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quinta-feira, 28 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1124: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (2): A vida boa de Bambadinca, no tempo do Pimentel Bastos

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 > 1968 > O terceiro e penúltimo Comandante da Companhia (Capitão Q. P. Moura Soares) e o Comandante do Batalhão 2852, Tenente-Coronel Pimentel Bastos, também conhecido por Pimbas.

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 > 1968 > O comandante do BCAÇ 2852 em visita ao aquartelamento, em construção, de Mansambo, e à famigerada fonte (em cima) - talvez em Novembro ou Dezembro de 1968. Por motivo de doença o terceiro Cmdt da Cart 2339 foi substituído, em Dezembro de 196, pelo quarto e último Comandante, o Capitão Q. P. Laranjeira Henriques, 28 anos, 3ª Comissão no Ultramar.

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 > 1968 > Material IN apreendido pelas NT.

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > CART 2339 > 1968 > Um Capitão (Lima) e três Alferes periquitos em Fá. O Capitão Lima foi o segundodos quatros comandantes que a companhia teve.

Fotos e texto: © Torcato Mendonça (2006)

Continuação da publicação do álbum de fotografias do Torcato Mendonça, que ele teve a gentileza de me fazer chegar, pelo correio, através de um CD-ROM. Chamou-lhe fotos falantes (1)

O Torcato foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69.

Fotos falantes (2)

Fotos do Alf Mil Cardoso, enviadas pelo Marques dos Santos (4 fotos) (Como o Cardoso aparece em algumas destas fotos, o autor não é, logicamente, ele. Certo é terem-me sido enviadas pelo Marques dos Santos. Vou enviar-lhe uma cópia do CD).

Um Capitão e três Alferes periquitos em Fá. Este Capitão (Lima) era o 2º comandante que tivemos. O primeiro (Cap Mil Meira de Carvalho), logo em Évora, devido a doença, teve que abandonar a Companhia. Aconteceu o mesmo a um Alferes.

A outra foto é já em Mansambo: material IN apreendido pelas NT.

O terceiro Comandante da Companhia (Capitão Q.P. Moura Soares) e o Comandante do Batalhão 2852, Tenente-Coronel Pimentel Bastos.

Trata-se de uma visita ao aquartelamento, em construção, de Mansambo, e à famigerada fonte - talvez em Novembro ou Dezembro de 1968. Isto porque, devido a doença o terceiro Cmdt da Cart 2339, foi substituído, em Dezembro de 1968 pelo quarto e último Comandante. Quanto a mim o verdadeiro Comandante [da nossa CART 2339], Capitão Q.P. Laranjeira Henriques, 28 anos, 3ª Comissão [no Ultramar]!).

Tenente-Coronel Pimentel Bastos

Falemos um pouco dele. Chegamos à Guiné em Janeiro de 68. Depois de breve estadia na Capital, mandaram-nos para o Leste. Fomos para Fá, como Companhia de intervenção do BART 1904, com sede em Bambadinca – Sector L1. O seu Comandante era o Tenente-Coronel Branco.

Fizemos o treino operacional no Xime, onde estava a Companhia 1746, comandada pelo Cap Mil Vaz. Um dos Alferes era o Madaíl (já falado aqui neste Blogue). Depois fomos à nossa vida. A primeira Operação foi destruir o Galo Corubal. Louvor à CART 2339 pelo Cmdt do BART 1904.

Talvez no último trimestre de 68, o Batalhão 1904 foi rendido pelo Batalhão 2852. Era seu Comandante o Tenente-coronel Pimentel Bastos.

A 2339 estava sedeada em Mansambo, empenhada na construção do aquartelamento, a fazer patrulhas e operações, a proteger as Tabancas da zona. Por isso passávamos muito pouco tempo em Bambadinca, Bafatá ou Nova Lamego. Só lá íamos para reabastecimentos, operações ou, a Bafatá, passar um dia, como prémio por algum ronco, correio ou compra de vacas no Sonaco.

Era uma vida, em Mansambo e nas tabancas, sem o mínimo de condições – alimentares, higiénicas, médicas ou outras - que nos proporcionassem o mínimo de conforto.

Bambadinca era uma maravilha para nós. Vivia-se lá um clima de tranquilidade e de bom convívio. Para isso contribuía o Comandante e vários militares. Como a segurança era boa, estavam lá as esposas do comandante, do médico e do tenente da Secretaria.

Estive várias vezes em Bambadinca, por um dia ou dois, no intervalo de colunas, operações ou similares. Verifiquei sempre o óptimo e descansado ambiente que se vivia no Bar/Messe de oficiais e no resto do quartel. Não tive curiosidade em conhecer a povoação, instalações dentro do quartel ou outras. As minhas viagens iam até a certos locais da tabanca, acompanhado do Lali, Sukel ou outro. Tanto assim que não me recordo da escola, menos da professora ou dos comerciantes.

A calma vivida era tão boa que quando as portas batiam eu fazia um movimento. Os do Batalhão sorriam. Nós não tínhamos portas e o som era parecido a uma saída de arma pesada, coisa desconhecida para a maioria deles. Até um dia, pois! (2) ...

Voltando ao Tenente-coronel Pimentel Bastos, além de ser pessoa faladora e de óptimo trato, tentava quer ele quer a esposa e mesmo outros militares proporcionar um ambiente agradável. Como militar não o julgo e espero não o fazer com ninguém. Ele e outros eram profissionais. Muitos não estavam preparados para aquela guerra, creio mesmo que para nenhuma. Eram militares para outros desígnios. Os milicianos, sargentos e oficiais eram iguais, muitos não estavam minimamente preparados. Mas esses não tinham que estar.

Naquele tempo, de 1968 até meados de 1969, viver em Bambadinca era bom, para quem fazia a guerra na Guiné. Isso gerou o laxismo da defesa, o não tratamento das informações e não se compreenderem certos sinais do IN. Gerou-se assim, um irreal clima de confiança. Eles não atacam Bambadinca. Mas atacaram e a defesa não estava acautelada. Houve uma resposta fraca, cenas que eram evitáveis. Comportamentos correctos e determinantes pela parte de alguns militares. Outros, não cumpriram! O major pode ter dado tiros para o ar... agora berrar pelo Pimbas? Creio que não.

Nós, em Mansambo, ouvimos o ataque e pensamos ser na Moricanhe. O rádio informou: ataque a Bambadinca e a ordem de irmos, no dia seguinte, ao Batalhão. Foi o Cmdt da 2339 e dois grupos de combate pois um ficava lá. Ficou esse Grupo em precárias condições (para ser leve) no pontão, semi-destruído na estrada para o Xime (Rio Udunduma, 3º Grupo de Combate do Marques dos Santos).

Estávamos na época das chuvas. Vivia-se em Bambadinca, se bem me lembro, um mau ambiente e uma certa desorientação. Regressámos a Mansambo preocupados quer com o nosso grupo que tinha ficado no pontão quer com o que se tinha passado.

Bambadinca nunca mais foi a mesma. Este ataque deixou marcas profundas. O bater das portas começou a ter outro significado. A carreira de certos militares profissionais ficou afectada. O Tenente-coronel Pimentel Bastos ficou com a sua carreira cortada. Regressou à Metrópole em 4 de Dezembro de 1969, no Uíge. Nós, os da 2339, vínhamos lá. Pela última vez, comandou-nos porque era o Comandante Militar das tropas embarcadas.

Não falo mais sobre o ataque ao Batalhão 2852. Para terminar digo que a Administração Colonial gostou ao que aconteceu aos militares. Talvez alguns militares também.

Um dos profissionais que estava no seu posto, melhor na sua cama, na noite do ataque, fez uma operação a meu lado na zona do Xime. Foi a 1ª em que o Malan Mané serviu de guia. Deu barraca porque o Malan se perdeu e nós estávamos detectados. Mas o dito Oficial profissional estava apavorado, desorientado e não sabia o que fazer. Na reunião antes da operação sabia quando, em frente dos alferes, berrou com o Cap Mil que comandava a Companhia do Xime. O Capitão Miliciano disse-lhe:
- Meu Major, eu sou Professor do Liceu.- Voltou a dizer-lho em reunião no mato quando, e bem, regressámos ao Xime.

O Tenente-coronel Pimentel Bastos, no dia que fez 50 ou 51 anos, foi numa operação com malta da 2339. Não fui com ele porque o paludismo foi mais forte. Á volta dele estavam quatro ou cinco militares do meu grupo, houve tiroteio e ele era mais um…! Deixou resolver a situação, por quem tinha que o fazer e a isso estava habituado. No regresso, em Mansambo, disse-me calmamente:
- Não era necessária tanta gente á minha volta.
- Não sei de nada, meu Comandante.- Sorrimos, claro. Ele ainda acrescentou:
- Os rapazes merecem uns dias fora disto, temos que falar.

Não era um guerreiro, era um militar igual a tantos. Nas horas mortas era poeta. Assinava PIMBAS (3).

A última vez que o vi foi em Lisboa, no desembarque a 10 de Dezembro de 1969.

Encontrei por acaso a esposa, D. Alzira, em Lisboa e soube que o marido estava bem.
Recordo a D. Alzira (confesso que já não me lembrava do nome, vi-o no blogue) e relato um episódio que se passou comigo. Antes digo que era uma Senhora com quem gostava de falar. Geralmente, enquanto aprontavam a coluna eu metia combustível no bar e falávamos. Certo dia cheguei a Bambadinca vindo das autodefesas. Tínhamos passado uma má, uma péssima temporada. Falta de comida e bebida, tabaco, correio, roupa. Felizmente tivemos a visita do General Spínola e, passados poucos dias, fomos rendidos.

