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Queridos amigos,
O livro de Julião Soares Sousa bem merece uma análise mais detalhada, tal a riqueza de pormenores e a investigação aturada que ele levou a cabo. Este primeiro doutor guineense pela Universidade de Coimbra supera as melhores expectativas, tal o rigor e equidistância que soube manter na sua investigação, do princípio ao fim. Propõe teses novas sobre a formação de Cabral, as bases da construção do PAI/PAIGC, analisa a ideologia socialista do líder do PAIGC sem tabus. Como é desassombrada a sua análise quanto ao assassinato que ocorreu em 20 de Janeiro de 1973, matéria a que dedicaremos a terceira e última recensão.
Estou à vontade, não conheço Julião Soares Sousa, posso propor sem hesitação a sua leitura como indispensável para a compreensão da guerra que todos nós travámos.
Um abraço do
Mário
"Amílcar Cabral – Vida e Morte de um Revolucionário Africano"
Amílcar Cabral: à volta do projecto de unidade Guiné e Cabo Verde
Beja Santos
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O autor recorda-nos que o conceito de unidade africana fez fortuna e apareceu associado à ideia pan-africana de unidade do continente: Guiné e o Gana manifestaram a sua intensão de se unir, logo em 1958; Nkrumah defendia que a força do continente africano radicava na união; Nierere, da Tanzânia, advogava que apenas com a unidade se poderia assegurar que os africanos governavam realmente a África. Foi um movimento que culminou com a organização da unidade africana. No percurso, assistiu-se a várias tentativas de uniões regionais e sub-regionais: Gana e a Guiné Conacri; Daomé (actual Benin), o Sudão, o Alto Volta (actual Burkina Faso) e o Senegal formaram a Federação do Mali, etc. Como se sabe o projecto que se tornou mais duradouro na África Austral foi a união entre o Tanganica e Zanzibar que deu origem à Tanzânia, os outros foram simplesmente efémeros.
No final dos anos 50, Cabral estava atento a estes projectos de uniões regionais. O contexto africano era de superar os nacionalismos particularistas. Julião Soares Sousa está convicto de que o projecto federalista de Cabral surgiu em 1959, é a partir de Setembro desse ano que se começa a falar da unidade entre Guiné e Cabo Verde. Nos estatutos do PAI diz-se claramente que é uma “organização política das classes trabalhadoras da Guiné dita portuguesa e de Cabo Verde” e que a sua actividade será exercida nos dois países; esses mesmos estatutos previam a criação de comités e conferências para cada um dos territórios em questão. De acordo com alguns testemunhos da época, a começar por Luís Cabral, Amílcar destacava a origem ancestral comum e facto da Guiné e Cabo Verde dependerem da mesma potência colonial; e argumentava de que a separação da luta das duas colónias seria aproveitada pelo colonizador que poria os cabo-verdianos a dominarem guineenses. Cabral estava pois convencido que o projecto de união tinha solidez histórica e cultural, referia o tráfico de escravos transportados do continente para as ilhas, falava na paridade do crioulo e até na união orgânica ao longo de séculos. Contudo, não deixa de causar perplexidade não ver, por parte dos estudiosos e biógrafos de Cabral, nenhum exame a este conceito francamente voluntarista da unidade histórica e cultural, nem os investigadores cabo-verdianos ou guineenses têm mostrado iniciativa em desmontar esta confabulação montada em elevado conceito; nem se conhece nenhuma reacção, a partir desses anos 60 e até mesmo à independência, de assembleias internacionais ou políticos africanos, parece ter descido uma cortina de silêncio ou aceitação sobre as teses de Cabral acerca da unidade Guiné e Cabo Verde.
Julião Soares Sousa vai destacando reacções desfavoráveis quer de cabo-verdianos quer de guineenses, ela será uma constante no fraccionamento dos diferentes grupos e grupúsculos oposicionistas, sediados no Senegal, na Guiné-Bissau e na Guiné-Conacri, isto para já não falar da contestação em certas elites cabo-verdianas. O discurso de Cabral passará a ser rebarbativo e assumirá quase uma toada mágica: seriam povos irmãos, mesmo com problemas específicos; Guiné e Cabo Verde eram do ponto de vista histórico, étnico, económico, social e cultural, um só povo; ele falava em “o nosso povo do continente e das ilhas” como se houvesse uma única comunidade nacional. Obviamente que este discurso dogmatizante ganhava carga contraditória quando ele próprio aludia às diferenças na situação económica, social e cultural dos dois povos, eram diferenças que ele considerava suficientes para consolidar a unidade.
Como toda esta concepção ideológica era destituída de rigor histórico e político, Cabral foi usando de argumentação de elevada plasticidade até ao seu assassínio, sempre que invocava a unidade. Como é evidente, o conceito acabou por funcionar como uma peça estratégica ao serviço de outros movimentos de libertação, e foi inegavelmente um factor no combate às tentações étnicas que se foram camuflando dada a capacidade de manobra e a oratória de Cabral.
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Em Janeiro de 1963, com o ataque a Tite, é dado o sinal do desencadeamento da luta armada. No final desse ano, há grupos de guerrilheiros e populações apoiantes por praticamente toda a região Sul, no Corubal e no Morés. Cabral é um teórico, um diplomata, um organizador, um estratega. Quando se lê esta biografia política de Julião Soares Sousa não deixa de impressionar a distância colossal que o separa quer dos seus pares dentro do PAIGC quer dos outros líderes independentistas: criou uma doutrina socialista especifica e vai ditar regras dessa originalidade em areópagos onde o pensamento soviético primava por ser o único; usa a unidade Guiné-Cabo Verde como contribuição indispensável para a união africana; é um pensador e um agitador sempre em movimento. A sua obra teórica é de grande valor, toda ela escrita num português exímio.
O seu calcanhar de Aquiles, ver-se-á na próxima e última recensão, residiu na incapacidade de dar resposta ao contencioso entre guineenses e cabo-verdianos que, de um modo geral, não se reviram completamente na construção do Estado proposta por Cabral. No auge do seu prestígio, será assassinado: a criação revoltou-se contra o criador. E, como é por todos sabido, a criação ainda não ganhou identidade.
(Continua)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 15 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8559: Agenda Cultural (143): Cartas de Amor e Saudade, por Manuel Botelho, no Centro Cultural de Cascais até ao dia 28 de Agosto de 2011 (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 13 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8549: Notas de leitura (256): Amílcar Cabral – Vida e morte de um revolucionário africano, por Julião Soares Sousa (2) (Mário Beja Santos)