terça-feira, 20 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21469: Notas de leitura (1316): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - V (e última) parte (Luís Graça): Em Brá, no final da comissão, tem como companheiro de quarto o furriel mil 'comando' Vassalo Miranda, uma 'figura ímpar', grande autor de banda desenhada da nossa guerra


Guiné > Bissau > Brá > 1965 > Fur mil at cav Gonçalo Inocentes, de rendição individual, tendo passado pela CCAÇ 423  (São João e Jabadá) e pela CCAV 488 (Bissau e Jumbembem), entre 1964 e 1965. Fez 16 meses de comissão. Foi em Brá que conheceu o Vassalo Miranda, quando ambos aguardavam o regresso à Metrópole.

Foto (e legenda): © Gonçalo Inocentes (20w0) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Quinto e último apontamento decorrente da leitura  do  livro do Gonçalo Inocentes (Matheos), "O Cântico das Costureiras: crónicas de uma vida adiada, Guiné, 1964/65" (Vila Franca de Xira, ModoCromia, 2020, 126 pp, ilustrado).(*)

De rendição individual,  o fur mil Gonçalo Inocentes juntou-se à CCAÇ 423, em 8 de abril de 1964. Um ano depois acaba a comissão dos "velhinhos". É com consternação que o autor vive esse dia, 14 de abril de 1965. Vê-os partir, por via terrestre, a caminho de Tite, sede do batalhão. 

É então  colocado na CCAV 677, "uma companhia completamente destroçada" (p. 100)... Destroçada, leia-se desmoralizada, em fim de comissão:

"Sem capitão, apenas com um alferes que, quando ouvia  o cantar do morse, se refugiava no quarto e era eu quem tinha de tomar as  decisões e escalar quem ia para o mato, respondendo aos rádios em nome do oficial" (p. 100)...

Mas logo dias depois, no 1.º de maio, passa a integrar a CCav 488 [Bissau e Jumbembem, 1963/65]. Mas por pouco tempo.  Quando estes  cumpriram o tempo, o nosso camarada, nascido em Angola,  Nova Lisboa (, hoje, Huambo)  já tinha mais de 16 meses, pelo que acabou por regressar com eles sem ter cumprido os dois anos de comissão, como era normal na altura.

Foi um tempo de transição, em que se ouvia cantar a "costureirinha" mas também já o temível morteiro 82 (, de maior alcance que o nosso 81), e o PAIGC começou a fazer uso generalizado de minas e armadilhas. 

Foi na Guiné que o autor aprendeu a montar e a desmontar a G3 e trocou, pela primeira vez, o capacete de aço (!) pelo boné... Era ainda, quando chegou, o tempo do caqui amarelo, e do Alouette II, a que ele dedica um belo poema (p. 91):

O Heli

Libelinha mágica, de voo pairante,
A nossa última esperança.
Aquele voar batejante,
Alegria de ouvir ao longe
Que um grito logo soltava
Em unísseno quando o víamos.
Tá ali! (...)

Libelinha levava em gemidos
À ilharga nossos amigos. 


É nesse período de espera, instalado em Brá, que conhece uma "figura ímpar", o furriel 'comando', Vassalo Miranda, seu companheiro de quarto [, foto à direita, da sua página no Facebook]:

"Originário de Vila Franca de Xira, o Miranda saiu da sua companhia quando lá chegou, voluntário para os comandos. Tinha muitas particularidades interessantes que faziam de dele um ser ímpar" (p. 107).

E particulariza: 

"Tipo muito alto, cabelo despenteado, usava óculos. Desenhava primorosamente tipo BD e sempre em cenários de guerra. O lençol que o cobria na cama, estava todo desenhado [com cenas] de combates onde ele era sempre o herói. Inclui nas cenas as imagens das namoradas dos colegas retiradas das fotos que alguns tinham nas mesas de cabeceira. Chegou a dar chapada"...

Vale a pena transcrever o resto da pág. 107:

"Quando o conheci tinha uma das lentes dos óculos pintada com tinta da china negra o que lhe dava uma aspecto tenebroso e que ele adorava.

"Contou-me que esteve castigado e proibido de pegar em armas porque na instrução dos  novos comandos o fazia com balas reais e feriu um instruendo nas costas.

"Tinha terminado a comissão e também iria embarcar no Niassa connosco [, CCAV 488]. Contou-me que quando foi de férias a casa, não avisou a família e apareceu à porta com a lente negra.  Quando a mãe abriu a porta, ele soltou o grito de ataque... A senhora desmaiou." (...)

Temos sete referências no nosso blogue ao Vassalo Miranda e a seguinte nota biográfica:


 (...) "O [António M.] Vassalo Miranda, nascido em Vila Franca de Xira, em 1941,  foi furriel mil 'comando', do Gr Comandos Panteras, participou na Op Tridente, é um veterano da Guiné, c. 1963/65. Passou também por Angola. Como civil, viveu algum tempo em Moçambique, na Rodésia (hoje Zimbábué) e na República Sul-Africana. É amigo do Virgínio Briote, do João Parreira, do Mário Dias... E é grande criador de banda desenhada infelizmente com problemas de saúde ocular. Infelizmente, também, não faz (ainda) parte da nossa Tabanca Grande." (**)

[Foto à esquerda: Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > 13º Encontro Nacional de Combatentes >  O Vassalo Miranda,  veterano dos velhos comandos de Brá.  

Foto (e legenda): © Luís Graça (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Chega, por fim, o grande dia, o regresso do Niassa ao Tejo, em 14 de agosto de 1965... Com a companhia a marchar, mal, sob o comando de um alf mil médico que não sabia marchar, o dr. José Hipólito Sousa Franco, o médico da companhia (O que será feito dele?)... 

Aproveitou a peluda para revisitar as noites do fado na "Viela"... e dez anos depois tomou o avião para regressar a casa, à sua Angola. Aqui exerceu durante alguns anos a profissão de Regente Agrícola, antes de se meter noutras aventuras...

Enfim, um livrinho de memórias, em verso e prosa, que se lê num ápice, com agrado. E tem algum interesse documental, pelo seu recheio fotográfico.
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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

7 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21426: Notas de leitura (1313): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte IV (Luís Graça): as primeiras minas e fornilhos A/C

22 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21383: Notas de leitura (1309): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte III (Luís Graça): a conquista da Ponta de Jabadá, em 29/1/1965, importante posição na defesa do rio Geba

10 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21344: Notas de leitura (1305): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte II (Luís Graça): a importância de se ter uma máquina fotográfica e um bloco de notas

9 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21339: Notas de leitura (1303): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte I (Luís Graça): voltar a ouvir a máquina "Singer" da mamã nas matas e bolanas de Quínara,,,

Guiné 61/74 - P21468: Tabanca Grande (504): Manuel Inácio, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 1589/BCAÇ 1894 (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Béli e Madina do Boé, 1966/68). Apadrinhado pelo nosso camarada Abel Santos, vai ocupar o lugar n.º 820 do nosso poilão sagrado

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano, Manuel Inácio, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 1589/BCAÇ 1894 (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Béli e Madina do Boé, 1966/68), com data de 14 de Outubro de 2020:

Formei Batalhão, em Tomar, chegando à Guiné em 15 de agosto de 1966.