Depois do duche, de vestir roupa limpa, de me desinfectar com uma boa dose de uísques, fui ao bar. Uma bebida fresca, comer uma sandes de fiambre era um luxo. Estava lá a esposa do Comandante. Cumprimentei-a, pedi os comes e bebes, olhei para as revistas que estavam em cima da mesa. Talvez a Flama e outras da época. Vi um homem com um fato de astronauta e a legenda, não recordo, falava do homem e da Lua. A D. Alzira disse-me:
- Está a ver, o homem já andou na Lua! - Calou-se talvez devido á cara que fiz.

Confesso que pensei:
- O clima apanhou-a ou bebi demais. -Ela acrescentou:
- Na metrópole viram em directo.- Aí tive pena dela:
- Passou-se…!

O militar do bar deu-me a bebida fresca, a comida, e safou-me.
- Olhe, na minha casa nem se deitaram. O meu alferes tem estado no mato? Veja aí nas revistas.

Claro que vi e li. Acabámos a rir e eu fui, depois de mais um copo, ler o meu correio.

Eram situações caricatas. Só quem lá esteve e as viveu compreende o que valia um cigarro, uma bebida gelada, uma meia – daí – garrafa de uisque e outras coisas tão simples. Além de – isso mesmo… – uma bajuda, mesmo que já tivesse na segunda volta dos cem mil. O isolamento era terrível.

Guerra estúpida a causar sofrimento a tantos. A defender interesses de minorias poderosas, a servir as políticas de uma mão cheia de loucos. Ontem e hoje, é igual. Passado tanto tempo sofre-se ainda na Guiné e no antigo Império. Sofrem hoje outros povos, vítimas de ditadores, loucos e detentores de novos impérios. Em cada dia que passa, fruto da recordação ora trazida, da notícia lida, ouvida ou vista, aumenta em mim a repulsa da resolução dos problemas pela força das armas.

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postd e 26 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1116: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A guerra acabou ?

(2) Vd. post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

(...) "Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros... Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe... Claro que no dia seguinte o Caco Baldé deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS... Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné... A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha... Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue..."Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava "libertada"... Eu faria o mesmo, na minha terra...Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico:"Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros". (...)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca.

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006)

(3) Vd. posts de:

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1035: Ainda sobre o Pimbas, com um quebra-costelas para o Beja Santos (Paulo Raposo)
30 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1041: O Pimbas e os outros (Jorge Cabral)

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1680: Operação Macaréu á Vista (Beja Santos) (42): O Tigre de Missirá volta a rugir

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1968 > O Furriel Miliciano Luís Casanova, o fotógrafo em actividade. Em primeiro plano, uma das crianças de Missirá. "O Casanova é um dos meus mais agudos problemas de consciência. Chegou no final de Agosto [de 1968] a Missirá e, progressivamente, tornou-se o meu interino. Chegou muito triste, procurando estudar seres humanos e situações. Depois levantou voo, foi imaginativo e um grande colaborador. Distrai-me e não dei pela sua exaustão. Quando partiu com um colapso nervoso é que me apercebi do peso da sua ausência. Ele foi a minha rectaguarda, confiei-lhe as contas e a sorte dos aquartelamentos sempre que estava no mato" (BS).

Foto e legenda: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.

Belíssima capa do célebre livro policial de Agatha Christie, passado em África, no Nilo, no Egipto, O Barco da Morte. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 4). A propósito deste tipo de literatura, escreve o nosso Beja Santos: "No torpor do cansaço, ainda remexo nos meus policiais de devoção, onde incluo Ellery Queen, Frank Gruber e Mickey Spillane. Um dia destes, falo-vos da companhia que estes autores consagrados de uma literatura injustamente classificada como entretenimento, me dão nos silêncios destas noites de Missirá, ainda poupadas às flagelações".

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


42ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 21 de Março de 2007.


Caro Luís, para além dos livros do costume que vêm citados neste texto, segue uma cartinha de um tal Bacari Cissé diz o seguinte:

"Meu querido alferes, faça-me o favor de arranjar um livro da 1ª classe que eu também andava na escola mas peço-te este livro pelo teu bom nome que ouço constantemente. Os teus amigos que me dizem sempre do teu bom nome. Eu chamo-me Bacari Cissé, o teu soldado Quebá Cissé mora na casa do meu irmão".

Não seria mau voltares a insistir na tertúlia com a revelação deste tipo de mensagens, pois seguramente todos nós recebemos milhares de pedidos, prova de confiança nestes militares que por acaso até faziam a guerra mas que contribuiam para moldar o quotidiano de uma sociedade em movimento. Sugiro como ilustrações duas fotografias de crianças que te enviei no conjunto de fotografias do Luís Casanova. Hoje retomamos a prosa habitual mas o formato epístolar reaparecerá em breve.

Um abraço do Mário.

___________

O Tigre volta a rugir

por Beja Santos


No fim de Abril [de 1969], enquanto se reconstroem a um excelente ritmo as cubatas e os abrigos estão de pé, prontos para nova flagelação, a burocracia tolhe-nos os patrulhamentos e as emboscadas. São os autos de abate, infindáveis, são os autos por ferimentos em combate, o Setúbal reclama peças do Unimog, o Alcino recorda que desapareceram mais dois cantis e seis carregadores, a população civil está novamente sem arroz devido à falta de barcos já que o Geba se transformou numa auto-estrada que transporta a toda hora novos contigentes militares.

O sector L1, no rescaldo da Lança Afiada (2), prepara-se para ir confirmar os resultados nas matas que envolvem Xitole, Mansambo e Xime. Começa a chuviscar quase todas as manhãs, felizmente os blocos de adobe estão prontos e protegidos por oleados, aproveitando-se todas as abertas para a conclusão das obras.

Com o auxílio do furriel Pires enviei para Bissau a resposta a novos quesitos sobre o recurso interposto da minha punição: voltei a explicar todas as medidas de segurança tomadas entre Agosto e o presente, as actividades de arrumação em função das infra-estruturas existentes, o meu relacionamento com a população civil nesta situação original do aquartelamento estar submetido ao funcionamento de uma tabanca mandinga onde pontifica a vontade do régulo. O meu abrigo está praticamente concluído, o Teixeira reboca, o Gibrilo põe esteiras no tecto, Tomani Sanhá e Ussumane Baldé consolidam as frestas por onde a Dreyse pode fazer fogo.

Eu trabalho no abrigo do Casanova, são 10h da noite, excepcionalmente recebo o chefe da tabanca Mussá Mané que reclama uma coluna para em desespero ir tentar encontrar arroz na região de Galomaro ou mesmo Bafatá. Estão presentes Quebá Soncó e Domingos Lopes da Costa que ajuda a interpretar as frases mais difíceis. É nisto que se ouve ao longe o vomitar de duas costureirinhas, o estrondo de uma explosão, silêncio e a seguir a cadência de tiros isolados que nos pareceram pistolas. Pergunto de onde vem este fogo e Quebá responde prontamente que é do outro lado do rio, em Mero ou proximidades.


Pimbas: amor com amor se paga...

Previa sair para Mato de Cão às 4h da tarde e de imediato altero a agenda da saída, tendo convocado 30 homens às 6h da manhã, com rações de combate e água para 24 horas. Mussá Mané, que de manhã sairá para Finete com civis armados de Mauser, leva uma carta para o Pimbas onde terei escrito o seguinte:

"Meu Comandante, há a registar fogo a noite passada na região de Mero. Ou foi gente da população a perseguir um grupo de Madina ou foram tropas de Bambadinca a emboscar grupos que vieram reabastecer-se. Vou de manhã cedo saber o que se passa do meu lado e depois sigo para Mato de Cão. Por favor, esclareça o que se passou e dentro de dois dias falamos".

Chuvisca teimosamente quando vamos directamente de Missirá pela estrada que leva à Aldeia de Cuor subindo para Undarael, contornando os palmares de Gambiel, subindo até Bucol, descendo até ao Geba em frente a Fá Mandinga e pela estrada da Aldeia de Cuor até Cansonco. Não há indícios de presença humana, com os binóculos vejo as populações a cultivar as bolanhas à volta de Mero e Fá Balanta. De Gã Joaquim descemos até Flaque Dulo, depois Boa Esperança e sempre a contornar a bolanha chegamos ao fim da manhã a Finete.

Reuno-me com Bacari e peço-lhe conselho. Para Bacari terá sido uma refrega entre balantas já que o tiroteio só envolveu armas soviéticas. Ao amanhecer, ele fora até junto ao rio, e os trabalhos agrícolas decorriam normalmente em Santa Helena e Ponta Nova. Aproveito para ver as obras em Finete e partimos para Mato de Cão. A estrada está visivelmente marcada pela presença humana e vestígios de vacas, a chuva ajuda-nos a interpretar o terreno molhado entre Gambaná e os palmares de Chicri. Curiosamente, o grupo que recentemente passou por aqui prosseguiu até junto dos palmares de Mato de Cão e junto do pontão de Saliquinhé subiu para Madina. Tomo nota, em breve vou esperá-los aqui, dentro do mato cerrado.

