quinta-feira, 8 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22083: Listagem de postes do nosso blogue com o(s) descritor(es)... (1): "Cristina Allen"... (uma das "nossas mulheres" que, de uma maneira ou doutra, "foram à guerra", e que era de uma viva inteligência, grande cultura e sentido de humor mordaz: deixou-nos no passado dia 5 de abril)

 

Peça de artesanato guineense que a Cristina Allen ofereceu, em 2009, com muito carinho,  ao blogue, na pessoa do seu editor,  num gesto de apreço pela nossa homenagem à memória da sua filha, mais nova, Maria da Glória (Locas) (1976-2009). 

A peça,  de olaria, devia ter originalmente alguma funcionalidade, que desconhecemos, e que na altura não me foi explicado pela Cristina: tem 4 orifícios no bojo, na parte inferior, e dois, muito mais pequenos, na parte superior (, possivelmente  para entrada de água e saída de vapor)... Seria uma queimador de ervas aromáticas ?... Não, diz o Fernando Gouveia, que conhece muito bem o artesanato guineense: "É uma bilha de Teixeira Pinto!"... Obrigado, Fernando e Regina Gouveia (Vd. poste P4670,  de 11 de julho de 2009).




Lisboa > Adro da Igreja do Campo Grande > 8 de Julho de 2009 > c. 19h30 > A Cristina Allen, tal como a conheci,  na missa do 7º dia por alma de sua querida Locas... Uma grande dignidade na dor e no luto... E sempre de perto acompanhada pela sua filha, mais velha,  Joana, que é psicóloga  na Guarda Nacional Republicana.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2009 /2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].






1. A Cristina Allen, membro da nossa Tabanca Grande,  desde novembro de 2008. deixou-nos passado dia 5, aos 78 anos (*).  Os últimos 12 anos da sua existència foram assombrados pelo desgosto de perder uma filha, e depois pela sua doença crónica degenerativa, 

Mulher crente, esperemos que tenha encontrado agora os caminhos da paz eterna.  A sua passagem pelo nosso blogue foi episódica (tem menos de duas dezenas de referências), mas deixou-nos alguns textos, fortes e desassombrados, e nomeadamente a evocação que fez, com ternura e humor,  dos seus 53 dias de "lua de mel", algo rocambolescos,  passados em Bissau ( cidadezinha pela qual, apesar de tudo, conseguiu apaixonar-se).

Poucas mulheres, como ela, aceitariam ir casar-se em Bissau, em plena guerra, em situação penúria e desconforto, com o noivo em véspera de ser hospitalizado. E, para mais,  voltar sozinha a casa, em Lisboa. Ao marido (, impossibilitado de ir de férias, por razões disciplinares,)  ainda lhe faltavam alguns meses de comissão de serviço militar. Ficam aqui, à nossa disposição, estes textos, que são de antologia, e que nos permitem, de algum modo, colmatar o vazio da sua ausência.  

Por outro lado, poucos de nós conviveram com ela, tirando o Beja Santos, o Jorge Cabral e poucos mais. Os membros mais recentes da Tabanca Grande nunca tiveram, por certo, a oportunidade de ler nenhum destes postes (, perdidos entre mais de 22 mil).  

Conhecia-a pessoalmente em circunstâncias muito tristes (em 8 de julho de 2009), antes tínhamos falado uma ou outra vez ao telefone.  Quero recordá-la aqui como uma grande senhora e "uma das nossas mulheres" que, de uma maneira ou de outra, "foram à guerra".

Era natural de Aljustrel. Foi professora de liceu. Deixa uma filha, Joana, e uma neta, Benedita. E um grande saudade aos amigos que com ela tiveram o privilégio de conviver.

Sobre ela escrevi em 9/1/2009: 

(,,,) Sentiu-se útil e acarinhada por todos nós, ao apreciarmos o seu gesto (generoso e corajoso) de facultar ao seu ex-marido as cartas e aerogramas que ele lhe escreveu durante dois anos de comissão militar na Guiné. E não foram poucas: algumas centenas...

Quem já leu os dois volumes do "Diário da Guiné", do nosso camarada e amigo Beja Santos, sabe quão preciosas foram, para ele (e nós, seus leitores em primeira mão), essas cartas e aerogramas, como fonte de informação minuciosa sobre a actividade diária, operacional e não operacional, primeiro em Missirá e depois em Bambadinca, à frente do Pel Caç Nat 52, entre meados de 1968 e meados de 1970.

A Cristina Allen (...) é uma mulher, de inteligência viva, de grande cultura e com um sentido de humor mordaz... É um privilégio, para nós, ela querer partilhar as emoções que sentiu e as experiências por que passou no curto espaço de tempo (53 dias) que (sobre)viveu em Bissau, entre Abril e Junho de 1970.

"Dias de brasa", chamei-lhe eu, com alguma propriedade. A Cristina não nos pediu, mas isso está implícito: "Meus bravos, saibam-me ler, nas linhas e entrelinhas"... A Cristina não é nossa camarada, mas é doravante uma amiga nossa (e da Guiné). Precisa também do nosso afecto e carinho, na véspera de uma intervenção cirúrgica a que vai ser submetida. Vamos desejar-lhe que tudo corra bem. E que volte rápido e bem, e sempre que o desejar, ao nosso convívio.

Já agora deixem-me, como leitor, dizer que este pedaço de prosa é de antologia. O próximo biógrafo de Spínola não o poderá ignorar. Ora releiam o modo como a Cristina, em duas pinceladas de mestre, fez um soberbo retrato-robô do nosso Com-Chefe: 

(...) "Havia um toque (A recolher? Por causa dele? Nunca perguntei). Mas via aquele homem passar para a mão esquerda o pingalim, encostá-lo firmemente à perna, pôr-se em sentido, crescer, enchendo o peito de ar, o ventre liso, o braço direito, o cotovelo, a mão, na mais perfeita continência que jamais vi. Ficava desmesuradamente imenso, desmesuradamente rígido, só o monóculo coruscava.

"Estarrecida, não sabia que fazer dos pés, das mãos, da mala, da mini-saia, parava, cruzava as mãos, endireitava-me (postura por postura, não baixaria a cabeça, olhava-o nos olhos, ou, melhor dizendo, no olho e no monóculo). Acudiam-me ideias bizarras – que o meu avô materno fora lanceiro e, certamente, teria sabido fazer aquilo mesmo; que ele, Spínola, escorregara em Missirá, numas cascas de batata e fora ao chão, pose, pingalim, monóculo e tudo, soltando palavrões… que aquele homem era o… 'Caco Baldé'!

"Apertava os lábios para não me rir: este é o Caco, 'Caco Baldé'" (...)

Enfim, era uma mulher de grande nobreza e sensibilidade, capaz de escrever, em público, estas palavras extraordinárias:

(...) Caro Luís Graça, as histórias de amor a que alude , morrem, por vezes, mas de nada me arrependo. Ainda hoje voltaria a subir as escadas da pequena Catedral de Bissau, mesmo que fosse, apenas, para viver o primeiro dia da “estação das chuvas”. Um trovão enorme e seco, torrentes de água lavando tudo e, à noite, a visão transcendental e única de um céu riscado de relâmpagos, na luz azul-turquesa, feérica e metálica, como se um deus antigo revelasse a sua ira e escrevesse “basta!” na caligrafia da natureza, solta em fúria. (...) 


2. Listagem de postes do nosso blogue com o descritor "Cristina Allen":

24/12/2008 > Guiné 63/74 - P3667: As Nossas Mulheres (5): De Bissau a Lisboa, com amor (Cristina Allen)

(...) Na cidade, a vida aparentemente almofadada e facilitada por amigos do Mário e também meus, nada podia ocultar os abafados ruídos de combate a quinze quilómetros de distância, nem a visão dos feridos e emocionalmente perturbados no Hospital Militar.

Na companhia do Mário ou sem ele (internado ou já em Bambadinca), andava em bolandas, com as malas, de casa de amigos para o hotel; do hotel para a casa de amigos. Repito que não foi fácil ter vivido em Bissau. A noiva radiante, que o Mário descreve no segundo volume do seu Diário da Guiné, depressa murcharia. Permitiu a sorte que se formasse, como reduto de consolo, uma tabancazinha de gente amiga, em passagem ou residente, militar e civil. Relembro esses amigos (...)

9/1/2009 > Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

(...) Cheguei a Bissau a 15 de Abril, casei a 16, parti para Lisboa a 8 de Junho. Cinquenta e três dias. Se achar interesse a isto que escrevo, pode editar, pois já esclareci com o Mário esta questão. Terá havido uma semana e poucos dias de alegria e em todos os restantes, a quotidiana eternidade de desespero controlado. O meu marido sofria do que hoje chamamos, sem complexos, “stress de guerra”. E um súbito muro se atravessava entre nós. Não sei se o escreveu, mas, de olhos desmesuradamente abertos, mandava-me embora e dizia que queria morrer e ser enterrado em Missirá. Pior ainda, eu obrigara-o a casar e o nosso casamento não era válido porque não estava consciente. Doença de guerra, pura e dura.

Levei-o ao Padre. Experiente conhecedor de almas, o Padre Afonso, muito calmo, tinha ali o livro de registos e foi dizendo que, se ele queria ir morrer a Missirá, que fosse. E, quanto ao casamento, abrira uma folha nova nos assentos, bastava arrancá-la… o nosso “Tigre” deu um salto, eu temi pelo Padre, mas tudo se acalmou. “Vão lá almoçar”, disse. Porém, discretamente, fez-me um gesto e percebi que ia telefonar. (...)

8/2/2009 > Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!

(...) Nessa manhã em que seria hospitalizado, o Mário e eu faríamos as malas e procuraríamos outro quarto, na “Berta”. Estava ali um espaço fresco e sombrio, com uma larga cama. Sem desfazer as malas, desci para o almoço e deparei com uma execrável salada de feijão-frade com atum. Os feijões, minúsculos e mal cozidos, o atum, na prática inexistente, cebola avonde, a gritar pela intervenção rápida da escova e pasta de dentes! Pousei ainda os talheres, mas (“saco limpo cá tá firma!”) enfrentei o questionável cozinhado.

Uma mãozinha leve tocou-me no ombro. Era a Berta, untuosa, que me perguntava se gostara do almoço (“sim.”), se o meu marido vinha almoçar (“não, foi hospitalizado.”), por quanto tempo (“não sei”) e, por fim, o tiro certeiro: num quarto de casal, eu não podia ficar, seria perder dinheiro com uma pessoa que ocupava um quarto de duas… mas ela conhecia uma senhora que alugava quartos, pessoa muito decente, e eu poderia ir comer ali as refeições (“é o vais!”,  pensei…). (...)

19/2/2009 > Guiné 63/74 - P3913: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (3): Quanta chuva, Mário ?

(...) A poucos dias do seu aniversário (31 de Maio), consegui, por intermédio de um vizinho, bacalhau. E foi, enquanto preparava o enorme pirex de arroz, receita longa e complicada, que, súbita, irrompeu a estação das chuvas. O Mário não estava.

Chovia em catadupas. Corri para a rua, molhei-me toda, voltei ao forno, a roupa a secar-se-me no corpo.

Trinta e um de Maio de 1970. Quanta chuva, Mário? Vinte e cinco.

Um dia, dois dias, quantos, antes que ele partisse? Não recordo. Na sua ausência, um outro amor crescera – Bissau, a suja, colorida, mal crescida cidade africana, o cinzento opaco do Geba, junto ao cais, o céu atravessado de helicópteros, suspensas notícias, indo e vindo, silêncio povoado pelo longínquo matraquear do medo.

Nela aprendi que o belo não é o perfeito, que o belo pode ser, também, o feio em ignota desmesura, estado de alma, inquieta quietude, inesperada transigência. (...)
te cantarei bela
em cada esquina.
Bissau, como te vi,
luzeiro e sombra densa,
Bissau da paz
e luta ardente,
Bissau benvinda,
oculta para sempre. (...)

Outros postes:

7/4/2021 > Guiné 61/74 - P22077: In Memoriam (391): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021) - A Cristina, a Guiné e a sua presença na nossa sala de conversa (Mário Beja Santos)

6/7/2017 > Guiné 61/74 - P17550: O Serviço Postal Militar (SPM) do nosso contentamento: cartas e aerogramas... (E, a propósito, o que é feito dessas 10 toneladas de correio diário que circulavam nos vários teatros de operações durante a guerra ?)

9/1/2013  > Guiné 63/74 - P11024: O Spínola que eu conheci (24): Alcunha, antonomásia, apodo, cognome ou epiteto... "Caco Baldé"... Qual a origem ? (Cristina Allen / Luís Graça / Jorge Cabral / Carlos Fabião / Cherno Baldé)

1/10/2009 > Guiné 63/74 - P5038: História de vida (23): Maria da Glória, uma saudosa filha com um dom especial para o fado (Cristina Allen)

23/7/2009 > Guiné 63/74 - P4726: In Memoriam (28): Saudades da nossa Locas (1976-2009): com a dor e o riso também se faz o luto... (Cristina Allen)

9/7/2009 >Guiné 63/74 - P4660: In Memoriam (26): Fazendo o luto pela Maria da Glória e agradecendo a todos a solidariedade (Mário Beja Santos)

6/7/2009 > Guiné 63/74 - P4644: In Memoriam (24): Maria da Glória Revez Allen Beja Santos: "Morte, onde está a tua vitória ?" (Mário Beja Santos / Luís Graça)

25/12/2008 > Guiné 63/74 - P3668: (Ex)citações (9): Obrigado, Cristina, por esta doce e terna prenda de Natal (Torcato Mendonça / Hélder Sousa)

8/11/2008 > Guiné 63/74 - P3422: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (2): O exemplar nº 1, autografado, dedicado à malta do blogue

11/07/2008 > Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

28/03/2008 > Guiné 63/74 - P2693: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos (25): A festa do meu casamento, 7 de Fevereiro de 1970

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Nota do editor:

(*) Vd. postes  de:

  7/4/ 2021 > Guiné 61/74 - P22077: In Memoriam (391): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021) - A Cristina, a Guiné e a sua presença na nossa sala de conversa (Mário Beja Santos)

7 de Abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22075: In Memoriam (390): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021), ex-esposa do nosso camarada Mário Beja Santos, faleceu no Lar de Santa Catarina de Labouré, Lumiar, Lisboa (Editores)

Guiné 61/74 - P22082: Em busca de... (312): Camaradas do ex-Fur Mil Art Vítor Manuel de Almeida Santos do GA 7, Buruntuma e Dara, 1972/74(?)

1. Mensagem de 6 de Abril de 2021, de Paulo Jorge Santos, filho do nosso camarada Vítor Manuel de Almeida Santos, ex-Fur Mil Art do GA 7, Buruntuma e Dara, 1972/74 (data estimada pelo editor), procurando camaradas de seu pai:

Prezados Senhores
Estou à procura de informações sobre o serviço do meu pai na Guiné.

VÍTOR MANUEL DE ALMEIDA SANTOS

Ele ainda está vivo mas intelectualmente e fisicamente diminuído após um AVC, vive en França.
Ele fez a sua formação no RAL1 em Lisboa (tenho uma placa que lhe foi dada pelo seu peleton, mas não sei porquê)

Foi então mobilizado na artillería en Guiné como Furriel Miliciano
A única coisa de que se lembra é que serviu no GAC 7 em Buruntuma e depois em Dara.

O seu matriculo era: 16187671 o 16187670 (ele hesita no último número)

Agradeço-lhe por qualquer elemento ou ligação que me possa fornecer.

Desculpo-me pelos erros portugueses, porque infelizmente nasci em França e tenho muitas dificuldades em escrever português.

Obrigado
Paul Jorge Santos


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Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21976: Em busca de... (311): Ex-Soldados Instruendos do CSM - 3.º Turno de 1971, RI 5 - Caldas da Rainha, Luís Filipe Calado José da Costa e Luís Alberto Costa Pereira do 2.º Pelotão/5.ª Companhia (Carlos Jorge Pereira, ex-Fur Mil IOI)

Guiné 61/74 - P22081: (In)citações (184): O martirológio do Boé - Ainda a propósito da(s) jangada(s) do Cheche e dos mártires do Boé: o Major Luís Vasco Pedras, da Chefia do Serviço de Material e o Fur Mil Abílio Jorge, do BENG 447 (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

1. Mensagem do nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), com data de 7 de Abril de 2021:


O martirológio do Boé

I - Acabo de ler no poste P22059 do Virgílio Teixeira o que escreveu sobre a temática da jangada do Cheche e a actividade da minha CART 1742.

Para que não sejam terceiras pessoas a falar sem terem conhecimento da actividade da companhia de que fiz parte, com muita honra, e que defendo com todo o fervor, começo por apresentar a CART e a síntese da sua actividade operacional, embora faltem alguns elementos à História da Unidade. 
Envio mapa do sector Leste com sede em Nova Lamego, que está representado com a cor laranja, o terreno que a companhia calcorreou.

Janeiro

Vamos a factos.
Foto 1 - Jangada de três canoas com pessoal da 1742, que passo a identificar. Da da esquerda para a direita: Sousa, Maurício, Neto, furriel Viola, Fonseca e Clérigo. Há mais elementos mas já não recordo os seus nomes.
Foto 2 - Neto e Fonseca puxando a jangada a braço, era assim que a travessia era feita por não haver motor auxiliar. Reporta-se a terça-feira, 17 de Janeiro de 1968, aquando da escolta à CCAÇ 1790 do Capitão Aparício que foi para Madina render a CCAÇ 1589 que tinha acabado a sua comissão.

Fevereiro

Dia 07 - Mais uma viagem a Béli, a jangada era a mesma.
Dia 29 - Mais uma viagem a Madina, a jangada era a mesma.

Março

Dia 20 - Mais uma viagem a Béli, a jangada continua a ser a mesma.

Esta é a verdade dos factos, a CART 1742 fez a travessia do rio Corubal quatro vezes, ida e volta, sempre na mesma jangada de três canoas, que transportava viaturas e pessoas, nunca vez alguma houve jangada só para transporte de pessoas. Quanto à jangada de duas canoas, nunca a vi.

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II - Emboscada entre Canjadude e Piche

A emboscada foi no 4.º trimestre de 1967 muito próximo do Natal, dia 14 de Dezembro, na qual morreram, o Alferes Gamboa,  da CCAÇ 1586,  e o 1.º Cabo Radiotelegrafista José Alves,  do EREC 1578, tendo ainda ficado ferido um soldado. 

O Alferes Gamboa ficou sem um dos galões e ao 1.º Cabo Alves foi-lhe retirada a correspondência que levava, para enviar à família quando chegassem a Bissau, já que a sua unidade estava a poucas semanas de regressar à metrópole. Essa correspondência foi lida aos microfones da rádio da libertação em Argel, que comoveu e revoltou quem a escutou.
 
O socorro foi feito por dois pelotões da CART 1742 que, chegados ao loca,  nada puderam fazer por aqueles camaradas que perderam a vida no fim da comissão de serviço.

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III - Emboscada a caminho do Cheche

A 24 de Janeiro de 1968 uma coluna que se dirigia ao Cheche com abastecimento para a malta lá instalada, um dos produtos transportados eram bidões de combustível, foi emboscada a meio caminho entre esta localidade e Canjadude, o que causou muitos feridos e a morte a 6 militares, dois continentais e quatro africanos, que morreram carbonizados junto das viaturas em chamas, quando rebentaram os bidões  durante a flagelação do IN.

A CART 1742, às 4.30 horas do dia 25, com dois pelotões, foi em socorro dos camaradas, onde foram encontrar um cenário dantesco, pessoal gritando, outros gemendo, viaturas queimadas. O nosso pessoal necessitou de colocar lenços no rosto devido ao cheiro a carne queimada, mas apesar de tudo que vimos, e como soldados que somos, reagimos, começando organizar a retirada do local para sairmos daquele inferno, rumando a Nova Lamego, onde chegamos dia 26 pelas 16 horas com um espólio macabro.

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IV - A morte do major Pedras

Aquando de uma operação que a CART 1742 fez ao Monte Siai no dia 12 de Janeiro, com contacto com o IN, e que provocou alguns feridos graves nas NT, entre eles o Alferes Magalhães, o Enfermeiro Aníbal, o Martins de transmissões e o Aguiar, conhecido por Arrifana (por ser natural desta freguesia do concelho de S. João da Madeira), que foi ferido e apanhado pelo IN. (Levado para Conakry, foi um dos camaradas libertados na Operação Mar Verde.)
 
Após termos repelido o ataque de que fomos alvo, deslocamo-nos para o aquartelamento do Cheche, local de reunião estabelecido pelas chefias militares, e já muito próximo do ponto de reunião ouvimos o som de rebentamentos, no lado contrário do Monte Siai, rebentamentos esses que foram provocados pela primeira viatura da coluna que vinha evacuar a companhia para Nova Lamego.

O Major Pedras, que pertencia ao Serviço de Material do QG, vinha nessa coluna assim como o Furriel Jorge que pertencia ao BENG 447, e que na altura se encontravam em Nova Lamego, onde aproveitaram a “boleia” para verificarem as instalações do aquartelamento, em especial a célebre jangada que ainda hoje provoca opiniões divergentes. 

Essa coluna caiu num campo de minas AC/AP do IN, instalado a pouca distância do quartel. O Major Pedras seguia sentado ao lado do condutor e o Furriel Jorge na caixa de carga da GMC, que estava equipada como rebenta-minas com materiais pesados e sacos de areia.
 
A mina foi acionada pelo rodado da frente da viatura, do lado do condutor que pertencia à CART 1742, que foi ejectado da mesma e caiu no meio do mato sem ferimentos, já o Major após o sopro, bateu com as pernas na parte interior do habitáculo da GMC de onde foi retirado para evacuação. O Furriel Jorge e um soldado africano foram cuspidos, caindo no meio do campo de minas e armadilhas, tendo ambos ali mesmo falecido.
Eu junto da GMC da CART 1742 que acionou a mina AC que vitimou o Major Pedras, o Furriel Jorge e um soldado guineense.

Aproveito para rectificar duas afirmações do Virgílio Teixeira. Diz ele que o Major Pedras foi morto por uma bazucada mas não é verdade, como acima digo, foi vitimado pelo rebentamento da mina, tendo falecido no dia 15 de Janeiro no HM 241.
 
Também diz que um soldado condutor que passou várias vezes naquele local e que assistiu a tudo, lhe contou que ajudou a transportar o Major Pedras para o héli. Como foi isto possível se após algum rebentamento toda a coluna pára e quem está para trás não avança? Ninguém saía do sítio em que se encontrava, fico admirado com o Virgílio por corroborar com tais afirmações.

Guiné 61/74 - P22080: Os Nossos Enfermeiros (16): O António José Paquete Viegas, da CCS/BCAÇ 1877, que eu conhecia de Faro e reencontrei em Porto Gole (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas, 1966/68)


Foto nº 1 > Chegada da CCAÇ 1551 a Porto-Gole.  



Foto nº 1A > O António José Paquete Viegas é o que tem o casaco por cima dos ombros, e a malota dos primeiros socorros, do lado direito.



 Foto nº 2 > Porto Gole > Da esquerda para a direita, eu, o Alferes da compahhia  dele e o Paquete Viegas


Foto nº 3 > Porto Gole > O Paquete Viegas  saindo para uma operação com o braço em cabresto 

 
Fotos (e legendas): © José António Viegas (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Mensagem do nosso camarada José António Viegas [ fur mil do Pel Caç Nat 54, passou por vários "resorts" turisticos em 1966/68 (Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e, o mais exótico de todos, a Ilha das Galinhas, na altura, colónia penal); vive em Faro; é um dos régulos da Tabanca do Algarve; tem mais de 40 referências no nosso blogue]:



Date: quarta, 7/04/2021 à(s) 18:13
Subject: Paquete Viegas enfermeiro da 1551
 

Caro Luis

Ontem li sobre os enfermeiros condecorados com a Cruz de Guerra , entre eles Paquete Viegas (*). Conheci dos meus tempos de juventude o Paquete Viegas, enfermeiro num hospital psiquiátrico que havia em Faro e fomos amigos. 

Depois de alguma ausência,  vim a encontrá-lo em Porto Gole quando a companhia. dele, a CCAÇ 1551,  foi lá fazer operações, foi uma festa mas vinha ferido,  o que não o impedia de ir ás operações. Era um bom falante e pusemos a conversa em dia. Depois dessas operações,  nunca mais lhe pus a vista em cima.

Em Porto Gole tinha grandes conversas com o médico da CART 1661 que acho que era da área de Psiquiatria.

Vim a saber,  anos depois, que esteve ligado ao Hospital de S. José  e que passava receitas na consulta de genecologia, foi apanhado e pirou-se para a América Latina,  lá não sei que voltas deu,  chegou ás boas graças de um Presidente e era ele que tratava do Presidente. 

Voltou,  faz alguns anos,  para o Algarve,  para Almancil,  onde faleceu.

 Junto 3 fotos com o Paquete Viegas. (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22072: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte VI

(...) Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro do Exército, condecorar com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe (...), por serviços prestados em acções de combate na Província da Guiné Portuguesa, o soldado auxiliar de enfermeiro, n.º 2538064, António José Paquete Viegas, da Companhia de Comando e Serviços / Batalhão de Caçadores 1877 (...)

(**) Último poste da série > 25 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21805: Os nossos enfermeiros (15): seleção aleatória, formação rudimentar do pessoal de enfermagem, carência de material, etc. (selecão de textos de Armandino Alves, 1944-2014)

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Guiné 61/74 – P22079: (Ex)citações (383): Os conflitos e a dedicação do povo. Gratidão. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Vivemos uma fase das nossas vidas onde a palavra gratidão é, amiúde, pronunciada. E diga-se, em abono da verdade, que o seu simbolismo reflete uma insuperável crença, tendo em conta o momento difícil que todo o mundo atravessa. A pandemia, covid-19, trouxe-nos inevitáveis preocupações.

A humanidade é agora confronta com um inimigo invisível e cujo território se espalha por todo o globo terrestre. Este inimigo é traiçoeiro, não conhece pátrias e nem tão-pouco as cores dos seus cidadãos. Aqui não há ricos nem pobres. Todos são vulneráveis ao traiçoeiro vírus.

Reflito, conscientemente, sobre a enorme vontade de todos os profissionais de saúde que, num subtil gesto humano em salvar vidas, se expõem ao perigo, mas jamais recusando advertir a população quanto à gravidade que a pandemia lançou para populações que são agora o espelho de um medo que cavalgou deliberadamente fronteiras.

Trago à estampa, para os meus camaradas ponderarem, um texto sobre a gratidão em tempos se guerra, mas contra um inimigo com rosto, onde certamente sentimos o quanto fora importante essa aproximação com uma população civil que vivia “encaixada” entre as partes no conflito.

O texto integra o meu livro “ Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu”.


Os conflitos e a dedicação do povo
Gratidão
Olhares distantes das mulheres grandes

Há histórias hilariantes de vida onde a encruzilhada da guerrilha se cruzou com a nobreza exótica de gentes que compartilhavam sentimentos comuns. A gratidão do povo guineense, no dar e receber, era enorme. O confronto no terreno, sendo real, não eliminava de todo um contacto permanente com uma população civil que se desfazia no ato “de bem servir” a tropa tuga.

Não vou, por razões realmente díspares, debruçar-me sobre acontecimentos reais da chamada guerrilha no terreno a qual, na minha modesta opinião, estava, aparentemente, condenada ao fracasso. Negociar? Talvez! Restava saber quando e como o processo poderia eventualmente evoluir.

A Guiné apresentava, no seu todo, um cenário deveras perspicaz tendo em conta a sua curta dimensão territorial e a forma como o PAIGC controlava os buracos no espaço. As emboscadas, ou os ataques aos quartéis, teriam pressupostamente um maior ronco se os guerrilheiros fossem possuidores de conhecimentos mais profícuos sobre a sua minuciosidade em usar as armas, ou na conceção mais exata em preparar uma guerrilha que, para nós, se apresentava transversalmente desigual.

O PAIGC contava com a ajuda de guerrilheiros cubanos que comandavam alguns dos estratos operacionais. Comentava-se, à época, que a sua operacionalidade se assumia deveras importante nos confrontos. Tinham largos anos de experiência na guerrilha, comentava-se no interior dos arames que delimitavam os aquartelamentos no mato.

O IN abastecia-se com armamento russo, sendo disso exemplo as kalachinikovs, normalmente utilizadas nos confrontos diretos, a que se associavam armas de calibre superior. Ainda assim, as nossas tropas debitavam capacidades quando deparadas com o conflito. Foram heróis!

Esta minha análise, embora sintética, enquadrou-se em absoluto quando pela primeira vez me deparei com a fragilidade, penso eu, do IN. Estávamos no mês de novembro de 1973. Na transparência de um dia levado ao êxtase, tinha completado 23 risonhas primaveras, sendo que da metrópole tinham chegado queijos de ovelha e enchidos alentejanos, comestíveis enviados carinhosamente pela minha saudosa mãe, sendo que o “material”, embora escasso, foi de pronto devorado pelos meus companheiros de lides, lembro-me que pelo meio da festança e das muitas cervejas emborcadas, chegou, inesperadamente, uma mensagem que nos deixou algo desalentados.

Cerca das quatro horas da tarde, e sem que nada o fizesse prever, fui chamado ao capitão Ramalhete, o militar graduado que controlava o gabinete de operações, que me colocou a par das novidades acabadinhas de chegar: “temos conhecimento de um grupo IN perto da tabanca (não me lembro do seu nome), sendo urgente a nossa intervenção. Prepare o grupo de imediato e siga para o terreno”. E assim foi.

A estrada ligava Nova Lamego a Piche. Uma hora depois estávamos em contacto com a realidade da guerrilha. Em pé, e de peito aberto, o Jau (guia), já conhecedor do perigo que a situação impunha, aconselhava a deitar-me uma vez que o risco ganhava uma maior grandeza.

Vincando a minha condição de ranger, tentei apaziguar as hostes porque a reação do IN, à primeira vista, parecia-me algo dispersa. A sua cadência de tiro um pouco anárquica e os sons da sua algazarra confusa. O certo é que o tiroteio serenou e a malta, antes de anoitecer, retirou sem prejuízos de maior monta.

No dia seguinte, em reconhecimento ao local, constatou-se que se tratou de um grupo, quiçá em instrução, que deixou antever inexperiência, permitindo que o pessoal no terreno não tivesse sofrido sequelas físicas, nem tão-pouco baixas para engrossar o rol de jovens infelizes tombados em combate.

Lembro a maneira como o meu camarada ranger Rui Fernandes Álvares, furriel miliciano, e do meu curso em Lamego, ironizou a situação quando chegado ao quartel e comentou o diabólico contacto: “vi um turra a fugir, apenas com uma perna, de arma na mão e a dar tiros em todas as direções. Fugia que nem uma lebre”.

Depois, embevecia-se a fazer o filme ao pormenor e a malta ria que se desunhava. O Rui era um rapaz de bom trato, com um coração enorme e oriundo do concelho de Boticas. As suas telas cinéfilas, entretanto, desenhadas, eram divinais. O seu nome jamais me fugiu da memória. A sua inclinação para criar um bom ambiente era brilhante. Um moço porreiro. Brincava com as fatalidades da guerra.

O Rui, tal como a maioria da rapaziada que pisava o palco da guerrilha, não meditava, creio, a preceito com os buracos impensáveis que a guerra impingia ao infeliz soldado chamado “carne para canhão”, propunha-se, isso sim, a disfarçar os confusos e agrestes contornos que o conflito colocava no terreno.

Éramos jovens. Não temíamos as adversidades que o rosto da mata adensada e das estreitas picadas impunham. E tantas foram as ocasiões em que a despreocupação em cima do Unimog, já caquético, nos conduzia a uma pura brincadeira não temendo o momento seguinte.

Recordo uma tarde a caminho de Piche a viatura que seguia atrás embater na traseira daquela que rolava à sua frente e a malta a atirar-se para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca, do morteiro 60 e das G3 que transportávamos nas mãos. Um arrepio entrou-me no corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas. Um “acidente” que, felizmente, não causou vítimas a bordo. Tudo correu bem. Mas… ficou o aviso.

Colocando de parte as ações da guerrilha, e as vitimizações que ela provocou, vou referir uma alegação que sempre considerei nobre: A GRATIDÃO! Não me recordo que em tempo algum tivesse sentido a nefasta opinião que a população guineense se mostrasse desordeira sempre que solicitada a um eventual pedido para uma pontual colaboração e humildemente reconhecia que a nossa tropa era um meio intervencionista para a sua própria sobrevivência.

Dar e receber apresentava-se como uma reciprocidade maioritariamente perfeita. Reconheço que a sua posição no meio territorial não se apresentava nada fácil. Lidar com duas frentes da guerrilha, manifestava uma assimetria desigual. De um lado os guerrilheiros do PAIGC, homens eventualmente conhecidos na tabanca, filhos da terra, familiares, e com quem amiúde trocavam opiniões, assumindo-se estes como os verdadeiros mestres para libertarem o território dos ditos invasores brancos; do outro, a tropa “tuga” que lutava para defender pressupostos direitos alheios, desconhecendo por completo as razões pelas quais expunha o seu corpo à bala. Uma situação dúbia que determinava a neutralidade de uma população carenciada e sobretudo sofrida.

Neste contexto, ter-me-ei apercebido da verdadeira ação do povo. Lidar com as duas faces da moeda não era fácil. Um dia tivemos conhecimento que numa tabanca situada na zona de Gabu o PAIGC se havia ali instalado. A aproximação à tabanca careceu de cuidados redobrados. Mesmo assim lá chegámos sem problemas que afligissem o grupo. A nossa ação foi pronta.

As informações recolhidas no local foram, a princípio, escassas. O chefe de tabanca dizia desconhecer a existência de guerrilheiros inimigos naquele local e era convictamente apoiado por quase toda a população. Só que pelo meio da conversa alguém se descuidou. O Jau, perito nestas andanças e sempre atento, apercebeu-se e toca a pôr o homem que bufou a confessar.

Ficámos a saber que um grupo de guerrilheiros pernoitou na noite anterior na tabanca, mataram uma vaca, comeram e beberam, fizeram uma festa e ao romper da aurora partiram para um novo rumo.

Esta conceção, tida como perfeitamente atendível, sublinha o reconhecimento de um povo em guerra que brigava, apenas, pela sua sobrevivência. Aliás, a forma como toda a população se entregava a uma missão plenamente percetível, deixava antever que o seu sentimento puro de dar e receber não suspendia os começos que a guerrilha, desde o seu início, lhe propusera.

Numa viagem memorial aos idos da década de 1970, recordo os tempos passados na Guiné em que recebi e dei momentos de enorme gratidão. Um abraço sentido para o povo da Guiné!

Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

20 DE FEVEREIRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P21924: (Ex)citações (382): O 1º Cabo RD "Estraga a Tábua" que eu conheci em 1962, no então BC 10, mais tarde, RI 19, Chaves (E. Esteves Oliveira)

 

Guiné 61/74 - P22078: Blogoterapia (297): Obrigado, a todos, por se terem lembrado de mim no dia dos meus anos... sozinho em casa, com o computador nos "cuidados intensivos" e agarrado à máscara de oxigénio por causa do pó do Saara... (Valdemar Queiroz, Agualva-Cacém)


Cacém > PC-Doctor > Rua Marquês de Pombal,nº 89, loja, esquerdo... Tem página aqui. (Passe a publicidade, mas é uma informação que pode ser útil para os camaradas da Tabanca da Linha)


1. Mensagem do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; tem mais  de 120 referências no nosso blogue, e é um activo e incansável comentador]:


Date: terça, 6/04/2021 à(s) 23:58
Subject: Obrigado, Luís Graça


Luís, muito obrigado pelo teu telefonema.

Já estou um pouco melhor, embora agora com uma ciática (?) numa perna, e deu para ir buscar o meu computador que já está pronto para mais umas viagens.

Embora com algum atraso, já fiz um comentário no post do meu aniversário no nosso blogue. (*)

Teve piada o meu computador ter estado em cuidados intensivos na loja dum PC-Doctor, indicado pelo meu filho por terem sido colegas no Secundário.

E cá vamos andando.
Abraço
Valdemar

PS - Anexo uma foto do consultório do PC-Doctor


2. Comentário do Valdemar Queiroz, no poste P22050 (*)


Obrigado a todos.

Não é por ser meu hábito, mas só agora estou a agradecer a atenção pelo vossos Parabéns no dia do meu 76º. aniversário. Fico muito sensibilizado.

Este atraso de agradecimento deves-se ao facto do meu computador não ter escapado a mais um vírus e ter de ser internado nos cuidados intensivos num PC-Doctor com internamento de 24/03 até 05/4/2021. Afinal não era propriamente um vírus, era mais um problema da idade avançada com necessidade de substituição dumas peças (, afinal até nos humanos assim acontece).

Mas, com a saída,  expus-me às ditas poeiras/areias do Saara e fiquei bastante enrascado com o meu problema DPOC [doença pulmonar obstrutiva crónica] e foram dias seguidos a máscara de oxigénio, incluindo o dia dos meus anos.

Sem o computador que faz de livro, jornal de notícias, sala de cinema e teatro, troca de conversas com familiares, amigos e camaradas da Guiné, e sem poder sair de casa, deu para voltar a ler "Viagem a Portugal", de José Saramago, e reler algumas "Vida Mundial" e uns Suplementos Literários do "Diário de Lisboa" que, com uns filmes do Estúdio do Cinema Império, faziam parte da 'militância de ser culto' para fazer boa figura em tertúlias de mesa de café... naqueles belos anos sessenta.

Obrigado, Cherno Baldé, o que será feito dos outros Embalós?
Obrigado, Luís Lomba, nunca mais voltaremos a passar naquela inesquecível Ponte Caium.
Obrigado, Gaspar, não te esqueças de quem nos lixou aqueles belos anos sessenta.
Obrigado, Luís Graça,  pela amabilidade do teu telefonema.
Obrigado,  Duarte, para o mês de Junho não pode faltar a nossa sardinhada.
Obrigado a todos.
Os meus Parabéns ao António Graça Abreu e à Rosa Serra.
Para o ano há maís.

Abraços
Valdemar Queiroz

6 de abril de 2021 às 23:22

3. Comentário do editor LG:

A gente às vezes pensamos que somos "os mais coitadinhos do mundo"...Basta dar uma vista de olhos pelas salas de espera dos nossos hospitais, centros de saúde, consultórios... Cada um, cada uma, mergulhado/a na "sua dor"... Enfim, basta ouvir as conversas, agora mais mitigadas pelas restrições impostas pelo confinamento: ai a minha perna, ai o meu braço, ai o meu problema de saúde que é muito maior do que o teu, ai os meus medicamentos que são muito mais caros do que os teus... 

Mas adiante, não vim falar de mim... nem do meu umbigo, parafraseando o nosso camarada Alberto Branquinho (que tem andado arredado do nosso blogue). Venho, sim, dizer que fiquei, há dias, sensibilizado com a situação d0 nosso camarada Valdemar Queiroz que vive há anos sozinho na sua casa em Agualva-Cacém, e tem que saber lidar com uma doença crónica tramada, uma DPOC (**)... Foi o Renato Monteiro, outro portador de uma DPOC, que me deu o seu nº de telemóvel. 

Fiquei a saber que o Queiroz divide os 365 dias do ano entre a Holanda (onde tem filho e netos) e Agualva-Cacém... O clima da Holanda é tramado para um portador de DPOC, razão por que passa cá uns meses... E aqui só sai para o estritamente necessário, tem o carro à porta, mas é de uma autonomia impressionante. Está habituado a (e gosta de) cozinhar. E tem um sentido de humor que o ajuda a superar as dificuldades e contrariedades... 

Há dias o seu PC "pifou" e foi preciso ir ao PC-Doctor... Valeu-lhe o filho, na Holanda, que à distância lhe deu umas dicas... Meteu-se o Queiroz ao caminho até ao consultório do PC-Doctor, mas em mau dia, com a atmosfera carregada de pó do Saara... Resultado: teve uma crise dos diabos...

No dia dos anos, não consegui que ele me atendesse. Consegui ontem, e ele ficou sensibiizado. Até o gesto de pegar no telemóvel lhe custa.

Conversámos um pouco, não quis maçar. O meu respeito por ele aumentou. Já estava a ficar mais aliviado, depois de uma crise de vários dias. E estava entusiasmado porque o PC estava pronto e ia buscá-lo. É a sua ligação ao mundo, para mais neste tempo de não-tempo de Covid. 

Fico feliz por saber que ele também já pode voltar ao nosso convívio na Tabanca Grande. E se alguém quiser telefonar-lhe, que me peça o número: dá-lo-ei, com todo o gosto... Sabe tão bem ouvir uma voz amiga quando se está doente e sozinho, em casa!... (***)
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Guiné 61/74 - P22077: In Memoriam (391): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021) - A Cristina, a Guiné e a sua presença na nossa sala de conversa (Mário Beja Santos)

1. A propósito do falecimento de Maria Cristina Allen, acabámos de receber do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) esta sua mensagem:


A Cristina, a Guiné e a sua presença na nossa sala de conversa

Mário Beja Santos

Conheci a Cristina em março de 1968, acabara de chegar de Ponta Delgada, uma prima anunciara-me que constituíra um estupendo grupo que reunia aos sábados, intimava-me a comparecer. Disse que sim, jantei em casa da minha irmã, perto do Largo do Rato, desci depois a Braancamp e entrei num bar do Hotel Flórida e conheci gente que a Teresa Filomena arrebanhara, bem-disposta e coloquial.

Apresentados e conversados, seguimos para o Aeroporto da Portela, o seu bar panorâmico ainda era muito concorrido. Fiquei ao lado de uma jovem pequena e airosa que logo me questionou de que paragens vinha, impressionou-me muito não só pela sua beleza mas pela conversa cativante. Por intermédio da Teresa Filomena lá estabeleci novo encontro fora do grupo, e poucas semanas depois, vindo ao fim da tarde de dar instrução no Regimento de Infantaria N.º 1 (Amadora), a Maria Emília Brederode Santos e o José Manuel Medeiros Ferreira deixavam-me à porta de um café onde passei a namorar com a Cristina. Depois fui apresentado aos pais, a minha futura sogra dispensou-me um formidável acolhimento no período que precedeu a minha saída da força militar onde estava incorporado e a aguardar transporte para a Guiné, em rendição individual. E a 24 de julho desse ano, a assistir ao choro convulsivo dos meus entes queridos, embarquei no Uíge, dado curioso comecei a bordo a encontrar-me com gente do BCAÇ 2852, iremos passar mais de um ano bem próximos, eles em Bambadinca e eu no Cuor. Chegado a Bissau, e assim que me deram o número do SPM (o 3778) telefonei à Cristina. E assim nasceu uma correspondência que foi essencial para escrever os meus dois volumes do Diário da Guiné, tudo lhe contava, ao pormenor, desde os arranjos do quartel, as idas a Mato de Cão, as carências, as flagelações, o trabalho do professor com crianças e graúdos. Todo este volume de correspondência trocada foi entregue ao Luís Graça, ficou como fiel depositário, pedi-lhe que se eu partisse para as estrelinhas entregasse tudo no Arquivo Histórico-Militar. Tomou-se a decisão de casar em Bissau, o que aconteceu em 20 de abril de 1970, dia em que se esbarrondou um sonho de Spínola e que custou a vida a três majores, um alferes e vários guias, barbaramente retalhados numa força do PAIGC, algures entre Pelundo e Jolmete. Conto no segundo volume do meu diário as peripécias que me permitiram casar, o David Payne, então médico do batalhão, combinou com o comandante deste, que eu precisava de ter uma baixa à neuropsiquiatria em Bissau, andei envolvido, nos meses de março e abril, e até 3 dias antes de partir, num conjunto de operações, e meti-me num Dakota em Bafatá com a guia para o HM241, casei, tive uns dias de lua de mel e depois a Cristina passou a visitar-me no hospital, onde se passaram cenas do arco da velha. Ela regressou e montou a nossa casa, conviveu-se com casais amigos ainda em Bissau, foram amizades que permaneceram.
1970 > Cristina Allen em Bissau

A Cristina entrou no blogue quando ambos fomos devastados pela morte da nossa filha mais nova, alguém, a propósito, suscitou um comentário e a Cristina respondeu. Entregava-me as folhas escritas à mão e eu punha tudo no computador e enviava para os editores do blogue. Teve um poder catárquico, este tipo de intervenção.

Nos últimos anos, a saúde da Cristina sofreu um forte abalo. Quando a conheci já ela padecia de lúpus eritematoso sistémico, habituei-me àquelas crises e sobretudo à necessidade quase permanente de muito repouso, não foi fácil, até porque as filhas repontavam, a mãe saía pouco, houve que fazer um esforço de sensibilização às crianças para aquela estranha doença. Surgiu-lhe vasculite, foi um golpe psicológico rude, uma mulher bonita com as pernas inchadas, avermelhadas. Aumentou o consumo de tabaco, isolou-se e em 2019 era percetível que havia um certo transtorno psíquico para além da gravidade do quadro das comorbilidades. A 24 de dezembro de 2019 houve que chamar o INEM, transportada para Santa Maria, ali permaneceu entre a vida e a morte, os problemas respiratórios eram muito graves, um quadro de pneumonia em cima de um enfisema pulmonar. E o transtorno deu em demência, quando teve alta, um mês e meio depois, houve que encontrar a solução de um lar, e ali permaneceu até que em 5 de abril, inopinadamente, o Pai Misericordioso compadeceu-se da sua vida tão lastimosa, teve uma paragem cardiorrespiratória, nada se pôde fazer.

Haverá velório nesta quarta-feira, entre as 17 e 20 horas (não foi doente COVID, pelo tudo se regerá pelas normas habituais de segurança), na Igreja do Campo Grande. Quinta-feira, no mesmo local,celebrar-se-á missa pelas 15 horas seguindo para os Olivais, para cremação. Obrigado por a recordarem e lhe desejarem a contemplação divina, ela nunca esqueceu a Guiné e sentiu-se muito reconfortada no blogue, adorou a sala de conversa.

Um abraço do
Mário

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Nota do editor

Vd. poste de 7 de Abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22075: In Memoriam (390): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021), ex-esposa do nosso camarada Mário Beja Santos, faleceu no Lar de Santa Catarina de Labouré, Lumiar, Lisboa (Editores)

Guiné 61/74 - P22076: Antropologia (42): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
A recolha que Manuel Belchior fez no Gabú abre preciosas pistas de trabalho. Recorde-se a importante investigação de Carlos Lopes sobre o Kaabunké, o Império do Cabo tinha vasto território na colónia portuguesa. Há lendas muito antigas que os povos não esqueceram, como Sundjata Keitá, o fundador do Império do Mali, aliás estes trovadores que ao longo de séculos exaltaram estes heróis não circunscrevem o território, tanto podem falar do Sudão como da África do Noroeste, as narrativas precipitam-se para os combates entre Mandingas e Fulas, estamos já no século XIX, estes heróis vão entrar no ocaso com a chegada dos franceses, dos ingleses e dos portugueses no chamado período da ocupação, as três potências coloniais introduziram um enquadramento político-administrativo que desmantelou os velhos poderes. São lendas onde há por vezes sinonímia com os quadros lendários indo-europeus: lealdade e deslealdade; amizade e traição; bravura descomunal... E ficamos a saber como estes reinos viviam em guerras permanentes e se dedicavam ao tráfico de escravos. São linhagens que o povo ao longo dos tempos recordou sempre graças aos trovadores, foram estes artistas que comoveram os povos falando-lhes de uma identidade perdida, nesses tempos remotos de grandeza africana.

Um abraço do
Mário


Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa, por Manuel Belchior (2)

Mário Beja Santos

Manuel Belchior, já aqui abordado a propósito dos seus livros Contos Mandingas e Os Congressos do Povo da Guiné, era funcionário colonial com habilitações superiores, uma longa carreira administrativa no Ultramar Português (de 1938 a 1961), depois foi investigador da Junta de Investigações do Ultramar, em serviço da qual se deslocou à Guiné numa missão que está na base que tornou possível a publicação deste livro. "Grandeza Africana" foi editado pela Mocidade Portuguesa, não se menciona a data. A capa e as belíssimas ilustrações são de José Antunes. No Gabú, contatou o régulo Alarba Embaló, descendente dos Embalocundas, que governaram durante muito tempo o Gabú unificado – o régulo Monjur era descendente desta família. Alarba Embaló deu meios a Manuel Belchior para ir conhecendo narrativas orais transmitidas de geração em geração, neste caso o repertório envolve duas importantes etnias, Fulas e Mandingas.

A recolha de Manuel Belchior permite uma viagem pelo tempo, começando em Sundjata Keitá, fundador do Império do Mali, filho do rei de Mandem, são narrativas de bravura, elegias de fraternidade, trata-se de uma preciosa recolha que permite, a despeito de todas as interrogações que levantam as narrativas orais, não abonadas por documentação factual, entender como se ergueram impérios, como ainda subsistem heróis lendários como Coli Tenguelá, Alfá Moló, figuras de transição de um império em franca decomposição cuja machadada final foi dada pela chegada da potência colonial, que trouxe uma nova organização político-administrativa. Era indispensável, como ponto de referência incontornável, falar da batalha de Cam Salá. Obrigatório é também a canção de Quelé Fabá, como sempre a descrição tem consideráveis semelhanças com a mestiçagem da descrição africana e islâmica, veja-se o caso:

“Quelé Fabá Sané, natural de Badora, era o maior guerreiro das terras de Bafatá e Gabú. Ninguém o igualava em temeridade e destreza. Tão alto subiu a sua fama que vários régulos, quando empenhados em guerras, pediam seu concurso.

Um dia, Demba, senhor de Baria e seu amigo, chamou-o para o auxiliar a combater um chefe vizinho poderoso.

Pôs-se Quelé Fabá a caminho, acompanhado da sua mulher, Fendabá, mas antes de partir jurou na sua tabanca que, nem na guerra, nem tão pouco na viagem, voltaria a cara para trás.
A certa altura necessitaram de atravessar um rio e, na canoa, o herói esqueceu-se do juramento feito. Para melhor conduzir o barco ficou de frente para o ponto de partida. Vendo isto, Fendabá gritou: - Que desgraça! Lembra-te do juramento! Entristeceu Quelé Fabá e disse que o seu esquecimento era presságio de que ia morrer na luta”
.

É bem curioso, como observam investigadores das Literaturas Comparadas, as analogias de temáticas clássicas, a quebra do juramento, o olhar para trás e aparece igualmente no mito órfico.

Pondo termo a estas lendas da Guiné Portuguesa coligidas por Manuel Belchior, recordemos seguidamente Samori Touré, de quem Sékou Touré se dizia descendente, o religioso Fodé Bacar Dumbiá, que tratava as suas duas mulheres desigualmente, ele reparou na injustiça e da relação nasceu Fodé Cabá. 

Tudo se passa no final do século XIX, o Islamismo ia triunfando por todo o imenso Sudão e, de uma maneira geral, em toda a África do Noroeste, Fodé Cabá aplicou-se na conversão dos djolas, povo idólatra que vivia no Baixo Casamansa, criou um reino cujas fronteiras tocaram o de Mussa Moló, rei de Firdu, crescem as tensões e depois a guerra. São, curiosamente, heróis que vão desaparecendo. Associado a esta história de Fodé Cabá temos outra narrativa, o primeiro combate de Demba Agedá, vê-se claramente tratar-se de uma história apologética do triunfo do Islamismo.

Já com relação a uma outra história lendária que envolve o régulo Monjur, do Gabú, temos o cativeiro de Selu Coiada, príncipe Fula-Forro. O rei do Firdu, Mussa Moló, foi visitá-lo, era um cortejo de 300 cavaleiros ricamente vestidos. A alegria do encontro foi turvada quando um dos trovadores sentenciou: Por mais que um Fula-Preto seja rico ou poderoso, nunca o seu valor pode igualar o de um Fula de raça. Da amizade passou-se ao ódio e depois a vingança. 

Manuel Belchior aproveita para fazer alguns comentários. Selu Coiada sucedeu a seus irmãos Alfá Bacar Guidali e Alfá Mamadu Paté no trono do Gabú, que transitou a seu sobrinho Monjur Embaló, falecido em 1926. Os soberanos do Gabú pertenciam à família dos Embalocundas. As autoridades portuguesas da Guiné intercederam junto das autoridades francesas do Senegal para que estas alcançassem de Mussa Moló a liberdade de Selu Coiada. O príncipe Fula-Forro foi entregue ao comandante português de Farim por uma escolta francesa.

História bem curiosa é a narrativa que fala da conquista do Futa-Djalon. O soberano da região, o Almami Abubakar, confiou ao seu parente Alfá Iáiá a chefia dos 666 regulados da região de Labé, por um ano. Alfá recusou-se a entregar o mandato, seguiu-se guerra, o Almami foi vencido, outros intercederam, Alfá também foi vencido. O Almami procurou fazer as pazes com o seu parente. 

Intervêm os franceses, passaram a ser os senhores do Futa-Djalon, onde somente Alfá Iáiá, no Labé, guardaria por pouco tempo uma certa independência. Noutra narrativa, assistimos à deposição de Alfá Iáiá, o último grande senhor do Futa. E termina a obra de Manuel Belchior com a canção de Cherno Rachide, que habitava em Aldeia Formosa ou Quebo, cuja letra é a seguinte:

Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida nos vai dar,
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.

Raparigas sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao seu leito
E a todas as vontades.

A vós rapazes dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, inda mais sábio, Logomane
Que outrora assim falou:

- Deves ter fé em Deus que tudo vê
E tudo pode acerca dos mortais
Trabalha com ardor e serás útil
A ti e aos demais.

- Estuda e elevarás a tua alma
Que os livros te podem ensinar
Muitas coisas formosas deste mundo
E a Deus agradar.

- A palavra, o alimento e o sono
Como remédio deverás tomar:
O bastante p’ra que o corpo não sofra
Mas sem nunca abusar.

- A boca é uma e as orelhas duas
Isso te indica como proceder
Usa o ouvido mais do que o falar
E saberás viver.


- Em três partes o estômago divide
P’ra comida só uma reservar
As outras hão-de ser bem necessárias
P’ra água e para o ar.

- A noite é grande e não deve ser gasta,
Do sol posto a amanhã, toda a dormir,
Destina parte dela à oração,
Terás feliz provir.

- Deves casar p’ra nunca cobiçares
Mulher d’outro. Não nego, o casamento
Terás desgosto profundo.
Mas se a fêmea procura fora dele,
Em vez desse desgosto terás dois
Neste e no outro mundo.

Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há de contar
Satisfações a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22054: Antropologia (41): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22075: In Memoriam (390): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021), ex-esposa do nosso camarada Mário Beja Santos, faleceu no Lar de Santa Catarina de Labouré, Lumiar, Lisboa (Editores)

IN MEMORIAM

Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021)


1. Em mensagem de ontem, 6 de Abril de 2021, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), trouxe até nós a triste notícia do falecimento da sua ex-esposa Maria Cristina, no Lar de Santa Catarina Labouré:

Aos meus amigos,

A Cristina faleceu no Lar de Santa Catarina Labouré, onde vivia desde Fevereiro do ano passado, vítima de paragem cardio-respiratória.

O Pai Misericordioso compadeceu-se da sua vida tão lastimosa, sofrendo de problemas respiratórios graves, enfisema pulmonar, vasculite, demência.

Haverá velório na quarta-feira entre as 17 e as 20 horas (não foi doente COVID, pelo tudo se regerá pelas normas habituais de segurança), na Igreja do Campo Grande, quinta-feira, no mesmo local, celebrar-se-á missa pelas 15 horas seguindo para os Olivais, para cremação.

Obrigado por a recordarem e lhe desejarem a contemplação divina,
Mário


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2. Nota dos editores:

Cristina Allen foi esposa do Mário Beja Santos, casaram na Catedral de Bissau no dia 20 de Abril de 1970.

Tiveram duas filhas, a Maria da Glória, que infelizmente já nos deixou,  e a Joana, mãe da pequena Benedita que é alegria do avô Mário.

Cristina Allen, membro de longa data da Tabanca Grande,  tem 15 referências no nosso Blogue, incluindo  um dos postes dedicado à sua filha Maria da Glória (Locas) após o seu prematuro desaparecimento.

Pelos contactos de trabalho, constantes, com o Mário, íamos sabendo da evolução do estado de saúde da Cristina, podendo assim testemunharmos a dedicação dele à sua companheira e mãe de suas filhas.

Porque o Mário é merecedor da nossa maior gratidão pelo muito que tem feito por este Blogue, deixo-lhe, assim como à sua filha Joana, em nome dos editores e da tertúlia, as nossas mais sentidas condolências.

1970 > Cristina Allen em Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22041: In Memoriam (389): Ilídio Sebastião Vaz (1945/2021), ex-fur mil enf, CCaç 14 (Bolama e Cuntima, 1969/1971): morreu em Havana, Cuba, em sequência da Covid-19 (Eduardo Estrela)

terça-feira, 6 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22074: Manuscrito(s) (Luís Graça) (203): Para a Joana, que hoje faz anos: "E os adultos, esses, já morreram todos. Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer” (Louise Glück | Frederico Pedreira, "Uma Vida de Aldeia", Lisboa, Relógio de Água, 2021, p. 133)


Página do Facebook da Joana Graça / Joana Carneiro... Com a devida vénia...

Joana:

1. Queria-te oferecer, como prendinha de anos, a novela gráfica “Balada para Sophie”, da genial dupla Filipe Melo e Juan Cavia (Lisboa, Tinta da China, setembro de 220, 320 pp). 

Simplesmente,  está esgotada. Mas fica prometido um exemplar da 2ª edição ou reimpressão.

Vê e ouve aqui ao menos a interpretação ao piano da Balada, pelo autor e pianista Filipe Melo (que é amigo do João e a quem dei umas "dicas", há uns anos, para o guião de uma outra BD, também portentosa, "Os Vampiros", cuja história se passa na fronteira da Guiné com o Senegal, em dezembro de 1972). 

[Sinopse: "Guiné, Dezembro de 1972.Em plena guerra colonial, um grupo de soldados portugueses é destacado para uma operação secreta no Senegal. Porém, à medida que vão sendo consumidos pela paranóia e pelo cansaço, esta missão aparentemente simples vai transformar‑se num verdadeiro pesadelo. Embrenhados na selva, estes homens terão de confrontar sucessivos demónios – os da guerra e os que trouxeram consigo."].

2. Em alternativa, trouxe-te um livro de poesia, em edição bilingue, inglês/português. Não conhecia a autora, Louise Glück, Prémio Nobel da Literatura 2020. Nova-iorquina, de ascendência judaico-húngara.

Acho que vais gostar: A Village Life (2009) / Uma Vida de Aldeia, numa belíssima e rigorosa tradução de Frederico Pedreira, também ele poeta. [Edição da regógio d'Água, Lisboa, 2021, 160 pp.]

Lê-se na badana: 

 “Teve uma infância e adolescência difíceis, mas um contacto precoce com autores gregos e latinos permitiu-lhe acolher a herança clássica e escrever uma poesia que , através de imagens universais, aborda a fragilidade essencial dos seres humanos”.

Acho que vais gostar. É o meu “feeling”. E mais: acho que podias escrever poemas quase tão bons como estes,   naqueles “notebooks”, baratuchos,  do Auchan,  que eu te costumo oferecer, e que tu approveitas da primeira à última folha, com notas, pensamentos, poemas, (in)confidências, desenhos, esboços de qualquer coisa… que um podia poderão transformar-se em livro. Tenho sempre a esperança que tenhas mais golpe de asa do que eu. Porque talento, felizmente, não te falta para o desenho e a escrita.


3. Folheando o livro, "Uma Vida de Aldeia", lendo na vertical, destaquei uma meia dúzia de versos:

(...) “Para poder nascer, o nosso corpo faz um pacto com a morte,

e, a partir desse momento, tudo o que tenta é fazer batota”
(p.77)


(...) “Que belas estão as flores – símbolos da resiliência da vida.

Os pássaros aproximam-se vorazes.”
(p. 105).


(...) “Nada prova que estou viva.

Há apenas a chuva, a chuva é infindável”
(p. 117).


(…) “E as pequenas coisas que antes nos

faziam felizes

já não conseguem chegar a nós”
(p.125)


(...) “E os adultos, esses, já morreram todos.

Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer”
(p.133)…


(...) “Corpo meu, (…)

não é da Terra que irei sentir falta,

é de ti que eu irei sentir falta”
(p.137).


Joana, é uma escrita muito feminina, austera, depurada, de alguém que sabe fazer, com as palavras, a necessária logoterapia que transforma a(s) nossa(s) fragilidade(s) em beleza poética. As palavras não servem para mais nada, se não para criar beleza e reordenar a realidade. Sem as palavras, teríamos o caos. 

Que tenhas um lindo dia 6 de abril de 2021

Teu pai e tua mãe (que, todos os anos, por este dia, às 10h30, deixa cair uma lágrima ternurenta  com a memória do teu parto, no Hospital de Santa Maria há 43 anos).

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Nota do editor:

Último post da série > 4 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22066: Manuscrito(s) (Luís Graça (202): A Páscoa: este ano resta-nos a saudade... e as fotografias e os vídeos de antanho. E a Covid-19 que nos confina e nos espreita.

Guiné 61/74 - P22073: Blogoterapia (296): Melancolia - Em dias chatos e aborrecidos, ligo a música e deixo que ela me transporte para outros níveis de consciência mais suportáveis (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Miguel Torga

Foto (editada): Com a devida vénia a SAPO Viagens


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 5 de Abril de 2021:

E
m dias chatos, aborrecidos, tramados, nefastos, em que tudo de mau acontece, sem querer especificar, ligo a música e deixo que ela me transporte para outros níveis de consciência mais suportáveis. Nessa atmosfera de sons em harmonia, surge a melancolia que é um estado de alma nem alegre nem triste, enfim é uma tristeza suave que ajuda a viver e a suportar a realidade nua e crua das mágoas em ferida que o pessimismo avoluma.

Talvez o meu problema seja a dicotomia de viver entre duas vidas, ou minha falta de jeito para utilizar as palavras adequadas quando me dirijo aos outros, enfim um problema criado pela solidão social e intelectual e no entanto eu valorizo o auxílio que outros com mais poder dialéctico me poderiam trazer.

Fernando Pessoa bebia vinho ou aguardente, bebidas nacionais, no Martinho da Arcada ou na Brasileira e escreveu odes e poemas imortais para a posteridade.

Cafés que Luís de Camões, grande poeta e grande boémio, não frequentou porque no seu tempo não havia, perdia-se por vielas e tabernas com marinheiros e plebeus, e por palácios com reis e nobres ociosos segundo reza a lenda, a arquitectar o grande poema, que escreveu, como um grande hino à Pátria.

Eu como outros amigos com menos talento ficaremos contentes se encontrarmos algum companheiro paciente e lúcido para escutar as nossas lamúrias na esperança de que ele seja um deus que tudo cala e tudo perdoa.


Neste devaneio da memória, surge Miguel Torga, meu ídolo maior, com o rosto farto, seco e rugoso esculpido em granito pelo vento agrestes das montanhas a lembrar o meu velho pai , um homem com raízes fundas também nesse "Reino Maravilhoso" de terras pobres que obrigavam a meditar e marcavam os rostos com rugas acentuadas.

Tão longe tão próximo, uma figura tutelar, outro herói nacional que me acompanha desde a adolescência.

Nos últimos Diários, com a idade a avançar mas com uma lucidez sempre jovem, impressiona-me o pessimismo e a angústia de viver que revela, e de que não dá explicações. Chegado a um alto patamar da vida em prestígio, fama e homenagens, esse grande lutador, destinado a ser lavrador ou pastor, que em ciência e livros se transformou num oráculo amado e admirado por todo um povo. Talvez eu tenha que ler a biografia dele, se a houver, para conseguir interpretar essa tristeza que a mim me contagiava.

O tempo abriu. Está um lindo dia de Primavera. Não há dias felizes, há horas felizes!

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21085: Blogoterapia (295): O Covid-19 e os mísseis Strela (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)