Estive em Bissau na CCAÇ 1589, aquartelado no antigo 600. Esta Companhia funcionava como Companhia de Intervenção sob as ordens diretas do Comando-Chefe.

Fez várias operações pelas zonas de Portogole, Enxalé, Xime, Oio, Ilha do Como, seguindo passados 10 meses para Madina do Boé, onde permaneceu 11 meses, sendo depois rendida pela Companhia que sofreu o acidente na jangada, no rio Corubal.

Durante esse período sofreu uma baixa, e nunca ninguém ou do comando, ou particular, fez uma visita a esse aquartelamento, salvo as escoltas anuais, fim das chuvas que abasteciam o destacamento.

Além de tocar a corneta em cima do abrigo quando eles atacavam, também fazia caricaturas, versos e tabuletas com vários "epitáfios" do momento. Logo à entrada se podia ver uma tabuleta,:

"AEROPORTO INTERNACINAL DE MADINA DO BOÉ" 

e outro:

 "MADUNA DO BOÉ, O ALGARVE DA GUINÉ", 

ao lado do monumento que existia à entrada, com granadas, estilhaços e outros afins destrutivos da época.
Manuel Inácio e o seu inseparável trompete
Vista aérea de Madina do Boé - Foto atribuída a Manuel Domingues
"Além de tocar a corneta em cima do abrigo quando eles atacavam..." - Lá está a cadeira (ao alto num dos abrigos)
Madina do Boé - Manuel Inácio
Madina do Boé: Convite para umas férias inesquecíveis - Foto: © Manuel Caldeira Coelho (2011). Todos os direitos reservados
Madina do Boé: Memorial da CCAÇ 1416: "Aos nossos mortos"... "E aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando" - Foto: © Manuel Caldeira Coelho (2011). Todos os direitos reservados
Recordações de Madina do Boé - Foto: © Manuel Caldeira Coelho (2011). Todos os direitos reservados

2. Comentário do editor CV:

Caro Manuel Inácio

Bem-vindo à nossa Tabanca Grande. Muito obrigado por te juntares à tertúlia e pelas fotos enviadas que suponho ser todas de Madina do Boé. Obrigado também ao Abel Santos por "apadrinhar" a tua entrada. Sentas-te no lugar n.º 820, à sombra do nosso mágico, fraterno, acolhedor e protector poilão. Como gostamos de dizer, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Cabemos cá todos com tudo o que nos une e até com o que nos pode separar...  Fico à espera de mais memórias tuas para alimentar o blogue, que é um "bicho comilão e sedento"... Como vês, em 16 anos de existência já publicámos cerca de 21 mil e 500 postes, a par de 85 mil comentários... Para não falar em mais de 100 mil imagens... E vamos a caminho das 12,5 milhões de visualizações de páginas (, grosso modo, visitas). 

O teu nome, Manuel Inácio, passa a figurar, a partir de hoje, na lista alfabética, de A a Z, dos membros da Tabanca Grande, na coluna (estática) do lado esquerdo... Muita saúde e longa vida para ti, sempre, sempre ao nosso lado.
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de setembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21387: Tabanca Grande (503): António Baltazar Valente Ramos Dias, ex-Alf Mil Art MA da CART 1745 (Ingoré e Bigene, 1967/69): senta-se no lugar n.º 819 do nosso poilão

Guiné 61/74 - P21467: (De)Caras (165): Cecília Supico Pinto, em Cufar, em fevereiro de 1966 (Mário Fitas, ex-fur mil op esp, CCAÇ 763, 1965/67)


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, Os Lassas"  (1965/67) > Fevereiro de 1966 > Delegação do MNF, de visita a Cufar. Sabemos que nessa delegação estva integrada a 
Cecília Supico Pinto, presidente do MNF, acompanhada da Presidente da delegação de Bissau daquele movimento.A elas se juntaram também a esposa do cap Costa Campos.Mas temos sérias dúvidas sobre se alguma destas semhoras era a Cecília Supico Pinto,

Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar]: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, Os Lassas"  (1965/67) > Ao lado da Cecília Supico Pinto,  diz o Mário Fits, à sua direita, a esposa do comandante de "Os Lassas", o cap Costa Campos, Maria da Glória (França)... A outra senhora à esquerda devia ser  a Renata da Cunha e Costa, da comissõa central do MNF, que acompanhou a presidente na 1ª visita à Guiné. (**)

Por ocasião do 9º Encontro da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/67), realizado em 2007, em Almeirim, por ocasião dos 40 anos do regresso de "Os Lassas", o Mário Fitas homenageou  também a  "sra. professora, enfermeira e companheira de guerra Maria da Glória (Dª. França)", agradecendo-lhe a "doação total à CCAÇ 763", razão porque, no seu entendimento, ela devia "ser considerada como parte integrante desta Companhia".


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, Os Lassas"  (1965/67) >  Mário, esta senhora não podia ser a Cecília Supico Pinto, aos 44 anos, com um "look" surpreendentemente jovem (1).

 

Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, Os Lassas"  (1965/67) >  Esta senhora não podia ser a Cecília Supico Pinto, aos 44 anos, com um "look" surpreendentemente jovem (2).

  

Foto nº 5 > Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, Os Lassas"  (1965/67) > Esta senhora não podia ser a 
Cecília Supico Pinto, aos 44 anos, com um "look" surpreendentemente jovem (3).

Fotos (e legendas): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar]: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Em fevereiro de 1966, a então presidente do Movimento Nacional Feminino (MNF)  visitou a Guiné, pela primeira vez, acompanhada de Renata da Cunha e Costa. (**) 

Não sabemos, com detalhe, o percurso da visita... Mas sabemos que esteve na Região de Tombali, em Cufar e, seguramente, em Catió...Mas também, na Região do Cacheu, em Binta, pro exemplo...

Fomos agora recuperar várias  fotos do Mário Vicente Fitas Ralhete, o nosso querido amigo e camarada Mário Fitas, cofundador e  "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô, que vive no Estoril.   

O Mário Fitas foi fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Nome de guerra: "Mamadu"...É  autor de:

(i)  "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (inédito, 2ª versão, 201o, 99 pp.);

(ii)  "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.


2. Contexto das fotos acima reproduzidas (, fotogramas de um DVD, proveniente muito provavelmente de um filme em 8 mm, a cores, feito na altura da visita, em fevereiro de 1966):

Foto nº 1:

(...) Como reconhecimento do seu trabalho, os Lassas recebem dias depois a visita da Sra. Presidente do Movimento Nacional Feminino, Dª. Cecília Supico Pinto, acompanhada da Presidente da delegação de Bissau daquele movimento. 

Deixaram uma máquina de projectar filmes de 8 mm, uma viola e mais uns pacotes de cigarros. (...)

No Hospital Militar [, onde entretanto é internado para uma cirururgia à hérnia], ao princípio da tarde Mamadu acordou. (...)

Na tarde seguinte, apareceram umas senhoras simpáticas do MNF, a quem Mamadu informou gostar bastante de ler, e pe­diu se lhe arranjavam “A Besta Humana”, do Émile Zola. Muitas desculpas mas não conheciam a obra, no entanto iam tratar do assunto. Até hoje não teria sido lido, se o próprio não o tivesse comprado. (...)

Neste tempo todo, desleixou um pouco a correspondên­cia. Fragilizado, como pedinte, apenas mandou um bate-e
stradas (aerograma) à Tânia, muito simples e cauteloso, a solicitar se queria ser sua madrinha de guerra. Era uma forma hábil de contornar e chegar lá. Sem problemas, podia morrer mouro porque ao SPM. 2628 nada chegou, vindo de Terras do Lado do Norte. Madrinha não haveria.  (...)

Fotos nºs 2, 3, 4 e 5 (***)

[enviadas por ocasião da notícia da morte da ex-presidente do MNF, extinto em 22 de juklho de 1974, por despacho do Ministro da Defesa Nacional] 

(...) Sem qualquer preconceito político, revelo aqui a minha admiração por uma mulher que soube conviver com os jovens soldados nos tempos da guerra (hoje velhos Combatentes).

Julgando ser de interesse para o Blogue e para a história do conflito na Guiné, anexo algumas fotos da D. Cecília Supico Pinto (com a esposa do Cap Costa Campos, comandante da CCAÇ 763) em Cufar, terra dos Lassas.

Em duas das fotos podemos vê-la acompanhada de D. Maria da Glória (França). (...)

3. Na altura da morte de Cecília Supico Pinto, em 25 de maio de 2011, a escassos dias de completar os 90 anos, o nosso blogue prestou-lhe uma homenagem, espontânea, a que lhe era afinal devida (****). 

Publicaram-se na altura mais de duas dezenas de  mensagens. Destacam-se a de dois camarada  que a conheceram em vida, o Joaquim Mexia Alves, régulo da Tabanca do Centro (Monte Real), e o JERO (Alcobaça), e cujas mães pertenceram ao MNF.

(i) Joaquim Mexia Alves:

(...) Caros camarigos:

Morreu uma grande Senhora!

Conheci-a pessoalmente por diversas vezes, visto que a minha mãe foi dirigente do MNF em Leiria.

A mim não me interessam neste momento quaisquer ilações politicas ou outras, mas tão só olhar a mulher que dedicou a maior parte da sua vida aos soldados de Portugal e sobretudo das suas famílias.

Quem assim se dá em prol dos outros merece sempre a nossa bondade e o nosso elogio.

Que Deus a tenha no Seu descanso.

Um abraço camarigo para todos e também para ela, que à sua maneira era nossa camariga.


(ii) JERO  [José Eduardo Oliveira]:

(...) Já lá vão uns bons 30 anos mas recorda-me como se fosse hoje. Trabalhava então na Fábrica de Porcelanas SPAL, em Alcobaça, e vindo do Sector Fabril avistei na entrada da Sala do Mostruário uma figura que, à distância, me pareceu ser familiar e que perguntava qualquer coisa à telefonista. 

Aproximei-me e percebi que a senhora em causa, de uma certa idade, pretendia comprar um serviço de chá (ou café). A telefonista Susana com a simpatia que lhe era habitual informava que a Fábrica não atendia público. Teria que se dirigir a uma loja para o efeito que pretendia.

Parei e reconheci a senhora. Era a Cilinha Supico Pinto. Disse-lhe que era o responsável comercial da Empresa e que no seu caso iríamos abrir uma excepção. «Porque a Senhora visitou em tempos a minha Companhia no norte da Guiné. Em Binta. A Companhia 675 do Capitão Tomé Pinto, que pertencia do Batalhão 490, do Tenente Coronel Fernando Cavaleiro...  Eu fui um dos seus rapazes combatentes. E a minha Mãe, Maria Fernanda Oliveira, tinha pertencido em Alcobaça ao MNF em meados da década de 60.»

Não mais esquecerei o seu sorriso e o seu abraço. Estou a escrever de lágrimas nos olhos.
Devo a essa Grande Senhora este momento de ternura e de saudade.

Bem hajam os Homens Grandes do nosso blogue por terem prestado à Dª.Cecília Maria de Castro Pereira de Carvalho Supico Pinto esta merecida e sentida homenagem. Aceitem um abraço de gratidão do JERO. (...)

(***) Vd. poste de 3 de junho de  2011 > Guiné 63/74 - P8371: In Memoriam (82): Fotos de Cecília Maria de Castro Pereira de Carvalho Supico Pinto, antiga Presidente do Movimento Nacional Feminino (Mário Fitas)

(****) Vd. poste de 31 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8350: In Memoriam (81): Cecília Maria de Castro Pereira de Carvalho Supico Pinto, Presidente do Movimento Nacional Feminino (30 de Maio de 1921 - 25 de Maio de 2011) (Teresa Almeida / José Martins)

Guiné 61/74 - P21466: Parabéns a você (1883): Fernando Súcio, ex-Soldado CAR do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74) e Rogério Cardoso, ex-Fur Mil Art da CART 643 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série > 19 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21463: Parabéns a você (1883): Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 3460 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Guiné 671/74 - P21465: Notas de leitura (1315): “Para o bem da Nação: usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1949-1961)”, um artigo de Victor Andrade de Melo na Revista Análise Social de 2017 (1) (Mário Beja Santos)


Gâmbia > Bathurst > 1953 > Comemorações da entronização da Rainha Isabel II, de Inglaterra > Foto da seleção de futebol da Província Portuguesa da Guiné > De pé, da esquerda para a direita, Antero Bubu (Sport Bissau e Benfica; capitão), Douglas (Sport Bissau e Benfica), Armando Lopes (UDIB), Theca (Sport Bissau e Benfica), Epifânio (UDIB) e Nanduco (UDIB); de joelhos, também da esquerda para a direita: Mário Silva (Sport Bissau e Benfica), Miguel Pérola (Sporting Club de Bissau), Júlio Almeida (UDIB), Emílio Sinais (Sport Bissau e Benfica, Joãozinho Burgo ( Sport Bissau e Benfica) e João Coronel (Sport Bissau e Benfica).

No 1º jogo, a seleção da Guiné ganhou à seleção da Gâmbia por 2-0, com golos de Joãozinho Burgo; no 2º jogo, as duas seleções empataram 2-2 (com golos, pela Guiné, de Mário Silva e Joãozinho Burgo). Antiga colónia inglesa, a Gâmbia acedeu à independência em 1965.

Legenda de João Burgo Correia Tavares: vd. livro Noberto Tavares de Carvalho - "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita", Porto, edição de autor, 2011, p. 41.
 
Foto ( e legenda): © Armando Lopes / Nelson Herbert (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se procede a um resumo de um investigador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro com basta bibliografia sobre o desporto na Guiné Portuguesa desde a governação de Sarmento Rodrigues até ao período da Independência. O investigador analisou um conjunto de publicações periódicas guineenses e revela que com Sarmento Rodrigues arrancou uma política de desporto na Guiné, associada a outros movimentos ligados ao lazer e entretenimento. Benfica e Sporting tiveram aqui as suas antenas, um revolucionário como Bobo Keitá jogou nos Balantas de Mansoa; a par disso, a UDIB tinha futebol, recebia muitos grupos caseiros (um deles era o BNU) que faziam desporto ou teatro, organizavam-se bailes e festividades. O que o autor assinala neste texto é a evolução dessa política desportiva à escala caseira e dentro da região, tudo se vai alterar com os novos países independentes, ficará interdita a presença portuguesa em certames desportivos internacionais em qualquer ponto de África, com exceção da África do Sul.

Um abraço do
Mário


Usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1)

Beja Santos

O número 225 da revista Análise Social, de 2017, inclui um artigo de Victor Andrade de Melo intitulado “Para o bem da Nação: usos políticos do desporto na Guiné Portuguesa (1949-1961)”. Victor Andrade de Melo é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e encontram-se vários documentos e referências a livros na internete que abonam que o investigador tem manifesto interesse por esta problemática do desporto na Guiné Portuguesa. Veja-se por exemplo o artigo intitulado “A nação em jogo: exporte e guerra colonial na Guiné Portuguesa (1961-1974)”, publicado na revista mexicana Antíteses. Vale por isso a pena cobrir todo este vasto período entre o pós-guerra e a independência.

Estamos em Maio de 1949, no Estádio Sarmento Rodrigues homenageia-se o Governador do mesmo nome, a sua obra introduzia uma nova dinâmica no desenvolvimento da colónia, desde as obras públicas à investigação científica, às instituições de saúde e ao ensino. Sarmento Rodrigues chega à Guiné em 1945, a atividade desportiva já estava a dar os seus primeiros passos, os Balantas de Mansoa tinham sido constituídos no ano anterior. Mas o garboso oficial da Marinha trazia inspiração para o desporto no âmbito colonial. 

Atraído pelas teses do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, pretendeu imprimir ao modelo da sua governação a vertente multirracial, o desporto seria um esplêndido mediador para aproximar colonos e colonizadores. O investigador Victor Andrade de Melo analisou a imprensa periódica neste período, logo O Arauto, lançado em 1943, em Bolama; depois Os Ecos da Guiné, publicados entre 1950 e 1954, também o Bolamense, que vigorou entre 1956 e 1961; e por último o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, que teve publicação ininterrupta entre 1946 e 1973. Sarmento Rodrigues deu orgânica a estas preocupações com o desporto, constituiu mesmo o Conselho de Desportos.

Recorde-se que Bissau ganha nova dimensão neste período expansionista, cresce a administração e a economia, há mais europeus e cabo-verdianos e mais “indígenas” ganharam o estatuto de “civilizados”. Sarmento Rodrigues extinguira em 1946 a categoria de “assimilados” o que na prática somente atenuou a discriminação racial.

Quem diz desporto diz lazeres e entretenimentos. Em Janeiro de 1953 organizou-se uma temporada de touradas em Bissau e escrevia-se em O Arauto: “pela primeira vez vamos apreciar um grupo de forcados indígenas que enfrentará um touro da metrópole a fim de mostrar a sua coragem e a rijeza das pernas para fugir a tempo”. E falou-se muito em portugalidade. 

No ano seguinte chegou a Bissau o ciclista Luís Rosa Marques, que fazia o percurso Luanda-Lisboa. Foi saudado como o “valente português” que contribuía para revigorar as relações entre as diferentes parcelas nacionais. O cinema da UDIB acolhia apresentações teatrais e musicais, o cinema tinha pouca expressão embora os filmes de Charlot fossem muito bem recebidos.

Muitos jovens foram atraídos pela possibilidade dada pela Mocidade Portuguesa. Fundam-se clubes, um Benfica em Bissau, um Sporting em Bafatá, há clubes de curta duração, como o Porto de Bissau. Em 1955, há um novo alento, foi criado um Conselho Provincial de Educação Física, diz Victor de Melo que a decisão começara a ser delineada quando Sarmento Rodrigues era Ministro do Ultramar, mas este conselho provincial só começou a funcionar em 1959.

O futebol foi desde sempre a modalidade mais popular. Sarmento Rodrigues estimulou jogos e torneios de diversas modalidades disputados entre clubes e selecionados os guineenses e de outras colónias, promovidos dentro ou fora da província. O desporto aparecia como forma de construir um sentido de pertença e de identidade com a nação. E dá-se o exemplo da seleção de futebol de Bissau ter ido a Dakar, em Abril de 1952, para disputar o Torneio da África Ocidental, e escreveu-se com apreensão quanto à participação da equipa representativa da colónia: “A seleção da Guiné não está à altura de representar condignamente desporto da província num torneio internacional”

O relato da final do Torneio Internacional de Páscoa – realizado em Bissau, em 1953, contando com equipas de Dakar, Conacri e Bathurst, deu conta de um jogo tenso entre a seleção da casa e do Senegal. Um cronista escreveu o seguinte: 

“Vibrava ali mais do que a fé desportiva: era o patriotismo ardente de todos nós em um único desejo em todos os corações e enquanto os jogadores se movimentavam heroicamente para honrar as nobres tradições do povo batalhador, a Bandeira verde-rubra drapejava lá no alto como a querer incutir-lhes mais confiança e a indicar o caminho da fé e o grito dos séculos – para frente rapazes de Portugal”.


Noutros relatos não se esconde a rivalidade nos jogos entre Cabo Verde e a Guiné, as razões são sobejamente conhecidas. Outras visitas marcaram acontecimentos entusiasmantes, como a vinda, em Fevereiro de 1958, da Académica de Coimbra, escreveu-se em O Arauto: “A Académica de Coimbra veio pôr em alvoroço todos os corações portugueses que aqui vibram e palpitam quando tocados pela magia dos grandes ideais”

Em 1958, pela primeira vez, tomaram parte na Taça de Portugal agremiações das colónias, o Ferroviário de Angola e o Desportivo de Lourenço Marques. O período da harmonia possível entre países descolonizadores e descolonizados está a chegar ao fim. Em Novembro de 1959, a seleção provincial participou nas eliminatórias para escolher as equipas que disputariam a fase final da Taça de Ouro Kwame Nkrumah, promovida pelo Gana recém-independente. O quadrangular foi disputado com equipas de Cabo Verde, da Gâmbia e do Senegal.

À guisa de conclusão quanto a esse período, observa o autor que a Guiné em meados dos anos 1940 estava bastante distante, no âmbito desportivo, do que ocorria em outras colónias portuguesas, daí o esforço para uma maior estruturação do desporto e em diferentes modalidades. E conclui deste modo:

“A participação de equipas da Guiné em desafios internacionais, a vinda de equipas da metrópole e a ida de jogadores para Portugal continental foram ocorrências mobilizadas para exaltar as supostas contribuições do colonizador para o progresso e civilização da província. Essas ocasiões, contudo, também acentuaram algumas contradições e ambiguidades, na medida que expunham a falta de estrutura da colónia, acirravam o conflito entre colónias portuguesas (no caso dos encontros com Cabo Verde) e permitiam contactos com povos que já estavam entabulando processos de independência.
O envolvimento com a prática desportiva, portanto, já prenunciava uma dimensão que ria crescer na década de 1960: seria tanto mobilizada pelos que desejam manter a ordem colonial quanto pelos que desejam a libertação da Guiné”
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(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de outubro de 2020 > Guiné 671/74 - P21445: Notas de leitura (1314): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2020 - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21464: (De)Caras (164): Cecília Supico Pinto, a líder do Movimento Nacional Feminino: visitou 4 vezes o CTIG (em 1966, 1969, 1973 e 1974), mas nunca deve ter ido a Madina do Boé...


Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Destacamento de Carenque > 1973 > A Cilinha a "cantar o fado"... perante um grupo de soldados... (Carenque ficava a norte da ilha de Pecixe, na margem direita do Rio Mansoa.)

Espantosa  foto, de antologia, de António Tavares dos Santos [, presumivelmente, fur mil, 2.ª C/BCAÇ 4615 e CCaç 19. Guidaje, 1973/74]... Cortesia da página Arquivo Digital, alojada em Agrupamento de Escolas José Estêvão, Projeto Porf 2000, Aveiro e Cultura.




Guiné > s/l > Fevereiro de 1966 > Cecília Supico Pinto,  falando para um grupo de militares; em segundo plano, um dos seus "braços direitos", também elemengo da comissão central do MNF, [Amélia] Renata [Henriques de Freitas] da Cunha e Costa . 

Fotogramas do vídeo (6' 43'') da RTP Arquivos > 1966-02-01 > Cecília Supico Pinto visita Guiné (Com a devida vénia...)


S/l > S/d > c. 1971 >  Cecília Supico Pinto, com o seu inseparável cigarro, e  Renata da Cunha e Costa, viajando de helicóptero ao enconto de um grupo de militares no mato, possivelmente em Angola ou Moçambique.

Fotogramas do vídeo (25' 00'')  da  RTP Arquivos > 1971 - 05- 17 > Um Dia Com… Movimento Nacional Feminino (Com a devida vénia...)


1. Quantas vezes esteve na Guiné e por onde andou, a Cecília [Maria de Castro Pereira de Carvalho] Supico Pinto (1921-2011), fundador e presidente da comissão central do Movimento Nacional Feminino (MNF) ? Por exemplo, será que alguma vez esteve em Madina do Boé ?

Esteve quatro vezes na sua "Guinesinha", em 1966, 1969, 1973 e 1974... Alguns dos sítios que visitou, no mato, estão documentados. Mas seria preciso recorrer às revistas do MNF, como a "Presença" e a "Guerrilha", para saber mais pormenores, para não falar do seu arquivo...

No livro da investigadora Sílvia Espírito Santo, “Cecília Supico Pinto: o rosto do movimento nacional feminino” (Lisboa, A Esfera do Livro, 2008, 222 pp.), de que possuo um exemplar autografado (“Ao Luís Graça, com simpatia. Sílvia Espírito Santo, fev 08”), as viagens à Guiné estão mal documentadas. 

Há apenas duas ou três páginas com escassas referências à Guiné:

"Eu fui a quase todo o lado [da Guiné]. com excepção de Guerrilhe [, Guileje ?], Medina (sic) do Boé e Gadamaela [, Gadamael ?]. Não me venham dizer a mim que a Guiné estava toda tomada, por amor de Deus". (Entrevista dada em 2004, em Cascais, excerto transcrito no livro, na página 116.)

Houve, por certo, erro (grosseiro) de transcrição dos topónimos, imputável  à investigadora. Com quatro viagens à Guiné, a presidente do MNF sabia, por certo, soletrar os nomes das principais povoações, não chamando Gadamaela a Gadamael (que, de resto, visitou a pouco menos de um mês do 25 de Abril de 1974)... Ou queria referir-se a Gandembel ? 

Na página 117 do citado livro, é referido que a “Cilinha”, como gostava de ser tratada por toda a gente, foi promovida duas vezes, a título honorífico: de soldado Pinto a 1º cabo Pinto, com direito a camuflado e a uma G3, em Bula, ao tempo do ten cor cav  Henrique Calado, comandante do BCAV 790 (Bula, 1965/67). 

Esta visita só pode ter  acontecido em 1966, a primeira vez que ela fez à Guiné, com partida a 1 de fevereiro, era então governador-geral e comandante-chefe o gen Arnaldo Schulz, Esta visitada está documentada em vídeo dos Arquivos da RTP,  disponível aqui, infelizmente sem som (***). 

Na chegada a Bissalanca, há militares da CCAÇ 618 (São Domingos, 1964/68) que estavam já em Bissau,  de regresso à Metrópole (marcado para 9 de fevereiro), e que fizeram as honras da receção (mais ou menos protocolar).  Na viagem ao interior da Guiné, em DO 27, não há indícios de ter ido a Madina do Boé. De qualquer modo, já nessa altura seria de todo "desaconselhável" lá ir, de heli ou DO-27, por razões de segurança (*)...

Em 11 de maio de 1969, a “Cilinha”, de visita ao Olossato, na região do Oio, é promovida a capitão, pelo comandante da CCAÇ 2402, cap inf Vargas Cardoso. (****). Na visita a Jolmete, nesse mesmo dia,  ela terá vindo expressamente de Bissau, de helicóptero, na companhia de Spínola e da esposa Maria Helena.

Na pág. 119, é referido ter sido ela  atingida por um estilhaço (, em março de 1974, numa coluna de Nova-Lamego a Piche]. O seu batismo de fogo teria sido nos arredores de Mueda, Moçambique, em 1966, em que seguia com Renata da Cunha e Costa (pág. 116). 



Capa do livro de Sílva Espírito Santo, “Cecília Supico Pinto: 
o rosto do movimento nacional feminino” 
(Lisboa, A Esfera do Livro, 2008, 222 pp.) 


Mas há contradições nas suas declarações a respeito da Guiné e dos sítios aonde foi, na qualidade de presidente do MNF. Por exemplo, em entrevista à revista "Combatente", da Liga dos Combatentes, em 16/7/2005, terá declarado o seguinte ao cor inf Manuel A. Bernardo (**):

(...) "A guerra em Angola estava ganha. A Guiné era um problema e sendo ela perdida, seria muito complicado para o resto. A Guiné foi grave. A minha 'Guinezinha', como eu costumo dizer, tão pobrezinha... Olhe que tenho a camisola amarela de zonas de intervenção visitadas. Cheguei a ir umas quatro vezes a Madina do Boé, a Buruntuma, a Nova Lamego e a muitas outras zonas de combate. Nunca virei a cara e posso andar em qualquer sítio de cabeça bem levantada. Muitas vezes ia à frente das colunas e cheguei inclusivamente a 'picar' a estrada." (...) 

Sabemos que em maio  de 1969 esteve também no Leste da Guiné (*): Bambadinca, Nova Lamego,  Buruntuma (a 4, segundo o nosso camarada Abel Santos) , e noutros sítios, por certo... Mas Madina do Boé já tinha sido evacuada um mês antes, em 6/2/1969. 

Em março de 1973, esteve em Mansoa, Teixeira Pinto, Carenque… Mas também na região de Quínara: por exemplo, em Nova Sintra, (Nessa altura, ainda teve direito a viagem de heli, com apoio de helicanhão; dias depois, em 25/3/1973 era abatido por um Strela a primeira aeronave da FAP.)

Podia-se discutir se, face à penúria de meios aéreos no CTIG, fazia sentido a presidente do MNF, em viagem "quase de Estado", andar normalmente de heli, no mato, ou de DO-27... Em geral, ela  viajava "by air"... 

Mas houve exceções: a viagem de Nhala para Aldeia Formosa, na nova estrada, em 11 de março de 1974; a viagem de Nova Lamego-Piche-Canquelifá, em estrada alcatroada, na mesma altura (em que coluna apanhou com uma mina A/C).

De qualquer modo, já em março de 1969, o heli (e ainda mais o helicanhão) era uma arma considerada caríssima:  15 contos por hora, cerca de 4600 euros, a preços de hoje!...
 
Não sabemos se os "privilégios" do MNF se alteraram com a mudança de líder do regime, Marcello Caetano, substituto de Salazar, de quem a Cecília Supinco Pinto guardou uma imagem de "fraco"... O que era compreensível: Salazar, para ela, só poderia haver um...

Na última visita à Guiné, em finais de fevereiro e primeira quinzena de março de 1974, sabemos que ela (e possivelmente a secretária que a acompanhava) dormiu pelo menos duas vezes no mato: em Gadamael (segundo informação do nosso camarada Carlos Milheirão) e em Bafatá, segundo relato do então já major de infantaria Vargas Cardoso (****).

2. Portanto, pelo que conseguimos apurar, a Cecília Supico Pinto esteve então  por 4 vezes no CTIG: 1966, 1969, 1973, 1974… 

Em 1974, esteve em Nhala e Aldeia Formosa. Mais exatamente, sabemos que esteve em Nhala, em 10/3/1974, pernoitando em Aldeia Formosa nesse dia, a menos que tenha regressado a Bissau de helicóptero, nesse fim de tarde, o que nos parece menos provável (*****)… 

Visitou Gadamael também nessa altura, em março de 1974, em data que não podemos precisar. Fez-se acompanhar por um pelotão do destacamento de Fuzileiros de Cacine.

Portanto, se  alguma vez teve oportunidade de  visitar Madina di Boé, só poderia  ter sido em  fevereiro de 1966, no tempo seco, de heli ou DO-27.  (******)

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

  17 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21457: (Ex)citações (377): As visitas da D. Cecília Supico Pinto ao leste da Guiné (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

11 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21442: Fotos à procura de... uma legenda (128): Em maio de 1969, ao tempo do BCAÇ 2852, a Cilinha terá pernoitado em Bambadinca?

 

(...) Resumo Analítico: Cecília Supico Pinto é recebida por militares portugueses; cumprimentos; visita instalações militares; avioneta militar em vôo; a aterrar; Cecília Pinto sai de avioneta; visita a região; zona habitacional dos militares; cerimónias com militares portugueses; discurso de Cecília Supico Pinto; militares oferecem presentes a Cecília; visita às instalações do aeroporto militar; oficinas; aviões a serem reparados; Cecília Pinto fala com militares. (...) 


(...) Programa sobre o Movimento Nacional Feminino, onde Cecília Supico Pinto, presidente do Movimento, apresenta e comenta as várias atividades desenvolvidas pela organização (...)

Guiné 61/74 - P21463: Parabéns a você (1883): Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 3460 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série > 18 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21460: Parabéns a você (1882): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2533 (Guiné, 1969/71)

domingo, 18 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21462: Blogues da nossa blogosfera (144): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (55): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


DIZEM QUE É LOUCA

ADÃO CRUZ

©ADÃO CRUZ

Dizem que é louca
mas não é.
Ela apenas foge dos comedores de cabeças
que vivem dentro de nós.
Dizem que é louca
mas não é.
Ela apenas foge da ferida aberta
no mais fechado segredo
dos brancos lençóis do nosso íntimo prazer.
Dizem que é louca
mas não é.
Ela apenas foge dos vampiros da mente
devoradores de sonhos e sentimentos
que habitam cobardemente
os cantos e esquinas da nossa cidade interior.
Dizem que é louca
mas não é.
Ela apenas foge do terror
de ver entrar a vida pela porta de saída
para os abismos da dor.
Dizem que é louca
mas não é.
Loucos somos nós.
Sorrimos
bocejamos
e calmamente nos sentamos
todos os dias
cegos e mudos
à mesa do café.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21441: Blogues da nossa blogosfera (143): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (54): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21461: Blogpoesia (701): "A força do sangue", "Ruela estreitinha" e "Coincidência ou acaso", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


A força do sangue

Telúrica a força do sangue.
Faz-se ouvir das profundezas do magma humano.
Irrompe infalível e faz estremecer as afinidades dos ancestrais.
Atravessa os oceanos nos barcos da emigração.
Poisa nas margens dos continentes.
Aí germina.
Forma comunidades.
Mantém perpétuas as semelhanças de cada ramo.
Reproduz o modo de viver dos antepassados.
Assim se revestiu de gente a terra e o mundo coloriu.
Dificilmente se misturam com as gentes autóctones.
Reparte e gera saudades das terras donde se partiu.
Melhor seria que não ocorressem.
Sua causa, as mais das vezes são as carências vitais.


Berlim, 13 de Outubro de 2020
14h44m
Jlmg


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Ruela estreitinha

Ruela estreitinha da cidade de Évora.
Mergulhada em silêncio.
Pintada de branco.
Afitada de azul nas ombreiras das portas.
Algumas vermelhas.
Janelas fechadas.
Ninguém à janela.
É hora da sesta.
Solstício de Verão.
Queima para burro.
Ao longe e à volta,
Montados ermos de sobreiros e mansos pinheiros.
Brancas aldeias, de casas serenas,
Baixinhas, um banco corrido de pedra.
A parede é a costa.
Ali sentam pacatos,
alentejanos castiços.
Conversando da sorte da vida.
Não a trocam por nada...

Berlim, 15 de Outubro de 2020
8h30m
Jlmg


********************

Coincidência ou acaso?

Nossos encontros nas encruzilhadas,
a horas espúrias.
Com alguém que muito queríamos.
Não é obra do acaso.
Há alguém de fora que alcança tudo.
Sem ser árbitro.
Apenas assistente atento.
é bom sabê-lo.
Nunca vamos sós.
Não somos apenas peças dum xadrês anónimo.
Nossos passos têm controlo total.
Não há lugar para receios.
A caminhada está vigiada.
Uma central atenta,
Vinte e quatro horas por dia.
Totalmente grátis...


Bar dos Motocas, arredores de Berlim, 16 de Outubro de 2020
14h11m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21440: Blogpoesia (700): "Santuário de São Bento da Porta Aberta", "A força da inspiração" e "Ser o primeiro", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21460: Parabéns a você (1882): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2533 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21446: Parabéns a você (1881): Mário Ferreira de Oliveira, 1.º Cabo Condutor de Máquinas Ref da Marinha (Guiné, 1961/63)

sábado, 17 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21459: Fotos à procura de... uma legenda (135): Levantamento de minas A/P no carreiro de Uane, em julho de 1974 (António Murta, ex-alf mil inf, MA, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)... E um grande texto de antologia, um grande documento humano de um grande português, dilacerado entre dois imperativos antagónicos, a sua consciência humana e as suas obrigações militares.

 

Foto nº 2  > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  >   O alf mil inf MA Murta apontando uma mina A/P acabada de localizar.


Foto nº 2A  > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  >   O alf mil inf MA Murta apontando uma mina A/P acabada de localizar (, assinalada a vermelho)


Foto nº  1 >  Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  > O guia que nos levou ao campo de minas. Pertencia à milícia de Nhala.



Foto nº 3  >  Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  >    Duas minas levantadas [, assaladas a vermelho[  e os restos de uma bota de cabedal.



Foto nº 4 >   Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > Julho de 1974  >    Junto à minas levantadas,   os restos de uma bota de cabedal [, assinalados a vermelho]
 



Foto nº 5 >  Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > Aspecto parcial do 4.º Grupo de Combate da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 a caminho do carreiro de Uane, e após saída da mata



Foto  nº  6 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > O José Gomes em passo acelerado depois de entrarmos em campo aberto.





Foto nº 7 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > A retaguarda do 4.º Gr Comb a sair da mata.

 

Foto nº 8 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973 > Já no regresso a Nhala, paragem para descansar numa zona rochosa.




Foto nº 9 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > O Alf Mil M/A Murta a descansar junto do cão Pifas.



Foto nº 10 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  > Pose do alf mil  Murta em baga-baga.





Foto nº 11 > Guiné > Região de Tombali > Subsetor de Nhala > Carreiro de Uane > 1973  >
 Zona de poilões monumentais. Aqui,  alguém  (assinalado a amarelo] junto do poilão,  por uma noção de escala.

Fotos (e legendas): © António Murta  (2016). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Notável  sequência de fotos do álbum de António Murta, ex-alf mil inf Minas e Armadilhas, da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com referência à minagem (em 1973) e desminagem (julho de 1974) do carreiro de Uane, utilizado pelo PAIGC. E, mais notável ainda, é um grande texto de antologia, um grande documento humano de um grande português, dilacerado entre dois imperativos antagónicos, a sua consciência humana e as suas obrigações militares.

Contexto: 

7 de julho de 1974 – Conforme pedido dos Comissários Políticos do PAIGC presentes em Aldeia  Formosa, foi solicitado,  a Bissau, autorização para a abertura da estrada Chamarra-Gandembel. Uma vez autorizado, iniciou-se a desminagem e a abertura da referida estrada.

8 de julho de 1974 – Prosseguem em todo o Sector os trabalhos de desminagem de diversos trilhos utilizados pelo PAIGC. Foram desminados trilhos na região de Buba, Nhala e Missirá.


  Julho de 1974: desminagem do carreiro de Uane (trilho do PAIGC)

por António Murta (*)


(...) Aproximavam-se os tempos das coisas derradeiras. Os sinais estavam um pouco por todo o lado, mas os acontecimentos não correspondiam à ânsia de uma resolução clara e definitiva, e arrastavam-se de forma penosa e desesperante. Fui-me abaixo. Em carta de 5 de julho de 1974 para a família, dou conta de estar a ser medicado por ter os nervos arrasados. 

Começo a ponderar vir de férias à Metrópole para recuperar a saúde e ganhar tempo. Podia ser que,  quando regressasse,  estivesse clarificada a situação e se procedesse à passagem do território para as novas autoridades. Amadurecida a ideia, decidi que só ficaria ali até ao fim deste mês de julho. Passaria o agosto na Metrópole, se entretanto não ocorresse algo de significativo que me alterasse os planos. Mas eu queria que ocorresse, para poupar uma viagem e evitar ser surpreendido pelos acontecimentos. Mas não aconteceu nada e no final do mês [de jukho] decidi partir, como pouco antes já tinham feito alguns dos meus camaradas da Companhia e até os Comandantes de Batalhão.

Mas foi o maior erro da minha vida. Tudo o que antes ansiara testemunhar, começou a ocorrer logo nos primeiros dias do mês seguinte. Agosto seria o mês da entrega do território ao PAIGC, fim da secular presença portuguesa naquele chão. Perdi a oportunidade de ser testemunha de momentos históricos de tão alto significado, em que tantas vezes havia reflectido, não fosse eu e os meus camaradas ainda ali, os últimos guardiões do templo. 

Ia-se entregar o templo sem eu estar presente. Sei que os momentos derradeiros da troca das bandeiras nacionais me iriam gerar fortes emoções e sentimentos ambíguos: regozijo pelo fim do colonialismo que abria caminho à independência da Guiné, e o sentimento vago da perda, todavia aceite. 

Foram esses momentos históricos que eu perdi, e isso deixou-me uma mágoa para sempre. Podia-se ser contra aquela guerra e contra o colonialismo, (que se não fosse português era outro qualquer), podia-se achar justo o direito à autodeterminação conseguida – ou não -, com as lutas de libertação, mas, para o bem e para o mal, foi português aquele chão africano desde que, há mais de quinhentos anos, ali chegaram os primeiros compatriotas. 

Nós seríamos os últimos. Só por isso, a nossa geração ficaria na História, mas ficará também pelo alto preço que pagou sobretudo em sacrifícios inimagináveis e em vidas humanas, para que se mantivesse lá a mossa bandeira. Tal como fizeram os primeiros, e sem menos valor e honra que eles. (...)

Era a quarta vez que ia àquela zona do carreiro [de Uane], no extremo norte da nossa área de acção, lá para os lados do Rio Corubal, mas ainda longe do rio. O objectivo foi sempre a minagem e desminagem do trilho usado frequentemente pelos guerrilheiros. 

Como responsável pelas minas, armadilhas e afins da minha Companhia, era obrigado a fazer o levantamento das minas antes de uma ausência prolongada, como era o caso das férias.  No regresso tinha de lá voltar a instalá-las de novo. Agora a situação [, em julho de 1974, ] iria ser diferente: era a última vez que levantaria as minas, à imagem do que estava a acontecer em todo o território, face à situação de paz irreversível. O PAIGC fazia o mesmo.

Saímos muito cedo de Nhala, que a caminhada iria ser longa. Com o meu grupo [, o 2º Gr Comb, ]  seguia o meu guia preferido, milícia maduro e experiente, com um ar sempre sisudo mas de trato fácil e atencioso [, Foto nº 1]. Pouco falava e, em português, quase nada. Mas entendíamo-nos perfeitamente. Era marido da Fátima, a minha lavadeira, também ela uma excelente pessoa, dedicada e afável até à doçura. E falava com desenvoltura o português acrioulado, se assim se pode dizer. Tantas saudades desta gente...

Caminhámos quase sempre dentro de mata cerrada que, a certa altura, começava a mudar e a apresentar-se algo estranha e até misteriosa, onde havia poilões enormes [, Foto nº 11,]  e, numa certa zona, um solo de rochas de aspecto granítico  [, Foto nº 8,] como não conhecia em mais nenhum lado na Guiné. 

No regresso parávamos sempre aí para comer e descansar [, Fotos nºw 9 e 10]. Quando ali passámos no ano passado [, 1973,] , fiz algumas (péssimas) fotografias que mostrarei mais à frente. Aliás, as únicas fotografias que tenho da ida e regresso do carreiro, são do ano de 1973, que agora não repeti. Apenas a fotografias da desminagem [, Fotos nºs 2, 3 e 4] são desta acção de julho de 1974.

Saímos finalmente da mata [, Fotos nºs 5, 6 e 7]  para uma clareira que eu reconheci como próxima do local das minas. Era ainda muito cedo e a humidade extrema evaporava-se do chão como uma nuvem longa e densa, criando momentos tão desconcertantes que me adiantei para fotografar a caminhada do pessoal em fila indiana. 

Ao princípio os soldados caminhavam com essa nuvem ascendente a ocultar-lhes as pernas, revelando a imagem bizarra de um grupo de “amputados” a deslizarem suavemente num tapete de algodão. Mas com a ascensão acelerada da evaporação, os últimos do grupo marchavam com energia sem que se lhes visse o corpo da cintura para cima. Só se viam pernas em andamento. 

Mais à frente, já sem estas visões “paranormais”, todos nós transpirávamos com o sufoco do calor emergente. Guardei sempre estas imagens na memória, mas em película não. Não se aproveitou nada das fotografias do fenómeno.

Lá adiante o guia parou. Aproximei-me e ele apontou uma zona, talvez a cem metros. Mandei o grupo instalar-se na orla da mata ali ao lado e pedi uma pica trifurcada, pondo-me em andamento normal até estar próximo do local indicado. Peguei no croqui que fizera aquando da instalação das minas e estive um bocado a observar o local e o desenho no papel, mas não vendo qualquer semelhança com as referências ali desenhadas. 

Olhei para trás para o guia e ele, lá da mata, insistiu num ponto mais à frente. Comecei a picar e a avançar ainda com alguma ligeireza e depois voltei a consultar o papel. Em redor não encontrava nenhuma das minhas referências, menos ainda marcas do carreiro no chão. Já calculava que isto iria acontecer, era sempre assim. Bastava que as minas tivessem sido instaladas numa época diferente do ano e era suficiente para nada no terreno ser reconhecível. 

A bem dizer, o croqui só serviria para me indicar a posição relativa das minas entre si, e ainda precisava de sorte para que nenhuma tivesse sido mudada de sítio pelas enxurradas da época das chuvas, por algum animal ou, pior, por algum guerrilheiro que as tivesse localizado. 

Apenas era seguro avançar pressupondo que podiam estar em qualquer lugar naquela zona, caso não tivessem sido accionadas. Era uma operação solitária, demorada e perigosa, logo, de alguma tensão. Mas eu podia apenas contar comigo e com a minha experiência, numa acção que exigia tempo e sangue frio.

Comecei a picar cada sítio onde punha um pé, observando constantemente o chão e as raras árvores à volta em campo aberto. Pela escassa altura do capim, julgara que encontraria facilmente o carreiro, mas não. Há muito que, pelos vistos, não era utilizado. Depois, ao mudar de posição percebi, finalmente, que uma das árvores muito esganiçadas ali ao lado era a minha referência no croqui, embora sem semelhanças com os detalhes precisos que eu riscara muito tempo antes. 

A partir daí, tirando medidas a olho, não foi difícil colocar-me no ponto certo da passagem do carreiro e, pouco depois, identificar uma particularidade que eu registara e onde, na altura, aproveitara para colocar duas minas, com alguma maldade, diga-se. É que, uma dezena de metros antes, o carreiro bifurcava, passando a ser duplo ao longo de não mais vinte de metros e reencontrando-se novamente. 

Imaginei que resultasse do hábito natural de, por vezes, as pessoas, ao saírem da mata fechada,  terem necessidade de caminharem lado-a-lado, para um pouco de conversa. Na altura ocorreu-me logo usar essa particularidade de forma ardilosa e, infelizmente para alguém da guerrilha, o ardil resultou e uma das minas foi pisada. 

Devo dizer que foi o único caso concreto em que tive consciência de ter feito uma vítima naquela guerra. Facto que, desde do momento da verificação sempre senti de forma penosa, não me aliviando pensar que fiz o que tinha de fazer por estarmos em guerra. Tudo mais pesaroso por eu saber que a falta de evacuação pronta, numa situação daquelas, representava quase sempre a gangrena e a morte. 

Então porquê remexer agora na morbidez destas lembranças? Talvez esperando que o desabafo público permita algum alívio, já que não o senti das raras vezes em que o fiz em privado. E para que, quem nunca foi à guerra, conheça e compreenda que ela não representa apenas uma contabilidade de mortos e feridos entre os beligerantes, mas também um grande sofrimento para as vítimas, para quem as provoca e para os que as viram acontecer. Trauma de graduações várias que, muitas vezes, são para o resto dos dias. 

Finalmente localizei a primeira mina [, Foto nº 2]. Com a ajuda do croqui foi fácil encontrar a segunda [, Foto nº 3[ . Sempre agachado e picando o terreno com a faca de mato, não mexendo um pé sem que o sítio para o pôr estivesse seguro, fui-me deslocando para o local da terceira mina.... mas ela não estava lá. 

Embora sempre calmo, fiquei apreensivo. A mina podia ter sido detectada e mudada de local, entre muitas outras hipóteses. Foi remexendo à superfície o capim rasteiro, quase a um metro do local, que descobri os vestígios que explicavam a falta da mina: um pedaço de cabedal ainda com o tacão de uma bota agarrado [, Foto nº 4], depois outro pedaço com a série de furos dos atacadores, mais uns fragmentos menores e nada mais. O resto voara. 

Perante a evidência, fui tomado por um sentimento de grande pesar e desconsolo. Por momentos fiquei ali a olhar para aqueles restos, pensando na estupidez da guerra. Para me aliviar, por certo, e reagir, pensei: mas não é para isto que servem as minas? Não foi para isto que calcorreei tantos quilómetros para vir cá pô-las? 

Levantei-me e fiz sinal na direcção do grupo que modorrava na borda da mata, para que se aproximassem. Passei a máquina fotográfica a um e pedi-lhe para me fotografar junto das minas no chão. Todos observaram a cena, silenciosos e pensativos. Preparámo-nos para o regresso, pois não havia mais nada a fazer ali. Para além do sucedido, hoje interrogo-me sobre as razões de uma tão grande canseira para ir ali implantar apenas três minas. 

Não era por falta de minas, creio. Que eficiência teria este tipo de segurança afastada? Por quê os guerrilheiros não contornavam a zona das minas, não sendo credível que ignorassem que sempre ali existiu minagem? E outras considerações...

PS - A fotografia n.º 2, embora não desfocada, estava tão “tremida” que teve de ser sujeita a edição severa. Sempre que a revejo e me foco apenas nesse defeito que quase gerou duas imagens sobrepostas, não evito um sorriso ao pensar: será que o fotógrafo estava mais nervoso do que eu? 

Saberia da história de outros que perderam as pernas e a vida ao pisar minas enquanto fotógrafos de guerra? Por certo que não. Nem eu sabia naquele tempo. Para só citar dois de uma lista infindável, refiro um dos meus preferidos e o mais notável dos antigos fotógrafos de guerra, Robert Capa. #(Segundo a Wikipédia, actualmente um dos mais importantes é o americano James Nachtwey, n. Nova Iorque, 1948). Citarei ainda o português João Silva. ##

As fotografias que se seguem  [, do nº 5 a nº 11] são de uma das idas ao carreiro em 1973 para implantar minas naquele local, provavelmente estas que agora (em Julho de 1974) foram levantadas como acabei de relatar acima.

# Robert Capa (1913-1954). Húngaro, de seu nome verdadeiro Endre Friedemann, foi cofundador da Agência Magnum em 1947. Fotografou a Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Sino-Japonesa, Segunda Guerra Mundial, Guerra Árabe-Israelita de 1948 e Primeira Guerra da Indochina onde morreria ao pisar uma mina.

## João Silva (n. Lisboa, 1966). Vive na África do Sul, trabalha para o “The York Times”, foi várias vezes premiado com o “World Press Photo”. Perdeu as duas pernas ao pisar uma mina no Afeganistão. Continua a fotografar.

[Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição deste poste: LG]
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(**) Último poste da série > 0 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21437: Fotos à procura de... uma legenda (127): Levantamento de um campo de minas A/P: chão felupe, setembro de 1974, uma notável sequência fotográfica do António Inverno (ex-alf mil Op Esp / Ranger, 1º e 2ª CART / BART 6522 e Pel Caç Nat 60, São Domingos, 1972/74)