Voltámos ao fim da tarde e Mussá Mané entrega-me uma carta do Pimbas e um maço de correio. Diz o Pimbas:

"Não te preocupes, não fomos nós nem o pelotão de Fá. Dei instruções para esclarecer a situação. Não temos meios para controlar toda a margem do rio, vê se os emboscas e divides connosco as vacas que apanhares. Aparece, pois precisamos de ti numa operação. Por favor, não peças mais arame farpado, nem cimento, nem munições. Tens sido um privilegiado, se um dia fôssemos atacados tu terias a obrigação de nos vir cá trazer os cartuchos que nos fazem falta". Mal sabia o Pimbas que na noite de 28 de Maio iríamos cumprir a nossa obrigação com o BCAÇ 2852.


Pondo o correio em dia

Lavado e jantado, examinada a escala de reforços, tendo discutido a divisão de tarefas administrativas para a manhã seguinte, leio o meu correio . Tenho labaredas e queixumes de familiares. A Cristina fala na eventualidade de um casamento de procuração e vir dar aulas em Bissau. Recordo que nessa noite, quando responder à Cristina irei pedir-lhe uma certidão completa narrativa numa Conservatória do Registo Civil ali para S. Vicente de Flora, numa travessa íngreme que leva a Santa Apolónia. Também nessa noite irei pedir à minha mãe uma certidão de baptismo.

O Major Bispo, antigo 2º Comandante de Batalhão, escreve-me de Bissau onde está colocado, falando-me na eventualidade de, quando cessar a minha comissão em Missirá o ir ajudar no plano de reordenamentos de população, um pouco por toda a Guiné. Estranho a oferta, naquele tempo ainda se cumpriam 12 meses no teatro de operações e outros 12 em teatros de instrução ou secretaria, mas já se falava também que o comandante-chefe teria decidido que essas rotações iam findar.

Um tribunal militar em Bissau informa-me que vou ser chamado a depor no julgamento do nosso Ieró Djaló que adormecera na Anda Cá e deixara fugir o Aruma. É uma noite plácida, tenho o corpo entorpecido a reclamar na quietude uma ou duas horas de leitura.

As crianças de Missirá através da poesia de Ruy Cinatti

Começo pela Crónica Cabo-verdiana, um livro do Ruy Cinatti escrito com o pseudónimo de Júlio Celso Delgado, datado de 1967. Trata-se de um relato forjado de um furriel açoreano colocado no Mindelo. É uma reconstituição brilhante da cultura cabo-verdiana e inclui um dos mais belos poemas que até hoje vi dedicado ao sofrimento infantil:

Que vêem os meus olhos senão o que vêem?
Barriga de esfera
à espera.
As pernas, dois ossos
mais estreitos que os pés.
Bracinhos-gravetos
que tampouco servem
para acender o lume.
E olhos enormes sem fundo na febre
e os dedos ruídos que enganam a fome.
São estes os filhos de Cabo Verde,
gritando na noite angústias sem nome!?

Que vêem meus olhos senão o que vêem?
A culpa dos pais a cair de bêbedos,
das mães que se vendem...
A culpa de quem nem sempre tem culpa?

Que vêem os meus olhos senão o que vêem?
As crianças riem,
correm, pulam, cantam
e jogam à bola.
Volteiam nas ondas melhor que os delfins.
E quando anoitece
na calma das ilhas
dormem sonos livres
de sonhos malévolos

Que vêem meus olhos senão o que vêem?
Alguns atletas
por via da raça
e de alguma carne.

Que vêem os meus olhos senão o que vêem?
Todos sabem ler
e decoram versos!

Que vêem meus olhos além do que vêem?
Todas têm alma
que oferecem, de graça,
a quem lhe quer bem.

São estas crianças
(mas quantas não morrem...)
que correm os mares
e marcam o mundo
com a nossa presença!


As crianças de Missirá, tenho na consciência, não passam fome e os meus olhos vêem crianças que brincam e labutam, que auxiliam e querem aprender. É um tempo em que procuro conhecer os costumes dos mandingas. Por isso passo dos poemas de Cinatti para um clássico da antropologia social: Padrões de cultura, da Ruth Benedict.

A famosa antropóloga recorda neste ensaio que nós, ocidentais andamos polarizados pela crença na uniformidade da conduta humana. O branco, em contacto com outras culturas, está convencido que os seus padrões de cultura sairão vencedores. Estamos cegos perante outras culturas, agarrados ao mito de que com os instrumentos da nossa civilização subordinaremos os outros graças a padrões superiores. Daí a necessidade de estudarmos as heranças culturais, matriz da tolerância e do diálogo entre culturas, cimentando os valores da diversidade. Este precioso ensaio a três povos bem diferenciados é um ponto de partida para se entender a relatividade social, a doutrina da esperança e de confiança em padrões de vida coexistentes, pondo-se assim termo ao racismo, à exploração colonial às superioridades religiosas e a outras formas de fanatismo. É bom ler Ruth Benedict e depois os usos e os costumes dos mandingas, procurando conhecer melhor estes homens que se movem com andar garboso como se fossem filhos de reis.

Às vezes fazem-me falta, mesmo muita falta, muitos dos livros consumidos pelas chamas, é uma saudade do retorno aos clássicos, desde o Padre Vieira, a Cervantes, a Moliére. Paciência, os entes queridos estão a reenviar combustível, o meu padrinho já escreveu a dizer que um barco há-de chegar a Bissau com William Faulkner, Henry James e William Golding, entre outros. O Comandante Teixeira da Mota faz saber que há mais estudos guineenses a caminho. Imprevistamente, o Carlos Sampaio manda-me O Estrangeiro, de Albert Camus.

Sou um homem bafejado pela riqueza da amizade. No torpor do cansaço, ainda remexo nos meus policiais de devoção, onde incluo Ellery Queen, Frank Gruber e Mickey Spillane. Um dia destes, falo-vos da companhia que estes autores consagrados de uma literatura injustamente classificada como entretenimento, me dão nos silêncios destas noites de Missirá, ainda poupadas às flagelações.

Os ataques, grandes e pequenos, serão uma constante em Julho, Agosto, Setembro e Outubro. Convém deixar esclarecido o leitor que aquele tiroteio em Mero, segundo apurou a força que foi o local e falou com o chefe de tabanca, tinha a ver com dois balantas que vinham numa coluna de Madina e que fugiram aos rebeldes. Tinham-se apresentado em Bambadinca e confirmaram que Madina/Belel estava em fase de reequipamento, trabalhando com o bigrupo de Banir e de Sara-Sarauol, preparando-se para uma ofensiva no Cuor.

Maio, o mês que vai começar, exigirá constantes acompanhamentos a essa auto-estrada do Geba, todos os dias vemos passar militares que irão preencher posições em todo o Leste. Nessas manhãs frias, quando eu me perfilo à sua passagem e os saúdo com entusiasmo, interrogo-me se um dia eles se recordarão destes vigilantes obscuros, estes anos da guarda que descem dos palmares até ao terrafe para lhes desejar saúde e uma boa missão.

Este Maio que vai começar será acompanhado de muitos tiroteios e lá para o fim tudo irá mudar em Bambadinca com o fim da sua inexpugnabilidade. Vamos ver.

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 13 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1657: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (41): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (3)

(2) Sobre a Sobre a Operação Lança Afiada (que mobilizou cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março de 1969), vd. os seguintes posts:

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

terça-feira, 17 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1184: Postais Ilustrados (8): Allahu Akbar , Deus é Grande (Beja Santos)


Bilhete Postal > "11- Raça Maometana (sic). Trajos Típicos [da] Guiné. Edição Foto Iris, Bissau, Guiné, Portugal. Impresso em Portugal [...] Lisboa. Reprodução proibida."

Foto: © Beja Santos (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Bilhete postal, ilustrado, dos anos 60, que o Beja Santos teve a gentileza de nos confiar, para divulgação através do blogue... No verso, pode ler-se a mensagem que ele mandou a um familiar muito próximo:

Missirá , 8 de Julho [de 1969]

(...) Como há uma ano atrás, muita chuva, lama, trovoadas, a viatura atascada na bolanha, problemas sanitários, etc. Um grande desgosto, agora: meus comandante e capitão punidos e forçados a abandonar Bambadinca. Creio que era altura de visitar a Sra. Dona Alzira Bastos (...) (2).


2. Comentário de L.G.:

Um observação para não deixar passar, impunemente, uma grossa asneira que pode ser atribuída, no mínimo, a ligeireza ou a santa ignorância e, no máximo, a racismo encapotado, a incultura geral, a apressada exploração comercial, por parte do editor deste postal, a Foto Iris, do exotismo da Guiné - aos olhos dos tugas que chegavam, aos milhares, nos T/T Niassa, Uíge, Alfredo da Silva, Ana Mafalda... Presumo, de resto, que o negócio dos postais ilustrados tenha sido altamente lucrativo, no período da guerra colonial (1961/74).

Primeiro, não existe o conceito (antropológico) de raça aplicado aos seres humanos. Só há uma raça (ou melhor: uma espécie), a do Homo Sapiens Sapiens... Os grupos humanos distinguem-se sobretudo pela cultura (etnia, língua, apropriação do espaço, usos e costumes...), embora haja diferenças a nível do fenótipo (por exemplo, a cor da pele).

Por outro lado, não havendo mais do que uma raça (o que remete para o genótipo e não para o fenótipo), também não poderá existir um raça...maometana. Tal como não existe uma raça... cristã. Maomé e Cristo são apenas fundadores de religiões, o islamismo e o cristianismo.

Na Guiné-Bissau, o que havia (e há) são diferentes grupos étnicos ou étnico-linguísticos, alguns dos quais islamizados, ou muçulmanos, como os fulas, os mandingas e os biafadas, que tendiam (tendem) a adoptar o vestuário árabe, de resto generalizado entre as populações norte-africanas e subsarianas, porque muito mais apropriado ao clima, e mais confortável e saudável, do que o vestuário ocidental.

Por razões de aliança estratégica, as autoridades portugueses, sob o governo de Spínola (1968-1973), deram um tratamento especial às autoridades políticas e religiosas locais, ligadas aos grupos muçulmanos e, em especial, aos fulas que habitavam maioritariamente na Zona Leste (concelhos de Bafatá e Nova Lamego) (3).

A expressão, árabe, Allahu Akbar, significa Deus é grande. E uma declaração ou expressão de elogio e glorificação. Vd. Jornal Público > Livro de Estilo > Religiões.

Vd. também artigo de Sofia Branco: Dados sobre a Guiné-Bissau e os guineenses em Portugal. Público. 4 de Agosto de 2002.

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. o último post desta série: 10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1164: Postais Ilustrados (7): Campune tatuada, Bijagó (Zé Teixeira).

Vd. posts anteriores, desta série (que no futuro poderá constituir uma base de dados interessante para investigadores na área da sociologia, da antropologia e da história que queiram estudar os estereótipos e as representações sociais que os tugas produziam e reproduziam sobre os guineenses e as guineenses durante a guerra colonial):

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1023: Postais Ilustrados (1): Pescadora, de etnia papel (Beja Santos)

7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1030: Postais Ilustrados (2): Dança nalu, Cacine (Beja Santos)

8 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1031: Postais Ilustrados (3): Tocador fula, Bafatá (Beja Santos)

28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1125: Postais Ilustrados (4): Rapaz balanta, cesteiro (Beja Santos)

2 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1140: Postais Ilustrados (5): Bajuda manjaca, Ilha de Pecixe (Beja Santos)

7 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1157: Postais Ilustrados (6): Rapariga Papel, tatuada, do Biombo (Beja Santos)

(2) Alzira Bastos, esposa do 1º comandante do BCAÇ 2852, Pimentel Bastos, punido por motivos disciplinares, na sequência do ataque da guerrilha à sede do Sector L1, Bambadinca, em 28 de Maio de 1969.

Vd. posts de:

28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1124: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (2): A vida boa de Bambadinca, no tempo do Pimentel Bastos

30 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1041: O Pimbas e os outros (Jorge Cabral)

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1035: Ainda sobre o Pimbas, com um quebra-costelas para o Beja Santos (Paulo Raposo)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

(3) Vd. posts de:

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)

(...) "Cheguei à Guiné em 23 de Março de 1972 e fiz parte de CCAÇ 3566 - Os Metralhas (...); a partir de 4 de Janeiro de 1973 e até ao fim da comissão passei a fazer parte da Companhia Africana CCAÇ 18 - Aldeia Formosa (Quebo para os africanos), tendo regressado [ à Metrópole] em 24 de Junho de 1974.

"De momento pretendo somente acrescentar uma nota acerca do chefe religioso Cherno Rachid que também conheci pessoalmente: faleceu em 1973 (...) durante o período em que estive em Aldeia Formosa.

"Na realidade o poder deste chefe religioso era enorme: a guerra parou para que um conjunto de autoridades religiosas dos países vizinhos se deslocasse a Aldeia Formosa para participar no seu funeral" (...).

15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça)

(...) "Bambadinca. 10 de Janeiro de 1970. (...) Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!

"Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.
"Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!" (...).

terça-feira, 1 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca.

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3).

A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole. De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).

Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19). Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá.

O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).

A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).

Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).

Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG).

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006)


Texto de Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, com a inútil especialidade de armas pesadas de infantaria, pião das nicas ou pau para toda a obra da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)(1)


- Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo! – esta terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante (2), de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca…

Eu não estava lá, não posso testemunhar para a história, nem muitos menos confirmar ou infirmar os detalhes… Não estava lá nem sou voyeurista… Mas esta foi a expressão que ouvi, alguns dias depois, da boca de soldados e milicianos de Bambadinca.

Havia um sentimento misto e contraditório, de alívio, de regozijo e de révanche, nesta expressão dos militares de Bambadinca que faziam do Pimbas e do seu amigo o bode expiatório do grande susto, do cagaço monummental, que todos apanharam nessa noite sem jamais o admitirem… É na desgraça que se vê a relação de amor-ódio dos povos pelos seus líderes, dos subordinados pelos seus chefes…

A história repetia-se, grotesca, desta vez num dos mais belos cenários da Guiné, que era o quartel de Bambadinca, inscrutado num pequeno planalto defronte de uma magnífica bolanha, e com o Geba a seus pés, tortuoso, pérfido, assassino, como uma surucucu… 

A expressão que eu ouvi na caserna – ó Pimbas, não tenhas medo! -, era para todos efeitos reveladora do baixo moral em que as NT se encontrava na Guiné, mau grau o efeito do fenómeno Spínola e do seu populismo…

Para uma grande parte dos militares, do contingente geral, e até e para muitos dos meus camaradas milicianos, ele era uma espécie de anjo justiceiro que vinha, de heli, castigar os maus (os incompetentes oficiais superiores que estavam à frente dos nossos batalhões) e encorajar o Zé Soldado, lídimo representante do bom povo português… Em breve, o BCAÇ 2852 seria decapitado pelo raio fulminante da justiça spinolista, para gaúdio da populaça…

Chovia torrencialmente nessa noite de 28 de Maio de 1969 – por ironia, uma efeméride, sempre grata aos homens do regime, embora o 28 de Maio de 1926, que instaurara Ditadura Militar, e abrira o caminho ao Estado Novo, já nada dissesse ao comum dos meus camaradas de armas, de camuflado novinho em folha, a caminho de Contuboel que ninguém sabia onde ficava…Uma efeméride que –anoteu eu – também foi comemorada, à sua maneira, pelos homens do PAIGC…

Umas horas antes tínhamos nós atravessado o Trópico de Câncer, a caminho da Guiné, a caminho de Bissau, Bambadinca, Bafatá e Contuboel…
- Fomos todos apanhados as calças na mão! – contou-me, ainda em alvoroço, um conterrâneo meu, 1º cabo telegrafista de infantaria – se não me engano - , mostrando-me um monte de cápsulas de granada de canhão sem recuo com inscrições em russo e em chinês.
- Podíamos ter morrido todos! – concluiu, hiperbólico, o meu amigo Agnelo Ferreira por cujas mãos havia passado, três meses antes, a terrível lista negra dos mortos do Che-Che, no Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereiro de 1969…

Depois da Lança Afiada, toda a gente dormia de cu para o ar: a Browning, junto à pista de aviação, não tinha munições; não havia segurança próxima nem valas de comunicação entre os abrigos; faziam-se quartos de sentinela sem arma; e até os básicos eram escalados como aquele maluco das cozinhas que costumava ver elefantes a pastar ao fundo da pista…
- Os gajos vieram em peso (talvez mais de duzentos!) retribuir-nos a visita que tínhamos feito ao Fiofioli… Por sorte, não houve mortos!

Ainda deu tempo para espreitar um dos quartos dos furriéis, e ver o céu estrelado: o forro tinha sido atingido por uma morteirada; a granada explodiu em cima de uma das camas; por sorte, o tuga que a ocupava, tinha-se posto a milhas, dois minutos antes...
- Por sorte não houve mortos… - comentava eu, em voz alta, para o furriel que ia a meu lado, quando a coluna retomou a marcha, agora em estrada asfaltada, em direcção à próxima paragem, em Bafatá, a capital da zona leste…
- O meu conterrâneo é capaz de ter razão: afinal nesta guerra só morre quem tem de morrer… - ironizava eu.
- Fala a voz do reviralho – interveio o Noronha que seguia à frente, ao lado do condutor – Mas olha lá, ó Camarada Sov, tu com essas ideias derrotistas e dissolventes aqui não vais longe – proferiu o Alferes, em tom de velada ameaça…
- Só espero que a sorte esteja do meu lado…
- Fia-te na Virgem e não corras!... O problema nem é esse: nesta guerra morre-se mais por erros nossos do que por mérito do inimigo… São as estatísticas que o dizem – acrescentou o Ranger, que se meteu na conversa.
- Pelo muito pouco que já vi, não me atreveria a subestimara assim tanto o adversário que temos pela frente – respondi eu.
- Deixa-te de tretas. Os turras não passam de uns cães rafeiros, que ladram mas não mordem… E os cães quando mordem, também se abatem…
- Fico a saber que não gostas de cães…
- Nem muito menos de barrotes queimados – finalizou o Noronha, já agastado com o rumo da
conversa… Por ironia do destino, iria ter que aprender a lidar, durante vinte e meses, com os barrotes queimados que lhe calharam em sorte...

Demagógico e racista, o Noronha aproveitou para contar a última que tinha ouvido, no QG, em Santa Luzia:
- Sabes como é que Deus fez o preto ?... Ao sétimo dia, depois de completada a obra da criação, Deus foi descansar mas, por esquecimento, deixou ao sol o barro com que tinha feito Adão… Quando acordou, e como já não tinha mais nada que fazer, entreteve-se a fazer bonecos, à imagem e semelhança do homem mas, para haver confusões, pintou-os de preto e mandou-os para a floresta onde já estavam os macacos…
- Grande cabrão! – não pude deixar de rosnar, para mim mesmo, ao ouvir o alarve do Noronha por quem, desde Santa Margarida, eu não podia nutrir qualquer simpatia…

E foi assim, aos solavancos, sentados costas contra costas no dorso de um mastodonte, que a nossa conversa prosseguiu, aqui e ali mais azeda, não tanto pelas diferenças de idiossincrasia, como sobretudo pela tensão e pelo cansaço da viagem, até chegarmos a Contuboel, à hora em que o sol raiava de vermelho a savana arbustiva e os bandos se macacos-cães, na orla da floresta, se organizavam para proteger os filhotes das ciladas do leopardo…

Fonte: (Pre)texto: Na Guiné, longe do Vietname (inédito) (Os nomes o pessoal da CCAÇ 12, meus companheiros de viagem, são fictícios.... As restantes personagens são verdadeiras: o Pimbas e o Agnelo, por exemplo).

Luís Graça (1981-2005)

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau

12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
1 de Agostod e 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané

(2) O 2º comandante, na altura, era o major Manuel Domingues Duarte Bispo, transferido para o Q.G., substituído pelo major Herberto Alfredo do Amaral Sampaio.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3195: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (43): Um grande ataque a Demba Taco


Texto de Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Operação Macaréu à vista

Episódio XLIII

UM GRANDE ATAQUE A DEMBA TACO
Beja Santos

Dois fantasmas, o regresso de um amigo, a última visita a Missirá


Deitado na minha cama, no quartel de Bambadinca, leio e releio o aerograma de Manuel Maria Pimentel Bastos, o primeiro comandante do BCaç 2852, o inesquecível Pimbas. Tem uma actividade modesta numa repartição do Exército, ali para as Escadinhas do Marquês de Ponte de Lima, junto do Martim Moniz. Está contente com o horário, é só a parte da tarde, voltou a praticar violoncelo, tem ainda recordações em carne viva, parece que ainda está a beber o vitríolo de todas as suas humilhações que o tornaram num militar sem futuro. Faz perguntas genéricas e no final despede-se com cumprimentos e agradece-me a lição de “Os Pastores da Noite”. Pareceu-me um agradecimento enigmático. À noite, enquanto passeava junto à porta de armas que abre para as estradas de Xime e Mansambo, subitamente a recordação reavivou-se, percebi a mensagem em código.



A Livraria Martins Editora, de São Paulo,deu à estampa uma edição de valor excepcional«Obras Ilustradas de Jorge Amado».Tratou-se de uma homenagem ao romancista no momento em ele comemorava 30 anos de actividade literária,tendo colaborado alguns dos maiores artistas brasileiros da época,tais como Carlos Scliar,Di Cavalcanti,Clóvis Graciano ou Darcy Penteado. As ilustrações de «Os Pastores da Noite» foram da responsabilidade de Aldemir Martins.Trata-se de uma obra que exalta o povo de Baía,são estórias para rir e chorar de gente humilde conduzida a feitos sublimes no amor e na amizade.Um dos clássicos inatacáveis de Jorge Amado,escapa à erosão do tempo.






O Pimbas soubera do grande desastre da jangada que se virara no Cheche em 6 de Fevereiro de 1969 (tinha havido quarenta e sete desaparecidos nas águas revoltas do Corubal) quando estava em convalescença de uma pequena cirurgia a uma fístula. No dia seguinte a este episódio dramático, vim a Bambadinca depois de Mato de Cão, ele estava deitado no seu quarto, recebeu-me com “Os Pastores da Noite”, de Jorge Amado, na mão, perguntou-me se conhecia a obra. E falámos da cidade de Salvador da Baía, as suas ladeiras, as rodas de capoeira e um elenco espantoso de personagens retirados do mundo popular: o cabo Martim, elegante, fino, a viver um dos casamentos mais turbulentos do mundo; Jesuíno Galo Doido, com a sua sabedoria de cabelos brancos, vagabundo e mestre da vida; Tibéria, mulata sessentona, dona de bordel afamado; mas falámos também das quatrocentas mulatas de Pé-de-Vento, do negro Massu, de Otália, a prostituta que tinha uma boneca e sonhava com o casamento, de Marialva, de Eduardo Ipicilone, e outros oriundos do fabulário baiano, dos feitiços e feiticeiros e sobretudo do amor que preside à arquitectura deste grande romance. Porém, tudo não passava de um devaneio, uma pura ocupação do tempo, eu vinha de Mato de Cão para comprar comida e levar munições, a notícia infausta de dezassete desaparecidos do nosso batalhão impunha um procedimento excepcional ao comandante de Bambadinca, eu via que ele conversava para ganhar coragem, para ter ânimo e partir para junto daqueles que estavam a viver uma tragédia. Olhei para o relógio, levantei-me e terei dito algo como isto: “O meu comandante tem coisas muito importantes a fazer imediatamente, tem soldados em grande tristeza que precisam de receber o seu estímulo. Sei que vai fazer um sacrifício, penso que está fisicamente incapaz para esta viagem, mas o seu lugar não é aqui. Deixo-o para se vestir, desejo-lhe muita coragem para os momentos que vai viver”. O Pimbas partiu e não esqueceu o empurrão que lhe dei, mais de um ano depois.

No dia seguinte, Cherno vem chamar-me ao meu quarto, o régulo Malã e Mussa Mané, o chefe de tabanca de Missirá, querem falar comigo. Estou a ser convidado a acompanhar o comandante da CCS, capitão Passos Marques, a Missirá, o gerador já está a funcionar. Hesito e depois digo que sim, é impossível recusar. Partiremos amanhã no Sintex até Gã Gémeos, hoje tenho expediente na secretaria, à noite emboscada no Bambadincazinho, a manhã será passada em Madina Bonco. E começo a tratar do expediente. Dauda Bari acaba de ser promovido a primeiro cabo, o pelotão vai receber a notícia com regozijo, é o primeiro cabo de etnia fula. Uma secção acompanha uma equipa de cinema que vai filmar nos Nhabijões; trabalho no processo da condecoração de Mamadu Camará, começo a amaldiçoar os questionários e exposições torrenciais, nisto bate-me à porta o Príncipe Samba, chegou ontem à noite de Bissau, ainda se apoia a uma bengala, tem fractura de calcâneo, cambaleia um pouco, disfarça com o seu andar elegante. Leio o parecer da Junta Médica, é um escândalo, é uma indignidade o que ali vejo escrito: deve permanecer ao serviço como favor do batalhão, já que os milícias não têm direito de passar aos serviços auxiliares. Sinto que me vou envolver numa nova luta, mais um labirinto burocrático, mas o Príncipe Samba merece, pela sua valentia e dedicação às milícias de Missirá que superintende como um dedicado chefe militar.

Da visita a Missirá, retiro de um aerograma as impressões que enviei à Cristina: “Chegámos ao princípio da tarde, e, embora na época das chuvas, estava um dia ensolarado. Ligou-se a moderníssima instalação eléctrica, a tarde tornou-se irreal, até me lembrei do céu transtornado pelos tornados quando ligaram os potentes holofotes nos postos de vigia. Valeu a pena a interminável correspondência para a engenharia de Bissau, durante mais de meio ano. À noite vimos cinema, um filme de Sarita Montiel, “La Violetera”, um sucesso que esteve meses a fio no Odeon, não sei há quantos anos. O régulo Malã, Quebá e Lânsana estavam na primeira fila, mirones gulosos. Nunca imaginei ver Sarita Montiel em Missirá, coleante e de ar fatal. Contive as minhas emoções, de manhã acompanhei o capitão de Bambadinca na visita às instalações do aquartelamento, regressámos logo, eu tinha o pretexto de partir para um patrulhamento entre Samba Silate e Amedalai. Apareceu-me Braima Mané, voltou a levar uma tareia do irmão, tive que ir à feira fazer as pazes entre os dois. No final, Malã, o irmão, coseu-me os calções a troco de uma lata de sardinhas. Não é a primeira vez. Não devia ter voltado a Missirá, já li várias vezes que o criminoso não deve voltar ao local do crime”.

Uma recordação inesquecível de “Literatura dos negros”

Tenho que devolver livros à D. Violete, é uma braçada de obras de valor desigual, apontei tudo no meu caderninho: “Guiné, Alvorada do Império”, 1952, Bolama; “Guiné: apontamento histórico”, por Amadeu Cunha, Lisboa, Litografia Nacional; “Guiné, minha terra”, por Armando de Aguiar, 1964, Agência Geral do Ultramar. Ainda folheei “A Guiné, suas características e alguns problemas”, por Fernando Simões da Cruz Menezes, nada me satisfez. Mas o último livro, “Literatura dos negros, contos, cantigas e parábolas”, pelo padre Marcelino Marques de Barros, publicado em 1900, aguçou-me a curiosidade, devorei e repeti. Li e tomei nota do seguinte extracto do conto “A noiva da serpente”:

“Havia nas terras dos mandingas uma bonita aldeia, a qual com o rumor e o bulício da sua numerosa população animava as clareiras de uma imensa floresta.

É, a diferentes títulos, uma obra de consulta obrigatória para conhecer o que se estava a passar na Guiné, após a implantação da República. Carlos Pereira era o Governador nomeado pela República, 2.º Tenente da Armada, omem entusiasmado e culto. O texto é uma exaltação das potencialidades económicas da colónia, como se quisesse afastar o fantasma de uma região sem qualquer futuro. O acervo fotográfico é insuperável: dinâmica em Bolama, Bissau, Buba, Cacheu, desvela-se as belezas naturais dos Bijagós, ilha após outra. Escolhi este par de Bijagós pela simples razão que me fascina a preocupação do fotógrafo , e que se mantém actual: um pano que funciona como um ecrã que esconde a vegetação circundante,não nos podemos distraír...

Ainda hoje, para as bandas do Sul e não muito longe desse lugar, encontra-se uma praia cujas areias reflectem o sol do meio dia como um grande incêndio: e uma fila de blocos de basalto partidos, tombados, ou suspensos no ar, cinge em hemiciclo essa estância povoada de espíritos encantados, de medos e de fantasmas.

Do outro lado, ao norte, onde os baobás, os cipós e as paudemas terminam com os seus maciços de verdura, desdobram-se, até onde a vista pode alcançar, extensas pradarias mosqueadas de garças brancas, de rebanhos, de mergulhões, de flamingos.

E a uma distância de cinquenta arremessos de lança, destaca-se no horizonte, como um gigantesco ramalhete, um bosque de tamareiras, de fetos arbóreos, e de festões de lianas, a cuja sombra umas nascentes de abundantes águas se ouvem cantarolar no meio de pedregulhos roliços e esverdeados”.

O que mais saboreio desta prosa é a verdadeira aculturação do padre Marcelino. É missionário e nasceu na Guiné, agora sente-se que está receptivo aos floreados literários da época, não sei se estou a ler Trindade Coelho ou Pinheiro Chagas, tenho dúvidas que ele se tenha deixado arrastar pelos odores autênticos da sua terra. Mas gostei muito e guardei regalado o que ele escreveu. É quando vou entregar à D. Violete estas leituras que ela me dá a notícia: “Senhor alferes, já sei mais alguma coisa sobre a Sociedade Agrícola do Gambiel, teve uma triste sorte. Encontrei num Boletim Cultural da Guiné Portuguesa de Outubro de 1948 a seguinte referência, isto num artigo sobre a nossa agricultura. Ora escute: “Ao longo do Geba estabeleceu-se em tempos uma exploração agrícola chamada Gambiel que nunca prosperou devido a erros de técnica na escolha do local para o fim em vista. Quando reconheceram tal erro já era tarde e impossível de remediar... Com esta empresa, da qual restam apenas umas dezenas de ares de cana sacarina, formaram-se núcleos indígenas (mandingas e fulas) que também cultivam cana que vendem à empresa, já próxima do último suspiro”. D. Violete justificava-se: “Não sou assim tão velha, a empresa do Gambiel já deve estar extinta há vinte anos. Mas vou falar com a gente do Cuor. Tenho ainda outras notícias para si...”. Interrompi-a, tinha o pelotão reagrupado, já devia ter partido para o patrulhamento de Samba Silate para Amedalai.

O Ministério das Colónias da 1.ª República pretendeu publicar anualmente um relato de tudo quanto se passava nas possessões do Ultramar. Falhou, mas 1916 teve direito a um bem elaborado anuário. O que tem muito interesse para nós é o mapa da época: os nomes das localidades, o posicionamento das etnias, a designação das diferentes regiões. Olhando o mapa à procura dos sítios onde combati, no Leste, não existe o Cuor, existe Gufie, fala-se em Sambel Nhanta (residência do régulo), mas aparecem em Badora nomes que nos eram familiares, como Fá e Bricama. Geba era muito mais importante que Bafatá. Curiosidades...

Um ataque aterrador a Demba Taco

De Nhabijão Cau a Samba Silate não são só os três quilómetros da carta. Em primeiro lugar, enveredamos pelos velhos arrozais, ora infecundos, vamos até ao tarrafe do Geba, à procura de canoas ou de outros indícios da presença da gente de Madina. Aparentemente, estes locais não estão a ser percorridos, todos os sulcos de ténues picadas estão votados ao abandono. Depois, rumámos para Samba Silate, aqui há indícios, são trilhos desencontrados, não abrem pistas. O sol declina, estugo o passo, incito a caminharmos rapidamente para Amedalai, uma secção da milícia local já terá picado até á ponte de Udunduma, a ver se regressamos a casa já com o lusco-fusco mas em segurança. É nisto que deflagram uns estampidos em cadência, é muito para lá de Amedalai. Chegados à tabanca, o fragor das explosões continua a aumentar, já identificámos dois canhões sem recuo e os morteiros 82 a flagelarem um qualquer aquartelamento. Converso com Mamadu Bari, ele confirma: “Naquela direcção só pode ser Demba Taco (ele acentua o “o” aberto, é capaz de ter razão, na carta escreve-se Demba Tacò), eles vieram com vontade de partir tudo”. Prontamente decido: não vamos regressar a Bambadinca, o Valente das transmissões vai informar o comando que partiremos de madrugada para Demba Taco, agora é impossível, não sei se há minas ou emboscada montada, com a primeira luz do amanhecer iremos ver o que se passou, peço viaturas até Amedalai, e que venha alguém da CCaç 12 ao romper da alva, entretanto, sairemos daqui com os militares e civis de Amedalai. Bambadinca responde afirmativo, estou autorizado a permanecer aqui, amanhã posso patrulhar e devo prontamente dar notícias depois. A mata estremece com as explosões ensurdecedoras, anoiteceu, ardem tabancas em Demba Taco, vê-se o fogo nos céus, daqui a um bocado vai sentir-se o fumo arrastado pela ligeira brisa. Nem parece a época das chuvas, agora está tudo seco, percebe-se a voragem do fogo lançado pelas balas incendiárias das costureirinhas. A hospitalidade de Amedalai surge com comida para todos, Mamadu Bari mandou preparar galinha com chabéu, está uma delícia, é pena ter de a acompanhar com água fresca, os soldados do Pel Caç Nat 52 agradecem oferecendo-se para fazer os turnos da noite, peço uma manta e vou dormitar, derreado, a olhar o céu estrelado, pedindo a Deus que poupe Demba Taco.

E com a primeira luz do dia partimos, ficam duas secções à espera do grupo de combate da CCaç 12. Sempre apreciei todo o itinerário entre a velha tabanca de Colicumbel e o palmar de Taibatá, há amplas lalas que sempre dissuadiram as gentes do Buruntoni, avista-se quem vai e quem vem à distância de vários quilómetros. Vamos velozes, em menos de duas horas, mesmo usando todas as cautelas, chegamos à tabanca em autodefesa de Taibatá onde fomos recebidos efusivamente por Cassamá Baldé, o comandante das milícias. Estão todos apreensivos, aguardavam uma coluna de auxílio, não esteja montada uma cilada à entrada de Demba Taco, aqui o mato é frondoso, ainda não se tinham capinado as bermas da picada. Levamos tudo quanto é padiola, estojo de maqueiro, os apontadores de dilagrama à frente, a flanquear os picadores. O odor a queimado é persistente, não há gente nas vizinhanças de Demba Taco. Já próximos, começamos a gritar a anunciar a chegada. Não somos recebidos em festa mas há contentamento no olhar de todos. Cherno Baldé, o comandante da milícia, é a máscara da exaustão e é com ele que percorremos os escombros do ataque devastador: sete moranças reduzidas a cinzas, caíram algumas fiadas de arame farpado, três adultos e cinco crianças estão estilhaçados com alguma gravidade, embora não haja perigo de vida.

Enquanto percorro esta terra calcinada, interrogo-me sobre a estratégia de terror montada entre povos africanos da Guiné. É verdade que neste regulado do Xime, desde a extinta Moricanhe até Amedalai, pontificam os beafadas que juraram resistir até ao fim, quem foi para o mato já decidiu há bem oito, nove anos, as escolhas estão feitas. Olhando aqueles semblantes cansados, eu tinha de me perguntar qual o perdão dos homens para estes cercos brutais, pilhagens e raptos, destruições imprevisíveis, os anos passam e vivo em agonia com este arremedo de guerra civil sob a caução das autoridades portuguesas. Com as padiolas aos ombros, regressamos a Amedalai onde as viaturas levam os sinistrados para Bambadinca. À tarde trouxemos cunhetes de munições, rolos de arame farpado, tesouras corta-arame, o indispensável para reinstalar alguma segurança. Ainda não sei, mas é a última vez que visito Demba Taco. Quando abraço Cherno Baldé é também pela última vez. Coisas que acontecem na paz e na guerra.

Um pequeno relatório de duas leituras muito importantes

Capa de João da Câmara Leme,Texto integral pela primeira vez publicado em Portugal,tradução de Cabral do Nascimento, Portugália Editora, 1962.Na prisão de Reading,condenado por «actos indecorosos»,Wlilde escreve uma longa carta a Lord Alfred Douglas, de quem fora amante.É um dos documentos mais confessionais e pungentes da melhor literatura.Wilde chamou à carta »In Carcere et Vinculis».É a última obra em prosa de Wilde escrita em inglês.È a história de uma relação que terminou no enxovalho de Wilde.Não falta à narrativa um tom amargo e de reprovação que irá culminar numa profunda reflexão sobre o amor cristão.Transcrevi em Bambadinca o final da carta:«Não temas o passado.Se te observarem que é irrevogável,não acredites.O passado, o presentee o futuro são apenas um instante aos olhos de Deus,perante quem diligenciamos viver.Tempo e espaço, sucessão e extensão:meras condições acidentais do pensamento».

De Profundis” é a última obra literária de Oscar Wilde em língua inglesa. É uma carta confessional dilacerante em torno de um amor impossível. Escrita na prisão Reading, fala dessa relação fatídica que destruiu a reputação de um dos maiores ficcionistas britânicos de todos os tempos. Descrevendo a amargura dessa relação insana que terminou no enxovalho e na condenação de Wilde, a narrativa confessional termina numa apoteose de esperança e sentida humildade “O que está à minha frente é o passado. Tenho de olhar para ele com diferentes olhos, fazer com que o mundo o observe com diferentes olhos e com que Deus o veja com diferentes olhos. Isto não o conseguirei se não o desconhecer, ou o menosprezar, ou enaltecer, ou o desmentir. Devo aceitá-lo todo inteiro, aceitando-o como parte inevitável da evolução da minha vida e do meu carácter; curvando a cabeça a tudo o que padeci”. A tradução de Cabral do Nascimento é insuperável.

Dos anos 50 para os anos 60, as Edições Bestseller, do Brasil, publicaram algum do melhor Simenon.Depois, a Bertrand revelou o humaníssimo Comissário,que fizera a tarimba nas esquadras,nos anos 60.Este Maigret não é bom,é fabuloso: um psicopata percorre o bairro de Montmartre matando mulheres como um verdadeiro serial killer.Após algumas diligências decorrentes de um cilada montada por Maigret,Marcel Moncin é detido.Maigret vai ao fundo de uma tragédia de fracasso e ódio pelas mulheres.A confissão do mulher do psicopata é um das páginas de ouro da literatura policial.

“Maigret arma uma cilada”, de Georges Simenon é também fascinante. Um serial killer aterroriza Montmartre, o comissário mais humano do mundo arma mesmo uma cilada e o resultado é mais digno de um filme de horror do que de um livro policial, é uma descida aos infernos de mentes doentias, duas mulheres que pretendem ter um psicopata nas mãos. O interrogatório final tem dignidade para constar nas páginas de ouro da melhor literatura policial de todos os tempos. Sim, foram boas leituras que me suavizaram os fantasmas e o ataque devastador a Demba Taco.

Agora, vou a correr a Bissau, serei ouvido no julgamento de Quebá Sissé, o nosso inesquecível “Doutor”. Depois volto para a rotina por pouco tempo. Aguarda-me o mês de Julho, todo o mês de Julho, na segurança ao alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. Foi uma nova rotina, mas cheia de surpresas. Como irei contar.
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Nota de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3172: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (42): Cartas de um militar de além-mar em África... (5)

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Finete > 1969 > O ex-Fur Mil Henriques, da CCAÇ 12, com uma menina, em frente à casa principal da tabanca que, "salvo erro, pertencia à família do comandante do pelotão de milícia, Bazilo Soncó" (LG). Finete ficava frente a Babambadinca, do lado (direito) do Rio Geba.


Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Udunduma > 1970 > A economia local dependia também também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



Lisboa > Hospital Militar Principal > 1969 > Fotografia do 2º sargento Fodé Dahaba. Pertencia ao Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Missirá ) . Foi gravemente ferido em 22 de Fevereiro de 1969 na Op Anda Cá (Fevereiro de 1969). Vive hoje em Lisboa e visita regular do seu antigo comandante, o Beja Santos.

Texto e foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado em 22 de Dezembro de 2006:


Caro Luís, aqui vai o segundo texto de 1969. A seguir, inopinadamente, o Comandante Chefe e séquito chegam a Missirá onde tudo está mal, desde a insegurança dos abrigos, a tropa mal indumentada, há balas perdidas no chão e por azar dos Távoras o soldado Bacari Djassi entrou numa discussão com o alto comando sobre a diferença entre a luz do mato e a ausência de um gerador...

Apanhei um calafrio e uma reprimenda brutal do Hélio Felgas [, comandante do Agrupamento de Bafatá,] (2), e no mês seguinte dois dias de prisão. Esta toada surrealista ainda é mais incompreensível para quem sabe o que recebi e o que estou a procurar fazer em terras do Cuor. No tocante a ilustrações, acho que chegou a oportunidade para te socorreres do material fotográfico do Luís Casanova.

Aceita um abraço e os votos que 2007 só te dê grandes alegrias, em casa, no trabalho e nos afazeres tertulianos, Mário Beja Santos.


A conjura de Finete e as vacas de Mero

por Beja Santos

É a primeira vez que revisito o passado do Cuor com Fodé Dahaba (3). Pedi-lhe uma primeira ajuda para falarmos de um estranho drama ocorrido em Janeiro envolvendo um pseudo manifesto colectivo que fora transmitido ao Comandante de Bambadinca e em que eu era directamente acusado de maus tratos à população e às milícias; igualmente lhe pedira para me ajudar a esclarecer a colaboração e os apoios de Mero às gentes de Madina/Belel [, base do PAIGC, a noroeste de Missirá].


O Fodé Dahaba que está na minha frente, ladeado pela sua mulher, Fatemana, vestida a rigor para dia de festa, e de Margarida, um dos seus 7 filhos, que lembra uma jovem de Brooklin ou do East Side londrino, tem os olhos vazos, apõe o coto da sua mão sinistrada em 22 de Fevereiro de 1969, mesmo junto a Madina, e sorri com a mesma inocência e beleza de feições com que o conheci em 1968.
- Fodé, nunca entendi o que pretendiam as pessoas que foram caluniar-me junto do Comandante de Bambadinca. Não tinha pés nem cabeça, era inevitável a reacção da população a meu favor, nunca entendi o porquê, a justificação de uma mentira tão facilmente desmontável. Agora que estou a escrever o relato daquele tempo, conto com a tua sinceridade.


A luta pelo poder entre as milícias de Finete



Tudo começara com o chamamento urgente feito pelo Pimbas [, o tenente-coronel Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852] (4). Recebeu-me no seu gabinete, senti-o contrafeito mas após algumas preliminares inócuas, atacou o assunto:
- Olha, isto parece uma história maluca. Apareceu-me aqui um soldado com uma carta a dizer que o povo e as milícias de Finete não querem o teu comando. Segundo os queixosos, tu dás muito menos a Finete do que dás a Missirá, tu exiges grandes esforços e gritas com eles. Ouvi-o e imagina tu que não tinha passado uma hora tinha aqui à porta os homens grandes com o chefe de tabanca à frente a dizerem que era tudo mentira o que se dizia a teu respeito. Não sei o que te diga, e queria saber o que tu pensas.

Eu não sabia de nada, embora fosse conhecedor das tensões permanentes entre mim e o Comandante das milícias, Bazilo Soncó, um dos irmãos do régulo. Agora supor que havia um estado de rejeição quando regularmente estava ou passava por Finete e mantinha as relações mais cordiais com todos, parecia manifestamente absurdo.
- Meu Comandante, peço-lhe que me deixe falar com a população e os milícias de Finete e de seguida um seu representante inquirirá sobre a situação existente. Depois tomará as decisões que entender.

Sem perda de tempo, cambei o Geba e uma hora depois reuni-me primeiro com os homens grandes e depois em separado com as milícias. Não precisei de falar. O chefe de tabanca, Mussá Mané, tomou a palavra para dizer que pediam a expulsão de Abdu Soncó, um cabo da milícia a quem acusavam de estar a mentir e cujo propósito seria o de Finete ficar em autonomia relativa, dependente do batalhão de Bambadinca. E que eu ficasse a saber que a população de Finete não aceitava ser misturada nas calúnias que sabiam constar numa carta entregue em Bambadinca.

Na reunião com os milícias, senti o silêncio de uns e a indignação de outros. O dito Abdu Soncó acusou-me de não dar cimento, armas e munições em quantidades satisfatórias, levar milícias para os trabalhos duros de Missirá e não pagar a tempo e horas. Recordo que Bacari Soncó pediu para falar, lembrando o que era Finete ainda há escassos meses e desmontou a argumentação do seu camarada. Não discursei mas avisei-os que ia transmitir ao Comando em Bambadinca o teor das duas reuniões havidas. Tudo se esclareceu rapidamente, pedi para não haver sanções sobre Abdu e a ala discordante mas nunca apurei o que motivara esta aparatosa e descocada conjura.

Fodé remexe-se na cadeira e deu-me a interpretação dos factos. Quem estaria por detrás da movimentação era o próprio Bazilo e um Sargento, Abás Jamanca. Por outras palavras, Bazilo e Abás temiam que Fodé e Bacari fossem escolhidos para comandar as milícias e eles afastados.

Eu criticava asperamente Bazilo por nunca sair do aquartelamento, isto quando Fodé e Bacari estarem permanentemente a meu lado nos patrulhamentos ou por sua iniciativa a patrulharem sobretudo na extensa bolanha entre Boa Esperança e Gã Gémeos. Aquela carta de Abdu fora uma tentativa desastrada de me procurarem afastar para manter o statu quo. Eu ia tomando nota destes apontamentos e perguntando a mim próprio se afinal não somos iguais no amor e no ódio, em qualquer atmosfera de guerra ou paz. Felizmente que um mês após a trágico-cómica conjura já ninguém se recordava desta lamentável história.


As vacas de Mero e o bombolom dos balantas

Falámos depois das vacas de Mero:
- Fodé, era impossível que os balantas de Mero não fossem todos coniventes com as gentes de Madina. Eu só me interrogo é como eles acordavam os dias e as horas e os itinerários dos encontros já que corriam riscos mortais. O que é que tu pensas?

Aqui Fodé encolheu os ombros como se aquela fatalidade viesse do fim dos tempos:
- Ouve, tu sabes como é que os balantas comunicam entre si? É através do bombolom, um tronco oco por onde envia mensagens. Antigamente era através dos cornos de vaca, mas depois o bombolom era o telemóvel deles. Estou seguro que os ouvíamos mandar mensagens para os grupos que vinham de Madina ao princípio da madrugada. Só os balantas é que conhecem aquela linguagem. Parece um batuque mas aquilo são tudo sinais. Eles tocavam e as gentes de Madina ficavam a saber que não havia perigo, podiam atravessar o rio Geba e regressar ao mato com vacas, mais gente para a tropa, tabaco, o que precisassem.

Então lembrei-me que uma noite estávamos emboscados junto de Gambicilai e avistámos movimento na bolanha em frente a Mero. Cautelosamente, emboscámos junto ao rio, esperámos que atravessassem com a sua carga. Vimos chegar vultos esfumados e vimos os contornos dos animais. Mas o azar nesse dia estava no nosso lado. Nhaga Macque, um fula possante, deu um espirro monumental no meio da noite, o grupo de Mero dispersou rapidamente e a única compensação que tivemos foi apanhar uma vaca que tinha atravessado o rio. Vezes sem conta pedi em Bambadinca que se fizesse o recenseamento da população, perdi sempre. Nessa altura as atenções estavam centradas nos Nhabijões e noutras tabancas em autodefesa.

Recordo que por essa altura também o Pimbas me tinha pedido a síntese sobre a situação político-militar no Cuor. Formei um grupo de reflexão de que faziam parte o régulo Malã, o Casanova, o Comandante das milícias de Missirá, Albino Amadu Baldé, Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Nesse pequeno documento que entreguei ao Pimbas chamava a atenção para os seguintes pontos:

(i) o Cuor devia ser encarado militarmente na dimensão Enxalé-Missirá-Geba, independentemente de nos competir assegurar a manutenção da via marítima do Geba;

(ii) era totalmente impossível aumentar a capacidade ofensiva com tão reduzido contigente, com armamento inapropriado e nas condições logísticas mais deprimentes;

(iii) os rebeldes no Mansomine e no Oio precisavam de ser confrontados por uma conexão de esforços militares que permitissem a nossa presença mais assídua no Joladu e Mansomine, e Missirá nada mais podia fazer que receber as suas eventuais flagelações;

(iv) ou se criavam condições para pôr mais populações em autodefesa ou era inteiramente impossível melhorar a nossa inserção no território.

Entreguei o curto documento, o Pimbas achou interessante mas não houve qualquer seguimento. Eu estava cada vez mais convencido que o PAIGC pretendia obter a neutralização das nossas tropas, já que não havia população a conquistar e o seu esforço de guerra não encarava como prioritário querer aniquilar a nossa presença do rio Geba, algo que eles sabiam ser impossível, pois esta era a única porta aberta para o Leste. O ideal era alguém em Missirá que não fizesse ondas .


Missirá armadilhada pelo Alferes Reis

O Alferes Reis, o mais truculento sapador da Guiné, veio passar 4 dias connosco. Zaragateámos um pouco por causa da quantidade de trotil que ele pretendia enterrar em todos os atalhos que circundam Missirá. O Reis começa-se a afeiçoar à região e quando eu for operado em Março, será ele que apanhará o vendaval de fogo . Mas hoje ajudou-nos imenso a colocar correctamente as fieiras de arame farpado e deixei-o com carta branca para armadilhar junto da fonte de Cancumba, que é um local que tenta os rebeldes.

Fora de tempo e horas chega o pedido de comandante de Bula para eu não visitar os meus antigos soldados da CCAÇ 2402 (5), pois "havia o risco de os desmoralizar". Trata-se de uma história sórdida que não vale a pena aqui desenvolver . Também por esta altura parti uma dentadura postiça que seguiu para reparação num protésico em Lisboa (não havia quem fizesse ou reparasse próteses, pelo menos na região de Bafatá).

O Fodé entretanto pede-me para se ir embora, tem que ir à mesquita pois domingo segue para Meca e à saída disse à Margarida:
- A família de alfero e os seus amigos deram-me todo o apoio que me ajudou a suportar o muito sofrimento. E gostei muito do louvor que recebi depois da pancada recebida!

Se tudo correr bem, vamos reunir-nos em breve para falar da operação Anda Cá.

Os mais bravos soldados do mundo

Tenho muito orgulho nos louvores e pedidos de condecoração para os meus soldados. Um oficial é sempre o porta-voz do agradecimento e reconhecimento dos méritos e do bom uso da escala de valores. Louvei o Joaquim da Conceição, o Saiegh, o Domingos Ferreira e o Veloso. Pedi louvores para Adulai Djaló, Cherno Suane, António Teixeira e tantos outros por comportamentos excepcionais em teatro de operações.

Mas recorri igualmente ao louvor para destacar o primor de carácter, a abnegação, ou um só momento de valentia. Fi-lo com o Luís Casanova e outros como o Barbosa (aquele que tinha o fetiche pela sua boina verde) por ser entusiasta na reconstrução do quartel, por gostar de ajudar sem ser visto.

Lembro o Zé Pereira que durante uma flagelação entrou numa morança em chamas para retirar uma criança esquecida na precipitação da fuga. Este mesmo Zé Pereira era valente, bom professor e dava-me muito apoio nas traduções para crioulo. No dia em que li o seu louvor ao pelotão em formatura e onde se dizia que o víamos partir cheios de saudade, o pelotão aplaudiu de pé. Mas lembro, embargado pela emoção o louvor a Quebá Sissé, o Doutor, o mais risonho dos cozinheiros. Fazia reforços e ia a Mato de Cão como toda a gente.

Tive igualmente em conta as referências elogiosas aos meus soldados antes de ter chegado em Agosto. Por exemplo, Sibo Indjai, o mais indómito dos caçadores que nos trazia frequentemente porco e gazela do mato. Em Junho de 68, escrevi-lhe um louvor, porque com desprezo pela sua própria vida lançara-se num ataque a uma casa de mato, pondo em fuga o grupo rebelde. E sempre que me disseram que eu comandava alguns dos mais bravos soldados do mundo nunca protestei porque achasse exagerado, eu sabia que era verdade.

O fim da minha curtíssima carreira... poética

Não vou falar num livro prodigioso que estou a ler O Deus das Moscas, de William Golding, um belo e terrível livro que alguém classificara como o mais notável romance inglês do pós-guerra. Eu hoje quero comunicar que vou pôr termo à minha veia poética, reconhecendo a falência de inspiração.

Devo ao Ruy Cinatti o ter vindo a conhecer René Char, Francis Ponge ou Saint-John Perse. Este último influenciou-me muito, e momentos houve em que julguei que a boa poesia passa por manipular habilidosamente uma trovoada de imagens. Descobri no momento da verdade que a arrumação dos versos que o foguetório pode encher o olho mas não deixa o espírito saciado.

Lembro que uma vez escrevi "esta terra tem um cheiro a morangos podres e a pó de morcego" e depois desatei a rir porque não era mentira para os meus sentidos mas constituía uma afronta para a comunicação. Outra vez escrevi "dor em tabuada, vapor e trovoada" não me soava mal mas não passava de uma bolha de sabão. Momentos houve em que aceitei haver beleza num encadear de palavras, havia até uma toada épica que não me desagradava: "A quem me lembra e esquece, cada letra é uma homem em Missirá, cada letra sobe os ramos numa árvore prometida. Em cada letra sinto o brilho de uma catana que mutila e dela saem os gritos dos meus amigos que partem para sempre. À minha volta, há um arado e há sangue coagulado, há pássaros cegos que esvoaçam encadeados por uma melodia de sal. E Missirá resiste!".

Se vos conto esta intimidade é porque a guerra é também um bom momento para termos respeito pela nossa vocação e sermos sinceros com o que escrevemos. Eu vim a descobrir que escrevo com indizível prazer mas a veia poética é inexistente. E no entanto... momentos há em que me atiro para a frente, colo os versos como se os pregasse em forma de desenho de uma parede e me emociona com o resultado. Será assim quando um dia, em 2006, escrever para os meus camaradas da Guiné A Estrela de Belém a Missirá.

Este mês de Janeiro [ de 1969] reserva-nos as últimas chuvas. A escola funciona bem, as obras dos abrigos prosseguem, chegou mais cimento e chapas de zinco, desmata-se em Canturé, há Mato de Cão todos os dias e, não fosse esta perna que arrasto cada vez com mais dificuldade, eu diria que o Cuor é a minha segunda casa e estes homens com quem vivo dentro e fora do arame farpado os maiores amigos do mundo.

Um dia destes, enquanto desmatamos em frente a Missirá e um Unimog puxa com guincho cibes que cortámos de um palmeiral, vamos ouvir os rotores de dois helicópteros e vou conhecer o Comandante Chefe. Serei admoestado, o que não vai abalar as minhas convicções. Seguir-se-à Chicri e depois Quebá Jilã. A roda da fortuna vai de novo circular descompassadamente. E, pior do que tudo, seguir-se-à a amargura dessa falhada operação Anda Cá.

Há momentos em que me questiono de onde vem esta energia para reconstituir os factos sem gritar cheio de dor, tal a raiva das perdas.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel

(2) Vd. post de 13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas

(3) Vd. post de 22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

(4) Vd. posts de:

22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

(5) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira