por este problema? A resposta é bem simples, tipo ovo de Colombo. Referenciados através de pontos conspícuos (5), dispunham de uma rede de mini-paiois que permitiam o seu remuniciamento contínuo! Como curiosidade, refiro que num desses paióis, além de algumas armas pesadas e respectivas munições, foram recuperados vários fardos de uniformes (6).

Entre a documentação apreendida, encontrámos alguns bons exemplos de como o PAIGC se preocupava tanto com a preparação para o combate dos seus elementos, quanto com a sua formação político-doutrinária. Sabemos que havia aulas de alfabetização em Português, e nos caderninhos de TPC abandonados junto aos postos de vigia (sentinela) podiam ler-se tanto expressões e palavras de ordem de conteúdo ideológico, como histórias para crianças e até poesia. Exemplares do Corão eram às centenas, bem como manuais militares exemplificando com gravuras, como deitar abaixo um helicóptero, montar uma emboscada ou confeccionar um fornilho. Tive a sensação de que entre os militares das FARP, não havia lugar para a ociosidade: Combatiam, trabalhavam ou estudavam. Também sabemos que o árabe numa das suas versões era ensinado às crianças por homens santos ou marabus, que percorriam as aldeias, tanto aquelas que estavam sob a nossa protecção como as que se encontravam nas apregoadas áreas libertadas.

Operação Larga Agora (13 de Junho de 1971)

Quem manda, pode! E quem podia naquele Território no longínquo ano de 1971, ordenou que se fizesse uma operação de limpeza na região cujo retrato sumário acabei de vos apresentar. Para uma tal empresa que, foi decidido, teria a duração de três dias (7), coisa rara na Guiné como todos sabem, foi reunida a fina-flor da nossa tropa: Fuzos, comandos brancos e pretos e páras (8). A representar a tropa arre-macho estava aqui o vosso amigo Junqueirita y sus muchachos (9).

Quanto a ordens, … as do costume, simples, claras e concisas: Destruir, queimar, inutilizar os meios de vida. Relativamente aos elementos armados do IN, diziam-nos para os “capturar, eliminar ou no mínimo expulsar da ZA”.

Passo agora a vista pelo relatório da operação onde leio que o primeiro dia de trabalho começou com a execução de (transcrevo) “um héli-assalto sobre objectivo IN em Binta 5 D7-34 (10). Captura-se material que é evacuado por meios héli em 131000Jun.

A partir desse ponto, as NT iniciaram a progressão no terreno, segundo linha de orientação geral definida em Ordop …” que nos havia de levar até ao Tancroal (11) e depois, em sentido descendente, às tabancas de Suntucuia, Solinto Mandinga e Sibicunto, entre outras (12).

Operação Larga Agora (14 de Junho de 1971)

O segundo dia começou ainda melhor. Ao alvorecer, um grupo IN que ao fim da tarde do dia anterior nos tinha impedido de tomar um tabancal, caiu numa emboscada montada por nós. Ficámos a ganhar por vários a zero e capturámos mais material.

Interrogatórios para exploração imediata (13), forneceram dados importantes quanto aos efectivos das FARP e sua localização. A meio da manhã encontrámo-nos com a 121ª de paras. Um dos alferes deu-me conta de que o nosso ronco estava a ser muito apreciado em Bissau. Pouco depois, o PCV passa sobre a nossa vertical dando ordem para que fosse montada de imediato uma segurança, que permitisse ao Maior dirigir-se às tropas da CCAÇ (14). Foi um momento de grande apuro já que aquela era a pior altura para receber o Comandante-chefe.

À nossa volta havia pequenos grupos de elementos armados dispersos pela mata (15), e os rebentamentos, nossos, do IN e das munições de todos os tipos escondidas no interior das moranças em chamas, eram contínuos, tornando considerável o risco de um acidente durante a aterragem ou descolagem. Um pequeno campo de milho fez de heliporto onde o Alouette que transportava o nosso General não tardou a pousar. Começaram a desembarcar, Spínola e o seu séquito (16). Em passo de corrida, dirigi-me ao Velho e comecei bem, como se segue…
- Meu general, apresenta-se o alferes …

Não me deixou terminar a lenga-lenga. Cortando-me a palavra com indisfarçada irritação, disse-me:
- Ó nosso alferes, não é consigo que eu quero falar, é com o seu comandante. Vá lá chamá-lo.

Aí, alto e pára o baile, senti-me beliscado. Enchi o peito de ar e repliquei:
- Pois saiba, meu general que, aqui, o comandante sou eu! - E que ninguém duvide: Pus o homem em sentido quando lhe disse que ali quem mandava era eu! O tom da conversa mudou logo.

Mais f... do que eu devia estar o piloto, obrigado a aterrar numa barafunda daquelas. Manteve o rotor a girar à força toda e fez muito bem. Os cavalheiros, também não se descuidaram muito no chão.

O Homem olhou para mim com um ar que eu não sei se foi de tristeza ou desolação. De espanto foi certamente. Esperaria ele encontrar um façanhudo capitão, educado pelos mestres da Academia nas mais avançadas técnicas da contra guerrilha, curtido pelas duras batalhas do sertão? Saiu-lhe uma coisa bem diferente; um piço de um rapazito quase imberbe, meio enfezadote, negro de fuligem, com um fez enfiado na cabeça (devido à deserção do quico), e um belo par de botas de cabedal made in Checoslováquia à cintura, fazendo contrapeso ao cantil (17). Na sua expressão li o mais puro desalento. Adivinho-o a pensar: Ao que nós chegámos!

Se calhar foi aí que percebeu que mais valia dedicar-se à escrita e terá decidido começar a alinhavar Portugal e o Futuro! Jogou a mão a uma carta que um dos seus acompanhantes lhe estendia e ordenou-me que, sobre ela, lhe mostrasse quais os objectivos atingidos e o que é que nos faltava fazer. Depois de uma breve explicação, bateu uma palada e afastou-se, não sem antes dizer a um simpático major que o acompanhava:
- Ó Senhor major, faça o favor de ver de que é que estes homens precisam.

O major era um homem polido, muito atencioso. Falei-lhe do cansaço, da água e da comida que já não tínhamos (18) e do estupor da G3, pesadona, comprida, pouco jeitosa para quem tinha que manobrar rádio, cartas, bússola etc. No fundo eu estava-me a fazer a uma kalash! Escutou-me, interessado. Despediu-se com um abraço, juntou-se ao grupo e partiram.

Operação Larga Agora (15 de Junho de 1971)

O resto desse dia e o seguinte decorreram na mesma toada. O momento mais difícil aconteceu durante essa noite (do segundo para o terceiro dia) no local destinado à pernoita, próximo da clareira do Tancroal. Pareceu-me ser o sítio mais seguro, pois tendo o rio a norte, bolanhas a E e W, apenas teríamos que nos preocupar com o flanco sul. Tinha o inconveniente de, no caso do IN nos barrar a retirada, ficarmos mais ou menos encurralados. Sabíamos que os seus olheiros tinham espiado os nossos passos durante toda a tarde, pelo que nos mantivemos em movimento e só alta noite nos dirigimos para o local escolhido.

Mandei instalar em círculo e abrigar o melhor possível. Buracos escavados no chão com a faca de mato onde pudéssemos enfiar a cabeça, troncos de árvore, termiteiras, crateras das raízes das palmeiras caídas, tudo serviu como antepara para o caso de um eventual ataque nocturno. Montada a segurança com sentinelas dobradas, passámos uma rasteira à fome com o que nos restava nos bolsos. Quando começávamos a acreditar que um pequeno descanso era possível, irrompe o maior arraial de morteiro 82 mm de que guardo memória. Toda a zona onde fomos avistados por altura do sol-posto, foi batida com uma intensidade tal, de que só vos poderei dar uma ideia dizendo que pelo meu cálculo, foram disparadas mais de 500 granadas.

Felizmente, os rebentamentos davam-se bastante a sul da nossa posição. Fora o nervoso miudinho, no nosso canto reinava o maior sossego. Este festival durou várias horas, até que pelas quatro da manhã, um dos meus camelos, o Amorim, faz um disparo acidental de G3. Acho que não é difícil imaginar o resto da história. Uma nuvem de chispas de lume, falhas de aço incandescente, pó, terra, fragmentos de baga-baga, ramos de árvores, rodopiaram por cima da nossa posição num frenesim diabólico. Nós, nem um pio! Ao fim de cerca de uma hora, cansaram-se, esgotaram as munições ou convenceram-se de que não estaríamos lá? Quando a calma reinou de novo e os nervos descomprimiram, deu para perceber que tivéramos a protecção de Alguém. Exceptuando pequenas beliscaduras nos cromados, não havia ninguém ferido!

Uma Uzi novinha em folha para o Sr. Alferes

Não sei quanto tempo decorreu entre o encontro com o Estado-maior e uma inesperada visita do General ao K3, umas semanas, não mais. Ouvi dizer que ele era muito niquento no que dizia respeito ao aprumo da tropa aquando das suas visitas ao mato. Disseram-me que alguns comandantes de Companhia teriam apanhado umas porradas por o seu pessoal se apresentar abandalhado.

Desta vez o héli chegou sem qualquer aviso. O pessoal disponível encontrava-se empenhado no restauro da cozinha e refeitório das praças. Tronco nu, esfrangalhados, suados que nem porcos, transportávamos cibes ao ombro, que no meu caso já sangrava, amassávamos material para a confecção de blocos ou trabalhava-se de pá e picareta. À vista do heli, o pessoal formou rapidamente em U, tal como estava. O General, acompanhado por um major, dirigiu-se à Companhia com palavras de circunstância, não fazendo qualquer reparo quanto ao traje. Reiterou a promessa anteriormente feita de que a breve prazo retiraríamos para Bissau em recompensa dos bons serviços prestados, o que nunca aconteceu.

O major que o acompanhava avançou então para mim e, entregando-me uma arma que trazia consigo, disse com a maior simplicidade:
- Sr. alferes, aqui tem a sua arma! É uma Uzi novinha em folha. Olhe, igual à sua, só existe outra na Guiné. Com a arma vinham mais quatro carregadores.

Fiquei emocionado. Primeiro, porque tomei esta prenda como mais uma prova de grande consideração. Depois, por tê-la recebido da mão do senhor major Correia de Campos.

E ao evocar o nome deste brilhante militar, apetece-me dizer, com Ortega y Gasset: “Os temas fundamentais da História não são produto do colectivo, mas de indivíduos de excepção”.

P.S. - Acabo de saber da morte de Barbosa Henriques (***) que foi comandante da 27ª de Comandos. Participámos em várias operações conjuntas. Embora o convívio não tenha sido suficiente para nos tornarmos amigos, sei que era um Homem íntegro. Nesta hora triste, apresento à família sentidos pêsames. E peço a Deus que seja misericordioso com a sua alma.
_____________

Notas de V.J:

(1) Por alturas do 25 de Abril de1974, ia eu a descer a Av Sá da Bandeira, quando a propósito das comemorações do primeiro 1º de Maio em liberdade, li num muro a seguinte convocatória:

“Dia 1 de Maio todos à Portagem. O 1º de Maio é vermelho. MRPP”.

E alguém acrescentou por baixo e autenticou com o conhecido selo dos anarcas: "Também os Índios eram vermelhos, e foderam-nos todos!"

Sarcasmo, humor corrosivo e descomprometido, provocação irreverente, não tive dúvidas de que aquela era a chanca para o meu pé!

(2) O mesmo tipo de operação, constatei-o, era efectuado noutro trecho do Cacheu um pouco a leste da sua confluência com o rio de Jumbembem. Na área de Madina Mandinga-Gebacunda, também na margem esquerda do Cacheu, testemunhei outro facto insólito: o vai-e-vem de um helicóptero que, passando próximo da minha vertical, operava claramente um transbordo entre as duas margens em voo a muito baixa altitude, pelo que não pude avistar o aparelho. Questionada a FA sobre a possibilidade de haver algum meio aéreo nosso, naquela zona, a resposta foi: Negativo.

(3) No início da minha experiência de combate, fui indecentemente comido com informação que classifico de uma forma soft, como pouco honesta. Disseram-me: Nesta operação (…), você vai encontrar no máximo um bigrupo do IN, segundo as informações que temos. Não me disseram que para além desse contingente das FARP, havia outros tantos ou mais elementos das FAL, Pioneiros e populares armados, todos exímios a puxar o gatilho. Assim como me omitiram que antes de mim, já outras forças como a 27ª Companhia de Comandos, e a 121ª de Paras, se não me engano, a CART 2732 do Carlos Vinhal, tinham tentado tomar o objectivo. E todos trouxemos o que contar. Aprendi a dura lição em Fátima. Um dia, hei-de falar-vos deste caso pouco clínico!

(4) Nestas áreas, as FARP recorriam por vezes ao confisco de mantimentos assim como ao recrutamento (à má fila) de carregadores, o que não as tornava particularmente simpáticas!

(5) Ponto conspícuo significa qualquer elemento bem visível, natural (p. ex. pico, ilhota, rochedo, falésia, árvore de grande porte), ou construído pelo homem (edifício, torre, antena etc.) cuja localização no terreno sabemos corresponder a uma determinada posição geográfica indicada nas cartas de navegação. Tem mais ou menos o mesmo significado que conhecença. Na marinha usamos frequentemente estes pontos na preparação das aproximações a terra (aterragens) e na navegação costeira ou de cabotagem. No TO, ponto conspícuo poderia ser uma certa árvore, um baga-baga com determinada forma ou dimensão, o recanto de uma bolanha, um cruzamento de trilhos etc.

(6) Entre as armas pesadas havia antiaéreas, Browning 20 mm e Bredas. Fardamento de origem … francesa, havia-o de dois tipos: Fardas de caqui bege, iguais às dos legionários, e camuflados idênticos aos usados pelas tropas francesas na guerra contra a FNL (Argélia). Com aqueles camuflados vestidos, nunca encontrei ninguém. Julgo que por serem demasiado claros, mais próprios para o deserto. Já os de tipo legionário pareciam agradar ao pessoal das FAL.

(7) Operação Larga Agora. Decorreu nos dias 13, 14 e 15 de Junho de 1971. A minha Companhia já anteriormente tinha efectuado, à sorrelfa, algumas intervenções naquela área, do tipo saltar dos hélis, escaqueirar qualquer coisa, botar fogo e, … dar às de vila Diogo. Nos RVIS que por vezes se efectuavam alguns dias depois, aparecia tudo reconstruído!

(8) A respeito das tropas paraquedistas, afigura-se-me da mais elementar justiça fazer o seguinte comentário:

É minha convicção que na frente de combate, onde toda a vaidade se acaba, onde até o fraco faz força e mesmo o valente se caga, não há lugar para elitismos. Todos dão o seu melhor, quanto mais não seja para safar o próprio pêlo, o que é mais do que legítimo. Contudo, os paraquedistas que conheci na Guiné, 121ª e 122ª Companhias, eram realmente diferentes entre iguais. Sei que eram duros com o Inimigo, bravos debaixo de fogo, eficientes na acção, por esta ou qualquer outra ordem! Os resultados obtidos, as condecorações justamente atribuídas, atestam-no.

Mas aquilo que aos meus olhos os tornava a nossa melhor tropa de elite, sem desprimor para outros, eram a sua humildade, educação, respeito e cortesia para com os camaradas de outras forças. Chegava a ser embaraçoso quando, por ex., num alto para curto descanso no mato, à aproximação de um graduado (alferes) de outra força, todo um pelotão se punha de pé, incluindo o seu comandante! Pouco dados a fanfarronices, - nunca ouvi um pára gabar-se dos seus feitos individuais ou colectivos - , comandados por um militar de excepção, o coronel Rafael Durão, deixaram a todos nós o mais belo exemplo daquilo que deve ser o comportamento de tropas em campanha.

Espero que os páras de hoje continuem a ser os dignos herdeiros dos feitos valorosos dos seus camaradas de há quarenta anos, e que em qualquer parte do mundo para onde os mandem, o nome e o prestígio de Portugal e das suas Forças Armadas estejam no centro das suas preocupações. Admiro-os a tal ponto que, na próxima encarnação, se ainda existir serviço militar, eu quero ser paraquedista!

PS - Esclarecimento posterior de do comandante da CCP 121, Nuno Mira Vaz - hoje coronel paraquedista na reserva, e historiógrafo -, na altura em que a unidade esteve afecta ao COP 6, Mansabá: o coronel Rafael Durão, irmão do Rafael Durão (este nunca foi paraquedista) era então o comandante do CAOP1 em Teixeira Pinto, e de facto era um militar de excepção. O Comandante do BCP 12 era, por sua vez, o Tenente-Coronel Horácio Oliveira .

(9) Eles não eram os meus homens, nem os meus amigos, nem os meus camaradas. Eram tudo isso e muito mais. Por isso utilizei o espirituoso (acho eu!) castelhanismo, por me parecer que traduz mais adequadamente o sentimento que nos unia. E quer os meus amigos acreditem ou não, se eu me mandasse ao poço a rapaziada saltava de seguida. Habituaram-se àquele fado e acabaram por gostar. Como é possível alguém dizer tal baboseira, ouço-vos perguntar. É pura verdade. A prová-lo está o facto de, homens que nada tinham a ver com os tiros, como mecânicos, corneteiros, condutores, impedidos, sargentos da secretaria, básicos e cozinheiros, pedirem para alinhar. É certo que alguns juraram para nunca mais, mas muitos repetiram!

(10) Na proximidade de uma grande tabanca chamada Amina Dala, situada meia dúzia de quilómetros a sul de Leto (vd. carta de Binta). Estava muito bem defendida em termos de organização no terreno e possuía uma numerosa guarnição. Só levou chumbo quem trazia arma na mão.

(11) A partir daí e até à margem do rio, havia uma estreita faixa de tarrafo e bolanhas, domínio absoluto e incontestado dos nossos camaradas da marinha. Para nós caçadores, sentir humidade nos pés era do pior que nos podia acontecer. Eles, pelo contrário, movimentavam-se naqueles terrenos como peixe na água. Cada qual é p’ró que nasce!

(12) Nos três dias da operação, a CCAÇ 2753 destruiu 29 núcleos de tabancas (do relatório de operações).

(13) Os movimentos héli destinados à evacuação de material e prisioneiros serviam também para o nosso próprio reabastecimento em munições. Num desses movimentos, trouxeram-nos um intérprete.

(14) Do registo Factos e Feitos, retiro a frase: “Junto das NT esteve Sua Excelência o General Comandante-chefe que foi felicitar as mesmas”.

(15) Uma das causas em que assentou o sucesso desta operação teve a ver com uma certa táctica que consistiu em, uma vez tomado um objectivo, passar rapidamente à perseguição do IN cuja posição nos era fornecida pelo PCV, não lhe dando tempo a que os seus elementos se reagrupassem ou juntassem à guarnição do objectivo seguinte.

Numa dessas perseguições, dois FIAT passam sobre as NT, sobem até ficarem do tamanho de mosquitos e, de cabeça para baixo, a toda a mecha, largam duas alfarrobas à minha ré. Preparam-se para repetir quando eu chamo:
- Ó Tigre, Ó tigre … estou a ser batido pelo seu fogo. - E o Tigre responde:
- Vocês são pretos?
- Negativo, respondi.
- Então têm pretos convosco?
-Também não. - Ao que o Tigre replica:
- Eu só vejo pretos e além disso, vocês não era suposto estarem nessa posição!

E dito isto, bota abaixo, mais duas … mais longe. Ninguém se aleijou.

Aproveito para esclarecer que os pretos que os tipos viam, éramos nós próprios, com a pele negra pelo pó e fumaça que se agarrava ao rosto suado. Admito no entanto que na nossa retaguarda tenham avistado um dos tais grupos desgarrados do IN que cirandavam à nossa volta, incomodando-nos constantemente. Se assim foi, ... ainda bem!

(16) Séquito de que habitualmente faziam parte militares de primeira água que tive a honra de conhecer como Firmino Miguel, Carlos Fabião, Carlos Azeredo, Almeida Bruno, Pedro Cardoso, Ricardo Durão.

(17) Na Companhia havia um rapaz, por alcunha o Fafe, Osvaldo de Oliveira de seu nome, transmita de especialidade, que espontaneamente se dispunha a dar uma compostura cristã aos cadáveres do IN. Fechava-lhes os olhos, recolhia as armas e munições, documentos, e às vezes, peças do equipamento e fardamento. Foi assim que entrei na posse das botas. Carreguei com elas durante três dias para verificar ao experimentá-las, que me faltavam……quilómetros de pé. Acabei por oferecê-las ao chefe da tabanca, para o compensar de um fartum de porrada que lhe tinha aplicado uns tempos antes.

(18) Alguém imagina o carregamento de munições que cada homem transportava para uma operação de três dias? E ter que carregar ainda com rações de combate para o mesmo tempo? Pois os açorianos adoptaram uma técnica própria para obviar a este transtorno: Comiam tudo no primeiro alto e o que não comiam deitavam fora. A fome suportava-se bem com a ajuda de algumas coisas que íamos encontrando nas tabancas. Foi numa destas que comi cabrito-pé-di-rocha (****) pela segunda vez. Ainda estava a cozinhar num recipiente de barro sobre umas brasas. Disseram-me que não comesse, podia estar envenenado! Qual quê, caiu que nem ginjas.

Com a água o caso era mais complicado. Poupavam-na enquanto podiam, mas uma vez esgotados os cantis, nem sempre dávamos com os poços da população onde reabastecíamos com uma água leitosa mas muito agradável ao paladar. Nesta operação aconteceu em determinado momento ter de me por à frente deles, e ameaçar que daria um tiro no primeiro que bebesse água salgadíssima de um regato.

O terceiro elemento causador de grande desgaste físico e psicológico era o insuportável frio nocturno, sobretudo se acompanhado de cacimbo. A única forma de descansar um pouco consistia em encontrar uma cova onde coubessem dois ou tês homens se aconchegavam o melhor que podiam.

Um abraço para todos.

Pombal, terra do Marquês, figura que detesto, aos vinte e um dias do mês do Entrudo, do ano em que o Alberto João se demitiu.

Vítor Junqueira (*****)
______________

Notas de L.G., editor do blogue:

(*) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1526: Em louvor do comandante Vitor Junqueira (Lema Santos)

(**)Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)

(***) Vd. post de 19 de Fevereiro de 2007
Guiné 63/74 - P1536: Morreu Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)

(****) Vd. post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)


(*****) Vd. posts da série de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação